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3) OD LMC Und PARA A CONSTITUIGAO E ANALISE DA Docu- CTC CML ee CCU DM OTT Leto) DL 00 a CSCO Tg ENTREVISTA, ESTE MANUAL FOI ESCRITO COMO OM CUCM EC Se Cet ee LCD. Cy CIENCIAS HUMANAS. CLAREZA, RIGOR E OB- TPO Se ORL il Wil José Cantos S. Bom Meiny José Cartos Stet Bom Meiny Manval de Historia Oral Edigdes Loyola Rua 1822 n° 347 — Ipiranga (04216-000 Sao Paulo — SP Caixa Postal 42.335 04299.90 Sao Paulo — SP @ conn) 914-1922 FAX: (011) 63-4275 Tdos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproducida ou transmitida por qualquer for 1ma elou quaisquer meios (eletronico, ou mecanico, incluindo fotocdpia e gravagdo) ou arguivada em qual ‘quer sistema ou banco de dados sem permissto escrta da Edivora ISBN: 85-15-01524-X © EDIGOES LOYOLA, Siio Paulo, Brasil, 1996, Sumario Apresentagéo ae A revolugao da palavra 9 que é hist6ria oral? 213) Um pouco da histéria da hist6ria Oral .n.ccsnnnnnnnnn 19 A histéria oral no Brasil e Quem 6 quem em hist6ria oral... O ‘eu’ e 0 ‘outro’ Hisiéria oral de vida Hist6ria oral temdtica ..... sc tele k ues Bee EY Tratleao oral... a prone A guisa de exemplificagéo oe a7 Projeto de histéria oral .. ite de oomivele de ndecints do pose Histéria oral e meméria... Saag Glossério Apresentacéo Be manual € resultado de trés fatores combinados: 1) da necessidade, particularmente no Brasil, de atualiza;io dos debates e orientagdes em torno do que modernamente tem sido co nhecido como hist6ria oral; 2) da simplificagdo e esclarecimento das informagées sobre conceitos ¢ operagées comumente complicados por investidas mais te6ricas e priticas, quase sempre importadas € recondicionadas nas universidades como se fosse patriménio préprio, € 3) do insistente ntimero de pedidos para sua realizacao. ‘Tudo isto reunido motivou-me a propor este texto, que & dado a piiblico tanto em favor de setores da academia que questionam 0 papel social do conhecimento produzido pelas escolas superiores como dos museus e arquivos que, carentes de guias, véem-se dispostos a democratizar acervos, promover recolhas e evidenciar testemunhos. ‘Ao redigir este manual, pensei fazé-lo 0 menos normativo poss vel e mais preocupado em fornecer elementos necessfrios & atua¢ao dos oralistas. Ble nao pretende ser um modelo fechado nem fornecer uma orientagdo absoluta. Sua pretensdo esgota-se na proposta de ser indicativo. Porque duvido da eficacia de manuais que se comprome- tem com a definigéo de normas precisas, busquei a combinagao de referéncias historiograficas trangadas com conceitos sistematizados € exemplos. Antes de ser publicado, este manual foi testado em cursos répi- dos na Universidade Catélica da Bahia, em Salvador; na Universida- de Federal do Amazonas, em Manaus; no Arquivo Piblico de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul. Uma primeira versdo foi lida por Robert M. Levine, que © adaptou para publicagao nos Estados Uni- dos. Meus alunos do Departamento de Historia da Universidade de ‘Sdo Paulo, particularmente os que acompanham os esforgos para a disseminagdo da histéria oral no Brasil, tém sido companheiros criticos constantes, convocando discussdes e trabalhos de campo em 7 toro da matéria, Maria Bta Vieira, André Oliva Teixeira Mendes, Fabiano Maisonnave, Bric Vanden Bussche, Fabio Bezerra de Brito ¢ ‘Andrea Paula dos Santos acompanharam de perto a elaboracio destas paginas, ¢, & distancia, Sergio Murilo Zarro se fez presente. A eles so dedicados os eventuais frutos do esforgo que, alias, € coletivo por termos carregado tantos projetos de hist6ria oral crivados por esta orientagio, (Os colegas da Associagdo Brasileira de Histdria Oral, fecundada em 1992 no Congreso América 92: Ralzes © Trajetérias c funda da em 1994, tém motivado debates e muito do que € exposto aqui resulta de discussées desenvolvidas com seus participantes em diver- sas partes do pais. Edigdo Loyola sempre se mostrou permedvel as investidas de histéria oral, por isto, nesta apresentacao seria injusto nao registrar ‘um agradecimento especial. O reconhecimento da validade deste tipo de trabalho por parte de uma empresa comprometida com a busca de justiga e a aplicaggo dos direitos humanos é um aval singular para projeto ético que justifica a historia oral. 0 Autor A revolugdo da palavra Az=:: hist6ria oral tem influido no comportamento das disciplinas universitérias e atuado diretamente na con- duta de museus € arquivos do mundo inteiro. ‘Como fenémeno renovado, a partir do uso de entrevistas, a his- toria oral tem aproximado pessoas € instituigSes preocupadas com dois aspectos importantes da vida contemporanea 1}o registro, arquivamento e anélise da documentagéo colhida por meio do recolhimento e trabalho de edigdo de depoimentos ‘estemunhos feitos com recursos da moderna tecnologia; 4 2) a inclusio de historias e verses mantidas por seguimentos populacionais antes silenciados, por diversos motivos, ou que tenham interpretagdes proprias, variadas e ndo-oficiais, de acontecimentos que se manifestam na sociedade contemporanea. Por meio da hist6ria oral, por exemplo, movimentos de minorias culturais e discriminadas, principalmente de mulheres, indios, ho- mossexuais, negros, desempregados, além de migrantes, imigrantes, exilados, tém encontrado espaco para abrigar suas palavras, dando sentido social as experiéncias vividas sob diferentes circunstdncias. ‘Muitos trabalhos de histéria oral registram a trojetéria ah pessoas idosas e, por meio delas recompoem aspectos da vide individual, do grupo em que esto inseridas ou da conjuntura que $ | 0s acolhe. Jovens, criangas também mostram-se motivadores de || registro e andlise, particularmente quando representom experién- 1 cias coletvas. y 0s resultados praticos deste novo fendmeno de percepcao social depois de se firmarem em paises como 0 Reino Unido, Estados Unidos, México, Itlia, comegam a ganhar forga também no Brasil. Em obedién- 9 cia ao ritmo de aceitacéo ¢ respeitabilidade, entre nds se passa o apenas as grandes figuras e aqueles que deixaram marcas arquivadas mesmo que em outros lugares: num primeiro instante, grupos conser: em espagos oficiais e oficializados, a hist6ria oral promove, juntamen- vadores duvidam da historia Oral, como se Tosse_insuficient te com uma nova concepedo de historia, uma interpretacdo clara de ‘explicaro conjunto social, como mals uma novidade e por isto algo ue todos, cidadios comuns, somes parte do mesmo processo. — passageiro. Na medida em que ela mostra a que veio, mudangas Além de mexer no conceito de ‘personagem histérico’, a histéria ‘acontecem. Atualmente, a historia oral j4 se constitui parte integrante oral também trabalha com a questio do cotidiano, evidenciando que do debate sobre a fun¢do do conhecimento histérico e atua em uma_ \ @ historia dos ‘cidadaos comuns’ é trilhada em uma rotina explicada \ na légica da vida coletiva de geragGes que vivem no presente A palavra dita, depois de passer por cuidados convenientes a sua gravacio e conservacio, representa pois um avango no conceito de documento e na possibilidade de analise social Quem é especialista em histéria oral € conhecido por oralista Com esta denominagao busca-se caracterizar uma comunidade que trabalha em areas ligadas as entrevistas e que, dados os elementos comuns, buscam se relacionar acima das diferencas das tradigGes disciplinares. linha que questiona a tradicao historiogréfica centrada em documen:- m di Sria oral hoje é parte inerente dos_ debates sobre tendéncias da histéria contemporiinea “~ Diividas comuns como a “representatividade” dos testemunhos, © “alcance hist6rico” das impressdes e a “relatividade' dos casos narrados tém perdido a forca na medida em que as virtudes e a popularidade da histéria oral passam a integrar preferéncias indiscu tiveis e a ganhar adeptos de peso. Isto além de