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canes Coal Resumo: Este trabalho se propée a analisar as repre sentagées de terapeutas populares, popularmente conhecidos como benzedores € benzedeiras, tendo em vis ta suas praticas dedicadas a0 tratamento e cura de enfer- midades, conforme realizadas no Municipio de Ivaipors/PR, no periodo de 19902012. Na histéria do Brasil as priticas populares de cura e a medic na estabeleceram uma relagio de complementaridade e de conflito. Com a modernidade e os avangos da ciéncia, ame dicina tendeu a se sobrepor as préticas populares. Contudo, constata-se a permanéncia das benzeduras e benzedeiras na atualidade. Com 0 auxilio da histéria oral, foi possivel cons- tatar que as benzedeiras, a0 mesmo tempo em que consti tuem uma identidade coletiva, tendem a apresentar formas bastante individualizadas no seu fazer, Observase assim uma grande distingo nos mo- dos debenzer, em conformida- de com a diversidade cultural de suas referéncias, BENZEDEIRAS E BENZIMENTOS: PRATICAS E REPRESENTAGGES NO MUNICIPIO DE IVAIPORA/PR (1990-2011) Lucio Boing ! Marco Antonio Stancik ? INTRODUGAO, Diversas formas de se relacionar com as doencas e préticas de cura atra- vessam a historia do Brasil, desde a chegada dos colonizadores portugueses até a atualidade. Os varios modos de lidar com as enfermidades presentes no Brasil tam uma longa histéria, pois “indios, africanos e portugueses das cama- das populares, assim como alguns membros das elites, sempre haviam, em suas regides de origem, recorrido as mezinhas e ao mundo dos mortos para curar suas enfermidades muito antes de se cogitar a colonizagao do Brasil” (SOARES, 2001, p. 422). As praticas e representacées associadas a cura tém cardter histérico e cultural. No Brasil ocorreu a confluéncia das formas de curas europeias com aquelas praticadas pelos nativos e pelos povos africanos escravizados. Surgiu assim uma miscelanea de praticas, de forma que nao foi pacifica a relacao entre agentes de cura tais como os curandeiros, as benzedeiras, as parteiras, os barbeiros’ e aqueles que representavam os saberes chancelados pela me- dicina. Isso porque esta Ultima procurava se impor sobre as priticas popula- res. Dessa forma, ao longo da historia os varios agentes de cura tenderam a disputar a aceitagao das comunidades. Esse conflito também deve ser situado a partir das relagdes estabelecidas entre religiao e as praticas de cura populares, uma vez que em todo periodo medieval havia o predominio da religido e o catolicismo tentava também con- trolé-las, perseguindo as benzedeiras, nominando-as preconceituosamente de bruxas, ou expresses similares e depreciativas. Com a modernidade se desenvolve a ciéncia e é a medicina que passa a lutar de maneira mais eviden- te, visando estabelecer um controle sobre as priticas de cura e a perseguir ‘também as benzedeiras e tudo aquilo que fazia concorréncia com as praticas autorizadas pelas academias. Assim, considerando-se a permanéncia das terapéuticas populares, o ob- jetivo da pesquisa é perceber as praticas e representag6es relativas a elas, na forma como sio apresentadas pelos seus praticantes, tendo em vista parti- cularmente a atuagao dos agentes habitualmente denominados benzedores ¢ benzedeiras. Andlise esta focada nas tltimas duas décadas do século XX, até a atualidade. Observe-se que, na percepsao dos entrevistados, essa delimitacao tem- 1 Graduado em Licenciatura em Estudos Socials (1086), pela Fundagio Educacional de Brusque (FEBE) «em Historia da Universidade Estadual de Ponta Grossa/Unwversidade Aberta do Brasil (2012), mai: ucioboing@hotmailcom 2 Otientador Doutor em Historia pela Universidade Federal de Parana. Professor do Departamento de Hostria e do Programa de Mestado em Historia da UEPG. {3"Indistintamente, tanto barbeiros quanto cirurgiGes tratavam ossos deslocados ou faturados, curavam Teimentos e feridas. Se necess tio, cauterizavam com ferro embrasa, amputavam, extraiam dentes. ‘Sangravam, lancetavam abscesses, saljavam, deitavam bichas, davam elsteres e, fnalmente, no caso dos ciurgides-barbeiro, também cortavam cabelos e barbas'.(STANCIK, 2000, p. 121) BRD Artedett UE!!3 poral nao figurou de forma tao precisa, afinal os de- poimentos sempre tenderam a se referir ao passado com um vago “antes”, ou expressdes similares, sem fazer referéncia a datas mais precisas. © recorte espacial pelo qual se optou no pre- sente trabalho est4 circunscrito a Ivaipora, pelas singularidades que se evidenciam no seu processo de formacao. Nele se inserem imigrantes oriundos de diferentes regides do pais. Isso evidencia esse “amélgama” de praticas e representagdes (CHAR- TIER, 1990) distintas, relativas & cura. © municipio de Ivaipora esta localizado na re- so central do Estado do Parand, cuja ocupacao ter- ritorial tende a ser percebida a partir do proceso de ocupacao das terras do Estado Parand como um todo. Processo esse que é compreendido como um fenémeno que se deu em varios momentos e mo- vimentos de ocupacio, a partir de outros Estados e de dentro do préprio Estado. A ocupaco do Es- tado é apresentada por Lazier (2003), em sua obra Parané: terra de todas as gentes e de muitas histérias, como “frentes de colonizacao™. Seriam elas a fren- te tradicional, a frente do norte e a frente sulista, a partir do que se fala da existéncia dos trés Parands, pois seriam culturas diferentes ocupando espacos diferentes. Arregiio central do Estado, onde se situa o mu- ic{pio de Ivaipora, é aquela onde se observa 0 encontro dessas frentes de colonizacao. Obser- vando a populagao do municipio, constata-se a presenga das culturas “nortista”, com origem nos Estados de Sao Paulo, Minas Gerais e do Nordes- te brasileiro, bem como os chamados “sulistas”, originarios do Estado de Santa Catarina e descen- dentes de italianos, alemaes, entre outras etnias. Portanto, no recorte espacial escolhido se faz pre- sente a variedade cultural que é prépria e singular, caracteristica da constituicao da cultura brasileira, possibilitando a percepgao das varias praticas e representacées relativas a cura. Neste contexto histérico e cultural, esta pes- quisa se propée a abordar uma pratica popular de cura, que é 0 benzimento, tendo em