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PELO PASSADO NACIONAL Venho de um gritto colloquio com as coussis do nosso passado, Na retina se me estampam ainda a alyura das eapelli- nhas montanhezas, entre o anil do e60 e o verde das frondes, 0 porte symbolico dos ernzeiros, a pedra: corroida dos vellios chafarizes, ox muros negros, ax arvores ancias. Por alguin tempo, curto em dins, mas longo em meditagio e studade, conversei as sombras dos nossos mortos nas rihias das nossax paizagens. I se onso agora tomar da penna, 6 porque delles, dos nossos mortos amadox, onvi wna Tonga queixa sentida contra o desamparo emi que os deixam ox brasileiros de hoje. B’ a vou das mortas geragdes que falln por minha von; a voz dos homens que primeiro desbravaram 0 terreno nacioual, a dos que primeiro assentaram a pedra angular da noxsa patria, Acorrei, fillios ingratos desta Terra: vinde ouvir a lamentagio das roinas! Villa Riea e 0 Tejuco, hoje Ouro Preto e Diamantina, inearnaram a epopeia bandeirante. A capital do ouro e a capital do diamante foram a dupla expresso do sonho radioso, que permittin e realison a conquista do Sertio. 0 Ouro era 0 sol que aqueeia as imaginacdes apos as noites de desalento; os Diamantes as estrellas que consolavam as ambigGes, passados os dias de borrasen © descrenca, Ox hardidos aventureiros do see. XVII seguiam, ‘terra a dentro, envolvides num niibo deslumbrante de fantasia, Em Portugal, assumia o Brasil as proporgées de um Cypango fabuloso, onde das arvores pendes- sein folhas de esmeralda, rolassein os rios aguas de Tiquidos cxystaes, e 0 azul do céo, trazido pelas enxurradas, viesse formar no seio da terra as saphyras. Chegavam do Reino leas 3 4 5 6 7unesp® 10 11 12 13 EVISTA DO HRASIL de homens avidos de ambigfo que, levados pelos paulistas intimoratos, iam desbravar as selvas, rasgar estradas, fundar os lares da patria futura, I em chegando ao sertio do ouro, ow & margem dos rios diamantinos, nfo Thes pmgia 0 coragio fa saudade da patria distante; a riquea, tio fartamente offerta pela nova terra, 86 Thes punha nalma o desejo de nma outra patria, inais ardente, mais desafogada, mais acolhedora. O souho da independencia acarinhow a fronte do primeiro. mi rador, que teve de pagar aox homens do Reino o fructo q total dos seus esforgos ¢ das suas pesquizas. Villa Rica ¢ 0 ‘Tejuco foram, em todos os tempos, dois brazeiros da liberti- iio da terra. Quando por mais nfo fosse, 86 por isso, devemos ajoclharnox piedosamente & beira destes dois tumulos, onde repousain as primeiras azas com que 0 nosso Brasil baten os flaneos ainda infantis. Nesse territorio heroico das Minas Geraes sio wuitas as Cidades Mortas: Ouro Preto, Diawantina, Marimma, Sabaré, 8. Jolo «El Rey, Serro, Cacthé e varias ontras, tiveram outr’ora uma vida brilhante ¢ florescente, de que o viver actual nfio é mais do que una pallida lembranga, Em todas cllas o presente 6 umn mero evoeador. Itis a funceio das Cidades Mortax: accordar em nossas alaas o respeito pelas coisas de antunho, penhor seguro de um amor positivo 4s coisas do pro- sente. Para sermos verdadeiros patriotas, para aleangarmos esse patriotismo superior ein que 0 coracio 6 um simples colla- Dorador da raziio, precisamos commover o nosko espirito aute © espectaculo da tradigio, O passado ¢ um grande educador, eommmnieando-nos essa commogio indispensavel ao trabalho fecundo das idelas, mas as suas ligdes x6 silo verdadetramente instructivas, quando tém por scenario 0 quadro em que elle se Aesenrolon. No Brasil, sobretudo, agonisante mingoa de patriotism, 6 de urgente necessidade