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Vamos nos colocar sob 0 . . Sousindrade. Qualquer conversa sobre poéticas indigenas da AmazOnia tem que passar por ai. O texto sousandradino, no. Que traz de mais brilhante e antecipador, [ANTONIO RISERIO] *Pom para duas dizegbes. De uma parte, ANTONIO RISERIO refletindo a projegio dominadora dos EUA sobre 0 continente, enfronha-se no pro- cesso urbano-industrial. De outra, mer- " Go st i gulhado na solidio magica das terras ama- Estes ndo sGo poetas quaisquer mas z6nicas, denuncia a desintegracao final do sacerdotes, profetas, videntes, isto 6, mundo indigena brasileiro, plantando-se entio em terreno antropologico. Interes- homens que a comunidade cré estarem sa-me aqui esta encruzilhada poético-an- 7 tropoldgica. £ que acabo de atravessar um em relagéo com os deuses. Quando falam [roPasits. 1 duc capo Oe trac a ses Canibats, de Eduardo Viveiros de Cas- tro*. possivel extrairdaf, em termos gené- Marcel Mauss. ticos, © que seriam as linhas bisicas de ‘uma poética araweté. Ea figura de Soustn- drade pairou sobre a leitura. Como alguns dde seus companheiros do. movimento 10- méntico, Soustndrade afirmava a existéncia de um texto criativo amerindlo. E co- nhecia diretamente a vida indigend, favorecido ainda pelo acaso de ter nascido no Maranhio. Foi talvez o primeiro "moderno" a ter olhos para o Jurupati, mito abo- rigine da dominacio masculina. Dai o valor também documental de sua obra. Mas hé mais. Frisando que Sousindrade era um poeta mais do que interessado na lin- guagem indigena, Augusto de Campos me fez, recentemente, a seguinte obser- vagio: com 0 Tatuturema, Sousindrade parece ter" pré-prenunciado” e incor- porado a sua poesia a matriz do canto amerindio. E citou, a propésito, a passagem ™ — A grinalda tecamos/ As cabegas de lua:/ Oaca! yaci-tatd!/ Tatd-yrd, / Glorias da carne crua Sob 0 signo de Souséndrade, portanto. Foi com olhos sousandradinos que per- corri as paginas de Viveiros de Castro. E que se diga logo: Araweté — Os Deuses Canibais € um livro rico, atrevido, composto sem medo do risco da originalidade. Devemos coloci-lo no rol das grandes obras tupinologicas, ao lado dos estudos de Métraux e Florestan Fernandes. Seu tema é a cosmologia araweté, submetida a um exame descritivo-interpretativo a0 qual nio faltam excursGes comparativas, com 4 convocacio a0 tablado de outros povos de cultura tupl-guaranl. Discutindo temas que vio do conceito de pessoa ao canibalismo divino (os arawetés acreditam que, pés-morte, serio devorados pelos deuses, que depois os ressuscitardo a partir dos sdo os deuses que falam por suas bocas”. Eduardo Vd Casio ANTONIO RISERIO & poeta, ‘enealsta e tradutr,Pubicou, entfe outosIvtos, O Postico eo Poltice (Paz e Tera), Cores Vives ‘Fundagto Casa de Jorge ‘Amaso) ¢, em patcetia com Paulo ‘Clsai Souze, Vicente Huidebro: AMtazore Outros ‘Poemas (ir Editor). % REVISTA USP (08508), 0 que Viveiros deseja é propor uma visio da metafisica araweté — e para isso recorre & poemtisica tribal, em cuja exposicéo nos concentraremos adiante. Estamos aqui anos-luz além da fantasia daqueles missiondrios que, no século XVI, pensavam que a alma indigena fosse pagina de uma brancura virgem, onde poderiam imprimir (05 dogmas do catolicismo. Trabalhos como os de Héléne Clastres, Manuela Carneiro da Cunha, Viveiros de Castro € outros nos mostram, a0 contririo, © quanto € labi- rintica a tessitura da alma amerindia, Antes que pagina-em-branco, profusio de hie- rOglifos, plenitude de signos, palimpsestos. Irresistindo a provocagio, direi que ha apenas um ponto (além do estilo, é claro) em relacéo a qual a atual antropologia brasileira tem ficado aquém do etnografismo colonialista-cristio dos séculos XVI € XVII. Refiro-me questo