propor didlogos com outras verses historiograficas. Uma palavra deve ser dita em face das limitagdes cobradas da historia oral pois, tantas vezes, as mesmas fronteiras imputadas a ela se ajustam aos documentos, escritos ou iconograficos, que também guardam as mesmas limitagSes. | Como pressuposto,« histria oral implica uma percepeéo do }\ { Passado como algo que tem continuidade hoje e cujo processo | histérico néo esté acabado. A presenca do passado no presente} { imediato das pessoas 6 razdo de ser do histéria oral. Nesta | | medida, a histiria oral ndo 56 oferece uma mudanca para o $ i { ' ‘ ' } conceito de histiria, mos, mais do que isto, garante sentido social 4 vida de depoentes e letores que passam a entender a sequéncia histérica e a senfrem-se parle do contexto em que vivem Além do mais, a histéria oral é uma alternativa a histéria oficial, consagrada por expressar interpretacdes feitas, quase sempre, com 0 auxilio exclusivo da documentacao escrita e cartorial Assim, ha uma revolucao promovida pela palavra oral que deixa de ser ‘letra morta’ e passa a ter sentido no questionamento da documentagao capaz de explicar a sociedade do presente. Porque dialoga com a velha concepeao de que personagens histéricos eram 10 0 que é historia oral? ist6ria oral é um recurso moderno usado para a elaboragao de documentos, arqitivamento e estudos referentes & vida social de pessoas. Ela & sempre uma histéria do tempo presente ¢_ também conhecida por histéria viva. Como histéria dos contempora- neos, @ hist6ria oral tem de responder a um sentido de utilidade pratica e imediata. Isto nao quer dizer que ela se esgote no momento da apreensao e da eventual anélise das entrevistas. Mantém um com: promisso de registro permanente que se projeta para o futuro suge- Tindo que outros possam vir a uséla {)Seja para o arquivamento de experiéncias, ou para promover | entendimento ou sxplicagdo de determinadas sitvasées, a histiria [aot eee eneaiane eet pric, utlitério e dialogar com | | 2 comunicagdo pablica. | Nao sao poucos aqueles que acham que a histéria oral deve manter vinculo direto com a sociedade e nao se permitir ser proprie- dade exclusiva dos cfrculos académicos que insistem em se apropriar dela. Também muitos advogam contra uma tendéncia saliente entre alguns grupos que percebem a histéria oral como uma recorréncia nostéllgica, saudosista e alienada Resultado dos avancos da tecnologia, principalmente de meios | eletrénicos como o gravador, 0 video e o computador, a histéria oral se apresenta como forma de captacdo de experiéncias de pessoas dispostas a falar sobre aspectos de sua vida mantendo um compro: \ misso com o conterto socal £ importante valorizar a relacdo que se estabelece entre historia oral € os aparelhos tecnolégicos dispostos ao consumo do mundo moderno. O uso da mediacdo eletrénica, por meio dos varios apare 13 Ihos postos no mercado, faz com que quem trabalha com hist6ria oral se insira no espaco vivencial de seu tempo, valendo-se também dos ‘meios disponiveis rara a melhoria da condicéo intelectual ‘© contato com meios eletrénicos, por meio da histéria oral, ‘mostra as vantagens do manejo de artefalos da otvolidade que 1ém, também, sentido para a produgao de documentos e anélises sociais. ‘A obrigatoriedade da participagdo da eletrGnica na histéria oral determina uma alteragdo nos antigos procedimentos de captagao de depoimentos antes feitos na base de anotagSes ou memorizacéo. Esta é, als, uma das marcas da historia oral como um procedimento novo. B desprezivel discutir se histéria oral se compraz ou nao em ser uma técnica, um método ou uma disciplina, Dado sew perfil multidisciplinar, sem constituir um objeto especifico de pesquisa, ‘mais vale pensar a historia oral como a ela se referiu Louis Starr, um de seus fundadores: "Mais do que uma ferramenta, e menos do que ‘uma disciplina’, também mais apta a motivar reflexdes do que @ cesgotar-se em debaies inécuos sobre seu sentido epistemolégico. Da mesma forma, é pobre manter a discussio sobre a cientificidade ‘ou ndo da histéria oral. Cabe, modestamente, reconhecé-a como instru- ‘mento capaz de colocar novos elementos & disposigao dos interessados na leitura da sociedade. 8 valido também no considerar a histéria oral como mero substiturivo para caréncias documentais, sejam qualitativas ou quantitativas. Ela pode até vir a complementar algum conjunto documental para explicar percepgdes de problemas, porém, ¢ equivoca- do assumila fora da especificidade de seu cédigo. ‘Ainda que muitas vezes a existéncia de depoimentos colhidos no tempo presente seja usada como contribuicéo para preencher vazios documentais, lacunas de informagdes e complementar ou promover © dialogo com outres fontes ja conhecidas, é importante ressaltar que se pode assumi-a ‘soladamente, com valores prOprios. Fala-se tam: bém da validade de considerar a hist6ria oral por si mesma. Bla é relevante também para facilitar 0 entendimento de aspectos subjeti vos de casos que, normalmente, sio filtrados por racionalismos, ob- jetividades e neutrclidades esfriadas pelas versoes oficiais ou dificul- 4 tadas pela légica da documentagio escrita que encerra um cédigo diverso do oral |. A base da existéncia de histéria oral é 0 depoimento gravado. | Neste sentido, pode-se dizer que trés elementos constituem a ‘condigéo minima da histéria oral: / 1) o entrevistador; 2) 0 entrevistado; \_ 3) a aparelhagem da gravacéo. \ Ha casos em que podem existir mais de um entrevistador, varios entrevistados e miiltiplos aparelhos de gravacdo como as filmadoras. © mais comum, no entanto, sao entrevistas individuais feitas com gravadores portateis, de preferéncia com microfone embutido. Inegavelmente os projetos envolvendo video tém atraido grande niimero de adeptos. Neste caso, deve-se considerar entrevistas filma- das como parte integrante da historia oral, ainda que meregam tra- tamentos diferenciados. Porque a filmagem implica a soma de som com imagem exige-se: postura determinada do depoente, definicao do comportamento e do papel do ertrevistador e a quase obrigatorieda- de da presenca de outro ou outros participantes. Esta situagao impli- ca, pois, um conjunto diferente da gravacio feita exclusivamente com gravador comum. Preparos referentes a espontaneidade e a perda da intimidade devem ser considerados. Historia oral € um procedimento premeditado. Seria ingénuo pen- sar que qualquer pessoa despreparada metodologicamente, por entre- vistar alguém, estaria fazendo historia oral Histéria oral é um conjunto de procedimentos que se iniciam com a elaboraréo de um projeto e confinuam com a definicdo de tum grupo de pessoas (ou colénia) a serem enlrevisladas, com 0 planejamento da condugio das gravarées, com a transcri¢éo, com a conferéncia do depoimento, com a auloriza¢éo para o uso, arquivamento e, sempre que possivel, com a publicagda dos resul tados que devem, em primeiro lugar, vollar a0 grupo que gerou as entevisas. ‘A hist6ria oral tem trés tempos principais e nitidos, ainda que apenas eventualmente complementares: 1) 0 da gravacéo; \ 2) 0 da confecgao do documento escrito; 3) o de sua eventual anilise. primeiro é fundamental por ser instante da materializacdo do documento inicial. O segundo € o terceiro podem ou nao existir fem relagao ao primelro. Ha grupos que 56 aceitam a historia oral quando esta se mostra, depois de escrita, analisada. Este posiciona- mento exige ¢ realizacao das trés etapas e recomenda-se que nio seja feita a anélise sem proceder a todo processo de transcrigéo. Outros, contrariamenie, entendem que a producao do texto escrito eo exame da entrevista podem ou nao ocorrer, ndo sendo raros 0s que consi deram que s6 a confecgao do documento ja é tarefa suficiente para cumprir os ideais da historia oral ‘Arquivistas, por exemplo, valorizam a elaboracéo documental para