guardar'para a nossa € para as geragées vindouras a moldura do nosso pasado. E se ‘08 homens que o fizcram, prodigos fio foram em obras € cons: trucgies,-maior deve ser 0 nosso desyelo pelo pouco que 10s Testa das épocas vividas. Pois bem, por sobre a nossa Terra, vasia de monumentos encanecidos, sopra um grande vento iconoclast. Ouvese a cada paso o ruir de uma yelha podra: sfio a ignorancia dos hoinens e a imarcha do tempo, em sua marcha inexoravel. Bra- 45 6 7unesp* 10 11 12 13 PRLO YASSADO NACLONAT, a sileiros que me Iédes, se, como a mim, yos enche o peito um grande amor pelo torrio natal, nflo ouvireis som um grito de revolta o que vos vou contar da situagio em que jazem alguns ‘monumentos da tradigfio nacional. Corramos ox olios por Diamantina. A “Casa do Contra eto” 6, sem duvida, o primeiro monumento da cidade. Logo ‘em seguida & deseoberta dos diamantes, euidon a metropole de extorquir aos mineradores 0° maximo de contribuigio. Em’ 1785, ap6s haver ensaiado varios systemas de arrecadaciio, tentou 0 do “contracto”. © arrematante pagava uma taxa fixa Por um certo mmucro de eseravos, fosse ou nilo feliz com a inineragio; era wna nova forma do antigo imposto de eapi- tagio. Na “Casa do Contracto”, residia o chamado “Contra- ctador dos Diamantes”. Abi habitou o celebre Velisberto Caldeira Brant, o contractador romantieo, que, nas salas da velhia morads, manteve uma vida de luxo, entremeada de saraus © recepedes deshimbrantes. De uma daquellas sacadas, foi elle um dos primeiros que sonhion com a emncipagio da terra brasileira, Alli vefu tambem morar Jofio Fernandes d Oliveira Filho, 0 contractador uababesco, que depois construi para a sna amante a chacara f6ra da cidade. Durante 40 annos aguclles muros aneifios viram passar a theoria erystallina dos diamantes. Hoje, na “Casa do Contracto” esti sendo installado o Palacio do Bispo. Nao 6, porém, mina installagio; ¢ uma mnti- agiio! Comecaram os adaptadores da velha Casa por levantar a inevitayel platibanda, tirando inteiramente o earacter as grandes beiradas do telhado colonial. Dado o primeiro golpe, precipitaram-se os outros. Ox dois pateos nobres de entrada foram emparedados, rasgando-se uma porta ao centro. Demoli- das as duas escadarias que davam accesso aos suldes de cima, construiu-se uma escada ao melo, cujas linhas sio um diploma de mau gosto. As saccadas salientes, que quebravam a monoto- nia-da larga fachada, desappareceram, substituidas por grade- sinhas de ferro forjado, a0 nivel dos Innubraes. Foram sacri- Jegimente arrancados os batentes massigos das janellas € por- tas, de rijo lenho e talho elegante, ¢ aproveitnda a sua madeira para... 08 degraus das novas eseadinkas da entrada! E um 45 6 7umesp® 10 11 12 13 4 REVISTA DO BRASIL caminhar de dolorosas surprezas! Ao Indo esquerdo da facl da, sob pretexto de dar ingresso livre 4 capella (cuja disposicio tambem foi completamente alterada), construiram certa excres- cencia curiosa, que tenta ser uma eseada e uma varanda, com coberta... de lousa vermelha ¢ branea! E para completar essa yestauragiio innominavel, estampon o pretencioso mestre de obras, em pleno eoragiio da platibanda, entre arabescos doentios, uma data, que para n6s 6a da morte da “Casa do Contracto”: 1916. is 0 que resta do mais nobre monumento tejuquense! Quanto fs igrejas diamantinas, todas ellas, de mal a peior, sastentam 0 peso do tempo. N. 8. do Amparo, na rna da Qui- tanda, mal sc agnenta sobre as traves desconjmitadas. A de 8, Francisco, que foi o mais aristoeratico templo do Tejuco, sti com a fachada toda em linax obliqnas, e a nave amparada em duas