sexual, Discuti o assunto com 0 antrop6logo Ordep Serra Naqueles tempos em que "o europeu saltava em terra escorregando em india nua'" (Freyre), 0 escritor era moralista, mas ndo recuava diante do assunto. Ocorreu entio uma inversdo: nossos atuais antropdlogos podem ndo ser puritanos pessoal- mente, mas a literatura que produzem 6, O sexo se tornou uma espécie de tabu da antropologia brasileira contemporanea. E Sousindrade: Bocetadas em flor,/ Altos seios carnudos,/ Pontudos/ Onde ha sestas de amo: Ainda aqui, em todo caso, Viveiros destoa do padrio. Fala da ars amatoria araweté; da prética indigena da manipulagdo dos grandes labios vaginais; da iniciagdo sexual Indios arawotés em excursio mata, nesta pagina; na outra, a ‘esquera, trabalhos coi ‘india com a crianga, a direta + Fo do Jancte, Jorge ‘ZanariANPOCS, 1905. REVISTA USP 28 REVISTA USP de meninos ¢ meninas; da instituigdo do apibi-piba, sistematica da troca de cOnju- es, swing florestal institucionalizado. Mas deixemos a sexualidade indigena ¢ o esquisito bloqueio antropol6gico. Meu assunto € poesia. E aqui ndo posso deixar de fazer uma critica geral. Ao ler meus escritos sobre o texto criativo extra-europeu, onde reclamo da desatencdo de nossos escritores para criagdes textuais nascidas fora do circulo estritamente literdrio, um poeta brasileiro protestou, ponderando que eu carregava na cobranca 20s poetas, quando deveria cobrar mais incisivamente dos etndgrafos. Por que Darcy Ribeiro, em vez de romances descartaveis, nio nos deu uma antologia comentada da poesia indigena? — me perguntou. De fato, Darcy nos deu apenas uma pobre coletinea da arte vocabular kadiwéu. E tenho que reconhecer que a observagao € correta, Nao 6 (0s poetas precisam abrir os olhos e 0 coracio para a poesia indigena (e africana), como os etnégrafos precisam nos mostrar mais sistematicamente a colheita poética de suas expedigdes. Sei que muitos sio insensiveis a0 assunto — mas outros, ndo. Posso citar os exemplos de Viveiros, de Betty Mindlin, agora as voltas com 0 texto surui, ou de Rafael Bastos, empenhado na recriagio dos cantos que compoem © ritual kamaiuré do Yawari. Mas a verdade € que muitas coisas jazem por ai em batis € gavetas, Seria bom se vissem a luz do sol. Seeger, por exemplo, diz que recolheu cinguienta akias (género poético-musical suid) em work field. Onde estio? Cartas na mesa, por favor. E que 0s poetas se aproximem, para que os textos em questo sejam recriados em linguagem esteticamente eficaz. expresso" araweté" foi inventada por um sertanista. Aquele povo amaz6nico se autodenomina pelo termo bi de (os humanos; o sinal / ° / indica oclusio suave). Mas foi a primeira expresso que se firmou. Nao é raro que isso acontega. "Nago" , por exemplo, é uma denominacio fon. Os gregos se disseram aqueus € depois he- lenos, mas prevaleceu graect, nome dado pelos romanos. Os arawetés, portanto (€ aqui contrario a convengio etnolégica, que determina a forma "os Araweté" ). E ‘um povo de lingua tupi-guarani da Amaz6nia Oriental — "um dos outrora nume- rosos povos Tupi do interflivio Xingu-Tocantins" (Viveiros). Agricultores, pescadores, cacadores, esses indios entraram em contato com os "brancos" so- mente em 1976. Foram, juntamente com 0s assurinis, os tiltimos tupis amazOnicos se envolverem com a sociedade brasileira. Na verdade, buscaram 0 contato, fugin- do aos ataques de grupos indigenas inimigos. Expulsos do local que ocupavam, gragas a violenta pressio de caiapés parakands, foram esbarrar no Ipixuna, onde hoje se encontram. Viveiros observa, de resto, que estas lutas intertribais esto fun- damente inscritas na meméria araweté, Lutas com os caiapés, em especial. Mas 0 que importa € que esses indios foram forcados a ir ao encontro dos" brancos" . NAO vem ao caso