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2 O COTIDIANO DA MORTE NO BRASIL OITOCENTISTA Jodo José Reis 96 + HISTOR DA vio PRVADA NO SRASL 2 s atitudes diante da morte e dos mortos foram tc mando novas formas ¢ novos sentidos ao longo d século xm. O tema se liga a uma das preocupacé: maiores dos homens € mulheres daquele tempo, a preocupé Ga com unr bua murte. As Loncepyes sobre o mundo de mortos ¢ dos espiritos, a maneira como se esperava a mort o momento ideal de sua chegada, os ritos que a precediam sucediam, o local da sepultura, o destino da alma, a relega entre vivos e mortos — eram todas questées sobre as qua muito se pensava, falava, escrevia ¢ em torno das quais + realizavam ritos, criavam-se simbolos, movimentavam-se dt vogbes ¢ negécios. A morte no era entao vista como o fim do corpo apt nes, pois © morto seguiria em espirito rumo a um outr mundo, a uma outra vida. Dai ela poder ser encarada ai com jubilo. Em 1821, um senhor de engenho de Tru, em cari pera seu genro, essim se referia a noticia da morte da filh “parabéas da passagem que fer nossa filhinha Maria des mundo para a vida eterna”' A morte era tida como ur pessagem, motivo por que a idéia de deslocamento espacial viagem estava sobremaneira presente nos ritos que a cerci vam. As ceriménias e a simbologia que envolviam a mor cram produzidas para promover uma boa viagem para 0 01 tro mundo, cuja distancia deste era consideravelmente m nor do que hoje. © tratamento dispensado ao morte visa\ integri-lo 0 mais breve possivel em seu lugar, para seu prc prio bem e a paz dos vivos. A rigornao havia morte, jd que se vivia em profundid: e a crenga na imortalidade da alma. Esse principio geral ra, no entanto, cheio de variaveis. Na tradi¢ao catdlica do Jém, a morte existia apenas nos casos em que a alma fosse ar no Inferno. Ou, como escreveu o padre Bernardo José into de Queirés, autor de um manual de assisténcia aos gonizantes publicado em 1802, ali a alma “estaria sem dtivi- a sepultada nas vorazes chamas (...] naquele tenebroso car- ere’? Tal destino resultava de condenacao no julgamento dividual em seguida ao falecimento, yue, além do Infernw, odia ter como resultado a absolvigao absoluta, e entio a ma alcangaria 0 Paraiso, ou a condenagao mais leve e mais omum de expiar as culpas no Purgatorio. Negociar essa stadia que Jacques Le Goff denominou de “Inferno tempo- irio” era uma almejada alternativa 4 condenacio eterna. ssim rezava um trecho do soliléquio recomendado ao ago- izante: “E se até agora tém sido muitos os meus pecados, tandai-me, Senhor, para o fogo do Purgatério, por quanto mpo quiserdes, mas nao me mandeis para o Inferno, por- ae no posso nele amar-vos”? © Purgatorio era, dessa maneira, uma regiao de passa- 2m na geografia celeste. Para dele escapar mais rapidamente, ém do arrependimento na hora da morte, os mortos preci- vam da ajuda dos vivos, na forma de missas e promessas a ntos. A existéncia do Purgatorio permitia ¢ promovia a re- ¢40 entre vivos e mortos.* INO DA MORTE NOB orocentsta + 97 1A crenga numa ouira vida no Além eva compartthecta pela generalidude dos brasileivs. Entervo de um negro na Baia. nian Moritz Rugencas, Voyage pittoresque dans le Brésil, 1833) 9B * HISTORIA DA VIDA PRYADA NC 3RA5HL 2 2. Chuzes 0 brira das extrades lembravam acidentes triigicos & canvidavam es viajantes é caridade ea compatxae puru wo es mires (Kidder e Pletcher, Brazil and Brazilians, 1857) Quando viajava pelo interior de Minas Gerais em 1817, Saint-Hilaire passou por uma cruz erguida a beira da estrada e Ihe contaram como ela fora parar ali: “Um homem, viajan- do nessa regiao, acreditou ter visto alias do Purgatério, que volteavam ao redor do seu cavalo, sob a forma de pombos, pedindo-lhe preces. Em meméria desta apari¢ao ele fez er- guer a cruz; histéria que venho a relatar acha-se gravada ao pé da mesma”? Esses cruzes, que ainda continuam a ser er- guidas em nossas estradas do interior, serviam também para marcar 0 lugar onde alguém havia morrido tregicamente, vitima de acidente ou assassinato, por exemplo, e lembravam a quem passasse a obrigacao de rezar pela alma do infeliz. “Duas mortes sofre, quem por mao alheia morte’, dizia 0 ditado portugués colhido no século xv e que podia signifi- car o acumulo de morte fisica e espiritual. A condenagao fatal de que falava 0 padre Queirés: ‘Mas o resultado podia nao ser sempre tao tragico, gragas a solidariedade na relacdo entre vivos ¢ mortos. O viajante aleméo Rugendas, no Brasil na década de 1820, passou por uma cruz no caminho entre Minas Gerais e Rio de Janeiro, onde assaltantes costumayam atacar ¢ dar cabo de suas viti- mas, enterrando-as dentro do mato préximo juntamente com suas montarias, que também sacrificavam.’ Essa sepul- tura zo Iéu, em terra profana, ao lado de animais, era formula perfeita de tormento para as almas dos assim mortos e enter- rados. Para salva-las faziam-se necessdrias muitas rezas. As bases daquelas cruzes se enchiam de pedras que contabiliza- yam as preces ditas na intengao dos mortos ali representados. ajudando-oe a atravessar o estado liminar em que viviam ¢ integrando-os definitivamente ao outro mundo. “Tradigoes semelhantes chegaram da Africa. Uma propor- a0 muito alta dos habitantes do Império ao longo do século XIX era constituida de cstravus africanus seus descendentes. Cidades como Salvedor ¢ Rio de Janeiro tinham populagdes majoritariamente negras e mesticas. De suas terras de ori- gem, os africanos haviam trazido ritos funebres ¢ sofisticadas concepges sobre o Além. Todos viam os espiritos ancestrais como forgas poderosas que 0s ajudavam a viver 0 cotidiano € asseguravam-lhes uma boa morte. Eles também acreditavam em recompensas e punicSes quando mortas, inclusive na exi téncia de almas penadas nascidas de problemas com a ritua- 0 ConbANO listica lunebre ou pela experiéncia de um tipo indesejavel de morte. A morte prematura, a morte por feitigaria, a falta de ri- tos fiinebres e sepultura adequados conturbavam a travessia do a‘ricano para o Além, Entre os iorubas — que vieram a ser conhecidos por nagés na Bahia ¢ se incluiam entre os negros minas no Rio e outras regides sulistas — havia a pos- sibilidade de 0 morto vagar por regides terrestres até que os viyos o despachassem conforme as regras do axexé.’ Cen- domblés dedicados aos mortos, os egungum nagés, foram criados na primeira metade do século xix, segundo a tradicao oral conservada pela gente do culto.” Na segunda metade do século, o jornal O Alabama de- nunciou a realizagao de cerimonias para os mortos africanos em varios candomblés de Salvador, de extragao nagé ¢ jeje. Em 1865 0 jornal acusava um negro de “dar ventura, adivi- nhar e curar de feitigo aos crédulos e supersticiosas”. Estes, além disso, estavam convencidos de que “o tal negro tem o poder de evocar os mortos para virem fazer revelagdes’."” Nesta © em outras dentincias, 0 jornal lamentava que nao apenas 0s negros freqiientassem os especialistas africanos na comunicagio com o Além, mas também gente branca de va- rias codices. ‘Também os africanas circulavam por mais de um regis- tro religioso, cuidando de seus mortos 4 maneira catélica € africana. Numa ocasiao, em 1869, O Alabarza publicou sobre vendedoras de peixe, a maioria delas africanas ou crioulas: “as vendedeiras de peixe na Preguica encasquetaram-se de que as almas das companheiras falecidas andavam atrasando- Ihes 0 seu comércio € por isso reuniram-se ontem, manda- ram celebrar doze missas, alugaram um armazem em Santa Barbara e ai fizeram um servico extraordinario, onde ferveu tabaque até seis horas, para afugentar as almas que nao sto mais deste mundo, e nao virem atrapalhd-las”" A despeito do tom depreciativo do periddico, que via na religiosidade africana sinais de supersticio e barbarismo a serem reprimidos, a noticia confirma o que temos dito até a, entre vivos aqui sobre a negociasae, nem sempre trang: mortes no Brasil oitocentista. Deportados e feitos escravos no Impeério, os africanos foram forgados a obedecer a regras catolicas, mas nunca abandonaram inteiramente suas tradicGes. Em suas irmanda- NO BRASIL OIOCEN SIA + HISTOBIA DA VES FRIVABA NO BRASIL 2 100 + 3. Trés homens retizam um escravo promvetmene morwde posse to navio negreira. (Jokaan Moritz Rugendas, Voyage yittoresque dans le brésil, 1833) (© COTDIANO DA NORTE NO BF des eles africanizaram o catolicismo, celebrando santos pa- tronos com mascaradas, 2 percussdo dos atabaques, dancas cheias de energia corporal, cangdes cantadas em linguas nati- vas ea eleigio ficticia de reis e rainhas negros. Por outro lado, © catolicismo barroco, com sua efusio de ritos, simbolos e cores, e com sua cultura processional de rua, nao era de todo estranho a eles, E, dada a flexibilidade da religiosidade africa- na, havia sempre lugar para novos rituais, simbolos e deuses. Por outro lado, apesar do protesto dos fundamentalistas, a Igreja foi forcada a aceitar — ou pelo menos fechar os alhos para — os africanismos nas ceriménias fiinebres. Contudo, nao ha dtivida de que as regras catdlicas predominaram, es- pecialmente no lado publico dos funerais. Segundo as regras dessa cultura funerdria, a primeira es- tratégia de salvagao cra organizar cuidadosamente a prépria morte, depois de viver uma longa vida. Segundo um artigo de 1836 no Diario da Bahia que definia os varios estagios do ciclo da vida, a velhice se localizava entre 64 e setenta anos, € era caracterizada pela prepara¢ao para a morte por meio do “Roséirio & noite, testamento € missa didria’!? Era importante nao ser tomado ce surpresa pelo Ultimo ato entre os vivos. Dai por que a morte acidental, prematura, sem os ritos devidos, era vista como grande desventura, que fazia sofrer a alma de quem partia ¢ 1 consciéncia de quem ficava. A morte devia ser de alguma forma anunciada, por imeio de algum sinal, uma doensa ou dirctamente por forgas do Alem. A doenga, segundo o padre Queirés, seria uma prova do empenho de Deus em facilitar a salragio, “porque se assim nao fosse, ele [...] mandaria uma morte repentina’’ Nessa hora, ajudava também um bom relacionamento com os santos de devogao. No interior de Minas, na primeira metade do sé- culo xx, Manuel Corsino confiava que sua morte seria anun- ciada por Nossa Senhora do Carmo, para que pudesse tratar de nao morrer em pecado mortal. Para isso rezava todos os dias certa oragdo que tinha como objetivo garantir aquele avi- so prévio, Corsino adoeceu varias vezes, mas tranqiiilizava seus familiares dizendo que saberia quando a enfermidade fosse fatal, ¢ nesse caso logo avisaria. E assim, acometido certa oca~ 6 de uma doenga, informou calmamente a familia: “Hoje Nossa Senhora me apareceu ¢ me avisou, que a partida é no. sdbado, que é o meu dia e que ha de sera tais horas. Agora sim; ke [Sr 84081613 Si ONOC=NTIS UN +101 e 102 + HISTORIA DA VIDA PRADA NO Brasil 2 nao tenho mais duvida que a minha vee cheguu ¢ que € preciso que eu cuide da viagem; tratem, portanto, de mandar chamar o padre”, Este veio, Manuel cumpriu todos os ritos da ocasiao, despediu-se da familia e dos amigos, ¢ partiu no dia marcado.