uso posterior e muitos deles esgotam assim a funcao da hist6ria oral. Ha aqueles que acham que a elaboracao do documento, quando da passagem do oSdigo oral para o escrito, ja implica analises, dados os trabalhos que se faz com a edicio do texto. Além disto, 6 bom embrar que existem pessoas que trabalham com histdria oral que consideram olleitor como um agente ativo que, ao ler um depoimen- to, ndo precisa ser conduzido a conclusdes que ele mesmo saberé elaborar, { Ha trés modalidades de histéria oral: 1) iti crt de vid \ 2| histéria oral tematic { 3) tradigdo oral | ‘As trés formas de historia oral, de vida, temética e tradigao oral —, dependem de entrevistas com pessoas que esto com as faculdades mentais em boas condigdes e se apresentam para dar depoimento independentemente de pagamentos ou outros beneficios materiais. Ha também implicagies importantes em vista da definigdo de qual é 0 documento de histéria oral. Seria a fita gravada ou a trans- 16 \ crigio 0 documento de histéria oral? Hé pessoas, normalmente as mais tradicionais, que consideram a gravacao o documento essencial da histéria oral. Outros preferem considerar a transcrigdo depois de aprovada pelo depoente como 0 documento fundamental. A opcao — se a fita ou a transcrigao expressa o documento central —, deve ficar clara no projeto e isto afeta inclusive aqueles casos em que apenas so consideradas as gravages como motivo de registro. Um pouco da historia da historia oral moderna hist6ria oral nasceu em 1947, na Universidade de Columbia, em Nova York. Allan Nevins organizou um arqui- vo e oficializou o termo, que passou a ser indicativo de uma nova postura em face das entrevistas. Isto se deu depois da Segunda Guer ra Mundial, quando combinaram os avangos tecnolégicos com a necessidade de propor formas de captacao de experiéncias importan- tes como as vividas entio por combatentes, familiares e vitimas dos conflitos. Nessa época, o radio jé era um importante meio de divulgacéo as entrevistas tornam-se populares. O jornalismo, portanto, foi um significativo degrau para 0 avango da hist6ria oral. Os primeiros programas de entrevistas visavam pessoas de destaque e apenas mais recentemente é que os grupos menos favorecidos comevaram a inte- grar a ordem de prioridades dos pesquisadores. As revistas e jornais, ajudaram a divulgar depoimentos que eram, quase sempre, complementados por fotos. Este tipo de divulgagao popularizou o depoimento como um género importante e integrado ao gosto urbano moderno. ‘A moderna histéria oral tem um passado muito remoto, que poderiamos chamar de "Pré-histéria da historia oral’. E comum dizer que a historia oral é to velha quanto a propria historia. Fala-se ry também que toda historia antes de ser escrita passou pela oralidade. Houve época em que a histéria oral nao era bem aceita pela comunidade intelectual de varios paises. Entdo, alguns autores retracaram 0 trajeto da oralidade, remontando uma genealogia basea da no pressuposto de que os primeiros historiadores, como Herddoto, 6 pai da histéria, estabeleceram a participacao pessoal, o testemunho, 19 BL SES ASD ar. acy eet Anat Tre ake ae ‘como a base para descrever a verdade do que se via. Dai a raiz da | palavra histia que naquele tempo, na Grécia signficava ‘aquele que | viu ou testemunhou'. Pode-se dizer que 0 método de Herédoto foi a | base para o ramo de hist6ria oral conhecida por hist6ria oral pura, ou seja, aquela que trabalha exclusivamente com documentos colhidos pelos contatos diretos com documentos feitos, em todas as fases,/ pelos préprios oralistas ‘Tucidides, em seguida, duvidava do método de Herédoto, Achan- do impossivel definir a *verdade" simplesmente pela observagio € pelos depoimentos colhidos diretamente, preferia nao confiar na meméria, que achava “falivel’, e em muitos casos, dependendo das simpatias dos depoentes, ‘partidéria’. O método tucidiano consistia fem proceder a exames que combinavam testemunhos com outras fontes, Este critério — que no descartava os depoimentos —, pode ser considerado como inspirador de outro ramo da histéria oral co- nhecido por histéria oral hibrida. A histéria oral pura trabalha apenas com os depoimentos. | Seja apenas uma ou varias narrativas, a histéria oral pode tanto | revelor a entrevista ov @ andlise, desde que apenas sejam cons: derados os depoimentos como fontes. sentido testemunhal da histéria procedida pelos antigos equi arava o contato pessoal, a observacio direta com a selecdo de fatos feita pelo historiador. A medida que o distanciamento dos aconteci- ‘mentos imediatos, e mais do que isto a evocagao de situagées distan: tes se impunha, resultava a necessidade da credibilidade documenta 0 império romano, dada a vastidéo territorial e a complexidade das cculturas dominadas, exigiu uma burocratizagao que implicava, para 0 melhor controle e dominio, conhecimentos hist6ricos. A historia feita entio nao poderia ser mais apenas testemunhal No século XIX — sob a orientagao das correntes filos6ficas do positivismos que sagrava o modelo cientifico como padrao para o saber —, isto foi levado a um exagero extremo, permitindo que alguns intelectuais apenas vislumbrassem a possibilidade de elaborar hist ria a partir de documentos escritos, posto que estes guardariam a verdade em si. 2» Tn eg ak ee eee ei Sn eee ge a Soe Sempre que se fala de histSria oral, € importante lembrar que ha uma discussio historiogréfica que interfere na qualificagao do elemento essencial desta matéria, a palavra dita. O significado do prestigio dominante da palavra escrita sobre a oral impés uma guer- ra entre estes cédigos e 0 grafado foi dividindo a sociedade em alfabetizados e ndo-alfabetizados. Desde os primeiros tempos, come- ccando pelos egipcios, por meic dos chamados escribas, a palavra escrita passou a ganhar valor em detrimento da oral, que passava a ser recurso vulgar. ‘Ainda que na antigiidade Platio ja houvesse pontificado que 0 triunfo da escrita sigificava a merte da meméria, foi a grafia que ven- ceu € determinou, gradativamente, um rebaixamento do significado da palavra falada. Na idade média, com os monges copistas, isso tornou-se mais 6bvio, A partir da descoberta da imprensa, a validade do escrito sobrepujou, em muito, tudo o que era dito. No século XIX, as cigncias e a literatura apoiaram-se na palavra grafada para centrar nela sua crecibilidade cientfica. Este trajeto implicou uma espécie de ditadura da palavra escrita que contrasta, até hoje, com a fragilidade da palavra oral. Isto aliés se expressa no ditado popular que reconhe- ce que 86 vale o que estd escrite. ‘A par do primado da escrita, os depoimentos jamais deixaram de ser importantes para alguns historiadores que nunca deixaram a pratica do convivio direto com o piiblic. Assim fez Michelet ao registrar a Historia da Revolugéo Francesa em 1789, e Macaulay, ao fazer a sua Hist6ria da Inglaterra a partir do reinado de Jaime I 1848-55]. Desde Engels até E. P. Thompson, a esquerda tem sempre mantido um ouvido na voz proletaria para poder usar a escrita grande salto da ‘pré-histéria da moderna historia oral’ foi dado nos Estados Unidos nos anos 1918-1920 quando a escola de sociologia de Chicago elaborou regras capazes de dar credibilidade as histérias de vidas. Este esforco foi caracterizado por um projeto norte americano que, em 1938, pretendia recolher de cidadios ilustres as, mais completas informagées sobre suas trajetérias. Nos anos 50, se- guindo 0 modelo de Columbia, varias associagSes e universidades ‘comegaram projetos de hist6ria oral, aplicando o modelo que apregoava a validade da histéria oral das elites. a cre ‘Apenas recentemente, a oralidade vem sendo cobicada como fonte de captacao e meio capaz de promover a andlise social através das entrevistas, A histéria oral, porém, além de seu valor documental enquan- | | P.grero lve gurdo om orquvos a molto da voz « cae S eee] ses mea ere A sistematizagéo que efetivamente permitiu a histria oral ter respeitabilidade, remete a sua retomada na Inglaterra pelo grupo da chamada nova esquerda, nos anos 60. B quando se mostra como alternativa a ser considerada “uma ooutra historia’, ‘uma contra-histéria’ ou “histOria vista de baixo" que a histéria oral comeca a ganhar espacos como elemento que vem adquirindo sentido no rol dos registros e estudos. 