vista praticas e representacées que a caracterizam e singulari- zam. Para tanto, foram entrevistadas cinco benze- deiras e um benzedor residentes no municipio de Ivaipora, objetivando perceber suas representa- Ges relativas aquela pratica. Ou seja, seus modos de percebé-las e realiza-las, conforme por eles descritos. A metodologia utilizada na pesquisa para o le- vantamento documental é a Histéria Oral. Esta, de acordo com Thompson, permite “devolver as pessoas que fizeram e vivenciaram a histéria um lugar fundamental mediante suas proprias pa- lavas". (THOMPSON, 1992, p. 25). A historia oral permite assim oferecer espaco, na escrita de uma histéria vista de baixo”, aqueles que, via de regra, tendem a nao produzir intencionalmente registros a respeito de si, ou raramente o fazem. A palavra € oferecida aqueles que habitualmente nao sao ouvides, pois a escrita e a producao das fontes da chamada histéria oficial estiveram quase sempre a cargo dos vencedores, das elites, e seus representantes, Sharpe, por sua vez, afirma que “a Histéria vis- ta de baixo ajuda a convencer aqueles de nés nas- cidos sem colheres de prata em nossas bocas, de que temos um passado, de que viemos de algum lugar” (SHARPE, 1992, p.62). A coleta de informa- ‘ges ou de histérias de vida é o registro da palavra de pessoas que, sem a mediagao do pesquisador, nao deixariam nenhum testemunho espontaneo, ou o fariam em escala muito reduzida. “A Historia oral € hoje um caminho interes- sante para se conhecer e registrar miltiplas pos- sibilidades que se manifestam e dao sentido as formas de vida e escolhas de diferentes grupos sociais, em todas as camadas da sociedade”. (AL- BERTI, 2010, p.164). Diversas possibilidades sao abertas pela pritica da histéria oral. A pluralida- de de testemunhos, e forma de apresentar uma mesma realidade de diferentes e variados focos, demonstram a dinamicidade e a complexidade das relacdes que compéem a realidade histérica. Os depoimentos empregados como fontes histéricas so de uma riqueza imensa quando sao utilizados como fontenio apenasinformativa, mas, sobretu- do, como instrumento de compreensio mais am- pla e globalizante, do significado da aco humana, de suas relagdes com a sociedade, com 0 poder 0 contrapoder existentes, e com os processos macroculturais que constituem 0 ambiente den- tro da qual se movem os atores e os personagens deste grande drama ininterrupto ~ sempre mal decifrado - que € 2 Historia Humana, (ALBERT, 1990, p.8) 1 Frantes de colonizagdo: frente tradicional é a ooupagio antiga a partr da mineraplo na Serra do Mar e dos Campos Geral o wopeitemo: as ‘entessulstas e nortstas representam 2 ecupagao mas recente, com a vinda dos galches e catarinenses. pelo sul, e dos paulstas, miners, erdestines,vindos do nerte. com o cutive do café (LAZIER, 2003, p. 184) BRD Antedeti UE!!3 Nos depoimentos orais se fazem presentes aspectos do contexto social, econémico, politico, de saberes e crengas, a partir dos quais os indi- viduos constroem suas representagdes do passa- do. O passado acaba sendo recriado a partir do presente, a fim de dar justificativa a vida atual. O historiador francés Jacques Le Goff afirma que “a meméria é um elemento essencial (...) cuja busca 6 uma das atividades fundamentais dos individuos e das sociedades de hoje, na febre e na angistia. Mas a meméria coletiva & nao somente uma con- quista é também um instrumento e um objeto de poder.” (LE GOFF, 2003). Por isso, conforme se da com as demais fon- tes documentais, os depoimentos orais dos tera- peutas populares devem ser analisados tendo-se em vista que as praticas de cura se fundamentam em representacées sociais, da mesma forma que se produzem em didlogo com as memérias coleti- vas. Isto significa que 0s depoimentos dados pelos benzedores e benzedeiras devem ser analisados considerando as representacées sociais constru- idas sobre tais préticas, compreendendo que “as representacées sociais so uma forma de conhe- cimento socialmente elaborado e compartilhado, com um objetivo pratico, e que contribui para a construgéo de uma realidade comum a um con- junto social” (]ODELET, apud ARRUDA, 2002, p.22), As representacées coletivas, nos termos pro- postos por Roger Chartier, podem nos permitir perceber “identidades sociais como resultando sempre de uma relacao de forca entre as repre- sentacées impostas pelos que detém o poder de classificar e de nomear e a definicao, de aceitacdo ‘ou de resisténcia, que cada comunidade produz de si mesma” (CHARTIER, 1991, p.183). Ou seja, identidades que se produzem como frutos de uma correlacao de forcas entre as representagdes he- geménicas e as representagdes populares, num movimento de aceitagao e resisténcia a partir do qual se constituem as identidades coletivas. Chartier enfatiza os miltiplos pertencimentos que singularizam as trajetdrias dos individuos e dos grupos: 0 sexo, a religido, o viver em determina- da regio geogréfica, os grupos de convivio, entre outros. Segundo o autor as construcées culturais nao provém apenas do pertencimento a uma clas- se social e sim do entrelacamento entre as classes, devido a impossibilidade de separacao destas. Temos assim a nogéo de apropriacao, por intermédio da qual Chartier propde o emprego diferenciado dos mesmos objetos e praticas dis- poniveis na sociedade, afirmando que: “as praticas de apropriagdo sempre criam usos ou represen- tagdes muito pouco redutiveis aos desejos ou as intengdes daqueles que produzem os discursos e as normas” (CHARTIER, 1992, p. 233-4). Na perspectiva do autor, ha uma articulagao entre os conceitos de apropriacdo, de representa- 40, a nogdo de praticas miltiplas, além da no¢ao. de leitura. Tais praticas constituem-se em criado- ras de representacées pouco subordinadas as in- tengées dos produtores dos discursos. Nas suas palavras, “praticas contrastantes devem ser en- tendidas como competicées, [uma vez] que suas diferencas organizam-se por estratégias de dife- renciagao ou imitagéo, e que os diferentes usos dos mesmos bens culturais estao enraizados nas predisposicdes estdveis préprias de cada grupo” (CHARTIER, 1992, p. 236). Nessa perspectiva, considerando 0 fato da insercao dos individuos em diferenciadas comunidades e grupamentos