vigas tremulas, que esperam pacientemente 0 proximo da ruina total. Snbindo a dura lndeira que condux ao alto dos Correios, depara-se-nos a capella de N. 8. da Luz, toda vestidinha de antl, como um anjo de procissio. Mas, ail, 0 pobte anjiuho a moutauha yai tmorrer 4 mingoa. Abremhe as paredes Feudas temerosas; a cada rajada que passa fogem-he algunas telhas, ¢ as aguas do c6o, ingratamente, vio minando 0 que foi feito por amor do eéo. Sim, porque eapellinha aml tamben nfo falta a sua historieta tocaute. Foi o easo, «ue mina nobre Scuhora portugueza, da familia dos Corte Real, D. ‘Therex Maria de Jesus, achando-xe em Lisboa em 1755, prometten 4 Virgem crigirthe uma capella, em um ponto longingno da terra, caso escapasse 4 entastrophe que arrazava a cidade pomnbalina, E, de facto, tendo sobrevivido ao terremoto, partiu- xe para o Brasil, ¢ fol cumprir a sua promesst no amago do Districto Diamantino, onde os caracteres, deprimidox pela ambigio e pelas riquezas, tanto exigiam os recursos da 6. Issa D. Thereza Maria de Jesus nfo é una mera figura de legenda pois, no archivo da Igreja de N. 8. do Carmo, em Diamantina, encontrel_um termio de 27 de Novembro de 1804, em que D. ‘Therea Maria de Jerus declara que pagaré 4 Ordem do Carmo, por aluguer da casa pertencente & mesma Orden, fronteira & Capella, cem oitavay de ouro, para nella morar euiquanto vivesse, deixando aos sous herdeiros 0 eneargo de proseguirem 3 4 5 6 7unesp® 10 11 12 13 VELO YASSADO NACIONAL. 5 nesta coutribuigio, por seis mezes depois de sun morte. FB na sacristia da capella de N. 8. dn Luz existe o retrato a oleo da nobre Senhora, amortalhada no habito das Carmelitas, A gratidfio dos homeus nao procuron combater a obra do tempo; auxilion-a, pelo coutrario. O quadro, que conservou 08 tragos da dama piedosa de Lisboa, jax atirado a um eanto, no mefo de tocheiros quebrados ¢ restos de andores, xelado por immemorial manto de poeita. O proprio sacristio, a quem ine dirigi, para que espanasse unt potico a tela, ficou surpreso de ver surgir, entre as nnvens de p6, a figura severa de uma morta, que parecia estigmatisar a incuria dos vivos. A” salida, num jardiin que ladeia a capella, um dos “sagrados” onde, até 1915, se enterraram os mortos de Diamantina, deparei com uina velba pia de agua beuta, de granito, de talho massigo eurioso, atirada a min eanto do muro. Perguutando ao sacristtio porque motivo tinham jogado para alli aquella pia tito interessante, responden-mie 0 eandido hoinem: “Essa é a vellia; nés agora jf temos outra nova de louga...”. Entre nés, niio so s6 as steristites de Diainantina que peusam assim. Mas niio foi 86 0 retrato de D. Thereza de Tests que soffren © olvido dos homens: 0 seu proptio tumulo niio merecen res peito. Ha uns 20 annos, a0 reconstruirem a capella, com a irrevetencia que cameterisn os nossox mestres de obras, demo- Hiram a fachada antiga, e fizeram a nova wus cinco metros para traz, alheia ao desenlio da primitiva. No caso, porém, mais gr ve ainda era o desrespeito, pois o tumulo da boa seuhora, que quizera ser enterrada. no adro de sua capella, ficon fora da igreja, munia calcada, servindo de lage aos transeuntes. Eo corpo daquella que tanto merecen do eGo, feito capim a erescer entre as pedras, serve hoje de aliinento &s gallinhas vorazes que ciscai pelos arredores! Tamnbem, quan sabe se o recoms- tructor da capella nilo foi um disereto, a quem occorten o racio cinio de Hamlet sobre Cesar? Se a atgila de Cesar si merecia tapar o buraco de um mmro, 6 justo que o po de D. Thereza de Jesus sirva de pasto dg gallinhas... A tradigio em