* (08 TESTAMENTOS Muitos orgenizavam sua morte oralmente, de preferén- cia na presenca de familiares, amigos e do padre, como pare- ce ter sido 0 caso de Corsino. Mas os outros, inclusive ex- escravos (os chamados libertos), também escreviam ou dita- yam testamentos em que, além de pedir a interferencia de forgas celestiais, destinavam parte de scus bens a organizagio dos préprios funerais. Tudo com vistas a por “a alma no caminho da salvago”, como escreveu em 1811 na Bahia Joa- quina Maria de Sao José.'* Esses documentos, as vezes escri- tes com muita antecedéncia, nomeavam santos como advo- gados no Tribunal Divino, indicavam a quantidade ¢ 0 tipo de missas que considerassem necessérias a abreviar a passa- gem pela Purgatério, escolhiam 0 modelo de mortalha, as vezes 0 tipo de caixio, estabeleciam 0 numero de padres, pobres e musicos durante 0 cortejo e a ceriménia de enterro, ¢ finalmente especificavam 0 local da sepultura. Diversos aspectos nao religiosos dos testamentos tinham implicages misticas. A morte representava, por exemplo, um importante mecanismo de ordenacdo econdmica. Como em Portugal, o morto nao descansaria enquanto nao visse pagas suas dividas comerciais com os vivos. O manual do padre Queirés recomendava ao moribundo que devolvesse ao do- no qualquer cist “injustauente adquirida [...] pois que ninguém pode entrar no Céu sem que primeiro restitua 0 alheio’® Nos testamentos oitocentistas eram insistentes as instrugGes de pagamento aos credores, mesmo aqueles que, como escreveu um morador da Bahia em 1816, “nio me tem pedido talvez por ignorarem que cu lhes sou devedor®."” Fre- qientemente, na lista de débitos em moeda corrente in- cluiam-se, lado a lado, credores humanos @ sobrenaturais, pois as promessas nao pagas — na forma de missas ¢ donati- vos — faziam parte do mesmo livro de contas a ser exami- nado pelos fiscais do ‘Iribunal Divino. Em 1802, um senhor de engenho em Santo Amaro, no RecOncave, reconheceu em © CONDIND DA MORE NO BFASH OMTOCE! lestamento uma longa lista de credores deste © de ous mundo, inclusive o Senhor do Boafim, a quem devia 50$000, e o Senhor Sacramental do Convento de Santa Teresa, a quem devia 20$000, em ambos os casos dividas de promessas feitas e nao cumpridas.'* Esse dinheiro ele deixava em testa- mento para ser agora, talvez tardiamente, investido em mis- sas, a moeda corrente no Além.'* Advogados ciosos de sua atividade, os santos nao per- doavam facilmente 0 calote dos mortos. Era muito perigoso morrer devendo-lhes promessas, pois assim lesados podiam se abster de qualquer interven¢ao em favor do morto durante 0 julgamento da alma. Dai 0 cuidado daquele senhor de en- genho ha pouco visto, Num outro episédio de meados do século, uma senhora que partia do interior da Bahia para tratar-se de doenca do pulmao em Salvador, avisaria a sua irma: “Naquela arca, deixo algumas disposigdes [testamenté- rias] © uma nota de promessas feitas aos Santos, as quais ainda ngo pude cumprir, Esta tudo em uma caixinha”” ‘A morte também era um momento de reparagio moral, no espirito do velho provérbio portugués: “A morte com honra desassombra’?! Fazer justica aos que ficavam significa- 4, Diante da ever‘ualidade de morrer num baco ou sma sstrada durante wea viager, 4 morte na propria cama, ers casa, era iescuca pelos que temiam ni ter epultra num cemitério cristo (A Semana Thustrada, 1863) + 103 104 + HsTO2IA 0 VIDA PRIV 1A NO BRASIL? va limparse para enfrentar a justisa divina. Velhos pecados da carne eram corrigidos na hora da morte, quando pais reconheciam filhos tidos de relagGes ilicitas e homens casa- vam com amésias, as vezes ex-escravas, fazendo-as herdeiras legitimas. Quando caiu doente em 1833, Eugénio Pereira Nogueira, morador no RecOncavo, escreveu um testamento no qual dedarara ter tido “ajuntamento ilicito” com a esciava Bonificia, mae de trés filhos, aos quais ele deixaya parte da heranca apesar de duvidar que fossem seus: “nao os julgo meus filhos, porém sejam ou nao.” A légica dele foi: na duvida, seria melhor nao arriscar sua alma nesse momento estratégico de decisoes salvificas. Outros testadores negavam paternidade com convicgao, como um certo Luis Pedro de Carvalho, tmbém baiano, que em 1835 acusou de prostitui- gio as mie de duas meninas que elas diziam serem suas. Carvalho excreveu: “Se minhas filhas fossem, eu nao oculta- ria, ¢ muito menos na hora em que estou préximo a dar contas ao Criador”* A hora da morte nao era momento de mentiras porque, se ludibriar os que ficavam ainda era possi vel, nio 0 era fazé-lo com o Pai Eterno, cujo julgamento seria implecavel. A morte ideal nao devia ser uma morte solitaria, priva- da. Ela se encontrava mais integrada ao cotidiano extrado- méstico’ da vida, desenhando uma fronteira ténue entre o privade e o ptiblico. Quando o fim se aproximava, o doente nao se isolava num quarto hospitalar, mas esperava a morte em czsa, m cama em que dormira, presidindo a prépria morte diante de pessoas que circulavam incessantemente em tomo de seu leilo — a morte representava “uma manitesta- ao social’, como a definiu Philippe Ariés.