podem surgir representagées contraditérias, com nuances ‘as mais variadas e, consequentemente, tensdes. Por isso, cabe perceber as questées culturais, analisando-as enquanto priticas. Ou seja, Chartier aponta para a necessidade de se entender a cultu- ranao a partir da hierarquizacdo social decorrente da diferente distribuicao de riquezas, mas analisa- las enquanto praticas distintas, decorrentes de miltiplos outros pertencimentos. Afinal, confor- me conclui, 0 social sé faz sentido no mundo das representacées, praticas e apropriacées culturais Assim, compreende-se que analisar as prati- cas @ representacées em torno da cura, conforme produzidas pelas benzedeiras, apresenta relevan- cia no sentido de “dar voz” aqueles terapeutas po- pulares, de forma a trazer elementos que auxiliem a esclarecer aspectos das representacées sociais construidas sobre essa pratica, tendo em vista ain- da perceber que relacGes sao estabelecidas com as comunidades e com os poderes constituidos. Agentes estes que continuam desenvolvendo pra- ticas de cura seculares, esforcando-se para aten- der as necessidades das pessoas afligidas por algu- ma enfermidade e/ou males de outra natureza. Arelacao entre as praticas populares de cura e os poderes constituidos Cada agrupamento humano tende a construir a reconstruir os seus saberes de enfrentamento BRD Artedett UE!!3 da enfermidade dentro de um processo dinamico de troca de saberes e em meio a priticas que po- dem se dar de forma conflitante. Assim sendo, no Brasil praticas de cura constituiram-se “em meio a um complexo processo que tem lugar a partir de uma mistura de saberes e praticas indigenas, africanas, europeias, além do recurso a ervas, benzeduras, invocacées. Com eles procurava-se responder no somente aos pequenos, mas tam- bém aos graves problemas que afetavam a satide da populacao.” (STANCIK, 2009, p. 122) Na colonizacao do Brasil a Coroa portugue- sa e ndo menos a Igreja catélica mobilizaram suas forcas contra qualquer tipo de iniciativa que viabi- lizasse a produgao de conhecimentos. Entre eles, aqueles empregados na terapéutica. Diante de tal quadro, Mary Del Priore, analisando a ciéncia mé- dica entre os séculos XVI e XVIII, afirma que, rente de profissionais, desprovido de cirurgides, pobre em boticas e boticérios, Portugal naufraga- va em obscurantismo, e levava a colénia junto. (PRIORE, 2009, p. 80) Em outras palavras, segundo tal concepeio, no Brasil, entre os séculos XVI e XVIII, e mesmo mais além, seria reduzido o ndmero de médicos e aqueles que estavam disponiveis teriam formacao deficiente, permanecendo imensos espacos do territério da colénia sem a presenca de um mé- dico. Essa situacdo de suposta deficiéncia e insu- ficiéncia de tais profissionais pode ser percebida nna fala daqueles que registraram suas impressdes sobre o Brasil do perfodo. Assim, no final do sé- culo XVIII, Dom Frei Caetano Brandao, Bispo do Par, afirmava que na Colénia “é melhor tratar-se a gente com um tapuia do sertao, que observava com mais desembaracado instinto, do que como médico de Lisboa” (PRIORE, 2009, p. 88). O pré- prio bispo reconhecia assim o valor das priticas de cura dos povos indigenas, desprestigiando os médicos. Relativizando tais concepgdes, que apregoam que a forte presenca dos curandeiros junto 4 popu- lagao seria decorréncia da falta de médicos, ou da ignorancia do povo, existem estudos recentes que apontam em outro sentido. Tendem a demonstrar assim que essa visdo desvaloriza importantes as- pectos da cultura popular, seus saberes, crencas e tradiges. Assim, segundo Soares (2001), em to- dos os lugares, tanto no campo como nos centros urbanos, havia aquelas pessoas que proclamavam possuir saberes da cura e que se propunham a aplicd-los. Agentes que, com suas oracdes e ervas, ‘ca esforcavam-se para promover a cura, alcancando 0 respeito e a estima da populacao. Esses agentes de cura popular obtinham uma aceitacdo maior devido ao seu modo de ser e fa- zer. Havia segundo Cruz e Leandro (2009) uma “identidade social e cultural” entre a populacao e os curandeiros. Estes eram “do povo”, ou seja, conviviam com 0 povo e empregavam a linguagem do povo, diferente dos médicos, que eram mem- bros da elite e usavam uma linguagem diferente, autoritéria, de dificil compreenséo. Linguagem esta amparada em concepcées sobre a saiide e a doenca distintas daquelas adotadas pela popula- a0 leiga (SOARES, 2001). Para se compreender melhor a valorizacao das formas de cura tradicionais, conforme observado nos tempos coloniais e mesmo apés, é preciso en- tender as concepcées de vida e de doenca priori- tariamente adotadas pela populacdo. Acreditava- se na origem sobrenatural da doenca, ou melhor, a crenga era que as doencas seriam consequéncia do pecado, ou de algum feitico, ou de mau olha- do. Para promover a cura seria entao necessaria a invocagao do sobrenatural, bem como a interces- sio das forcas espirituais, visando neutralizar os feitigos, os maus olhados, ou obter-se o perdao dos pecados. Soares, ao defender tal ponto de vista, afirma que “nao é a auséncia de médicos que explica a ampla aceitagao dos curandeiros, mas antes a con- cepgio de que a origem das doencas tinha uma natureza sobre-humana sobre a qual essas pesso- as tinham a faculdade de intervir” (SOARES, 2001, p.421). Sendo assim, até o século XIX, em meio a populacao leiga, predominavam as crencas na ori- gem sobrenatural da doenga e a valorizagao dos agentes de cura que se acreditava detentores do poder ou do dom de comunicagéo com as forcas espirituais, os santos, os espiritos dos ancestrals. Condigao esta que os tornaria aptos a neutralizar a origem da doenca. A partir do século XIX a relagao entre os di- versos modos de cura passou por significativas mudangas. Com a vinda da corte portuguesa ao Brasil define-se mais nitidamente a organizacao politica centralizadora do império. Ao seu lado, a medicina académica passou a exercer uma fun- ‘40 que se propunha civilizatéria, de higienizacao e disciplinarizacéo das populacées. Ou seja, que tentava se legitimar em tais termos. O saber do médico académico a servico do Estado e do pro- 2 Be E0 Atel de Hh cesso civilizatério ¢ modernizante tendeu a ter, a partir de entao, uma