2 Seakts: Be 3 ae ees eee A historia oral no Brasil ntre nés, a historia oral tardou muito a se desenvolver em fungao de dois fatores primordiais: a falta de tradigSes ins- titucionais nao-académicas que se empenhassem em desenvolver projetos registradores das histérias locais e a auséncia de vinculos ‘universitérios com os localismos e a cultura popular. ‘Além disso, os compromissos internos a cada disciplina univer- sitéria, como a sociologia e a antropologia, ficaram marcados muito fortemente, impossibilitando o didlogo entre os campos que tratavam de depoimentos, testemunhos e entrevistas. Quando a historia oral, recentemente, despontou como opeao no Brasil, mostrou-se susceti- vel de ser filtrada pela universidade e nela apenas quando as fron- teiras disciplinares perderam seus exclusivismos, jé sob a luz do debate multidisciplinar, € que se iniciaram discusses sobre o avango da historia oral. Ainda que em menor escala, convém registrar que @ auséncia de um forte movimento de estudos sobre folclore acarretou inicios dificeis. No plano internacional, a hist6ria oral fluiu nos anos 60 motiva- da pela contracultura e combinada com 0s avancos tecnolégicos que, na esteira das pesquisas espaciais, estiveram atentas a gravacdo de sons, fotografias outras formas de registros visuais e auditivos. Coincidentemente, 0 desdobramento do golpe militar de 1964, no Brasil — bem como em varios outros paises da América Latina nos anos 60 —, coibiu projetos que gravassem experiéncias, opinides ou depoimentos. Em conseqiiéncia disto, enquanto no resto do mundo proliferavam projetos de hist6ria oral, n6s nos retraiamos, deixando para o futuro algo que seria inevitavel. Vale pois dizer que @ hist6ria ‘ral tem dupla funcio politica, visto que se compromete tanto com a democracia — que € condigéo para sua realizagio — como com 0 direito de saber — que permite veicular opiniGes variadas sobre te- mas do presente, 23 Entre nés, desde © momento da campanha pela anistia no fim dos anos 70 e principalmente depois da abertura politica em 1983, notava-se uma grande vontade de recuperar o tempo perdido. Mu- seus, arquivos, grupos isolados e principalmente a academia manifes- tavam certa ansiedade expressa na busca de entendimento para pro- mover debates em torno da histéria oral. Atualmente, ha, sem divi- da, um notével avango mantido inclusive em nivel internacional, ‘onde o Brasil passa a ter lugar cada vez mais destacado como promo- (wr de trabalhos de hist6ria oral. Uma das razes que explicam a adesio brasileira ds praticas a histvia oral é a fustopao reinanle nos circulos académicos {que ndo mais se satisfozem com os resultados anteriores. Fora da universidade, o ntimero de pequenos e grandes museus ¢ arquivos, preocupados com o registro da histéria local ou de comu nidades, também tem proposto comunicacao entre o saber académico € as mecessidades regionais em se promover o registro ¢ 0 exame social de realidades especificas. A regionalizacao da histéria oral € outra das virtudes propostas ao oralismo brasileiro pois pontua situa- es que, em geral, sio vistas amplamente. Contra as determinagées dadas pelas grandes estruturas, a historia oral se insurge como 0 avesso de tendéncias massificantes ¢ que “expulsaram” os seres hu ‘manos das reflexes sociais { As tensdes que puseram a histéria oral em evidéncia entre rnés fizeram com que um grupo de pessoas preocupadas com o { cssunto Em 1992, durante 0 Congresso Infemacional América { 92: raizes e trojetérias, em Séo Paulo, no Departamento de His- \ téria da USP) propusesse « criagdo de uma Associagao brasileira | de histéria oral, que foi efetivada em abril de 94. Antes, em 1975, houve um esforgo motivado pela Fundacao Ford que juntamente com a Fundagdo Getilio Vargas do Kio de Janeiro tentou, sem sucesso, estruturar uma organizacdo ampla e de alcance nacional que, contudo, nao frutificou. Dessa aventura resultou um a programa pioneiro da histéria oral brasileira, dos mais importantes, ‘em vigor desde a década de 70 no CPDOCIPGY do Rio de Janeiro, que passou a captar depoimentos da elite politica nacional. Pelo modelo importado e pelo carater introspectivo daquela instituicio voltada a pesquisa, a hist6ria oral, contextualizada nos anos pesados da ditadu- 1a politica, no ganhou 0 pablico, apesar de aquele projeto ser refe- réncia obrigat6ria a qualquer estudo sobre a historia oral brasileira ‘Ainda que colocado a disposigao dos interessados, 0 valioso acervo do CPDOC no chegou a se propor enquanto um modelo reproduzivel 25 Quem & quem em historia oral uso de entrevista sempre exist na historia da humanidade, Desde o século passado, a antropologia, a historia, a socio- logia, o jomnalismo, a psicologia, entre outras éreas do conhecimento hhumano e da divulgacao, tém se ocupado de depoimentos, testemu- nnhos e entrevistas como forma de registro e anélises sociais. Mesmo fora do circuito académico, arquivistas, musedlogos e colecionadores também cuidaram de gravar depoimentos que contudo néo obede- ciam a regras A histéria oral, considerando isto, mantém respeito a esses crtérios de apreensio de experiéncias, mas propie-se a ser mais. ‘A histéria oral pretende ser um campo mulidsciplinar onde, independentemente das vérias tradigées disciplinares, diferentes linhas de trabalho tenham um terrtéio para 0 didlogo sobre maneiras de cbordagem das enrevislas ¢ campo de troca de experiéncias. Diante da realidade, existe, por outro lado, uma nova postura ‘que modifica as antigas formas de realizar a entrevista. Combinando tecnologia com sua necessaria aplicagao @ cultura académica, muscol6gica e arquivistica, novas praticas so exigidas de estudiosos que tém de aliar suas técnicas de investigacao as possibilidades ofe- recidas pelos tempos modernos. ‘Além disto, incorporando aspectos da moral académica contem: pordnea, inclusive os debates sobre as relacdes éticas, de direito a autoria e sobre a fungao social do produto intelectual, a hist6ria oral tem como pressuposto um cuidado de uso da entrevista. Isto diferen- cia o trabalho de histéria oral do jornalfstico. Enquanto este se apro- pria da palavra como propriedade sua e faz dela aplicacao imediata, a para a historia oral as mediagGes sao discutiveis e passiveis de juizo. Além disto, hé necessidade de sensibilizagio do papel das entrevistas tanto para o entrevistado como para o entrevistador. Isto implica um acordo em relagéo as formas de uso do produto conseguido. ‘As novas imposigdes éticas exigem tratamentos diferenciados para quem se compromete a fazer entrevistas. Em vez de usar termos consagrados em outras tradigées disciplinares que se valiam das entrevistas (referéncias como ator, informante, objeto de pesquisa), a ‘moderna histéria oral usa deliberadamente a palavra colaborador. |) Coloberadr 6 um mo importante na defniio do relacona. } {mento entre o enirevistador @ 0 entrevistado. E fundamental, sobre- { tudo porque estabelece uma relagéo de afnidade ene as pares. entrevistador, por um lado, deixa de ser aquele que olha para © entrevistado contemplando-o como um mero objeto de pesquisa, por outro fngulo, ele prOprio deixa de ser um observador da experiéncia alheia e se compromete com o trabalho de maneira mais sensivel € compartilhada. ‘A mudanga do significado dos papéis, de quem € quem, néo esta ‘apenas ligada a superacio das formas tradicionais de se