* Reuniam-se fa- miliares, padres, rezadeiras, conhecidos e desconhecidos. Era como em Portugal. Um inglés que por ld passou na década de 1820, encarou isso com muita estranheza, tendo testemunha- do a invasao do quarto de um moribundo que receberia a extrema-unyao por uma multidao de pessoas, inclusive estra- ahos, entre cates membros da “ralé”, Av cuutrdsiv dus ingle- e quieta- ses, que preferiam a “decéncia de morrer pact mente’, em tipico estilo burgués, os portugueses, escreveu 0 inglés, “deduzem consegiiéncias vantajosas da numerosa co legao de pessoas em volta da cama do doente”.” Na corte do Rio de Janeiro estranhos também se juntavam a procissoes do vidtico, segundo observaram diverses viajantes da prime: ra metade do século x1x. © alemao Pohl, por exemplo, assin descreveu o que viu la: “Se, por exemplo, 0 Santissimo en levado a umn enferme, nav 96 se juntavain av préstile, rezar do, pessoas de todas as condigdes, como quem, vindo de ce che, encontrasse 0 cortejo, tinha a obrigacao de descer, deso- cupando o lugar para o sacerdote e acompanhando 0 carro: pé* Além de descrever uma procisso dessas, Debret a re tratou, e 0 préstito que acompanhava 0 viatico, além de pz dre ¢ sacristio, incluia uma banda de misicos negros, sol dados, membros de uma irmandade (provavelmente do Santissimo Sacramento) ¢ transeuntes. Debret nao penctrou no quarto do moribundo, mas o ingks Lindley o fez, em 1802, em Porto Seguro. O recinto se achava “cheio de paren- tes, visitantes e famulos’, 0 que © tornava “imensament quente e pequeno’, criticou sufocado o estrangeiro, ele pré- prio um estranho admitido na cena.” O testemunho desses norte-europeus é interessante, er: tre outras raz6es, porque ressalta a especificidade de nossi cultura funerdria. Mas a composigio das personagens em torno do leito de morte nao era tao cadtica como lhes pare- cia. O padre Queiréa, que aos tem acompanhado nesta vie gem sobre a morte, recomendava que a ele ndo compare. cessem pessoas que tivessem dado “ocasiao de pecados” ao enfermo, Ou seja, desafetos, companheiros de folias, as pré- prias amantes ou as dos conjuges. Talvez por isso a marques: OCENTISTA + 105 5. Quando 9 vidrico era levado aun doante,o costume obrigaya os pessartes a seguir a procissdo. ear Baptiste Debret. Voyage pirtoresque et historique au Brési, 1334 106 * HIsTORA DA VIDA PRADA N de Santos, amante de d. Pedro, tivesse sido impedida de en- tar no leito de morte da imperatriz Leopoldina. Além dessas visitas indesejiveis, o padre criticava o “ajuntamento de pes- soas estranhas”, embora admitisse a presenga de conhecidos que testemumnassem a fé do doente ¢ orassem por ele. Quanto 2 participacdo dos padres, Queirés obviamente colocava-a em primeiro plano ¢, alias, dirigira a eles seu ma- nual de bem morrer, de mais de trezentas paginas, para guié- los do modo mais eficaz possfvel na operasaio em torno dos ultimos e dramaticos momentos do moribundo, nessa hora decisiva em que uma felha ritual podia redundar na perdicao delinitiva da alma do assistido. Um trecho da ora¢ao ao ago- nizante recomendada por Queirés dizia: “O horror das tre- yas, 0 ardor das chamas, e 0 rigor dos tormentos Ihe sejam desconhecidas. Satands, o mais cruel inimigo, lhe ceda com todos os seus sequazes, trema a sua chegada em companhia dos Anjos, e vd se esconder nesses horriveis cakebougos de uma eterna escuridao”.* No Brasil rural a assisténcia paroquial era dificultada pelas distancics, pela propria auséncia de padres e sobretudo pela populacao a ser assistida. Escravos, por exemplo. O estu- do de Sheila de Castro Faria indica que na freguesia flumi- nense de Santo Anténio de Guarulhos, em Campos, apenas 4% dos escravos mortos se foram com pelo menos um sacra- mento. Um numero muito baixo, mesmo considerando a presenga macica de africanos no lugar, os quais nao se inte- ressariam em receber os sacramentos por apegados a tradi- (es pagas, OW, se catolicos, por falta de interesse de seus senhores.”* No Brasil urbano do século xix as pessoas foram assisti- das com alguma regularidade pelos padres na hora da morte. O estudo de Claudia Rodrigues, que cobre 0 Rio de Janeiro entre 1812 e 1885, mostra que, subtraindo os anos epidémi- cos em que ficava mais dificil 0 acesso aos padres, pelo me- nos 60% dos mortos receberam algum sacramento antes de falecer, sendo que 41% receberam todos, ou seja, peniténcia, comunhio e extrema-ungio.” Os mortos de Salvador, numa amostra de 712 6bitos em 1835-6, nao foram tao bem servi- dos: 52% nao receberam nenhum sacramento,” E isso se deu, © COMDIANG DA moORTE NO BRASIL OTOCENTISTA © 107 6 Tora da intermediagéo dos padtes, desenvolviam se relagaer mais divetns com: divine. O escravo Liandro agralece o milagre de sua recuperate corn urn ex voto. {lnvocagio 20 Bom Jesus da Agonia, século XIX, Minas Gerais) 2m parte, por negligéncia dos padres, aos quais 0 arcebispo da Bahia, d. Romualdo Seixas, acusou em pastoral de 1829 de ‘indignos mercenrios” por nao assistirem aos enfermos que ido Ihes pudessem pagar.” Felizmente, nao era apenas do jJominio dos padres 0 conhecimento de estratégias de com- date ao inimigo que se punha de emboscada nessa perigosa sassagem para o Além. Aqui residia a importancia da ampla afluéncia humana ao eito de morte, nem sempre de acordo com o receitudrio dos ninistros da Igreja. Como em Portugal, contava a forca gerada rela soma de orac6es recitadas pela multiddo em beneticio laquele que se preparava para partir. Freqiientemente, havia bjetivos especificos a serem atingidos, como no caso de doen es “sem forca para morrer”. que necessitavam ajuda para abre- ‘iar a agonia, a queima de velas, beberagens administradas e ertas rezas recitadas pelos presentes.