recontar aqui lances do contato. Basta dizer que os arawetés cairam em scu campo magnético. E hoje gravitam, em estado de alta dependéncia, nas cer- canias de um Posto Indigena. Sousindrade, uma vez mais, escrevendo sobre a indi- géncia indigena na Amaz6nia do século XIX: "parece que até a miséria dos indios tomou as proporgies colossais das aguas" E se 0 contato araweté/mundo branco € recente, mais recente € 0 estudo desse grupo indigena, "Nao existe nenhuma referéncia bibliogrifica aos Araweté, ou a qualquer grupo que se possa inequivocamente identificar como ' Araweté" , até 0 inicio da década de 1970", informa Viveiros. Sabemos que as antroplogas Berta Ribeiro e Regiona Polo Miller chegaram a publicar alguma coisa sobre os indios em questdo. Mas a etnografia araweté s6 vai comecar pra valer com a sofisticada obra de Viveiros. O que vou escrever, nos pardgrafos seguintes, é uma vulgarizagio comen- tada de aspectos desse trabalho. Isso porque Viveiros, leitor de Valéry € Borges, deixou-se fascinar pela arte verbal araweté, incluindo espécimes dessa poesia em seu livro. £0 que me interessa, no momento. Quem quiser ter uma visio etnogréfica ampla ¢ rigorosa de tal subcultura amazOnica deverd se dirigir, sem intermedidrios, a Araweté — Os Deuses Canibats. Confesso que me atraem, de modo quase irresis- tivel, muitas das discusses socioantropolégicas desenvolvidas ai, especialmente aquelas que ferem 0 imagindrio etnogedfico tradicional, como a recusa em conferir lum estatuto meramente especular a "série cosmol6gica" . Mas nfo € isso 0 que pretendo discutir aqui. As voltas com a criagio textual extra-européia em nossos trépicos, vou abordar apenas, via Viveiros, aspectos da textualidade araweté. "Tudo € palavra" , dispara de saida o antrop6logo, citando a observagio de Melia a propésito dos guaranis. " Apenas, a palavra dos Araweté, menos que ecoando 0 recolhimento ascético de seus parentes Guarani, cultores do Logos, parece antes evocar 0s gestos excessivos dos longinquos Tupinamb4." Comecemos entéo por aqui: a palavra araweté. Para os arawetés, a lingua que eles falam ¢ especial. Trata-se da "boca correta ou habil", contraposta a "boca travada ou misturada” dos demais indios e dos brancos. Nao é uma visada incomum. Lembra a antiga ideologia Jingifstica grega, agrupando os que ndo tinham o grego como lingua materna sob o rotulo geral de barbarot: individuos cuja fala, ininteligivel, soava algo assim como bar-bar-bar — ou, nos termos arawetés, seres cuja boca era travada, O que se des- taca em ambos 0s casos, arawet€ € grego, € a existéncia de uma _"linguagem boa" (este € 0 sentido literal de nbeengatu, - alids), recortando-se em meio ao voze: entrépico dos estrangeiros. Mas com uma diferenca: para os gregos, os barbaros ram, além de incompreensiveis, inferio- res; para os arawetés, so awit — "inimi- gos" £ com esta linguagem "correta" que 0s arawetés se constroem em dimensio simbélica. Mas num sentido importante: a palavra domina tudo. Quando Viveiros diz que o imagindrio araweté " prolifera na palavra € no canto", acrescenta que nio hd muito que se ver. A cena semiética é escassa, descurada, Estamos aqui no aves- so mesmo do estetismo assurini. Viveiros reconhece "a parcimOnia araweté quanto a técnicas ergolégicas € artesanais, bem como o cardter casual € descuidado dos as- pectos visuais ou visiveis de sua cultura — seja na pintura corporal, na arquitetura ou na plumdria, seja na ' proxémica' € nos micro-rituais de interacio social” . Ha uma negligéncia araweté em relagio a di- mensio semi6tica da cultura. Para ficar- mos no terreno da arte corporal, a body art araweté, a0 contririo da kadiwéu ou da assurini, € incompleta, pobre, marcada pelo improviso € pelo desleixo. Mesmo nas festas a ornamentagdo