fazer entre- vistas. A dependéncia do colaborador passa a ser muito maior do que antes. Nao apenas este tem de dar a autorizagao para a publicacéo de parte ou do todo da entrevista, mas também de participar das etapas de transcricao e revisio do texto. Outro termo relevante na moderna histéria oral é 0 da autoria Segundo os critérios das antigas préticas de trabalho com entrevistas, a questio da autotia ndo representava nenhum problema. Para a historia oral, contudo, um dos aspectos mais interessantes e polémi- ‘cos remete a questo do autor. Basicamente a pergunta que se faz € se 0 autor quem contou a histéria ou quem a redigiu, dando-Ihe ‘uma soluglo formal. Na pritica, este ponto tem complicado muito a vida de pesquisadores que se perdem a0 confundir o trabalho de colaboracdo na entrevista com a direcao do projeto Apesar de o tratamento dado ao depoente ser 0 de colaborador, mediante as responsabilidades do escrito, o autor deve ser sempre 0 realizador do entrevista e o diretor do projeto 28 {Néo apenas os direitos avtorais devem ser encaminhados | | pra © aut, mas também os rscos da conduydo da pesquisa, | { dos usos das entrevista e os eveivais eros. ‘Toda entrevista, depois de acabada, deve ter um duplo termo de ‘essio assinado pelo depoente. Ainda que possam ser assinados em uma 6 carta, fazse imperiosa a explcitagdo se € dada a autorizacao para se ouvir a fita (toda ou em parte} elou ser lida e usada a transcricdo (toda clou em parte). B através deste documento que se garante a existéncia piiblica do depoimento e os direitos de uso da entrevista (gravada ou escrital. A carta de cessdo tem de ser clara, pessoal, feita com cépia registrada em cartério quando se fizer necessério e constando, caso haja, os limites do uso da entrevista (se além de poder ser ouvida e publicada no todo ou em parte, se pode ou ndo ser colocada em uso imediatamente ou se deve aguardar prazos ¢ neste caso quais) Ha um aspecto particularmente perturbador para quem trabalha ‘em histéria oral. E comum as pessoas acharem que o diretor do projeto, por ter o gravador e o poder de decisao sobre o tema central do estudo, tem poderes ilimitados. Esta visdo fica sempre comprome- tida na prética, pois 0 entrevistado é um agente ativo e muitas vezes ele quer controlar parte ou mesmo todo o trabalho. f preciso deixar claro quais os niveis de participagdo do colaborador. HA uma forma de historia oral que exige cuidados especiais. Em determinados projetos,trabalha-se com o pressuposto da hisria oral de pessoas anénimas. Isto ocorre quando, para evitar a identificacdo patlica de depoentes importantes ou para se evitar constrangimentos envvolven- do terceiros, muda-se 0 nome da pessoa € alteram-se as situagées da historia ou da versio de algum fato capaz de possbilitar a precisio dos casos. O mesmo acontece em relagdo a protecio de individuos que precisam do anonimato para ndo exporem a si ou a sua familia {~Projetos que rabolham com sivogses de isco, de vexames, | de impresses sobre outs, podem volerse da ivsbiidede. | | Cento, ne epresentogdo do trabalho deve fcar coro o nivel e | | as razées do disfarce. 29 Nestes casos, também é importante que se tenha a autorizacéo do colaborador para se publicar 0 depoimento. Da mesma forma 0 leitor deve ficar avisado. Existem grupos de leitores que criticam negativamente este procedimento, mas em determinadas ocorréncias ele € plenamente justificado. Um dos exemplos mais expressivos da validade dos projetcs de hist6ria oral de personagens anénimos reme- te aos casos de estudos que envolvem pessoas piblicas. Em casos de estudos de drogados ou portadores de doencas vistas ppreconceituosamente, a troca de identidade pode permitir entrevistas francas e que além de protegerem o entrevistado, Ihe garanta meno- res possibilidades de exposicdo. ‘Um dos pontos basicos do debate sobre historia oral remete representatividade do depoente. Outro lado da mesma questio 6 0 rnuimero de pessoas envolvidas. Em face da representatividade deve- se ter em conta que todos os testemunhos so validos, dependendo do projeto. B necessario evitar que sejam colhidos depoimentos de pessoas que ndo sejam essenciais ao projeto. Da mesma maneira € importante estabelecer a utilidade da entrevista pois deve-se recorrer a ela apenas quando se busca algo especifico e que nao se pode encontrar em outras fontes. Cabe lembrar que com a entrevista cri- am-se expectativas que precisam ter termos finais. A existéncia de um projeto também evita que o nimero de entrevistados seja maior do que o necessério e que se proceda erroneamente supondo que um testemunho é melhor que 0 outro ou que os argumentos se saturem e por isto pode-se desprezar algumas entrevistas. x” 0 ‘eu’ € 0 ‘outro’ 'm aspecto fascinante da histéria oral é a definigao do eu narrador. Sendo que a moderna histéria oral é sempre apre- sentada na primeira pessoa do singular, ela expressa uma aparente duplicagio da identidade: 1) a do narrador que, relatando sua vida, ou a versio de algum fato, torna-se 0 agente condutor da historia pessoal; 2) a do eu de quem ditige o projeto e depois cria o produto final da entrevista. Esta dupla identidade é aparente, pois o poder de quem deu 0 testemunho prevalece sobre o de quem o colheu até a concluséo de sua hist6ria da qual, contudo, é, em face do resultado final, o autor. De uma etapa para outra ha uma passagem de responsabilidades e de direitos. Enquanto a entrevista nao esta autorizada para vir a pablico, © eu dominante é o do narrador; depois, gracas ao trabalho de edicao a0 acordo permitido pelo depoente, a autoria passa a ser do diretor do projeto. oralista, na apresentacdo do produto final do texto, anula sua mediagéo em favor do destaque do entrevistado. O narrador, até a finalizagao do processo de entrevista é a razo do trabalho. Para 0 autor significa que, quanto mais oculto ele estiver, quanto menos ele aparecer, melhor seré o resultado de seu empenho. & verdade que ha linhas de oralistas que defendem a participa- fo ativa do entrevistador como alguém que faz mais que mediar, que realmente conduz a sessio ¢ o projeto. Estes casos — normal- mente os que carregam posturas mais conservadoras —, mantém a interferéncia do interlocutor como prova evidente e inequivoca da condugao das entrevistas. Bsta € contuéo uma tendéncia declinante ‘no mundo todo, em particular nos cfrculos que percebem a histéria ‘ral como um procedimento renovado. Além do mais, reconhece-se freqiientemente, no caso das entrevistas conduzidas, o abuso de auto- 31 ridade de quem dirige, sendo alguém capaz de fazer o entrevistado dizer 0 que ele quer ouvir. Nestas situagdes, o que se percebe € 0 uso tradicional das entrevistas, anulando-se muitas vezes alguns dos pres- ssupostos que tém colocado a histéria oral em contradi¢ao com as formas antigas de entrevistas. Todo trabalho de histo oral raduz uma vontade com 0 | esclorecimento de sitvogées | (© que distingue a histéria oral das entrevistas procedidas em varias reas — principalmente da sociologia — so quatro fatores: 1} a técnica empregada na captacéo dos depoimentos; 2) a transcricao com a explicitacdo da fungio do eu; 3} 0 uso analitico ou ndo das mesmas; 4) resultado a que se destina (se para a academia ou para o piiblico em gerall, { {A tistéria oral tem um claro comprometimento com o péblco, 1 geen no eee te j A historia oral se explica dentro de uma relacao tridimensional do: 1) narrador; 2) pesquisador; 3} piiblico. Lembrando que é para o piblico que o trabalho de historia oral se faz, as partes devem estar empenhadas na clareza dos resultados. ‘Como procedimento democrético, a histéria oral se dirige para 0 piblico em geral. Ela é contudo produto de um saber instuido, Isto néo quer dizer que seja propriedade da academia. Pela lagica deve ter lugar na universidade, mas também é direito de outras