Diamantina se vefugiou num largo, u delicioso largo, oude as sombras do pasado vivem por entre a paz das coisas do presente. Pois ahi mesmo, nesse remanso da tradigio, nfo parou a irrevercucia dos homens. A um canto da 45 6 7umesp® i0 11 12 13 REVISTA Do BRASIL praca, toda antiga, coustruin a edilidade dinmantina a nova prisio, pintadinha de amarello, e cobertn de telhn frinceza! in sou dos que subserevem 0 conceito do tradicionalista Charles Maurras: “Qui dit autiquité ne dit pax sacrement; notre vie a le droit de détruire pour reconstrnire; le monde west pax un musée”. A admiragio do velho pelo velho, sen ontra significagho, 6 uma das abusdes romanticas a que 0 mes mo Maurras chamou de “badauderie vénérante”. Mas, inter- romper um bello sonho é wi sacrilegio, foi o que veiu fazer a nova prisio diamantina no yelho Largo do Rosario. Porque perturbur 0 deseango de antigas sombras, quando lugar sobrava pela cidade para se construir a nova habitagiio dos presox? A destruigio de velhas pedras 6 se justifiea quando absoluta- mente indispensavel 4 intensifieagio da vida; ¢ 0 eriterio ado: ptado entre n6s esti nuito Ionge desta verdade singcla. Como 6 grato, a0 envex desta municipatidade pouco ciosa das tradig6es de sun cidade, ver, por exemplo, a edilidade de Campinas construir uma casa para as suas andorinhas! Todas as tandes, as avesinhas andefas, depois de vagabundearem pelos campos verdes que se alongam 4 oureln da cidade, depois de ponsirem uos fios telegraphicos, justificando a attitude in ‘memorial em que as immortalisou Antonio Nobre, yen revolu: tear sobre a cidade amiga, setteando os ares, em massa, para ganhur 0 pouso que hes reservou a intelligencia campinetra! Admirayel exemplo, o tal porque ainda se ufo extinguiu a raga, dos prefeitos no gencro daquelle adoravel “sous-prefet”, no conto de Daudet, que velou a face da Musa dos Comicios Agri- colas, para fazer versox ua relva, mastigando violetns, a0 emtar dos rouxinées no bosque de verdes carvalhos. .. Voltando ao nosso Largo... — felizmente, a differenga de nivel no terreno esconde, quein ahi entra pelo Indo de cima, fa vista da nova construcgio, Eas velhas sombras poderiio ainda, por longo tempo, dormir e sonar 10 seu velho largo... A todos os que conhecen a historia do Tejuco ficou na Imaginagho a paizagem encantadora do que fol a “Chaeara da Xica da Silva”, mandada construir pelo contractador j4 referido Joiio Fernandes de Oliveira Filho, para a sun amante, que de encantos, como disseram ox contemporancos, s6 se 08 tinhia secretos... Hoje, no Queluz diamantino pastam philoso: phicamente os bois, entre os restos das muralhas e as ribas 3 4 5 6 7unesp® 10 11 12 13 3.4 5 6 7UMesp® i BLO PASSADO NACIONAL pantanosas do Ingo; e a imagem do Abandono, tio prodiga- mente reproduzida pelas nossas yelhas cidades, alli encontrou mais um dos seus desolados nichos. Se tal ¢ a situagio na capital do districto diamantino, melhor se nos nilo depara o estado da antiga capital das Minas. Sobre as pedras de Ouro Preto tambem pesa o guante da igno- rancia humana e dos ultrajes dos annos. O antigo Palacio dos Capitiies Generaes, construido pelo engenheiro José Fernandes Pinto de Alpoim, em 1744, sob o governo de Gonies Freire de Andrade, foi profundamente remodelado para acolher a Escola de Minas, Apezar disso, porém, juntamente com o antigo Pala- cio da Camara, hoje Cadcia, que o defronta, guarda quasi intact o caracter original. Silo esses dois os mais perfeitos e 0s mais expressivos monumentos da gloriosa Villa Rica do Pilar de Ouro Preto. Descendo a rua do Ouvidor, antollia-se- nos a deliciogn