corporal é me- nosprezada. Tudo se passa como se esta espécie de beleza devesse existir somente para os deuses eas almas dos mortos. Sim: sobre a pele alva dos deuses, fulgura ri- or0s0 © isco preto do jenipapo. Os hu- manos exibem borrdes, formas infimas, amorfias. Hé assim um desequilibrio entre a exuberdncia da criagio poético-musical © a pobreza no campo dos produtos visuais da cultura. Quem quiser contemplar alguma plumdria, que a procure entre os bororos. Com os arawetés, a conversa é outra. O que conta € 0 canto. A palavra-canto. Mas vamos caminhar sem pressa, O tema arquetipico da comunidade original, quando deuses e humanos conviviam indiferenciados no mesmo espaco-tempo, comparece também na cultura araweté. Os deuses arawetés, os Mai, destacam-se do nosso mundo, tornam-se deuses, num movimento que instaura o cosmos tal qual hoje ele é. O leitor de Hesiodo se lembrard de que, antes do conflito de Zeus € Prometeu, desembocando na criagio de Pandora, ndo hatia separacdo entre o mun- do divino ¢ o humano. A criagio da mulher, " presente" de Zeus aos homens, € 0 ‘Acima, casa na aldei alde REVISTA USP 2» Revistause momento instaurador da dicotomia fundamental. Vérias culturas formularam a seu modo esse grande artificio mitico da fundacdo césmica. Como a araweté, desenvol- vendo uma elaboragio propria acerca da configuracio atual do cosmos. E_ comple- tamente diferente da construgio mitoldgica grega, embora também ai a mulher ocu- pe lugar de destaque, como agente provocadora da transformagao. Vejamos. A dis- tingo entre humanos ¢ deuses nao fazia sentido in illo tempore. Mas, insultado por sua mulher, Arandmi tomou 0 chocalho do xamanismo, comegando a cantar € a comer fumaca. "Cantando, eles ergueram 0 solo de pedra em que estavam, até formar a abdbada celeste. Com eles foram uma multidao de outros Mat, ¢ seres de ‘outras categorias" (Viveiros). Aconteceu portanto um" cataclisma inaugural”. S6 entio os deuses se tornaram divinos (" fragoes da espécie humana que subiram 20s céus" ). Deuses sio os que passaram a habitar aqueles céus petrose; humanos, os que nio se destocaram pelo ar a bordo do fragmento granitico em ascensio. Como se vé, 6 da maior importancia a presenca da palavra-canto na separacio original. Desponta ela af como 0 motor que impulsionou 0 solo pétreo, produzindo a ruptu- ra cOsmica. E dai resulta a sua ubiqiidade. Levada pelos deuses e cultivada pelos humanos, a palavra-canto existe assim na terra como no céu. E como interveio no divércio primordial, fraturando a crosta terrestre, é também a via de reconexio des- ses dois mundos. Pelo canto, deuses e mortos descem a terra, falando aos humanos. Pelo canto, os humanos se comunicam com 0 outro mundo. A palavra-canto é a via de acesso araweté As paragens sobrenaturais. Religa ou ressolidariza o que um dia ‘se rompeu para gerar 0 cosmos como 0 conhecemos. Esta é a altissima funcio da produgio poético-musical na sociedade araweté. Mas antes de entrarmos no terreno especificamente humano desta seara verbi- musical, falemos um pouco da musicalidade divina. Os deuses arawetés, cantores da comida € do sexo, so deuses melomanos. O que temos ai é um espago sobrenatural densamente povoado por cantos. Os Maf (‘nica no "a" 0 "i" fechado) sdo os grandes magos das regides cOsmicas, mas também os insuperdveis senhores da pa- lavra-canto. Sio deuses-poetas, deuses-mtisicos, seres poemusicais por exceléncia, maraka me’e, volta e meia descendo a terra para festins de peixe, jabuti, agai e mel. De la musique avant toute chose, pode-se dizer, redizendo Verlaine. Deuses ¢ mor- tos arawetés moldam ou inspiram, ainda, os cantos que ressoam c4 na terra, pela vor de pajés € guerreiros. A preocupagio com 0 canto vai a ponto dos arawetés iden- tificarem, com