® Um bendito pernam- rucano, feito para ajudar a morrer, assim incentivava o mori rundo a deixar pacificanente U miunde des vivos: Pecadé repara Que has de morré, Chama por Jesus Que ele hd de valé. [.] 1OB + HISTORIA DA VDA FR 7. Amedicina contra a morte No censo de 1872, 0 rttmen de médicos, arurgioes, farmaceuticos e parteiros em cada 10 mil habitantes mostra centrariio desses profssona’s ide na drea do Rio de janetro, 0 Rio Grande do Sul também 4e destaca por causa damedicina miliar agregada ds tropas. Santa Catarina ¢ Parana, com poucos habitaries, tiaham um atimero telativamente alto desses projissionais, O Amazonas 0 Mato Grosso apresenta discrepdncias estaisticas e nao foram considerades. (LED-Cebrap) (Ver Apéndice, tabela 4) or Oat batts Eagan Fdaoas Eww li net Nao conhece os teus Que contigo estito Com ansia tao grande No seu coragito?* Chegava um momento em que a agonia do doente exau- ria aqueles reunidos em volta dele, os quais, para aliviar @ todos os presentes, inclusive o préprio doente, deixavam de pedir por sua satide para solicitar sua morte. Nesse instante se reconhecia que 0 moribundo teria chegado a um estado de morto-vivo, uma zona liminar, perigosa, que precisava atra- yessar com urgéncia. Os vives podiam ajudar com um cm purrao final. Essa prote¢ao humana que cercava a hora da morte em nossa antiga cultura funerdria era fruto de uma sociedade pouco individualista, em que a vida e a morte privadas ainda nao haviam sido reduzidas a0 pequeno mundo da familia nuclear tipicamente burguesa. Isso valia mesmo para as clas- ses superiores, em que esse proceso de privacidade iria aos poucos se instalanda ao longo do século xtx, sempre com variagdes regionais, diferengas entre © rural ¢ o urbano, além de outras diversidades. Uma concepgao fiinesre fundamental era vincular o tra- tamento do cadaver ao destino da alma, um comportamento comum a varias outras culturas.” Quando a morte chegava, muitos ritos domésticos eram imediatamente executados com ocorpo do morto ou em torno dele, odjetivando afastar os es- piritos malignos e garantir uma partida tranqiiila do defunto. AS CARPIDEIRAS A moze era anunciada por carpideiras, com freqiéncia especialistas contratadas para a ocasido. Tanto em Portugal como em varios paises da Africa as mulheres recebiam aos berros 0 passamento dos membros de suas comunidedes.** No Brasil as carpideiras nao parecem ter constituido uma ocupagao remunerada como na Europa, ou pelo menos nao cra um costume generalizado, a se crer na avaliagio do padre Lopes Gama, escrevendo de Pernambuco em 0 Carapuceiro, em 1832." No entanto, a carta de um leitor a0 Jornal da Bahia, em 1857, insinua cue elas existiam aqui sim, e critica suas atividades: “Como viveriam as carpideiras sem detuntos que fossem pranteados? O pranto porém € de outros, delas s6 € 0 ganho; choram por conta dos que as pagam, pouco se Thes danda com as légrimes que vertem; e mais chorarao pelo maior malvado, se maior zspértula receberem’.* Mesmo que a profissio de curpideira nao fosse difiandi- da entre nés, a choradeira feminina era comum, como reco- nhecia o proprio padre Lopes: “nio faltam certas mulheres de timdo, que 20 capazes de chorer incessantemente de pura magoa de quanto defunto eles nunca viram”. Arrematando: “E um enterro, quanto rrais chorado é, maior fama adqui- re” Ja em 1832, o padre pernambucano via nisso um costu- me indesejado, sem nentuma vantagem para os mortos € que apenas se somava a outras vaidades dos enlutados. Mas 0 costume, além de difundido, tinha fungées rituais no catoli- cismo tradicional e resistic ao tempo. Em data j4 avancada do século x1x (meados da década de 1870), 0 engenheiro inglés James Wells, passando pelo arraial de Formosa, no extremo Oeste da Bahia, documeniou essis mulheres em plena agao: “Por volta da meia-noite, fui acondado por barulhos sobrena~ MORTE NO BRASIL OTOCENTISTA + 109 110 + HISTGRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 2 8 Riea mortalha de urn dignitario (que era cavaleira da Order: de Crista. (Jean Baptiste Debret, Cavaleiro de Cristo exposto ‘em seu caixio aberto, 1834) turais, e o clarao de luzes na rua. Ao sair A porta, encontre quase todas as mulheres do arraial reunidas perto de um: casa préxima, algumas chorando, outras gritando 0 mais qu podiam, outras cantando uma nénia agreste, e todos os ca chorros galos do lugar latindo e cantando”. Elas, continua 0 narrador, se mantiveram acesas noit adentro e antes de o dia raiar acompanharam o morto a se pultura, tendo, escreveu sempre irénico Wells, “aparentemen te reservado os pulmées para o finale; elas rodopiavam, joga vam os bracos para cima e gritavam com fiiria’.*" Os homen Jucsse numenty se juntarant as rezdy, mas sem muito empe nho. Tudo se fez sem a presenga de um padre, personagen rera naquele sertao, o que talvez explique a maior desenvol tura e veeméncia das carpideiras.” Antes da saida do morto de casa, outros ritos doméstico: deviam ser acionades, entre cles o banho do cadaver com infu sées especiais ou perfumes. Em seguida carecia vestir © defun: to adequadamente, tarefa também cheia de significados. O guarda-roupa fiinebre era especial, em particular no: meios urbanos. Até meados do século pasado, poucos indi viduos usavam roupas seculares, a roupa do dia-a-dia, em seus funerais. Mesmo numa amostra para todo o século ne Rio de Janeiro, as roupas de uso vestiram apenas 13% do: mortos para os quais temos informagées a esse respeito. Os demais defuntos iam 2 sepultura vestidos principalmente de mortalhas de santos (57%) e em cores (13%). Entre as mor- talhas de santos, destacavam-se, para as criangas, a de Nossé Senhora da Conceigao, para os adultos o habito de santo An- ténio.