igreja de S. Francisco de Assis, no antigo largo do pelourinho, construtda pelo tragado do Aleijadinio, esse mutilado de genio, que durante a segnnda imetade do seculo XVIML, espalhon pela provinéin das Minas Geraes, os fructos de sua pericia. Antonio Francisco Lisboa foi o seu nome, mas as deformidades horriveis, de que uma molestin tardia The cobrit 0 corpo, emprestaram-the aquelle eognome, pelo qual 6 couhiecido. Andava de joclhos, e trabaliaya com © excopro atado aos tocos dos bragos, pois ox dedos the haviam eahido! ‘Viveu © morren na miscria, Inrgado dos homens, a quem mal- queria. As suas obras principacs se encontrani em Ouro Preto, na igreja do Carmo e na capella das Almas, em 8. Jo%o d’EL Rey na matriz € na capella de 8. Franciseo, em Sabarf, em Marianna, em Sta, Luxin, e sobretndo em Congonhas, onde, nna egreja do Bom Jesus de Mattosinhos, esenlpio a figura dos Prophetas, ¢ o8 tres Passos da Coin, da Prisio e do Horto, que mereceram tina mengio de St. Hilaire. Em 8, Franciseo de Assis varins obras ficaram do artista mineiro, tio espontaneo € delicado, a quem x6 falton uma educagio artistiea 4 altura de sew engenho, para o equiparar aos maiores. Sobre o portal nobre de entrada do Templo, rasyou o Aleijadinho um medalhiio fem granito, com a figura de S. Franciseo de Assis, recebendo ‘as chagas. B’ talvex a sua obra priuin, pelo aeabado das minn- a" |/12r (23) 15 16 8 REVISTA DO BRASIL ins, ¢ pela riqueza de expressio, que se desprende de todo 0 conjumeto. Pois bem, essa obra centenarin ¢ bella, nflo meraceu a inenor proteegfio contra ax intenperies, que traballam, lenta mas seguramente, na destruigiio dos contornos. Dos anjos que circundam 0 medallifo, a varios j4 faltam os membros mais salientes. A pedra vai sendo atacada, e uada impode que, dentro de outro seculo, do quadro encantador de hoje s6 reste una superficie lisa! Porque nilo ensaiar alli o que foi feito nos portaes da igreja de S. Petronio em Bolonha, com os baixo- yelevos de Jacopo della Quercia, isto 6, estender, 4 maneira do vidvo nos quadros, pequenas télas de arame, que profegem 2 esculptura, sem quasi perturbar a visio? E de pouco dispendio € farto resultado, Fronteiras quasi 4 egreja fieam as casas modestas, outrora habitadas por Thomaz Antonio Gonzaga e Claudio Manuel da Costa. Nada as indica, nem uma placa simples, e portas a dentro, taanbem nada resta de entto. Onde os innu- meros objectos daquelle interessantissiuio “auto de sequestro”, citado por Affonso Arinos na sun admiravel “Atalaia Bandei- rante”? 86 Deus 0 saberd... A casa de Tiradentes, xe bent nie Iembra, na rua de S. José, foi comprada quasi em ruinas por Affouso Arinos, esse sandoso amante inegualavel do pasado nacional. Hoje, que vai ser della?... B que vai ser dos dois curiosos chafarizes ile 1752 ¢ 1762, na rua do Ouvidor e na do Vira Saia, e do Chafariz das Cabecas, ao pé da casa de Marilia? Extiio todos reduzidos a pouco menos que ruinas! Na matriz de Antonio Dias pouco resta de antigo, Foram todos os altares reformados nesse incolor estylo “Casa Suecna” a que se vai reduzindo a nossa arte sicra, hoje sem a menor originalidade. $6 resistin o altar de N. 8. da Boa Morte, a eujox pés esti enterrado o Aleijadinho, Neuhmma grade se Tevantou em torno do tumulo, assim que raros siio aquelles que respeitam o ultimo leito do triste esenlptor mineiro, de que 86 se vé mma Tage suja, com as inseripedes apagadas! De- solador esquecimento dos homens! No curto espago de um artigo nfio me propouho a ser completo, sendo a citar factos esparsos, recolhidos ao sabor de uma peregrinagio. Faliei em