uma precisio reveladora do grau de interesse ai investido, alimentos bons para a voz. "A gordura da garganta do guariba macho é especialmente apre- ciada, por tornar quem a come um bom cantor" , assinala Viveiros. Por isso mesmo, nao deixa de ser significativo o fato de que, testados pelo antrop6logo, os arawerés no tenham demonstrado 0 minimo interesse pela musica ocidental Os arawetés dividem sua produgio poemusical em dois generos: Mat maraka (miisica dos deuses) ¢ maraka hete (miisica verdadeira) ou optrabe maraka (mé- sica de danga). Falaremos adiante da musica dos deuses. Quanto a" msica ver- dadeira" , analisa Viveiros: " Todas as cang6es de danca apresentam uma forma fixa: letras curtas (quatro a oito versos, repetidos dezenas de vezes), tempo ritmado (qua- se sempre bindrio), linha melédica monétona, ¢ uma divisdo em duas partes, mar- cadas por uma diferenca de andamento (a cada uma corresponde uma parte da letra)". Durante as dangas, estas composigées sintéticas sio cantadas coletiva- mente, em unissono, no registro grave, por todos os homens. S6 nao entendo por que Viveiros fala em haicai ¢ fanopéia a propésito desses textos. Pelos exemplos que divulga, ndo hd semelhanga notivel entre eles € 0 modelo nipdnico. O guerreiro Yakati-ro-reme, autor de um dos cantos estampados no livro, nada tem de um Basho araweté. E antes que regidos por um principio imagistico, os textos ostentam um desenho fonético que também os puxaria para a melopéia, se ficarmos na classifi- cagio poundiana, Em todo caso, Viveiros talvez disponha de uma colegio de textos inéditos que 0 autorize a emitir tais opinides. Mas vamos adiante. O genero maraka beteé formado por dois subgéneros: awi maraka (miisica dos inimigos) e pirow! ‘ma- raka (musica dos ancestrais). A." masica dos ancestrais" subdivide-se em trés geu- pos: cantares de inimigos por ancestrais miticos; cangOes inimigas de" tribos reais ‘ou miticas” ; cantos de animais miticos. Estes iltimos s4o considerados perigosos € estio sujeitosa restrig6es, ou sio proibidos. Formalmente idénticos as cangdes guer- reiras, destas se distinguem por seus efeitos letais ou prejudiciais a satide e a0 milho. Quanto a danga, os arawetés, a0 contrario de seus vizinhos assurinis, sé conhecem a forma opirabe, modelo de danga de guerra. "Todos os participantes (homens) devem portar suas armas, ou 20 menos uma flecha, que trazem junto a0 peito, com as penas de harpia para cima; € 0s cantos so, quase todos, ' misica de inimigos' , cangdes que falam de guerra, morte, mortos, combates ancestrais ou recentes. O paradigma do cantor € 0 guerreiro, © homicida” (Viveiros) Esta "mtisica dos inimigos" é produzida sempre por um matador araweté, sob 1 inspiragio do espirito do inimigo que cle matou. J4 Gabriel Soares de Souza fizera referéncia aos cantares guerreiros tupinambas, incluindo af os cantos antropofigi- cos, Mas sem explicar como os tupinambés concebiam esses cantos. Os arawetés acreditam que a poemisica "dos inimigos" é “ensinada" pelo espirito do adver- sirio exterminado. Chamam, ao matador, moropt'ba, expressio que "denomina um estatuto social, © de homicida" (diga-se que o matador araweté nao € devorado pelos Mai quando chega no céu). Os arawetés, quando iam a guerra, nao brincavam em servigo. Escolhiam um matador como lider, enfeitavam-se, empunhavam seus arcos, tomavam suas flechas com ponta de taboca e penas de harpia. Nada de fazer prisioneiros: matavam todos os inimigos. Osos eram arrancados para adornos de danga, E havia a pritica de decepar a cabega do adversirio. Por que os arawetés guerreavam? Por vinganga ou por desejo de matar inimigos (¢ olha que nao hé lugar, no céu araweté, para inimigos humanos; almas inimigas sio atiradas de volta a terra, por aqui perecendo). O