forca maior de exclusao das outras formas de cura e dos sujeitos que as prati- cavam. A implantacdo desse Estado centralizado pas- sou pelo combate ao poder das oligarquias locais que se fundamentavam em uma ética religiosa e cultural. Quanto a isso, Saliba propée: “O mono- pélio do saber médico sobre a familia, que se so- brepés a autoridade paterna, foi uma luta pelo po- der que combateu também curandeiros, parteiras € religiao” (SALIBA, 2006, p.57). Novos conceitos de ciéncia, cultura e de medicina passaram a ser importados da Europa, principalmente da Franca e sua capital, Paris, empenhando-se no sentido de dar suporte a uma nova concepgao de mundo, da vida, onde “corpo e alma passam a ser vistos iso- ladamente (...), a doenca passa a ser localizada no corpo, visivel, préximo, real, concreto, palpavel” (OLIVEIRA, 1985, p.2!). E a ciéncia tende a se so- brepor a religiéo. ‘Com a organizacao do Estado centralizado ea cidade passando a ser 0 centro irradiador da “civi- lizagéo”, sob a tutela do Estado, a medicina social no Brasil nasce e se desenvolve e aos poucos vai adquirindo o seu status de suposta incontestabili- dade. Apesar disso, nas iltimas décadas do século XX, a medicina passa por uma crise de paradigma @ as instituigdes médicas tendem a ser repensa- das, em determinadas circunstincias até mesmo revalorizando novas visdes que contemplem a di- versidade dos processos de cura. Queiroz afirma que a medicina ocidental passa por uma crise de paradigma devido a sua visio mecanicista e parti- cularizada. Para ele a medicina perdeu suavisio unficadora do pacien- te em particular eda vida em geral como agentes aque resuttam, na sade e na doenga, de fstores Biolégicos. & medicina ocidental moderna ne cessita recuperar,na sta prtica, essa dimensio, Porque ela € teoricamente mals ric, equllbrada € proxima das causas reais que envolvem a sade ff doenca em seres humanos, (QUEIROZ, 1986, 316), Barros, por sua vez, afirma que hé uma crise de modelo dentro das instituigées médicas e a sa- fa seria “a implantacao de um olhar que busque incentivar os estudantes das escolas médicas a compreenderem a diversidade” (BARROS, 2000, p.62). Queiroz e Barros relatam assim uma provavel crise da medicina, a partir de seu processo de es- pecializagéo que concebe a doenca, bem como 0 corpo humano, de modo isolado e técnico. Con- cepgao esta que perde a percepcao da totalidade da vida humana e desconsidera outras dimensées da vida além da biolégica. Perspectiva que, pode- mos propor, tende a se situar de forma diametral- mente oposta a dos terapeutas populares. As benzedeiras, benzedores e benzimentos Quem sao, afinal, as benzedeiras e os ben- zedores? Como podem ser descritos, ou melhor, como tendem a se descrever, como percebem a si As suas praticas? Que imagem tais terapeutas po- pulares e a populacio constroem a seu respeito? Para responder a essas questdes, podemos, ini- cialmente, recorrer as proposigées de Elda Rizo de Oliveira. Em sua obra O que é benzecéo, refe- rindo-se a imagem que se tem das benzedeiras, ela escreve: Geralmente é a de que seja uma mulher casada, mée de alguns filhos, pobre, que conheca rezas, ervas, massagens, cataplasmas, chas e simpatias, que tenha um qué de mistério, que lide com ama- la, Feiticaria e bruxaria, E essa imagem corres- ponde aquilo que é a benzedeira, Ela € tudo isso ‘@um pouco mais. Ela é uma cientista popular que possui uma maneira muito peculiar de curar: com- bina os misticos da religiao e os truques da magia aos conhecimentos da medicina popular (OLIVEI- RA, 1985, p.25). Esta apresentacao das benzedeiras’ demons- tra a complexidade e a amplitude da presenca e da atuagéo desses sujeitos sociais. E como este trabalho se prope a analisar a presenca dessas terapeutas populares no municipio de Ivaipora e as representagées sociais construidas sobre essa pritica e sobre esses sujeitos, o levantamento do- cumental, fundamentado na histéria oral, orien- tou-se pelas entrevistas com as benzedeiras. A primeira observacao que se pode fazer é que as benzedeiras demonstraram-se inicialmente re- ‘ceosas quando Ihes foi solicitado que oferecessem entrevista. Contudo, depois de esclarecidos os ob- jetivos, tenderam a colaborar de bom grado. 5 Embora os depoimentos obtides incluam um benzedar, optouse por utilizar, a parti daqui, a expresso benzedeiras. Isso, além de dat maior ‘ugncia a0 texto, também tendo em vista ser mals corriquero encontrar mulheres dedicadas a tis pratcas 3 BEDE Ly sede re Tabela 1: Benzedeiras entrevistadas Benzedeira | Sexo | Idade | Escolaridade Origem Religito ‘Agentes espirituais que invoca ' Fo 9 S°Ano Jcarezinho/PR | Catélica NN. Sra. Aparecida ; Montes 5 IN. Sra. Fétima, Santa Bérbara, Bom 2 Fi Nao tem Claros/ MG Catslica Jesus, varios outros ° Ano ststca | N-Sr2.Aparecida Jesus, So Jorge, Joa 3 Fo) An halpora/PR cats Maria da Lapa(guia), outros Presidente Pru- Menino Jesus de Praga, N. Sra. Apareci- ‘4 a Banos dental SP atslica da, Anjo da Guarda (principal) 5 F | 8 Nao tem Uberabal MG Catélica Deus, Santos e Orixs ‘ mM | 80 Nao tem Bahia Catélica N. Sra. Aparectda Em relacdo ao perfil dos entrevistados, constata- se que todas so pessoas humildes, de baixa renda, com pouca ou nenhuma escolarizacio, com idade entre 48 e 90 anos. Trés delas afirmaram nunca te- rem frequentado a escola, sendo que duas afirma- ram té-o feito durante aproximadamente trés anos. Uma delas declarou ter cursado até a 5* série. As regides de origem das benzedeiras nos permitem uma leitura do movimento de ocupagdo e migragdo ocorrida no municipio de Ivaipora. Verifica-se que as benzedeiras de mais idade migraram para a re- gido de Ivaipora a partir dos estados da Bahia, Minas Gerais e Sao Paulo. Uma delas é nascida em Jacare- zinho, no Parand. Outra representa a colonizacao sulista do Parana, pois descende de familia prove- niente do Estado de Santa Catarina. Observando as diferencas entre as benzedeiras, seus saberes, crencas e modos de fazer, percebem- se a diversidade cultural presente na composigéo dos modos de cura construidos na Histéria do Bra- sil. Ao mesmo tempo, nos permite reconhecer as benzedeiras como reveladoras das diversidades que caracterizam a historia da cura popular. A Benzedeira 5, além de afirmar ser catélica e ter participado de um centro espirita, também afir- ma recorrer a Padre Cicero, ao Monge Joao Maria, a Nossa Senhora Aparecida, & qual também denomina de lemanja. Afirma recorrer ainda a Bom Jesus € a corrente dos baianos.