Diamantina e em Ouro Preto, 45 6 7umesp® 10 11 12 13 PRED PAS$ADO NACIONAL. Em cima: Egrejas do Rosario e S. Francisco, em Diamantina, Em baixo: A “Casa do Contracto”, na mesma cidade. om 1 2 3 4 5 6 7T7unesp* 10 11 12 13 14 15 16 cm 6 7 unesp® 10 11 12 13 i mas por toda a parte grassa o mesmo mal. Em Curvello eae a capellinha inicial, eedendo o Ingar a uma nova e soberana- mente fein igroja dos Redemptoristas allemiies. Em Bello Hori- zonte 6 demolida inutilmente « velha inatriz de Curral VEL Rey, para a substituirem por alguma inexpressiva capellinha gothica. Em Sumidouro, que é da Quinta de Femnfo Dias Paes Leme? E se passarmos a S. Paulo, torrio dos bandefrantes no 6 menor 0 descalabro. Avulta o arrasamento da Igreja do Collegio, para se construir 0 novo palacio do governo. Essa capella era nada menos que 0 sunetuario fundado por Anchieta em 1554, ¢ porteriormente remodelado. A sua signiticagio niio tinha s6 de paulista, mas de amplamente nacional. Com 0 po de suas paredes desappareceu um dos mais puros symbolos da patria! Nio ¢ smente a demoligio o terror das velhas pedras. Como vimos com a Casa do Contracto em Diamantina, a res- tauragiio 6 talvex ainda mais grave. A morte pode justificar-se, ‘mas munca a tortura. Ser atheu uin direito, mas mofar da religiio nos sanctuarios 6 proprio de almas rebaixadas. Pois a restauragio é aqnella tortura, é essa carientura. Ainda quan- do a presidem um grande sentimento artistico e um respeito severo ao passado, ella 6 acceitavel se inevitavel; o resultado unico ¢ fazer do edificio uma imagem fria do que fol. Mas, se a restaurago se faz, como entre n6s, sem a minima preoceu- Pacio pelo primitivo aspecto do edificio j4 niio €:sendo um vandalisino. A nova fachada, as novas torres, as novas alas, sio ontras tantas tunieas de Nessus sobre o corpo da antiga cons- truccio. Em §, Paulo, soffren 0 supplicio da restauragio a capella de N. S. do 0’, que hoje se ostenta, sem nenhum cars eter original, sobre as tminas da velhia ermida de Manoel Preto. Mas niio é solitario o seu soffrer, porque, pelo Brasil além, outras imnitas irmis de infortanio gemem na mesma tortura, Do littoral paulista, por exemplo, tenbo noticia do lamentavel estado em que as reformas deixaram as duas eapellas classicas de Conceigio de Itanhaen, um dos primitivos lares mysticos uo Brasil, logar de especial devocio do bemaventurado Joseph de Anchicta, o 8. Francisco de Assis de nossas selvas. Se a Igreja do Collegio niio soube inspirar piedade 4 febre do alvifio ¢ da picaretn, se a ermida de N. S. da Bsperanca fio commoven os restauradores, guarda ainda 8. Paulo, na 45 6 7umesp® i0 11 12 13 14 12 REVISTA DO BRASIL. Capital, nos arredores e pela costa, outras eapellinhas © casas tradiefonacs que até hoje resistiram. E” duro, porém, de dizer gue ellas devem a vida, mais 4 sua boa estrella que 10 desvelo dos homens. Como typo do estado em que hoje se encontram esses veneraveis restos dos passados seculos, cis a igrejinha de M’Boy, fundada por Belehfor de Pontes, o chronista jesuita. Tremem-Ihe as paredes frageis, inelina-se tragieamente a pobre fachaila roida, deixando a impressio de um proximo desenlace. E como M’Boy, Cotia, Pinheiros, Conceicio, ete. Manda a justica confessar, € 0 fago com orgullio ¢ espe ranga, que em S. Paulo bem vivo o amor pelas vellias cons: truegies ¢ pelas tradigdes nacionaes, se nflo na massa, pelo ‘menos em certas eamadas superiores da populagio. B 6 justa- mente porque nfo deseonhego os esforcos de Washington Lniz, de Ricardo Severo, de Aguiar de Andrada ¢ outros, em pré da formagio de nma architeetura