curioso € que, quando um araweté matava, " morria” Recolhia-se a sua casa, num desmaio de varios dias, sem comer nada. "Sua barri estd cheia do sangue do inimigo, ¢ ele vomita continuamente." Mais ainda — "o matador ouve 0 zumbido das vespas e dos besouros, 0 ruflar das asas dos urubus que se aproximam de ' seu" corpo morto” (Viveiros). £0 espirito do inimigo morto que, afinal, desperta 0 matador, exortando-o a danga, Ato continuo, 0 matador reGine os homens para mostrar o canto que o inimigo."ensinou" (ao inimigo morto chama-se "ensinador do canto" ;e a principal metifora para inimigo é "o que sera miisica"). "A misica dos inimigos ¢ um canto do inimigo, cantado pelo matador: Mas € como se houvesse uma parceria, Os awi marakd " sio sempre identificados pelo nome do guerrciro que os pés pela primeira vez: um canto do inimigo" & também 0 ' canto de fulano' (0 matador)" , escreve Viveiros. H4 uma simbiose ini- ‘migo-matador, embora no canto prevaleca a perspectiva daquele. Por fim, cumpre dizer que 0 subgénero awi marakd,o “nico veio das maraka hete capaz de gerar alguma criagio nova, encontra-se estacionado, jé que s6 existe um meio af para fazer nascer uma nova cancio: matar um inimigo — ¢ j4 vao longe os tempos das escara- ‘mugas tribais, Bem diversa é a situagio do outro género poemusical araweté, Mai maraka, misica dos deuses. Aqui, novos cinticos brotam sem cessar. Esta é a classe dos cantos xamanisticos. Mas vamos, antes, a uma digressio. "Xama", saman, é uma palavra dos tungues (pastores de renas da Sibéria) que chegou até nés através do russo ¢ significa, literalmente, alguém excitado ou comovido. "Xamanismo" , con- ceito antropol6gico dai derivado, designa uma especialidade magica universal. Po- demos falar de xamanismo asiitico, oceanico, norte ou sul-americano. E. R. Dodds fala mesmo de xamanismo na Grécia, os fatromanteis. Em seu entender, Orfeu € "um xama mitico ou protétipo de xamas" © Empédocles foi o tltimo grande xama rego. Simplificando, o que caracteriza o xamd € uma espécie de sonho-viagem, ou de transe culturalmente controlado, a0 longo do qual a alma deixa 0 corpo € vai em visita a outros mundos, subterrineos ou celestiais, O xamanismo € assim uma" té- nica do éxtase" , geralmente comportando a arte de dirigir sonhos. Ou, lembrando ‘© supracitado Dodds, 0 xama é um perito em excursoes psiquicas. Para 0 leitor nao familiarizado com 0 assunto (ao qual enderego este escrito), o tema é recorrente na literatura antropoldgica brasileira, Métraux escreveu sobre o xama (pay, pajé) tu- pinamba, Curt Nimucndaju sobre a xamanismo xipaia, Charles Wagley sobre 0 xa- manismo tapirapé, Darcy Ribeiro sobre o kadiwéu, Rafael Bastos sobre o kamaiurd, Regina Maller sobre assurini, etc. Recordando a expressio de Mircea Eliade, de- pois retomada por Jerome Rothenberg, também 0 xama-pajé amazOnico é um tech- nician of the sacred. f.assim que vamos ouvir Viveiros discorrer sobre 0 xamanismo REVISTA USP a 2 REVISTA USP araweté. "0 milho ¢ 0 xama sio os pilares do mundo Araweté; uma roga de milho © um xama bastam para definir uma aldeia, e um estilo de vida." © xamanismo desses indios nio é tio sofisticado quanto 0 asidtico. Faltam "chamado" espiritual para o oficio xamanico; a experiéncia traumatica que parece marcar universalmente 0 ingresso nesse mundo poemigico; os rituais inicidticos; 0 elaborado teatralismo que caracteriza a cena xamanistica nas mais diversas culturas. 