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Capitulo IIT ESTADO, ELITES E CONSTRUGAO DO DIREITO NACIONAL Tendo problematizado, inicialmente, que as fontes, idéias e institutos do moderno legalismo da sociedade burgués-capitalista advieram de uma cultura liberal individualista, legitimada e formalizada pelo poder estatal soberano, procurou-se, num segundo momento, apreciar a transposigdo da legalidade européia, configurada na variante do Direito Portugués para o Brasil-Colénia, Com isso, assinalou-se, de um lado, a sufocagdo do Direito native informal e a imposigio de uma regulamentagao alienigena; de outro, a consolidagdo de um estatuto normative montado para defender os interesses da Coroa e colocado em agdo por uma elite de profissionais bem treinados que se articularam mediante priticas “burocritico-patrimonialistas”. Toma-se imperioso, agora, refletir sobre a historicidade da formacdo de uma cultura juridica nacional que se fez necessaria e que se imps a partir da Independéncia do pais, em 1822, Trata-se de apreciar de que maneira o liberalismo acabou constituindo-se na mais importante proposta doutriniria de alcance econdmico ¢ politico, bem como de que forma suas diretrizes se manifestaram no bojo de um saber irradiado com a fundagdo das primeiras escolas de Direito, na criagdo de uma elite juridica propria ¢ na construgdo de um arcabougo legal positivo, durante 0 Império ¢ o inicio da Repiblica, Ha de se considerar, liberalismo e, primeiramente, a natureza, a especificidade e as contradigées posteriormente, sua presenga e contribuigio na edificagdo da ordem nacional e na profissionalizagdo dos agentes juridicos. 3.1, O liberalismo pitrio: natureza e especificidade © liberalismo emergiu como nova concepgio de mundo, impregnada de prineipios, idéias e interesses, de cunho individualista, “traduziveis em regras e instituigdes” e vinculado “a condugao e a regulamentagdo” da vida pessoal em sociedade. ‘A doutrina global do liberalismo, em grande parte cultivada por segmentos da burguesia em ascensio contra o absolutismo monarquico, nao s6 reproduziu as novas condigdes materiais de produgdo da riqueza ¢ as novas relagdes sociais direcionadas pelas necessidades do Cf BOBBIO, 1986, p. 116. Norberto. O Futuro da Democracia: uma Defesa das Regras do Jogo. Rio de Janeiro: Paz ¢ Terra, mercado, como, sobretudo, tomou-se a expresso de uma liberdade integral presente em diferentes niveis da realidade, desde 0 ético até 0 social, o econémico e 0 politico. © exame de seu contetdo conduz, na correta observagio de Roy C. Macridis, 20 reconhecimento imperative de alguns tragos essenciais centrados em nicleos “ético- filoséfico”, “econdmico” e “politico juridico”? A dimensio “ético-filoséfica” do liberalismo denota “afirmago de valores ¢ direitos basicos atribuiveis 4 natureza moral ¢ racional do ser humano”. Suas diretrizes assentam nos principios da liberdade pessoal, do individualismo, da tolerancia, da dignidade condi da crenga na vida. 14 0 aspecto “econémico” refere-se, sobretudo, & es que abrangem a propriedade privada, a economia de mercado, a auséncia ou minimizago do controle estatal, a livre empresa e a iniciativa privada, Ainda como parte integrante desse referencial, encontram-se os direitos econémicos, representados pelo direito de propriedade, o direito de heranga, o direito de acumular riqueza e capital, o direito 4 plena liberdade de produzir, de comprar ¢ de vender. Por iltimo, a perspectiva “politico-juridica” do liberalismo esta calcada em prinefpios basicos como: consentimento individual, representagdo politica, divisio dos poderes, descentralizago administrativa, soberania popular, direitos e garantias individuais, supremacia constitucional e Estado de Direito. Tendo presente essas assergdes genéricas, melhor se pode compreender as ambigiiidades e os limites do liberalismo brasileiro, porquanto, desde os primérdios de sua adaptago e incorporagdo, teve de conviver com uma estrutura politico-administrativa patrimonialista e conservadora, e com uma dominagao econémica escravista das elites agrarias. Nao sem razo, comenta Emilia Viotti da Costa, nao se deve realgar em demasia a importincia das idéias liberais européias nas convulsées sociais ocorridas no Brasil (nconfidéncia Mineira, Revolugdo Pernambucana etc.), desde fins do século XVILL, pois tais movimentos nao chegaram a ter grande alcance ideolégico. Tal realidade é comprovada porque a nova doutrina era de conhecimento limitado entre determinados segmentos revoluciondrios, uma vez que a maioria da populacdo era mantida analfabeta e alienada para que nao viesse a ter verdadeira consciéncia das concepgdes importadas.