nacional, que a elles, inais que ‘a ninguem,, procuro tocar com a tristura de nossas ruinas. Sir vaclhes esse espectaenlo de ineentivo para nfo fraquearem na obra eneetada! Se essa 6 a tendeneia, que comesa apenas a apontar, muito ainda ha que fazer, no proprio Estado, e ultimamente, va gueando por Santos, colhi mais um facto para essa resenha tristissima e tio falha que venho fazendo. Bxiste, ua igreja de S. Antonio, pertencente & Ordem Terceira de S. Francisco da Penitencia, uiua capellinha eontigua, votada a 8. Francisco de ‘Assis. Até ha tres ou quatro anos atraz era essa eapella wna testemunha intacta da fundagio, em 1640, se me nfo engano. 0 altar, obra notavel de talha, recoberto de folha de ouro, 6 unico em seu genero, tendo em grandes dimensées, a imagem de S. Francisco de Assis, de joelhos, a reecber os estigmas de um Crueifieado sangrento, que se eleva ao fundo; parece copin do quadro eelebre dle Giotto. Torneava 0 adro mma friza em amlejo, 10 gencro das de S. Vieente de Fora em Lisboa, Igreja da Graga ua Bahia, e da de S. Francisco, uo Recife, representando, em varios quadros, actos da vida piedosa da- quelle suave bemaventurado, Pois bem, ha poticos annos, resol veram os dirigentes da Ordem arranear os aulejos, sob pretex- to de que a capella, com os azulejos, parecia um agongue! Foram estas as proprias palavras do sncristio, testemunha do facto! Fui encontrar 0s pobres azulejos vetustos, amou: 3 4 5 6 7unesp® 10 11 12 13 ETO PASSADO NACIONAL. 18 toados a um canto, cobertos de po, ¢ em parte j4 estra- fados ¢ quebrados, no fundo da igreja, mma antiga co- sina da Ordem! E nfo parou ahi o padecer da lumilde capellintia, © mesino pavoroso engenho architectouico, que ou- sou arrancar os azulojos, desnudando as pavedes, construiu, ao fundo, un cbro de linhas deploraveis, cortando ao meio duas jancllas, que nem sto menos muradas foram! $6 a propria visio dos factos péde convencer de tanta ignorancia! Para que nada faltasse a uma obra de devastagio absoluta, pintaram de va- ring cores a cantaria da fachada, e de pixe o Cruzeiro de pedra, que se levanta 4 entrada do templo! Alifs, 0 costume de se brochar o grinito, e de se acafelar as ostatuas, est espalhado pelo nosso territorio. 1 um caso typico 0 da Cathedral Metropolitana do Rio, enja fachada de cantaria tinha sido toda caiada, 0 que dew Ingar a um Aviso indignado de Ferreira Vianna, qnando Ministro do Imperio com 1889. E jf que me referi 20 Rio de Jancivo, cumpre notar que clle se niio isenta no descalabro yeral do respeito ao pas: sado. J4 me vai longa a exposigiio, que eu quizera tanto mais incisiva quanto mais breve, ¢ portanto, ¥ i ine a lembrar um facto entre mil: a eanalisacio do rio da Ca- rivea. Foi 4 boeen desse rio, conta a historia, ou pelo menos a tradigio, que em 1501 se levantou a primeira Casa de Pedra do territorio, precursora da cidade de Estacio de $4 e madri- nha de seus habitantes. Naquellas aguas se abcberaram ns gera- gées, desde os navegadores, que aqni vinham refresear, aos cidadaos de hoje. O seu nome se gravon na mente de todos os viajantes, na obra de todos 0s historiadores, E como era pit- toresco 0 sett curso sinuoso, acompanhiando a rna das Laran- geiras, com o velo muro recoberto de umsgo! Pois nada the yalen para mover os reconstructores da cidade ao respeito. Hoje, a rua das Larangeiras perden 0 companheiro, © o rio dos navegantes de 1501 jaz transformado num reles esgoto! Por esse facto xe v8 que o desvio da tradiglo, e portanto da logica das coisas, niio se manifesta unicamente pelo desres- peito aos monnmentos. Nem 86 clles exprimem