0 xamanismo siberiano, por exemplo, tanto pode ser um dom de bergo como uma vocacao manifestada na adolescencia, através de sinais psicolégicos decodificaveis, em perspectiva xamfnica. S40 individuos que cantam dormindo, tem visbes, amam. 2 solidio. O chamado espiritual também surge, como disse, sob a forma de uma experiéncia traumatica — uma doenga, um choque emocional, um ataque animal passivel de ser interpretado como ponto de partida do processo de iniciago. O futuro xama krahé, por exemplo, é afetado antes de mais nada por uma doenga. Mas nao encontramos nada de parecido em campo araweté. Viveiros comunica que nao vigora aqui espécie alguma de "chamado" . Nem se véem indicios de que o indivi- duo tenha que atravessar uma experiéncia traumatica (ou aquele tipo de crise que Eliade definiu como a repercussio, na psique individual, da" dialética das hiero- fanias" ), antes de tomar 0 caminho do xamanismo. " Certos sonhos, se freqtientes, podem indicar uma vocacio xamanistica — especialmente os sonhos com jaguares ecoma 'Coisa-Onga" celeste", diz. Viveiros. Mas vale dizer que 0 sonho nao do- mina 0 espaco xamanistico araweté. E diferente do que ocorre com os tapirapés do Brasil Central, que desenvolveram técnicas diurnas para viagens oniricas € con- sideram que esta atividade mental est4 no cerne da cena xaminica, com 0 mago viajando em sua canoa astral pela Via Lactea, chamada Estrada do Pajé. E certo que, durante 0 sono, a alma do xama araweté se desloca pelos céus. Mas enquanto 0 xami tapirapé 6 essencialmente um ser que sonha, oxama araweté é essencialmente tum ser que fuma, "O tabaco € o emblema, o instrumento de fabricagao € de ope- ragio do xama", anota Viveiros. Entre os kamaiuris, 0 payemet € a "toda dos pajés" ou " roda dos fumantes" (0 tabaco é de tal importincia no xamanismo dos indlios brasileiros que, na tradigio xipaia, a alma do xama morto danga com um charuto aceso entre os dedos — € os arawetés levaram isso as dltimas consequén- clas). Na sociedade araweté, 0 caminho para o xamanismo ndo € claramente balie zado, £ de um informalismo desconcertante, tipico desea gente. Vivciros informa que também nao ha, no ambiente araweté, iniciagio formal a0 xamanismo, nem aprendizado xaminico. Os arawetés desconhecem 0s complexos rituais que marcam a iniciagio xamanistica em todo o planeta, incluindo a introdu- io de cristais no corpo do futuro mago-poeta € a "substituigio" de seus drgios internos, sem falar no autoconfinamento € na autoflagelagio nas Nlorestas. Nem o futuro xami araweté se vé no dever de atravessar provas iniciiticas. Distingu aqui, mais uma vez, do candidato tapirapé, que tem que participar de um combate contra os seres do Trovao. A auséncia de sistema de treinamento € também digna de nota. O ne6fito siberiano € submetido a uma diditica xaminica, num processo de aprendizagem tecnoideoldgica que nao raro consome a juventude do sujeito. Tam- bém em meio aos tapirapés temos o grupo de jovens que aspiram ao xamanismo € a figura do pajé enquanto mestre, O caso dos xipaias nao é diferente. Um xipaia se torna (tornava-se) xamd, em primeiro lugar, pelo aprendizado. Existia entre esses indios uma relagio discipular. Conta Nimuendaju que a fonte da sabedoria do pajé estava nos sonhos — © que, quando um xama xipaia cntrcgava sua magia a um discipulo, os indios diziam: “ele Ihe deu seu sonho" . Nimuendaju: "duas coisas sio indispenséveis para alguém se tornar um bom pajé: predisposicao para sonhos ¢ visdes ¢ um mestre habil que ensine como utilizar estes dons". Verdade que hd igualmente narrativas de individuos que se xamanizam na solidio, entrando em contato direto com o sobrenatural. Recontado para nds por Knud Rasmussen, temos © relato do novico esquimé iluminando-se em vigilia solitaria no deserto, onde os- lou entre a mais funda tristeza ¢ 0 incontrolével canto-geitado de uma s6 palavra: Alegria! alegria!" . £ também isolado dos habitantes da aldcia que, conforme Me- latti, 0 futuro xama krahé "entra em contato'com um animal ou algum outro ser, dele recebendo poderes, que passa a trazer em seu proprio corpo, sob a forma de uma substincia magica". © retiro no ermo parece equivaler assim A presenca do mestre. Nao hé noticia de que nada disso ocorra no mundo araweté. Nem processo de aprendizado, nem iluminagio aleancada em recolhimento longe da aldeia. 