* Segundo suas declaragées, “nunca frequentou escola e © que sabe aprendeu sozinha”. Exibe varios livrinhos de oragdo catélicos, a Biblia e um livro de ‘oragées da umbanda. Afirma ainda que “agradece a Deus, aos santos e aos Orixés”. Ela conjuga espiritis- mo, catolicismo popular e crengas oriundas da Africa. E exemplo tipico do sincretismo religioso produzido no Brasil, a partir dos elementos da cultura religio- sa africana e 0 catolicismo. E a representacao atual de uma religiosidade que se desenvolveu no Brasil que tem “na espontaneidade sua marca, bem como a independéncia em relacio A religido pregada por parte do clero oficial” (PETRUSKI, 2010, p.17).” seu depoimento, afirmando que, atualmen- te, “as pessoas a procuram menos”, e as afirmacdes da benzedeira |, segundo a qual “as pessoas acham que 0 benzedor é relacionado ao espiritismo”, assim como a fala da benzedeira 3, que afirma que “nao acredita em sarava e no incorpora’, evidenciam mais alguns aspectos das representacées relativas a0 benzimento. Por exemplo, que ha uma valoriza- ‘40 dos benzimentos a partir de rezas tidas como de origem crista e a invocagio dos santos catélicos, ‘em detrimento de préticas ligadas & cultura africana a0 espiritismo. Neste sentido a benzedeira § apresenta uma prtica resistente diante da atuagio histérica da Igre- 6 Segundo proposto pelo blog Espirtualidade, a nha dos baianos refere-se 20s "baianos, abalhadores da Umbanda, [que] pertencem 3 cha mada Linha das Almas, a mesma des Pretes Velhos. & uma linha que traz uma mensagem de conforto(..) Sao o5 Espitts responsveis pela ‘espertezd do homem em sua jomada terrena. No desenvoWimento de Suas gras, os Baianos wazem como mensagem 2 forma e 0 saber lidat com as adversidades de nosso dl-2-dia, com a alegia, afexibildade, a magia ea brincadeira sadia"-(Disponivel em: umbandadeamor blogspot ‘eom/2007N8Ilnha-dos-baianos. hm) 7 De acordo com Petuski a “espontaneidade’ e 2 “independéncia” das pritias religisas construidas no Brasil se desenvalveram devido 3 “tragiidade da ierarquia eclesiastica brasileira” e devido ao "pequeno nimero de representantes do clero que para cd vieram, fazendo com que habitantes de mutas regibes fcassem sem apoio, ensinamento e orientagao relgiosa" (PETRUSKI, 2010. p. 17) B SBOE Ba Artist ue ja, afirmando nao tolerar as manifestagées religiosas que percebe como de origem africana e indigena. Proposicao esta que nao deixa de entrar em conflito com as origens histéricas de tais praticas, no Brasil Fica evidenciado nas afirmacées das benzedei- ras | e 3 certo preconceito em relacao a outras for- mas de cura populares, que elas supdem diferentes das suas, em didlogo com concepgGes que so fruto de um processo histérico que tende a estigmatizar as diversas formas populares de cura, especialmente as originérias da cultura africana. © Benzedor 6 afirma que “sabe muita sim- patia do nordeste” e que “aqui nao tem remédio, [enquanto que] l4 [na Bahia] tem muito remédio na serra”. Ele diz encomendar raizes da Bahia para fa- Zer os remédios que indica queles que o procuram. Afirma ainda contar 80 anos e que ha 40 anos vive na regiéo. Diz ter aprendido o offcio em sua terra de origem, a Bahia. Afirma que aos 10 anos era “adi- vinho de doencas” e que aprendeu com as pesso- as mais velhas. Estas afirmacées dio indicagdes no sentido de que seus saberes e as préticas que adota ‘tém por base a cultura popular do nordeste. Ou, a0 menos, que ele assim as reconhece. A Benzedeira 3, que tem origem na imigracéo do sul, diz ser estudiosa dos santos da igreja Ca- télica. Ela exibe com muito orgulho a imagem do Monge Jodo Maria,* que esta associado a Guerra do Contestado,’ apresentando-o como um dos agen- tes espirituais a0 qual pede a intervencao, visando acura. A benzedura estabelece uma relacao de perma- néncia das crengas do passado, que sdo repassadas de geracdo em geracao. A intercesso do monge Jodo Maria do Contestado, que é invocado pela Benzedeira 3, a qual o denomina de Sao Joao Maria da Lapa, assim como pela Benzedeira 5, permite estabelecer uma relagéo com a meméria do Con- testado, sua lideranca espiritual e suas praticas de cura. Segundo Kriiger (2004) e Thomé (1983) os monges do Contestado eram pessoas que detinham certo conhecimento sobre as plantas medicinais procedimentos de cura e saberes religiosos. Na fal- ta de padres e de médicos, ou estes nao tendo a preferéncia de parcelas da populacio, tais curado- res tinham uma importancia social bastante grande, porque, em sintonia com suas concepgées sobre salide e doenca, supriam as necessidades religiosas ‘e medicinais da populacao. Em outras palavras, atu- avam como rezadores e curandeiros. Diante da dificuldade de a populacao dar res- postas frente & inseguranca e a violéncia instauradas a destruicao do seu modo de vida, situacao esta experimentada durante 0 episédio do Contestado, as falas, as pregacées, talvez até mesmo a fé na su- posta capacidade de proporcionar a cura, conforme ‘obtidas junto aos monges provavelmente ofereces- sem a luz, o caminho a serem seguidos por aquelas populacées marginalizadas. Por isso esses monges assumiram a funcao de seus guias, diante do abandono da parte do gover- no, e mesmo pela Igreja e pela medicina. Tornaram- se uma lideranca reverenciada pelos seus pares, enquanto vivos, sendo que, a partir da sua morte, sua meméria passou a ser reverenciada, transfor- mando-o em verdadeiro mito. Jodo Maria foi o pri- meiro dos trés monges do Contestado. Foi através de sua atuacao e da sua morte que surgiu a mistica do monge (KRUGER, 2004, p.78) e sua meméria permanece presente quando se observa que duas benzedeiras conservam sua imagem e invocam pela sua intercessao. Assim, a benzedeira 3 afirma estabelecer uma relagéo muito préxima com o monge Joao Maria da Lapa, que ela diz atuar como o seu guia. “Da Lapa” porque naquele municipio existe uma gruta dedica- daa Jodo Maria, que ela, segundo informou, costu- ma visitar