camadas capazes de realizéla. O que deve ser vislo com cauiela é seu uso comercial ou « banalizagéo promovida por pessoas inescrupulosas, curiosos, diletantes. ‘Tem sido comum pessoas desenvolverem projetos de hist6ria oral com a finalidade de dar voz aos vencidos. Ainda que esta seja uma 32 alternativa bastante valida para a elaboragdo da histéria oral, hé otras, preocupadas em integrar vozes diferentes. Neste sentido ppreciso reconhecer que em ver. de falar dicotomicamente em venoe- dores/vencidos, deve-se reconhecer a também a condigao de silencia- dos. Uma crescente maioria de pesquisadores tém considerado des- prezivel a discussio polarizada entre historia oral de elite X historia oral de vencidos. Ao contrério, ha grupos emergentes que valorizam projetos de histéria oral que conjugam vozes contrérias. Projetos mais completos, muitas vezes, exigem que sejam vistos ‘05 miltiplos lados de uma mesma questio. Este é, por exemplo, 0 ‘caso de estudos que, no se contentando em dar vor aos vencidos ‘querem também registrar as raz6es dos vencedores ou dos participan- ‘es pouco conhecidos em algumas tramas. ‘Numa histéria oral sobre torturados do regime militar que se limitasse apenas a mostrar a trajetéria das vitimas, terfamos tdo somente a histéria dos vencidos. Se por outro lado, forem conside- radas as verses dos torturadores, certamente, o projeto ficard mais completo. Prefere-se definir 0 oralista como alguém que tem o compromisso de fazer um trabalho e mesmo que ele nac seja um mediador neutro, quando investido de seu papel profissional, devera ser habil e se empenhar no bom andamento do projeto. Cobra-se do eu diretor do projeto uma postura profissional que submete sua cumplicidade com © objetivo do trabalho. ‘Um bom inicio para qualquer projeto de hist6ria oral implica a qualificacdo da espécie de histéria oral que se pretende. f importante que os trabalhos de hist6ria oral sejam previamente classificados nos diversos ramos que compéem a espécie. Hi casos de trabalhos de histéria oral em que se faz. necessério ‘0 esforco de equipe. Nestas situacées, deve-se proceder a reparticao das tarefas mas o trabalho deve ter um diretor que seré, sempre, 0 responsivel geral pelo andamento e controle das etapas do projeto. {Quando o trabalho for feito em equipe & importante lembrar | | que a setrizagéo dos exforgos deve obedecer a una légica cons: | | fante ; Assim, se alguém ou um conjunto de pessoas se responsabiliza pelas entrevistas de uma rede, o trabalho deve permanecer sempre 0 mesmo. A mudanca de atividades pode prejudicar a ‘especializacao” € assim provocar improvisacdes no manejo das tarefas. Quando ocor rer trabalhos com equipes sugere-se que haja um calendario de reu: nides e que todos os membros tomem conhecimento das fungSes e dos estégios dos companheiros e do projet. Historia oral de vida tualmente a hist6ria oral de vida tem sido uma das formas mais cultivadas do género. Como 0 préprio nome indica, trata-se da narrativa do conjunto da experiéncia de vida de uma {A tistoria oral de vida € muito mais subjetiva que objetiva. } sujeito primordial deste tipo de hist6ria oral 6 0 depoente, que tem maior liberdade para dissertar o mais livremente possivel sobre sua experiéncia pessoal. Neste caso, deve ser dado ao depoente espa- 0 para que sua hist6ria seja encadeada segundo sua vontade A hist6ria oral de vida € 0 retrato oficial do depoente. Nesta direcdo, a verdade esta na versio oferecida pelo narrador que é sobe- ano para revelar ou ocultar casos, situagSes e pessoas. Nas entrevstas de histria oral de vido, as perguntas devem | ser omplas, sempre colocadas em grandes blocos, de forma | indicativa dos grandes acontecimentos e na seqiéncia cronolégi- | {co da trojetéria do entevistado. AA periodizacao da vida do entrevistado é um recurso importante, visto que organiza a narrativa acima com fatos que serio considera: dos em contextos vivenciais. A personaliza¢do do enquadramento da narrativa deve valorizar os vetores que indicam a hist6ria do indivi duo como centro das atencdes. A questdo da verdade neste ramo da hist6ria oral depende exclu- sivamente de quem dé 0 depoimento. Se o narrador diz, por exemplo, que viu um disco voador, que esteve em outro planeta, que € a encarnagéo de outra pessoa, ndo cabe duvidar. Afinal, este tipo de 35 verdade constitui um dos eisos de nossa realidade social, em particu- lar 0s projetos que trabalham com temas ou vidas de religiosos & esotéricos que tém, por principio, respeitar a exposigao do outro. Acentrevista de histria oral de vida deve registrar na gravacdo a ficha técnica do depoente nome completo, estado civil, local e data do encontro}. Caso trate-se de entrevistas méltiplas, repete-se a ope- racio. Os grandes blocos de perguntas devem ser divididos em trés ou ‘quatro partes, no méximo cinco. Quanto menos o entrevistador falar, ‘melhor. A patticipacao do entrevistador deve ser sempre estimuladora ¢ jamais de confronto. Existe uma variacdo da hist6ria oral de vida que € conhecida como narrativa biogréfica. Esta distancia-se daquela em razio do sen- tido moral ou contemplativo. No primeiro caso, a hist6ria oral de vida presta atengio ao valor da experiéncia pessoal em si. No segundo caso, na narrativa biogréfica, cuida-se mais do roteiro cronolégico factual das pessoas, aliado a particularidades que remetem a aconte- cimentos julgados importantes. Neste caso, a participago do entrevistador como interlocutor pode ser muito mais presente e ativa, ‘Uma variagio da historia oral de vida que nao chega a ser nar- rativa biogréfica diz respeito & reconstrucdo biogréfica. Pessoas que no tenham indicagées precisas sobre fatos de suas vidas podem, particularmente se valer de recursos oferecidos por técnicas especiais de reconstrugio biografica Casos como indios, individuos analfabetos e demais pessoas que ‘guardam registros diferentes do cédigo escrito, podem, por meio da ajuda do entrevistador refazer trajetos que seriam guardados dentro de outros cédigos. Uma das técnicas mais usadas neste caso é a verificagdo da aguisigdo vocabular. O uso de palavras como televiséo, por exemplo, pode localizar alguma etapa da vida da pessoa. Quando alguém diz que tal acontecimento se passou antes da chegada da televisio, significa que o fato se deu, no Brasil, antes do ano 1950, Por outro lado, se um indio diz que viu televisio pela primeira vez, quando foi levado para algum lugar diferente de seu habitat e se for possivel localizar pessoas que assistiram ao processo de transferéncia pode-se obter a informagao desejada. Catéstrofes (terremotos), mar- 36 cos de mudangas na saide coletiva (em virtude de epidemias ou cendemias) ou pessoal (doencas especificas), falecimentos de autorida- des importantes e que tenham impacto na vida social (Getilio Vargas, Blis Regina) ou pessoal (membros da familia ou amigos) ajudam em casos de reconstrugao biogréfica. ‘Atvalmente um ramo da histéria oral de vida tem atraido o | interesse geral:histria oral de fomili. Sem se confundir com a | fis ool de vide, @ de fora rfoca @soga de um grpo de | locos sangiineos. | A historia oral de familia nao & a soma das hist6rias de vidas individuais, mas tem sempre um compromisso com a definigao do projeto familiar. Normalmente os projetos de histéria oral de familias, suscitam entrevistas em duas ou trés geragdes, e, nestes casos, atra- vvés da transformagao do processo histérico que envolve os membros da comunidade, tem-se claro que hé elementos culturais que muda- ram e outros que dao a unidade, que resistiram constituindo-se 0 niicleo da entrevista Ha, em face da histéria oral de vids, cinco formas principais de narradores, ainda que haja miltiplas variagdes em cada tipo de de- poente. Grosso modo estas so as formas de narrativas 1) narrativas de vidas piblicas (quase sempre