0 infor- malismo desse povo é extremo. Sem "chamado" xaménico, relagio instrutor-neo- fito ou solidao inicidtica, 0 candidato a xama, ou xama iniciante, limita-se a se em- panturrar de tabaco. "0 treinamento xamanistico consiste em um longo ciclo de intoxicagao por tabaco, até que o homem mo-kiyaba se faga transhticido, € os deu- ses "cheguem! (swabe) até ele" (Viveiros). Leveza, transparéncia, translucidez $40 buscadas no xamanismo araweté, por facilitarem 0 descolamento da alma de seu envelope carnal. " Uma das ocupagoes favoritas dos Araweté sio as sess6es coletivas de embriaguez por tabaco, que servem também para ir_' tornando transparentes' 0s xamis iniciantes ou candidatos." Nesse contexto esgargado, 0 "iniciador" do novel xama € quem o intoxica até que ele alcance a" transparéncia" necessdria a visio xamanica, Nao se trata de um mestre. Além do tabaco, 0 novato pode recorrer ainda ao paricé, alucinogeno " capaz de fazer 0 homem mais ignorante (kod #) ficar transparente € enxergar os deuses" . O xama mais velho néo poder sequer ensinar cantos 20 novo xama. Nao se trata de uma proibigio, mas de uma impossibilidade. Quem comunica o canto 60 Mai. Para que um xama pudesse passi-lo a outro seria necessirio que os Mai estivessem dentro dele —e "os deuses nio estio dentro de nossa carne", disseram os indios a Vivei- ros. Resta entdo, ao futuro xamA, seguir as prescrigdes sexo-alimentares e continuar se enchendo de tabaco e paricé, até atingir a "luminescéncia" que franqueia, em mio dupla, 0 caminho para os deuses, Inexiste ainda, na cultura araweté, o fe- ndmeno da possessio. Esses indios des conhecem a tomada do humano pela divin- dade, a mais aguda situagio mistica. Mas nao hé raridade cultural alguma ai. Os es- tudiosos frisam que a especificidade do xamanismo nao esti na incorporagio de espiritos, mas na viagem-éxtase. A ausén- cia de possessio, aliada ao carter ordena- do do éxtase, levou Viveiros a duvidar da existéncia de um transe genuino entre os arawetés. £ 0 tipo de opiniio que nio se descarta por um decreto te6rico. Seria ne- cessario estar com uma xamé araweté para decidir sobre © assunto. Mas Viveiros for- nece, a0 longo de seu livro, dados que re- metem ao transe. Em termos gerais, embo- 1a nos inclinemos a identificé-los, transe € Possessio S40 dlistintos. Na possessio, 0 individuo € tomado de assalto por um es- pirito. O transe & apenas um estado de consciéncia alterada, que pode, inclusive, ser provocado por alucindgenos ou misi- ca. E € um erro reduzi-lo a agitagoes his- térico-epileptiformes. O tarantismo medi yal ndo € a norma. Mesmo a possessio pode ser codificada, como em algumas culturas africanas. E hd graus na alteragio mental do transe. No caso araweté, estamos longe de qualquer excesso ou bizarria. 0 transe é leve € estandardizado. Mas qual € a palavra araweté para nomed-lo? Pre- cisarfamos aqui de um vocabulirio araweté da cena xaménica. Quiga o mais correto seja dizer que os arawetés possuem antes uma pritica que uum sistema xaminico. Ou, ainda, falar de um xamanismo difuso permeando a vida araweté, Se 0 xami nao se separa do chocalho aray, ¢ se todo homem adulto casado tem 0 seu aray, podendo efetuar pequenas curas ¢ acompanhar o canto dos que, mesmo nao sendo peye, véem eventualmente os deuses, isto significa, como nota Viveiros, que todo adulto é um pouco xama, Embora s6 quem cante freqiientemente Eduardo V de Casvo india araweté trabalhando na ccolneita REVISTA USP 38

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