# O interior fluminense — eapecificamente Campos em meados do século, vestia seus escravos para a morte so- bretudo de branco (55%), fosse com mortalhas ou lengdis." IDIANO DA NORTE NO BRASH ONOCENTITA * 111 9. Dinersos esquifes © corpos embaisamadcs. No ambiente tropical, a rdpida decomposiga cadéveres, imposibilta « realizaito ide logos velorios como na Europa. (Jean Baptiste Debret, Voyage pittocesque et nsturique au Brésil, 1834) Em Sao Paulo, no inicio do século xx, 0 hdbito de sao Fran- cisco vencia em 40% a preferéncia dos pedidos em testamen- to, seguido pelo de Nossa Senhora do Carmo, com 25%. Na Bahia, em 1835-6, as mortalhas brancas, pretas e franciscanas nstituiam o traje mais habitual, Mortalhas braneas de tecido Ge algodao ordinario eram populares entre os africanos no Rio ¢ em Salvador, pois 0 sranco é a cor fiinebre de muitos grupos étnicos da Africa, MO Os nagds, jeies, angolas, congos e os muculmanos em eral. Para os nagds, por exemplo, o branco se relaciona ao orixd Obatalé, ou Oxali, o criador, que, na hora da morte, eivindica sua criagao. Entre os congos, o mundo dos mortos $ 0 “rcino branco”. Mas o brance tem tainbéur importantes tignificados no simbolismo da morte crista. Os testadores vodiam ser ainda mais diretos. Em 1832, Manuel Siqueira, enhor de 42 escravos, pediu para ser “amortalhado em um encol branco a imitagdo de Nosso Senhor Jesus Cristo”, uma ilusdo ao Santo Sudario, no qual, segundo a tradigao, Cristo 'stava envolto quando ressuscitou.” O uso de mortalhas pretas aumento desde 0 inicio do éculo xix em Salvador e no Rio, até entre os escravos, nesmo no interior.** Na corte o preto se difundiu principal- nente entre mulheres casadas.” Quando combinado com um tucifixo cm volta do pescogo, obtinha-se o habito de santa M2 HISTERIA DA VIDA PRIVADA RASIL 2 Rita, protetora dos que sofrem. Vestir habitos de santos era muito comum, em especial o hibito de séo Francisco, usado em Portugal desde a Idade Média." Sao Francisco tinha um lugar de destaque na escatologia catélica. Uma tela setecen- tista na parede do consistério do convento franciscano de Salvador retrata-o resgatando almas do Purgatério com a ajuda do cordio de seu habito. Diz a tradigio que, certamen- te com a permiscdo de Deus, ele fazia expedicoes periddicas Aquela zona celeste com o objetive de resgatar almas ali en- carceradas, Imaginava-se que 0s mortos vestidos com seu habito pudessem ser favurecides nesses aventuras fraucis- canas.1 Uma amostra de mais de mil dbitos dos registros paro- quiais de Salvador, em 1835 e 1836, revela que a mortalha branca foi usada por 44% dos mortos, a morialha preta por 16% e 0 habito franciscano por 9%. Os demais 31% foram enterrados com outros tipos de mortalhas, inclusive os habi- tos de outros santos. Os meninos, por exemplo, usavam mui. to o uniforme militar de sao Miguel Arcanjo — que no Rio incluia tinica, botas vermelkas, cinto, capacete dourado, ar- madura e espada —," uma fantasia apropriada a um tipo de morto que, segundo o imaginério popular, se batizado, era imediatamente incorporado ao exército angelical comandado por sio Miguel, e desse lugar velaria pelos pais na vida e na morte.* Os meninos também se vestiam de sao Joao Batista ¢ as meninas de Nossa Senhora da Conceigio, ambos santos patronos da fertilidade no Brasil. Nesses casos os pais pare- ciam querer reparar a perda dos filhos com gestos que propi- siassem a sobrevivéncia de futuros rebentos, uma preocupa ao importante num ambiente demografico caracterizado por altas taxas de mortalidade infantil.** A propésito, os recursos simbélicos de positivacao da morte menina atravessavam varias camadas da cultura tune- raria. Os anjinhos eram maquiados, enfeitados com coroas de flores, vestidos com mortalhas coloridas e para eles nao se devia chorar. Q inglés Luccock. que morou no Rio de Taneiro de d. Joao vt, viu que as criancas eram “gaily dressed” para a morte; o francés Arago procurou em vao lagrimas num fune- ral infantil carioca de que participou, em 1817; Ferdinand Denis afinmou gue tanto no Rie como na Bahia o funeral infantil tinha “uma pompa entre nés [franceses] ignorada 2 nada tem de ftinebre”. © uso continuava em meados dosécu- Jo, com Robert Minturn achando que “um costume bonito prevalece na celebracao dos funerais de criancas” no Rio, ¢ prosseguia descrevendo 0 dima de cor e festa? Muitas explicagdes se davam, no interior do proprio imaginirio mortusria, a respeita desse estado de alma diante da morte infantil. Uma das mais interessantes conservou-se na cultura caipira paulista e foi coletada por Maynard Arat- jo, ja em meados do século xx, segundo a qual nao se devia chorar para nav inolliar as asas do anjo que vinha recolher 0 anjinho. O mais comum era considerar positive que as fami- lias contassem com anjos familiares que as protegessem. Essa concep¢ao podia aparecer em situacdes as mais surpreenden- tes. Em 1882, escravos rebeldes do municipio de Campinas, Sao Paulo, mataram um feitor, sua mulher e um {ilho deles de dois anos. Interrogados por que nao haviam poupado a crianga, respanderam que seus pais precisavam de “snjos companheiros na entrada do céu’.