constantemente. Ela afirma ter o Monge Jodo Maria como seu “guia” que indica as ervas para curar males tao diversificados como dor de dentes, dor de ouvido, dor de ouvido, “izipela”'® (sic), feri- da, “bicheira''” de animais e reumatismo. Reforga a {Sodio Maria de Agostini era italiane. Desembarcara em Belém —PA, em 1840, chegara a0 Rio de Janeiro em 1844. Em sua peregiinagio, de ‘ruta em gra, era0 santo dar grutas e monter'—parsou por Sorocaba, Lapa, Mafra, chegando ao Rio Grande do Sul, de onde ol expuso. Continuow pregando, fazendo profeciae © curas. Sua infugncta aszustou at autoridades, que o prenderam por alguns anos no Rio de Janeiro, \Votando 2 Lapa, acabou desaparecendo sem deicat vestigis. Diante de seu desaparecimente misterioso, os cabaclos passaram a acreditar aque ele votes (KRUGER, 2004, p77), A Guerra do Contestado fol um confito que ocorreu entre os anos de 1012 a 1016, na egido oeste do Estado de Santa Catarina. Este tevitéio testava em itigio com o Estado do Parans, 0 que explica o nome Contestade. Segundo Fraga"foram varias az causas do confite armado, pois. na ‘mesma época e no mesmo lugar, ocorreu um movimento messisnico de grandes proporges, uma disputa pela posse das terras, uma competigao fecondmica pela exploragio de riquezar naturas e uma questio de mies inferestaduai” (FRAGA, 2005, . 227) 10 Atualmente, em termes médicos, aeispela tende a ser assim defnida"infecgo da pele produzida por estreptocoogs. que se espalha seme. Ihante & celle...) Sintomas: dor de eabega, vémitos,calaftos efebre. dor nas articulagdes e prostrapdo” (GUIMARAES, 2002. p. 180) 11 Este temo popularmente canhecide come bicheira & defnide na linguagem médica como uma ectoparasitose denominada de mwiases cute reas, causada por laras de ciperes, que parastam anima de sangue quente, almentande-se de tecidos vivos (biontfagas). Disponivel em ‘wan msd-saude-animal.com.br BRD Artedett UE!!3 importdncia de Jodo Maria em sua vida dizendo que, quando faz oragdes, sente a sua presenca por in- termédio do cheiro do cachimbo, que, segundo seu depoimento, ele ainda utilizaria. Além disso, ela demonstra um conhecimento muito grande sobre a sua vida, oferecendo informa- ces que garante obter a partir de “conversas esta- belecidas com o monge”. Comenta que ele curava as feridas com as “cinzas” do seu cachimbo, que seu prato favorito era “virado de feijio com couve e torresmo” e que “adorava café com pouco agticar”. Afirmou ainda que “ele fazia uma oragio e a policia nao achava ele (sic)”. Apesar de afirmar ter contato com o monge, falecido hd décadas, pode-se aventar a hipdtese que tais supostos conhecimentos relativos a ele foram obtidos pela tradicao oral. Isso, tendo por base seus relatos. Segundo afirmou a benzedeira, sua familia teve outros membros que dedicavam culto ao mon- ge. Ela confirma que aprendeu a benzer com seu tio, que se chamava Joao Maria, uma homenagem a0 monge. Este, por sua vez, havia aprendido com a mae, a qual teria uma “ligacdo muito forte com 0 monge Pelos dados levantados, se viva, sua avé contaria por volta de 100 anos, pois teria nascido em 1912, ano do inicio da Guerra do Contestado. Portanto, nao poderia ter conhecido o Monge Jodo Maria. Mas sua famtlia possivelmente pode ter tido algum con- tato com ele, ou com pessoas que o fizeram. Caso nao o tenham conhecido, seus ancestrais provavel- mente ouviram falar sobre o monge, vivenciado sua mistica e ajudando a perpetué-ta. Os depoimentos obtidos indicam que as benze- deiras sao as portadoras atuais de um modo popular de cura elaborado historicamente, e que foi sendo repassado, adaptado e reformulado de geracdo em geracdo. A Benzedeira 3, afirma que a benzedura ¢ uma tradigao de sua familia. A Benzedeira | conta que sua “avé, mae da mae, era benzedeira daquelas forte (sic)”. O Benzedor 6 afirma ter aprendido com as pessoas mais velhas. Por sua vez, a Benzedeira 5 conta que sua mae era parteira. Ou seja, quase todas afirmaram ter um antepassado que realizava, benzeduras ou, de alguma forma, estavam envolvi- dos com 0 atendimento 4 populaco em assuntos relativos as enfermidades, 8 satide ou problemas de outra natureza. Por exemplo, como parteiras. Essa pritica popular de cura atravessou os séculos pela tradigéo oral. Os mais novos aprendiam as rezas, di- eres, simbolos, ¢ uso das ervas com os mais velhos, que se empenhavam para manter vivas suas praticas @ representacées, mantenedoras da sua atividade ou fungao social. Outro aspecto a se destacar é que todas as ben- zedeiras se declaram catélicas e fazem questi de reforcarem sua incluso na Igreja, pois elas se con- cebem cumprindo uma misao, uma vez que en= tendem terem recebido de Deus o dom de curar. Pode-se perceber que, em alguns casos, afirmam-se preocupadas em obter a aquiescéncia da Igreja. Por ‘exemplo, quando a Benzedeira 4 destaca que “os padres aceitam tranquilo [tranquilamente] e sé um padre nao gosta” das suas praticas. Pode-se propor assim que esses terapeutas po- pulares enfrentam o dilema de se declararem caté- licos e, assim mesmo, persistem numa pratica com- batida no seio daquela religiao. O ato de benzer uma pratica que evidencia aspectos que remetem & religiosidade popular, conforme jd observado, mas as formas e praticas de benzimento desenvolvidas por cada uma das benzedeiras remetem aos seus modos particulares de nao apenas benzer, mas também de ‘exercer sua religiosidade. Isso tende a ser realiza- do a partir de sua individualidade, seus referenciais, suas experiéncias de vida, suas representaces re- lativas ao mundo, as doengas, aos recursos disponi- veis para se obter a cura e, segundo relataram, de forma associada Aquilo que Ihes foi repassado por seus parentes que lhes transmitiram aquela arte. Na maior parte dos casos, a gratuidade é uma caracteristica do benzimento. Isso acontece pelo fato de as benzedeiras compreenderem sua ativida- de como uma fungéo ou como um dom de Deus. Sendo recebido gratuitamente, deve ser comparti- Ihado gratuitamente, segundo a percepcao de qua- se todas. Indo mais além, essa compreensao do seu fazer como benzedeiras faz com que algumas afir- mem se dedicarem a atividade em tempo integral. A Benzedeira 4 afirma atender de 15 a 20 pessoas por dia; a