politicos, artistas, cesportistas) que contam suas histérias dependentemente, sempre, de ‘uma imagem que precisa ser zelada, Nestes casos a narrativa é marcada por factualismos € pouca introspegao. Para eles quase sempre o que interessa é a vida publica e nao as situagdes da vivéncia privada. Ao se fazer hist6ria oral de vida de pessoas pablicas deve-se ter em vista ‘a necessidade de negociaco dos discursos. Assim, na hora da prepa: aco, bem como da formulagdo dos blocos de perguntas, deve-se ‘mativar aspectos da vida pessoal que possam ser combinados com os piblicos, 2} Figuras que léem as proprias historias contadas de maneiras épicas. Quase sempre pessoas que passam por grandes alteracées quer na vida pessoal quer nas transformagdes hist6ricas contam suas vidas evocando, inconscientemente, mitos épicos. E este, por exem- 37 7" | plo, 0 caso de muitos imigrantes que vieram pobres e tiveram suces- ( Em relagao aos critérios de histéria de vida, devese ter claro so na vida aquém-mar. Da mesma forma, Iideres de movimentos | Em rel sociais desenvolvem sempre narrativas épicas que, em muitos casos, | eee eee ca valine ater ee eSegaraists an ac tated’ Seca micdaanegeectisy | Atualmente hi importantes iabalhos sobre narratives de criangas, santos, figuras mitol6gicas ou personagens de romances importantes {| adolescentes e jovens. repontam nestas narrativas. 3) Alguns narradores contam suas vidas expressas de maneiras A certeza de que todos os agentes sociais tém historia € basica trdgicas. Quase sempre pessoas doentes, imigrantes malsucedidos, para a boa definigao das {érmulas modernas de historia otal cidadaos que passaram por problemas traumaticos desenvolvem ‘maneiras dramaticas de contar a propria experiéncia. O processo narrativo deste tipo de depoente é marcado por fatcs dramaticos detalhados, com impresses doidas que afinal dio conta da mensa gem que querem passar. Chora-se muito neste tipo de narrativa. 44) Ha também os narradores comices, pessoas que relatam expe- rigncias com uma dose exagerada de humor. Estes tipos quase sem: pre mostram um dominio narrative desenvolvido e conduzem critica- mente a relacio pessoal com a sociedade. O acompanhamento das tramas propostas por este tipo de narrador é dificil, pois o *interes- sante" e 0 compromisso com a continuidade da manutengao do riso muitas vezes acaba por confundir o entendimento seqiencial da narrativa. Para manter a narrativa ‘alegre’, a concaienacdo dos fatos obedece a uma légica tortuosa que implica idas e vindas. Quando estas entrevistas so transcritas, 0 trabalho de explicitagio dos casos narrados tem de combinar a observincia do humor com a logica do entendimento 5) A maioria das pessoas conta a prépria histéria mesclando varias formas narratives. Tanto a tragédia como o humor acentuado, rmuitas vezes, conjugam-se com factualismos e sentido épico. B importante o entrevistador saber distinguir a forma narrativa do entrevistado para poder compreender melhor a sessio e interagir dde maneira mais eficiente. Da mesma forma, é significativo notar que hh narradores que tém a pritica da entrevista. Nesta situag6es con- vvém solicitar que 0 depoente fale sobre aspectos pouco revelados Quando ocorre o contrat isto é, de se entrevistar pessoas que no estdo acostumadas a dar entrevistas de historia de vida, & convenien- te que 0 convidado seja preparado para vencer a nogio de que é “pessoa comum' e que sua vida ‘no tem nenhum valor’. 39 38 Historia oral fematica histéria oral tematica é a que mais se aproxima das solu- ‘ges comuns e tradicionais de apresentacao dos trabalhos analiticos em diferentes areas do conhecimento académico. Quase sempre ela equivale ao uso da documentacao oral da mesma maneira que das fontes escritas. Valendo-se do produto da entrevista como mais um outro documento, compativel com a necessidade de busca de esclarecimentos, 0 grau de atuacio do entrevistador como condu- tor dos trabalhos fica muito mais explicito. Mesmo assim, seria equi- vocado considerar o colaborador um informante no sentido superado do termo. Por partir de um assunto especifico e preestabelecido, a histéria oral tematica se compromete com o esclarecimento ou opinio do entre- vistador sobre algum evento definido. A objetividade é direta, Pretende-se, mesmo considerando que ela é narrativa de uma versio do fato, que a histéria oral tematica busque a verdade de quem presenciou um acontecimento ou que pelo menos dele tenha alguma versio que seja discutivel ou contestatéria. Como a verdade no caso um elemento externo, o entrevistador pode e deve apresentar ou- tras opinides contrérias e discuti-las com 0 narrador, com a finalidade de elucidar uma versio que é contestada. | Dado seu caréter especifico, a historia oral femética tem | | coraceriscas bom dfeenes do histria ora de vida Detahes do histria pessoal do narrador apenas interessam na medida em que | revelam aspectos dteis ¢ informagéo temética central | A histéria oral temética nfo s6 admite 0 uso do questionério ‘mas, mais do que isto, este torna-se pera fundamental para a aqui sigéo dos detalhes procurados. 41 mo Hé casos em que o depoente solicita com antecedéncia o ques- tionério, ocorrendo também situagdes em que isto nao acontece. Nao ha problema em fornecer a lista de perguntas ao narrador. Deve-se, na medida do possivel, proceder da mesma forma com todos 0s envolvidos no mesmo projet. Os questionérios podem ser diretos ow indutivos. No primeiro caso, a entrevista deve se ater ao fato em causa e a segdo sera breve. No segundo, marcado sempre por maior complexidade, as questées buscadas devem sempre ser contextualizadas e seguir uma ordem de importincia capaz de inscrever os t6picos principais em andlises do depoente. Neste sentido, 0 questionério deve ser gradativa- mente indutivo porque nao se recorre apenas a especificidade do fato. A guisa de exemplo convém mostrar que, em vez ir direto ao assunto, se o entrevistado for, por estimulos, evidenciando a forma- io (profissional, por exemplo) e as circunstancias que o levaram a determinar a participacao ficaria mais légico 0 contexto e mais clara « objetividade da narrativa. Assim, por exemplo, se for perguntado 2 um militar brasileiro de esquerda que participou do Levante co- munista de 35 sobre seus atos objetivos do dia.27 de novembro daquele ano, teremos um tipo de resposta fechada. Por outra via, contudo, se for questionado sobre sua formacao desde aluno, a ppassagem pela Escola Militar do Realengo no inicio dos anos 30, sua posicao diante do aparecimento do Partido Integralista, as oposicées dentro da corporaco a época, com seguranca a resposta seré mais completa. {Ha projet teméticos que combinam algo de histria oral de vida. Neses catos, 0 que se busca é o enquadramento de dados | objetives do depoenie com as informares callidas, Eta forma de {istéria oral tem sido muito apreciada, porque mesclando sitvo | ces vivenciais @ informagdo ganhg mais vivacidade e sugere | coractersticas do narrador. Uma variagdo da histéria oral tematica & reconstrugdo histérica de ‘rupos dgrafos, ou sem histéria escrita. Neste caso, busca-se, em pri- 2 rmeiro lugar, enquadrar a situagdo da inexisténcia de registros de certos tipos sociais e fenémenos a um contexto temético e histori grafico. Em segundo lugar, deve-se aplicar as técnicas da reconstru- ao biografica para se possibilitar um enquadramento tematico mais amplo. A reconstrugdo histérica 6 também conhecida como historia oral instrumental, dado seu caréter auxiliar. Tradigéio oral ‘ma das mais bonitas expressGes da histéria oral é a tradigdo oral. Porque trabalha com a permanéncia dos mitos e com a visio de mundo de comunidades que tém valores filtrados por estruturas mentais asseguradas em referéncias do passado remoto, a tradigéo oral percebe o individuo diferentemente da histéria oral de vida e da hist6ria