* Voltemos & mortalha. Escolhida esta, 0 especialista em vestir defunto entrava em cena. Nao podia ser qualquer pes- sud, unis uma que conhecesse com seguranca seu trabalho, além de ser proba, honesta ¢ devota, Segundo Camara Cascu- do: “Nem todos tém o direito de tocar no cadaver’. Era preci- so, por exemplo, saber se comunicar com 0 morto, para que este cooperasse com a operacao: “dobre o brago, Falans, le- vante a perna, deixe ver 0 pé!”. Ou: “Fulano, feche os olhos para o mundo ¢ abre-os para Deus"” Tudo devia ser acom- panhado de um bendito de “vestir defunto”, talvez como aquele recolhido em Pernambuco por Gettilio César: No BRAS OMOCENTISTA. © 113 10. Angi Como em outros paises ikero-americanos era costume, mesmo oxire as pesieas mais modestas fazer grandes despesas ara o erterro de criangas, repuiadas por “anjishos” axé a idade anos. (Teen Baptiste Debret, Corteio de negritho, 1834) 10 preto de cadeirinha, sete 114 + HistORK Ds VDA FRI 1A NO BRASIL 2 Veste esta mortalha Quem mandé foi Deus: Quem mandé visti Foi a mae de Deus. Amarre este cordao, Quem mandou foi Deus; Quem mandou marré Foi a mae de Deus Bota este capuz, Quem mandou foi Deus; Quem mand buscar Foi a mae de Deus. E assim continuava com cada pega do vestudrio fiinebre: véu meia, sapato. Informa ainda César que sete deviam ser os né do cordao da mortalha, sendo rezado um pai-nosso ¢ um ave-maria para cada no, portanto um total de catorze prece: além do bendite, apenas nesse ritual de vestir.** O uso dessas mortalhas piedosas sugere um apelo a pro tecdo dos santos nelas invocados, e sublinha a importanci do cuidado com o cadaver na passagem para o Além, atencdi com a alma em sua peregrinacao expiatoria e com a ressur reicao no dia do Juizo Final. Vestir-se de santo representay. desejo de graga, imaginar-se mais perto de Deus, antecipan do participagio na Corte Divina. A roupa mortudria protegi 0s mortos e promovia uma integragao ditosa ne mundo de les, mesmo que ld © endereco nem sempre fosse 0 mesme Segundo um consul francés na Bahia, os escrayos africano que em 1890 se revoltarai cit Salvador usaram suas melho res roupas africanas na crenga de que, se morressem, retorna riam em espitito a suas patrias.” Uma vez adequadamente vestido, 0 morto estava pron: para o veldrio, que em geral acontecia na sala de sua propre casa, agora decorada com panos fiinebres. A “armagio da casa era muitas vezes de grande luxo e custosa, feita com tecido finos bardadas com fins de ouro e prata. Rico ou pobre. ca recia que até a hora do enterro o morto ficasse protegid: pelo ambiente lutuoso, mas sobretudo por agentes do lute Ele nao podia ser deixado s6, pois solitario tornava-se pres facil de maus espirites. Durante velério, as carpideiras con ‘Nesindne poser tinuavam seu labor, juntando-se a outras mulheres que reza. vam em voz alta, cantavam benditos e inceléncias, estas aos pés do defunto, aqueles i sua cabeceira.® Ainda mais do que na hora da morte, estranhos participavam de velorios ¢ cor tejos fiinebres. Arago cont o que Ihe cconteceu no Rio de Janeiro de 1817: Um homem me para em pleno dia pelo colete na esqui- na de uma rua. e me pede se nia quero the dar o pr: de acompanhar um pequeno Jesus a0 Céu, “Que se deve fazer para isso?” Me siga.” “Eu vos sigo.” n do enterro”: a charge de Humens Jtinior ironiza o bate formados em eventos sociais animados (Buzar Volante, 1865) 16 + HISTORIA DA VIDA >RIVADA NO BRASIL 2 Nos entramos em uma casa de bela aparéncia ¢ subi- mos ao primeito andar. Uma centena de velas acesas, num aposento dase [clasé?) iluminavam uma figurinha palida que duas damas enfeitavam de flores, fitas e pe- dras preciosas, enquanto uma rapariga Ihe maquiava as bochechas de um rosa brilhante [...] © senhor da casa me veio Leijar amao e me dar uma vela acesa.“' Convinhaa participagao de todos, e sem divida a de um estrangeiro branco devia render em prestigio para a familia cnlutada, A familia, amigos, vizinhos e estranhos manti- nham-se de olhos abertos, vigilantes, solidarios. Dai a ade- quacao do termo sentinela, termo militar — ali se travava uma batalha de morte — que com muita propriedade se usava em lugar de véldrio. E, para manter os vivos em estado de alerta, comida e bebida eram servidas. Wells escreveu so- bre 0 velério a que foi na remota Formosa: “Percebi que a agonia do peser era alimentada e sustentada por libag6es fre- qiientes ¢ liberais de cachaca’.* Os cortejos deixavam a casa com 0 pér-do-sol, como se © fim do dia fosse uma metéfora para o fim da vida, Esse horario tambem sugere associaces entre o sono € a morte. De qualquer forma, 1 sombra da noite aumentava a dramati- cidade dos funerais antigos, que podiam ser espetaculares, imitando as procissdes do Enterro de Cristo ou de Nossa Senhora da Boa Marte, em que miisica, fogos de artificio, comida e bebida abundavam. Funerais ficticios de imagens de cadaveres divinos, essas cerimOnias serviam de modelos para os funcrais dos humano: FUNERAIS-FESTAS Os brasileiros feziam da participagao nessas ceriménias obrigacao de fé, se nio um dos passatempos prediletos, con- forme o testemunho dos viajantes estrangeiros, os quais, pre= conceituases, principalmente as protestantes, esqnecidns de que em seus paises um dia a morte fora assim celebrada, viam naquilo indicia de atraso brasileiro ou superstigao caté- lica. A capacidade de mobilizer muita gente, por exemplo, era um sinal de prestigio do morto ¢ sua familia, um simbolo de poder secular, e a0 mesmo tempo uma protegao extra para a © COTIDIANO DA MOH alma do defunto, que podia se beneficiar das tezas da multi- dao. As familias ricas distribufam centenas de cartas-convites. ‘Uma vitiva do interior da Bahia escreveu um convite em que chamaya 0 destinatirio para “abrillantar” o funeral de seu marido.