Benzedeira 2 diz que “tem dia que nao d4 nem pré almogar”; o Benzedor 6 conta que “vem gente de todo lado”. Esses depoimentos, além de confirmarem a grande procura pelas benzedeiras, mostram que estas tendem a fazer de sua atividade uma misao. Elas se assumem na condicao de ben- zedeiras manifestando uma solidariedade que des- toa no contexto da sociedade capitalista. O modo de ser e fazer das benzedeiras mani- festa, portanto, a manutenco dos valores de soli- dariedade e cooperacao, préprios das comunidades ‘onde se situa a origem das praticas de cura popula- res. De acordo com Oliveira, a pritica de cura po- pular tem sua origem no campo onde esses valores BRD Antedeti UE!!3 sao caracteristicos. Oliveira analisa a atividade das benzedeiras, como “um ato de resisténcia politica e cultural feito como alguma coisa prépria, através de uma cultura que contesta e rejeita a linguagem da opressio, da dominagao e da exploracao entre os homens” (OLIVEIRA, 1985, p.95). Com 0 processo de mercantilizaco do mundo acontece uma inversao de valores. Da solidariedade e cooperacio da cultura campesina passa-se ao indivi- dualismo e & competicio da urbanidade e a mercanti- lizagao das praticas de cura. Por isso Oliveira defende que as benzedeiras sio uma presenca revolucioné- ria representando uma resisténcia cultural e politica diante do modelo mercadolégico capitalsta. Esse modo de ser representado pela benzedeira contesta © modo de ser de sistema onde o homem explora o homem e onde uma cultura domina outra cultura Benzedeiras, médicos e livros © modo solidério e © modo mercantilista de cura é observavel no relato da benzedeira 4, quan- do esta relata sua atuagéo no espaco hospitalar. Ela afirma que o “doutor” pediu sua ajuda “porque nao estava dando conta” (sic), quando entio ironizou a situagao, afirmando ter dito ao médico que o atendi mento seria “meio a meio” (sic). Neste comentério a benzedeira parece chamar a atengio do médico sobre a mercantilizacao de medicina e, nado menos, para a sua incapacidade de tudo resolver. ‘Apesar das proposicées da benzedeira 4, que in- dicam uma suposta colaboracio, a tendéncia é mais no sentido de uma disputa entre a medicina e as te- rapéuticas populares. Assim, caminhando em rumo diferente, duas benzedeiras parecem reconhecer alguma diminuigao na demanda por sua atuacao ou da procura por seus servicos. Ao tentar explicar tal fenémeno, o atribuem a uma possivel maior procu- ra pela medicina. A Benzedeira | afirma que muitas Pessoas a procuram, mas que nos dias atuais, “as pessoas procuram mais o médico”. A Benzedeira 5 afirma que “era muito procurada e agora as pessoas a procuram menos”. Assim, enquanto algumas afir- mam serem procuradas com intensidade pela popu- lagao, outras dizem observar uma queda na deman- da por seus servicos. Ao fazé-lo, referem-se 4 sua concorrente, a medicina, como responsavel por sua substituicdo no atendimento a populacao. Mas nao propéem que isso se deva a uma maior eficiéncia desta tiltima. © Benzedor 6 justifica sua atividade na auséncia da medicina na histéria. Ele afirma ter aproximada- mente 80 anos, dizendo ter exercido um longo peri- ‘odo de atuacao, e conta que “antigamente nao tinha Doutor, senio tivesse benzedor para ajudar, morria ‘a mingua (sic)". Nesta afirmagao pode-se perceber como ele talvez busque por uma justificativa para sua atuacao. Parece assim ter necessidade de dar legitimidade & sua atividade, buscando uma justifica- tiva para suas praticas de cura. Oliveira nos oferece alguns elementos que po- dem auxillar a elucidar tal situacao, ao afirmar que “a benzecio (...) constitui, por um lado, um saber muito antigo, razio de sua legitimidade; mas ainda, paradoxalmente, as vezes ativado por um senti- mento de algo superado, desatualizado junto a seus partidérios” (OLIVEIRA, 1985, p. 102). Sentimento este que, por vezes, parece ser experimentado por alguns dos entrevistados. J& 0s depoimentos de duas outras benzedei- ras sdo plenos de possibilidades para se analisar as relacdes que sao estabelecidas na atualidade entre medicina e 0 benzimento. Nas entrevistas realiza- das com as benzedeiras surgiram outros elementos novos. A Benzedeira 3 afirma ter atendido a varios profissionais ligados rea da satide. E ela cita: um psicédlogo, dois fisioterapeutas, um dentista, varios advogados, um médico e varias esposas de médicos. Essas esposas serviriam na forma de um “correio”, segundo ela, porque os “médicos nao querem vir”. Ela faz questao de frisar que “ultimamente os mé- dicos esto vindo nas benzedeiras” e que “indica raizes até para médicos”. Destaca ainda que “eles admitem que os remédios do laboratério nao so bons (...) 0 laboratérios nao vao dar remédio pra curar as pessoas por que ai ndo vende mais (sic.)” Sua fala se propée a indicar uma situagéo nova, na qual membros de uma elite, ou profissionais com um ensino superior, portadores de um saber consi- derado superior, buscariam respostas apelando ao saber popular. Deve-se ter em consideracao, con- tudo, que tal afirmagao partiu de uma benzedeira, a qual, pelas mais variadas razées, poderia ter interes- se em defender tais proposicées. Pode-se perceber neste depoimento certa ten- déncia a reconhecer algumas fragilidades da medi- cina no trato das enfermidades e nas suas formas de compreensio da vida, separando corpo e alma. ‘Ao assim se posicionar, a benzedeira parece mesmo ter chegado a conclusées em alguns aspectos simi- lares aquelas propostas por Oliveira (1985). A auto- ra, analisando a relagao entre a medicina erudita e a BRD Artedett UE!!3 benzegio, afirma que “as multinacionais do remédio que controlam 0 mercado farmacéutico, através de campanhas e pesquisas junto aos médicos e a popula fo, acabam por determinar o préprio conteido de qualquer modalidade de pratica erudita” (OLIVEIRA, 1985, p.83). Diante disso podem-se observar algu- mas conclusées como: a forte presenca da industria farmacéutica, a manutencéo da presenca das formas populares de cura e, apesar dos grandes avancos da ciéncia médica, poderia ser observada certa crise de paradigma da medicina, conforme jé citado anterior mente por Queiroz (1986) e Barros (2000). A Benzedeira 3 apresenta uma postura dife- renciada das