* © que sobretudo importa ter em vista é esta clara distingdo entre o liberalismo curopeu, como ideologia revolucionéria articulada por novos setores emergentes ¢ forjados na luta contra os privilégios da nobreza, e o liberalismo brasileiro canalizado e adequado para * MACRIDIS, Rey. Ideologias Politicas Contempordneas. Brasilia: UnB, 1982, p. 38-41. * Cf VIOTTI DA COSTA, Emilia, Da Monarguia di Repiiblica: Momentos Decisivos. 3. ed. Sio Paulo: Brasiliense, 1985, p. 26-27 servir de suporte aos interesses das oligarquias, dos grandes proprietirios de terra e do clientelismo vinculado ao monarquismo imperial. Essa faceta das origens de nosso liberalismo & por demais reconhecida, indubitavelmente, porque a falta “de uma revolugo burguesa no Brasil restringiu a possibilidade de que se desenvolvesse a ideologia liberal nos moldes em que gt ‘ocorreu em paises como Inglaterra, Franga ¢ Estados Unidos”.* Nesses paises, o liberalismo foi a doutrina politica libertadora que representou a ascensio da burguesia contra o absolutism, “tomando-se conservadora 4 medida que a burguesia se instala no poder e sente-se ameagada pelo proletariado”.* J4 no Brasil, o liberalismo expressaria a “necessidade de reordenagao do poder nacional e a dominagdo das elites agrérias” processo esse marcado pela ambigiiidade da jungdo de “formas liberais sobre estruturas de contetdo oligarquico”, ou seja, a discrepante dicotomia que iria perdurar ao longo de toda a tradigo republicana: a retérica liberal sob a dominagio oligérquica, 0 contetido conservador sob a aparéncia de formas democriticas.® Exemplo disso é a paradoxal conciliagio “liberalismo-escravidao”. Na verdade, como aponta Viotti da Costa, a principal limitagao ao liberalismo brasileiro foi sua peculiar convivéncia com a institucionalizagdo do escravismo, Nessa situago oficial atipica soariam falsos e inécuos os alardes em prol “das formulas representativas de governo, os discursos afirmando a soberania do povo, pregando a igualdade a liberdade como direitos inalienaveis e imprescritiveis do homem, quando, na realidade, se pretendia manter escravizada boa parte da populagio e alienada da vida politica outra parte”.” Eram profundamente contraditérias as aspiragdes de liberdade entre diferentes setores da sociedade brasileira. Para a populacdo mestiga, negra, marginalizada e despossuida, © liberalismo, simbolizado na Independéncia do pais, significava a aboligdo dos preconceitos de cor, bem como a efetivagdo da igualdade econémica e a transformagao da ordem social. J4 para os estratos sociais que participaram diretamente do movimento em 1822, o liberalismo representava instrumento de luta visando a eliminagao dos vinculos coloniais. Tais grupos objetivando manter intactos seus interesses ¢ as relagdes de dominagdo interna, no chegaram a“reformar a estrutura de produgdo nem a estrutura da so ciedade. Por isso, a escravidao seria mantida, assim como a economia de exportagio”. *WOLKMER, Antonio Carlos. Ideologia, Estado Direito. Sao Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, p. 97. § GANDINI, Raquel C. Tecnocracia, capitalismo e educagdo em Anisio Teixeira. Rio de Janeiro: Civilizagao Brasileira, 1980, p. 134, ® WEFFORT, Francisco. O Populismo na Politica Brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, p. 108-112. 7 VIOTTIDA COSTA, Emilia, Op. ct. p. 28-29. * VIOTTIDA COSTA, Emilia. Op. cit, p. 33; “Liberalismo Brasileiro, uma Ideologia de Tantas Caras”. Fotha de Sao Paulo, 24.02.1985, Folhetim, p. 7. Naturalmente superada a fase da luta emancipadora ¢ do ajuste do sistema pés- independéncia, os segmentos sociais que se apropriaram da ideologia importada canalizaram- na num sentido, ora de mudanga (setores que sero excluidos e superados), ora de conservagao (facgio da restauragéo e da conciliagao). As circunstancias favorecem 0 atrofiamento e 0 banimento do verdadeiro liberalismo (aos moldes franceses), restando 0 “absolutismo mascarado de D. Jodo VI e de D. Pedro I, (que...) desclassificou todas as concepgGes liberais autenticamente liberais. (..) © absolutismo reformista assume, com 0 rétulo, 0 liberalismo vigente, of I, © qual, em nome do liberalismo, desqualificou os liberais, Os liberais do ciclo emancipador foram banidos da histéria das liberdades, qualificados de exaltados, de extremados, de quiméricos, teéricos e metafisicos”.” Estado liberal brasileiro, como qualifica Trindade, nasceu “em virtude da vontade do proprio governo (da elite dominante) e no em virtude de um proceso revolucionério”. O liberalismo apresentava-se, assim, desde inicio, como “a forma cabocla do liberalism anglosaxdo” que em vez de identificar-se “com a liberagdo de uma ordem q absolutista”, preocupava-se com a “necessidade de ordenago do poder nacional” Analisando sua especificidade histérica, Emilia Viotti da Costa reconhece no liberalismo brasileiro uma “ideologia de tantas caras”, que se estruturou ao longo do século XIX, sendo usada em momentos distintos “por diferentes grupos sociais, com intenges diversas”, Das virias facetas assumidas pelo liberalismo, como 0 “herdico” (proprio dos movimentos emancipatérios anteriores. 