© Nessa época, meados do século, nos centros urba- nos ja se vendiam convites impressos. Mas s6 muitos anos depois comecaram a aparecer na imprensi os amincios de agradecimento aos que compareciam a funerais, como o da familia Alves que, em 1857, agradecia “a todos os amigos que se dignaram comparecer a0 acompanhameato do cadaver de sua mulher, filha, irma ete? Mas nao apenas os amigos participavam dos cortejos. Aqui a ruptura da cerca da vida privada se repetia com maior forga ainda. Juntavam-se pobres especialmente contratados, suediante esmolas com freqaéncia estabelecidas em testamen- tos, ou simples transeuntes, como aconteceu com Arago acima, que terminou acompanhando o “pequeno Jesus” até o lugar de sepultura. O mesmo aconteceu a Luccock, na mesma época € também no Rio, quando foi abordado na rua e praticamente intimado a carregar 0 caixdo de uma crianga morta. Ainda SOCVENTE SOUS DANS WO Prk Vane ere ‘ Maria abel de LAUEADA WEBNECK de CST Viscoudessa de ARCOZELLO Arne A ean Un § soomee M8 6 Tha te 72 ane Loe par ls Secrment Me Ege NO BRASIL OITOCENTISTA > 117 12, Memento da viscondessa de Arcozelle, redigida em francés. A panir do Segundo Reinado passou 4 ser pritica comum distribuir uma Tembrangu do rastto wes urrtiges ¢ parentes, (1912) 118 + HistO#s DAWA PRIA 13, Os membres das enandades inka velorios espects. lean Baptiste Deire: Corin finebre de um memim da Gafraria de Nossa Senhora daConcei¢io, 1834, Rio de Janeiro sobre o Rio, confirmava Ferdinand Denis: “Nao é somente 0 parentes ¢ amigos do defunto que acompanham 0 caixao; tod 0 individuo, vestido com decéncia, que ante a casa do falecidc passa, é convidado a pegar numa tocha e a seguir o enterro”* Denis especificava, porém, que tal comportamento eri mais comum nos funerais afluentes. Foi 0 caso do estudanti Feliciano Coelho Duarte, de importante familia mineira morto em Sao Paulo em 1850 e enterrado em grande estilo Ele sofreu o tipo de morte indesejada, pois se foi jovem, de doenca fulminante, talvez epidémica. Morte triste mas que protagonizou um grande funeral. Daqueles que naquele tem- po ficavam marcados na lembranga dos participantes. “Seu entero’, escreveu um colega mais tarde, “foi um desses acon- tecimentos que por muito tempo e por diferentes motivos nunca deixam de se conservar na meméria daqueles que 2 ele assistiram [...] 0 préstito ftinebre [...] pode-se dizer que ocupava toda ou quase toda aquela tio extensa rua.”” Nos melhores funerais da época, cada assistente recebia uma yela, pois, como escreveu Wetherell, que viveu na Bahia nes décades de 1840 © 1850, consideraya-se “um ponte de honra haver um grande consumo de cera num funeral”. Do ponto de vista ritual, a cera ajudava a abrir o caminho do morto nas trevas da morte, simbolizando 0 esvair-se da ma- téria, tunggo simblica que as vezes no chegava a desempe- nhar porque nao derretia por completo. Era entao reaprovei- tada para iluminar a noite dos vivos, Podia ser vendida ou trocada na taverna da esquina, mais um incentivo para que 0s pobres acompanhassem os funerais que cotidianamente encontravam em suas andangas pela cidade. No interior, 2s velas eram bens escassos muito caros, como testemunhou Pohl em um arraial de Goias, ao escrever sobre negros que viviam remexendo seu batt a procura delas.” Em 1827, Sei- dler obseryou a respcito de soldados convidados a paiticipar de um enterro no interior gaticho: “Nao se fizeram de roga- dos, pois podiam depois ficar com as velas e na primeira venda barganharem-nas em troca de alguma coisa que lhes apetecesse’." Pessoas pobres como aqueles negros e estes sol- dados eram freqiientadores profissionais de funerais, as vezes zontratados as centenas para acompanhar o féretro em troca Je velas e comida. Em Salvador, os pobres se organizavam em grupos liderados por capatazes responsiveis pela distribuiga das esmolas. Os capatazes tinham até registro na Camara mu- iicipal. Os pobres serviam aos ricos vivos e também quando :stes morriam, Suas preces eram tidas como subremaneira ef -azes por serem eles, supostamente, escolhidos de Deus, con- ‘orme rezava a Sagrada Escritura.’" Feitos de velas e pobres, além de outros elementos, esses unerais em grande estilo nao eram necessariamente 0 me- hor expediente para uma vida eterna feliz, mas com freqién- ia funcionavam como uma solu;io para a dor dos sobrevi ventes. A literatura ficcionista reprecentan diversas vezes esse entimento. Em As vitimas-algozes (1869), Joaquim Manuel le Macedo comenta o funeral organizado para a esposa pela versonagem Paulo Borges, o qual a traia com uma escrava Juc; cin duscs humeopaticas, a cuyenenara secretamente: “O narido adultero supés enganar a Deus e 20s homens, ¢ talve2 si mesmo, dando aos restos mortais de sua santa mulher onras finebres suntuosas, esmolas aos pobres, missas, e paratoso oficio do sétimo dia’.”” TIDANO DA MORTE NO BRAS OMNOCENTISIA © 119 14, Une esquife rrabathado onde cna transportades os mottos. Pertencew i Igreja de Sao Pedro dos Clériges, on Mariana, Minas Gerais. Muito usado petas irtnandades locais, foi fabricado to final do sécula XVI.

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