demais. Ela exibe com orgulho sua bi blioteca. Afirma ter 50 livros e que estaria prestes a receber mais 30. Estes livros versam sobre espiri mo, ervas medicinais, biografias de santos e ora- Ges. Explica que estuda biografias dos santos para saber a “especialidade” de cada um, a fim de saber qual santo invocar diante dos problemas e doencas apresentados pelas pessoas que a procuram, pedin- do a cura. Por exemplo, para a briga de casais ela invoca a Sagrada Famiia.”” Dizendo ter 48 anos, ¢ mais jovem que as de- mais e afirma ter estudado até a 3* série. E também a Unica que cobra pelo atendimento. Ou seja, faz a cobranca de uma taxa de R$ 15,00” justificando que é para o custeio das velas, pois acende uma vela para cada pessoa que atende. Afirma que “atende entre 2.000 e 3.000 pessoas por ano” e que “anota tudo num caderno”. Se foi proposto que a benzedeira 3 apresen- taum perfil diferenciado, isso deve-se ao fato de ter afirmado que estuda, registra os atendimentos, co- bra uma taxa de atendimento, o que nao é préprio da cultura do benzimento. Ao mesmo tempo, man- ‘tém um forte vinculo com a tradicao do benzimen- to, tendo como guia o Monge Joao Maria. Ela de- monstra boa desenvoltura no trato com as pessoas, usa com naturalidade o telefone, atendendo alguns de seus clientes até mesmo por telefone, o que as outras nao fazem. Ao afirmar que “os médicos estao vindo na benzedeira”, pode-se perceber em suas palavras um sentimento de orgulho, de legitimida- de e motivagao para prosseguir estudando, visando aprimorar seu fazer como terapeuta dos pobres e, segundo propée, também dos ricos e mais cultos. J&no depoimento da Benzedeira 4 se observa ‘outra situagao nova da pratica do benzimento. Ela afirma que benze também no espaco hospitalar. Isso porque diz ser chamada pelas enfermeiras ter © apoio do “doutor”. Ela enfatiza dizendo que ‘© médico solicitou que ela o auxiliasse no atendi- mento, pois ele “nao estava dando conta’. Ela ainda ‘comenta que ao perceber alguma doenga que ndo consegue resolver em alguma pessoa que vern até la, esta encaminha para o hospital. ‘Tratar-se-ia, assim, segundo seu depoimento, de um relacionamento diferenciado entre o modo popular de cura e a medicina. Ocorreria, nas suas palavras, uma acao de complementaridade. O médi- co especialista, a partir de uma visdo que contempla apenas a dimensio biol6gica, buscaria apoio em ou- tras possibilidades de cura, como aquelas oferecidas pelas benzedeiras. O que era visto como supersti- ‘¢do passaria assim a ser visto como diferente, porém também eficaz. E teria méritos ainda por apresentar uma visio diferente relativa a vida e a cura, onde corpo e alma se constituem em uma totalidade. ‘A benzedeira demonstra ter clareza de sua identidade social, de sua funcao social e da fungéo social da medicina. Ao mesmo tempo em que busca valorizar sua identidade, declarando que & chama- da para fazer benzimento no espago hospitalar, ela reconhece o valor da medicina, quando afirma que ‘existem doencas que nao sao de sua alcada. Em ou- tras palavras, uma nao deveria excluir a outra, mas ambas deveriam se complementar. Nos termos apresentados por Roger Chartier, podemos propor que sua identidade social se cons- truiu na forma de representagées socials, resisten- tes Aquelas impostas pela medicina. Essa identidade social & reforcada quando as benzedeiras afirmam atender profissionais de satide e membros da elite, ‘ou mesmo que chegariam a atender no interior de hospitais. Ou, conforme observado por Silva (2004), quando passam a atuar em politicas ptiblicas, como a “participagao das rezadeiras nos projetos de de comunitaria no estado da Paraiba”. Por isso, uma coutra forma de resistir 4 medicina seria aliando-se ela, ou propondo ser possivel e desejavel fazé-lo, conforme proposto por algumas das benzedeiras 12 Observe-se assim que nio,é apenas a cura de doengas que as mantém ocupadas. Algumas benzedelras aftmam ainda atuar em casos de Aifculdades para engravidar. € 0 caro da “garrafada pata ganhat nenén, ctada pelo benzedor 0. Podem também interiraté em causaz ad ‘voraticias, come aftmou a benzedsira 3 13Na ocasido da primeira entrevista, ataxa de atendimento era de R$ 10,00. Contudo, a benzedeirainformou que, a pati: de abi, taxa pass baer de R§15(00. Na porta de entrada de sua casa ha um cartaz avisando as pessoas arespeito do valor aser pago. Ela garante que, mesmo cobrando, a procura por seus serviges € grande. BRD Antedeti UE!!3 entrevistadas no Municipio de vaipora. Consideracées Finais Durante a realizagao do presente trabalho, noti cia veiculada pelos meios de comunicacao dava con- ta que, nos municipios de Rebougas e Sao Joao do ‘Triunfo, ambos no Parand, decretos municipais ha- viam reconhecido a pratica dos “oficios tradicionais de saiide popular”, em suas distintas modalidades: benzimento, cura, costura de rendiduras ou machu- caduras.'* A partir da publicagio daquelas leis, tais préticas foram autorizadas, organizando-se ainda um curso com 40 horas de treinamento, a frente do qual atu- am benzedeiras locais. Apés sua conclusdo as novas benzedeiras passam a ter suas carteirinhas de de- tentoras de “oficio tradicional de satide popular”. Nao se pode propor que isso signifique verda- deiramente uma vitéria das benzedeiras, mas reve- la que o assunto nao esté encerrado, como nunca esteve. Afinal, no periodo anterior a Repiblica, a populagdo, ainda nao totalmente convencida dos poderes de uma medicina de recursos e eficacia pouco confiaveis, apelava aos terapeutas populares, sem receio de proclamar tal preferéncia. Situagso diferente daquela que se constata no periodo anali- sado, em que se observou certa tendéncia em fazer eco ao discurso da medicina, contrério aos benzi mentos. Contudo, isso nao significa, conforme aqui evidenciado, o abandono daquele recurso. A partir da andlise dos depoimentos, algumas consideracées podem ser feitas. As benzedeiras a0 mesmo tempo em que se constituem em uma iden- tidade coletiva, se apresentam de modo bastante individualizado no seu fazer. Observam-se algumas distinces nos modos de benzer por elas adotados, de acordo com suas origens culturais e suas referén-

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