4 Independéncia), 0 “antidemocritico” (os revoluciondrios da primeira Constituinte), 0 ‘“moderado” (adeptos da monarquia constitucional), 0 “radical” (reformistas do periodo da Regéncia), pode-se dizer que acabou pondo-se o liberalismo de tendéncia “conservadora”, praticado por minorias hegeménicas antidemocriticas, apegadas as praticas do “favor, do clientelismo e da patronagem”."” Igualmente, a retérica conservadora sobre o liberalismo democratico projetou-se como imaginario simbélico, destituido de historicidade real, pois na correta adverténeia de Décio Saes, 0 liberalismo politico das oligarquias “fundava-se numa concepgdo de democracia representativa sem nenhuma relagio com a representatividade da vontade popular; tratava-se, ao contrario, de uma concepgao elitista que negava as massas incultas a * PAORO, Raymundo, Existe um Pensamento Politica Brasileiro? $0 Paulo: Atica, 1994, p. 82-83. Para aprofundamento, consultar: BOST, Aliredo, Dialética da Colonizagdo, Sio Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 194-245, " TRINDADE, Hélgio. “Bases da Democracia Brasileira: Légica Liberal e Praxis Autoritaria (1822-1945)”. Jn Lamounier, Bolivar e¢ ali. Como Renascem as Democracias, Sio Paulo: Brasiliense, 1985, p. 67 VIOTTI DA COSTA, Emilia. “Liberalismo Brasileiro, uma Ideologia de Tantas Caras”. Op. cit., p. 7; Da Monarquia d Repibiica, Op. cit, p. 121-138 capacidade de participasio no proceso decisério e atribuia aos homens letrados a responsabilidade exclusiva do funcionamento das instituigdes democriticas”."” A rigor, tendo em conta uma leitura conservadora de liberdade, as minorias agré ias enquanto segmentos hegeménicos concebiam 0 jogo democritico como “uma espécie de clube aristocratic do qual as massas rurais ¢ urbanas deveriam ser descartadas em virtude de sua ignorincia, oi incapacidade e imaturidade’ De resto, se dermos 1 lito aos argumentos de Roberto Schwarz, as idéias estavam “fora do lugar”, uma vez que a presenca da escravidio e de priticas alicergadas no favor € no clientelismo esvaziavam ¢ tomavam inadequadas as concepgdes liberais. A escravidio desfazia e desmentia as diretrizes de liberdade e de direitos fundamentais permitindo que o discurso oficial, oco ¢ deslocado, refletisse idéias liberais que “ndo podiam praticar, sendo ao mesmo tempo indescartiveis. Foram postas numa constelagao especial, uma constelagdo pritica, a qual formou sistema e nio deixaria de as afetar”.'* Ademais, na trajetéria de sua reprodugdo social, 0 Brasil iria por e repor “idéias européias, sempre em sentido impréprio”.'* Enfim, a tradigdo das idéias liberais no Brasil no s6 conviveu, de modo anémalo, com a heranga patrimonialista e com a escravidio, como ainda favoreceu a evolugio retérica da singularidade de um “liberalismo conservador, clitista, antidemocratico ¢ antipopular”, matizado por priticas autoritdrias, formalistas, ornamentais ¢ ilusérias.'® 2. O liberalismo e a cultura juridica no século XIX Com a Independéncia do pais, o liberalismo acabou constituindo-se na proposta de progresso e modemizagio superadora do colonialismo, ainda que, contraditoriamente, admitisse a propriedade escrava ¢ convivesse com a estrutura patrimonialista de poder. Ao conferir as bases ideolégicas para a transposigio do status colonial, 0 liberalismo nao s6 se tomou componente indispensével na vida cultural brasileira durante o Império, como também na projestio das bases essenciais de organizago do Estado e de integragdo da sociedade nacional." Entretanto, o projeto liberal que se impés expressaria a vitéria dos conservadores ? SABES, Décio. Classe Média e Sistema Politico no Brasil. Sio Paulo: T, A. Queiréz, 1984, p. 48, * thidem “ SCHWARZ, Roberto, “As Idéias Fora do Lugar”. Cadernos Cebrap. Sio Paulo, n3,1973, p. 153-159. ® SCHWARZ, Roberto. Op. cit, p. 160. NOGUEIRA, Marco Aurélio. As Desventuras do Liberalismo. Rio de Janeiro: paz e Terra, 1984, p. 67. ” Cf. ADORNO, Sérgio. Os Aprendizes do Poder. Rio de Janeiro: Paz ¢ Terra, 1988, p. 34-35,45; SALDANHA, Nelson, “Rui Barbosa e o Bacharelismo Liberal”, In: As Idéias Politicas no Brasil, CRIPPA, Adolfo (coord) Sio Paulo: Convivio, 1979, v. 1. p. 164.

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