oral temitica f ( ‘Ainda que a trodigao oral tombém implique enirevista com } ma ou mais pessoas vis, ela remete és questdes do passado {_ longinguo que se manifestam pelo que chamamos folelore e pela t \ ) | ‘ransmisséo geracional, de pais para fihos ou de inivdvos pora t individuos. Explicagdes sobre a origem dos povos, crencas referentes as ra 26es vitais do grupo e ao sentido da existéncia humana enquanto experiéncia que imita a vida e o comportamento, bem como o destino de deuses, semideuses, herbis e personagens malditos ¢ histéricos, ‘so aspectos caros aos estudos das tradigdes orais. calendatio, as festividades, os rituais de passagens, as ceriménias ciclicas, as motivacGes abstratas de tragédias eventuais ¢ doencas endémicas ou epidémicas, sio matéria da tradicdo oral. O sujeito neste tipo de pesquisa é sempre mais coletivo, menos individual, e por isto a carga da tradicdo comunitéria € mais prezada e presente porque continuada ‘Ainda que seja comum o uso da tradigdo oral em grupos fechados, como tribos ou clas que resistem & modernizacio, & possivel fazer trabalhos de tradigao oral em sociedades urbanas, industriais. Os resultados de trabalhos de tradicao oral, geralmente, sio ainda menos imediatos que os demais. Porque requerem participacéo constante € 45 ‘observacdes que extrapolam o nivel da entrevista, a tradigio oral é de ‘execucao mais lenta ¢ exige conhecimentos profundos tanto da situa- ‘edo especifica investigada como do conjunto mitolégico no qual a comunidade organiza sua visio de mundo, Além da observagao constante, no caso da tradigao oral, a entre- vista deve abranger pessoas que sejam depositdrias das tradigdes. Todo ‘agrupamento humano — familiar ou no — tem alguém, quase sem- pre entre os mais velhos, que guarda a sintese da hist6ria do grupo, Esta pessoa é sempre indicada para ser entrevistada. A partir dela, outras, de geracées posteriores ou de segmentos diferentes tanto em termos culturais como sociais, devem também ser envolvidas, ‘No caso de entrevistas de tradicSes orais, os chamados mitos de origem (aparecimento do mundo, da vida, dos seres humanos}, refe- enciais sobre os instintos basicos (reproducdo e alimentago), expli- cages sobre a historia (guerras, pragas, mortes), indicagdes do des- ‘ino pessoal (sorte ou no no casamento e nos negécios), explicagdes sobre 0 comportamento extraordinario (possessGes, acessos) sdo sem- pre elementos presentes. Esses fatores devem ser sempre equipara dos aos grandes sistemas de mitos explicativos da historia. Isto faz com que o investigador, obrigatoriamente, tenha conhecimentos universalistas, a fim de oferecer comparagées que mostrem a coerén- ia entre as linhas interpretativas da humanidade. 3s casos de tradigéo oral implicam uso do que se chama de narratives emprestadas. Como para a explicacao do presente t @ tradigdo oral necessita da retomada de aspectos transmitidos Por outras geracées, dé-se o empréstimo do patriménio narrativo | alheio, quase sempre herdado dos pais, avés e dos velhos. \ / \ ! ' ' A guisa de exemplificacdo fim de mostrar as potencialidades das diversas formas de se fazer hist6ria oral, apresenta-se, como exemplo, duas pos sibilidades que poderiam ser vistas em qualquer das modalidades de hhist6ria oral, a saber: 0 carnaval e a migragdo. Vejamos: CASO UM CARNAVAL: um estudo de histéria oral sobre 0 carnaval pode versar sobre qualquer das trés modalidades. NNa situago de hist6ria oral de vida, um trabalho sobre o carnaval poderia contemplar as histérias de pessoas que, de diferentes formas, envolvem-se nas festividades momisticas. Foliées importantes ou nao, pessoas que trabalham na confeccao de fantasias ou dos aparatos das escolas de samba, miisicos, sambistas, estudiosos. Enfim, uma gama imensa de ‘envolvidos" que tenham o carnaval como forma privile- giada de ver o mundo, poderia mostrar na narrativa de suas rotinas iérias o que significa esta celebracdo que aparentemente inverte 0 cotidiano das pessoas. Neste caso, a parte relativa a festa carnavales- a deveria compor o tiltimo segmento da entrevista, pois este seria 0 fator explicativo da vida da pessoa e do grupo que contextualiza a festividade. Em outra situacao, estudos sobre aspectos especificos do carna- val poderiam conduzir oralistas a tematizé-lo a partir de casos espe- ciais. Como teria sido o carnaval do ano 1919, quando grassava a gripe espanhola no Brasil? Teria havido? Quais seriam os temas das miisicas ¢ fantasias? E durante o envolvimento do nosso pafs na Segunda Guerra Mundial? Houve carnaval? Como se comportaram essoas que tinham parentes implicados no conflito? Quais as men- ‘sagens passadas através das miisicas? f facil perceber que este tipo de hist6ria oral implica questionério. Para quem trabalha com tradipdo oral, as explicagies sobre a inver- ‘G0 do cotidiano, presenga das tradicées mitol6gicas que tratam, por ‘exemplo, da fertilidade, do sentido da nudez. e da comida (terca-feira gorda), tém neste acontecimento 6tima oportunidade para mostrar a permanéncia, na sociedade industrial, de niveis de explicagées mitol6- gicas. A transposicéo, para 0 aivel profano, da procissao barroca para © desfile da Escola de Samba, ou a persisténcia da tradigdo judaica do Purim, que permite 0 disfarce, sio algumas das mostras das possibili- dades de leitura do carnaval sob 0 pressuposto da tradipao oral. Por ‘outra esfera, a explicacdo de uma ‘epopeéia negra’ construida através do discurso dos sambas-enredos das escolas pode sugerir também a evoca- ‘0 de uma tradigdo que ciclicamente destaca 0 carnaval como tempo de afirmagao de uma cultura pouco vista no cotidiano. CASO DOIS MIGRACAO: a migracio, bem como a imigragao, é um dos cam- pos mais vastos que serve tanto para hist6ria oral de vida, como para temética e tradigao oral. Em se tratando de hist6ria oral de vida, 0 registro do trajeto do imigrante deve obedecer também, no possivel, o critério cronolégico, devendoa considerar a vida pretérita da pessoa e do grupo antes da saida do lugar de origem, a motivacao para a viagem, o trnsito e a chegada ao lugar de destino, a adaptacdo € 0 desenvolvimento da integragdo como metas primordiais do registro. 'No caso de estudos tematicos, deve-se considerar a busca de especi ficidades que se perdem na generalizacao. Se, por exemplo, conside- rarmos 0 ano de 1958, na situacao do nordeste brasileiro, como um ano de fundamental importancia,e se quisermos relacionar essa onda imigrat6ria a0 contexto nacional do governo JK, a aco dos padres que propunham a reforma agréria, as ligas camponesas e a outros fatores que direta ou indiretamente estavam atuando na época, tere mos de fazer uma leitura atenta e proceder a um questionario apu- rado a respeito, compatibilizando os fatos contextuais com os especi- ficos de cada grupo. ‘A questio da migracdo e da imigracao para trabalhos de tradigao oral é interessante porque podem-se basear em referenciais miticos 48 que sempre t8m fundo heréico. Ulisses, por exemplo, € permanente fonte de inspiracdo para a leitura das aventuras dos migrados. Como se fossem semideuses de um cotidiano desgracado, as vidas de comu- nidades podem ser aproximadas através da equiparacio do imitativo minimo. Assim, por exemplo, como Ulisses deixou sua mulher, Pené- lope, e saiu pelo mundo, os homens, na situagdo do nordeste bras leiro, também muitas vezes vém s6, para o sul. Como esta, outras situagdes podem ocorrer, como a evocacao de Quixotes da moderni- dade industrial. A lenda da mulher de branco, presente em algumas aldeias de Portugal, liga-se a prética da saida dos homens, desde os tempos coloniais, tanto para povoar as terras do reino como mais recentemente para a pesca, € neste caso, o mito da mulher que ataca, noite, os homens explicaria uma situacdo social 49

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