o eneadeiamento raeioual da vida de um povo. Entre nés, como por toda a par- te, aquelle desequilibrio se tradux por varias formas. Ora, como vimos, 6 a canalisasi historico; ora, como no Palacio do Cattete, a substituigio de ornamentos ou symbolos, 45 6 7umesp® 10 11 12 13 14 14 REVINTA Do DRASIE ‘© que fex dizer a Machado de Assis que o Palacio, depois das estatnas, ficou parecendo uma commoda de pés para o ary ora a mania, verdadeira molestia nacional, de trocar, a todo © proposito ¢ sem proposito, os nomes das ras, ¢ que Ja hoje se estende até aos nomes geographicos! como esses mil ou- trox casos, que a todos occorrem. Nilo proseguiret, porém. Era meu intuito langar o alarm, entre aquellos euja voz péde ser onvida. Citet alguns factos; se quizesse completar a resenha, teria de fazer una nomencla- tura de todos ox nossos velhos inonumentos, pots o mal, de que mortem 08 que acabo de mencionar, 6 nma epidemia nacional! Nada pide justificar o descaso pelo nosso pasado. Se Ihe fio. pesam ox anos, nem a excepeioual maguificencia dox edi- icios, a¥ulta o seu valor moral, a sua significagio historica. Quem se nio recorda da adiniravel eampanha levada a effeito, em Franca, por Maurice Barrés, em favor dax igrejinhas rus- tieas, e que elle reuniu em volume, evocando “Ta Grande Pitié des Fglises de France”? Nao cram as grandes cathedraes go- thieas, os “poemas de pedra”, que clle defendia, miax 08 simples sonetos de tijollo das aldeias, ou mesmo as humillimas quadri- has populares, 05 adrox ¢ os cruzciros, que a £6 semeara pelox caminhos. Cuidemos tambem das nossas quadvinhas populares! Am: paremos ox Cruzeirox que baquelam, as ermidas que treme (08 chafarizes que riiem! Olhemos mm pouco para 16s mesos, Para ox nossos membros mutilados. E j4 que vivemos nnma Gpoca legista, fagamos uma lei, essa a0 menos util e bemfazeja, 4 sombra da qual possam viver respeitados os vestigiox «lox nosso primeiros annos, conto colonia ¢ como nagHo. Somos um icia, somos nbs os fazedores do passailo, niio ha (0 poderemos levar avante a nossa missiio se des- prezarmos 0 que para n6s constitne o pasado da patria, A perspectiva das origens ¢ um clemento primordial dos povos em formagiio; ¢ 6 pela memoria do passado que deve comecar a obra da constriecio nacional. A missio suprema do brasi- leiro de hoje ¢ reunir os materines para preparar mn espirito nacional, em todas as manifestagées de sua actividade. B para isso, 6 preciso que ao artista, a0 jurisconsnito, ao architecto, 3 4 5 6 7unesp® 10 11 12 13 YELO VASSANO NACIONAL 15 ao politico, ao militar, ao industrial, nfio seduza unicamente a 6 se tem 0 direito de ser original sem 0 que- rar”, disse-o Joaquim Nabuco. A arte, a literatura, 0 estylo, a organisaglo verdndeiramente nacionaes serio uma conse- {quencia logiea do nosso meio, do nosso clima, da nossa filiagio, das nossas tendencias. Hoje, o espirito brasileiro esti inteira- mente obliterado por estranhas influencias; os artifices do futuro, trabathando pela boa Obra, que nfo desprezem o aspe- ctaculo de nossas origens, quando o mimetismo ainda nos niio havia de todo descaracterisado. E’ preciso encarar 0 passado, lér 0 caracter do presente através das Iantejoulas artificiaes, ¢ comprehender o futuro, para tentar, entiio, logicaniente, algo de definido pelo espirito nacional. Tratemos portanto de guar- dar as roupagens do nosso bergo, para os obreiros do futuro. Ponhamos um freio 4 furia demolidora e restauradora. Reha- bilitemos 0 passado nacional! ALCEU AMOROSO LIMA. 4 5 6 7unesp® i0 11 12 13 14

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