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Catalogagao na PublicagZo ~ Biblioteca Nacional Col6quio ACT 12—Romances de Aledcer Quibir. Lisboa, 2004 a ACT 12 — Romances de Alcécer Quibir / CoKiquio ‘ACT 12... ; org. Kelly Basilio. ~ (ACT :alteridades, ‘eruzamentes, transferéncias ; 12) ISBN 972-772-6526 978-972-172-652-3 1-Basilio, Kelly, 1944- CDU_ 821.411.16(46)"04/14".09(042) 0613 ACT 12 . Romances de Aledcer Quibir Organizagio: Kelly Benoudis Basilio Eaigio: Ed, Colibri/C, Est. Comparatistas Capa: Ricardo Moita Exccuglo Grifiea: Colibri ~ Artes Graficas, Lda Depésito Legal ns: 244 605/06 ‘Tiragem: $00 exemplares. Lisboa, Setembro de 2007 Para uma arqueologia melédica do romanceiro de Aledcer Quibir Manuel Pedro Ferreira Universidade Nova de Lisboa Conheci Kelly Basilio, se bem me lembro, num restaurante perto da Cidade Universitéria; foi af que, lembrando-se do programa radiofénico que cu dedicara 8 imisica sefardita, me falou pela primeira vez dos romances que se cantavarn tia sua familia, instalada durante anos na cidade marroquina de Aledcer Quibir (Ksar-al-Kibir), Fiquei imediatamente interessado em ouvi-los; mas s6 alguns ‘anos depois, no momento em que fiz @ sua recolha sonora, viria a ter essa opor- tunidade.! © mew interesse era primordinimente cle orem estético-musical; assim sendo, ndo fiquei desiludido, j& que o repertério de Kelly Basilio & de uma riqueza melédica pouco comum. Nesta comunicagao, procurei por analitica- mente em ordem as minhas impressdes sobre 0 seu nicleo principal, reconstitui- do a partir da meméria familiar e dos apontamentos da mile: as vinte e trés ‘melodias correspondentes ao Cahier de Clara Benoudis Benhamrén, aqui identi- ficadas pelo primeiro verso do texto correspondente, Devo dizer & partida que, perante alguma inseguranga preliminar de Kelly Basilio quanto A atitude vocal a tomar no canto desse repert6rio (jé que a sua experigncia de coralista amadora Ihe tinha dado a possibitidade de experimentar uma postura vocal de tipo cléssico, com a correspondente aura de prestigio), procure’ transmitir-Ihe, anteriormente e durante as gravapSes, total confiana no estilo vocal que era tradicional no seu meio familiar. Nao estou, porém, em condigdes de avaliar até que ponto & que 0 seu desejo de aproximacao a esse estilo conseguiu evitar toda a influéncia coral. 44 a fidelidade as melodies, tal como tinham sido memorizadas, era um valor 4 partia totalmente interiorizado pela cantora, na confluéneia da sua formagio académica e de uma clara vontad de reencontro das raizes; nesse aspecto niio houve qualquer intervengdio da m 1 As gravaptes, de cardcter no profissional, fram relizadas numa cass de eras, em Galemares {Sintra e na casa do autor, en Lisboa, a 27 de Dezembro de 2003, 11 de Jansto e 13 de Feve+ reiro d2 2004, O equipement usido foi wn gravador port dgitl (formato DAT) Sony TCD- 8, com um microfone de lapela Sony PC-82,herdado de um antigo gravador analégico para ceases dud, 202 Act 12 — Romances de Aledcer Qu nha parte, Também no houve qualquer intervengdo na selecgao das melodias ou das suas versdes, A andlise das gravagdes que me propus fazer para 0 col6quio “Romances de Aledcer Quibir” parte da convieedio de que & possivel esbocar uma estratografia ‘musical do romanceiro, ou seja, distinguir aproximadamente, recorrendo a dados comparativos externos, camadas estilisticas diversamente situadas no espago no tempo. Esta estratografia ndo procura isolar momentos de composigao, mas sim estilos de composicdo. Um estilo surge numa determinada regio e num determinado momento, formando um molde reutlizivel; outro estilo surge nou- tra ocasido, fomecendo outro molde de composigao. As matrizes esilisticas assim acumuladas, prolongando-se no tempo, criaim um efeito sinerénico de caleidoscépio. Essa acumulago sincronica de matrizes estiisticas, cada uma com origem num determinado espago e tempo histéricos, é semelhante ao que Podemos encontrar numa catedral onde se acumulem intervengdes arquitecténi- cas ¢ artisticas de diversas épocas e origens; mas é também dissemelhante, ne medida em que essa coexisténcia de matrizes produz, na tradigao oral, fenéme- nos de contaminagao, conflagao ou sobreposi¢ao de materiais; e dissemelhante, ainda, porque a realizagdo sonora de um repertério é filtrada pelo estilo inter- pretativo, ele mesmo fruto de condigées histéricas particulares, e pode afectar ercepedo e 0 cardcter do estilo composicional revelado na estrutura mélica, na construgo melédica e na ordenardo ritmica. E assim necessirio que se analise separadamente, tanto quanto possivel, a organizagdo musical (em sentido lato) ¢ © estilo interpretativo, havendo contudo casos em qui estes dois niveis estao de tal manera entretecidos que nao ¢ vidvel essa distingao sem o recurso a dados ‘comparativos internos & propria tradicao. De facto, os elementos comparativos a que se pode recorrer para situar uma ‘composigtio podem ¢ devem incluir, idealmente, a disseminacao temporal ¢ geografica da toada, a sua insergo ot nfo numa tipologia melédica convencio- nal, 0 seu estatuto dentro da tradigdo local ou da tradigao mais geral do roman- ceiro e a documentagdo sobre contextos e estilos de execusdo; contudo, estes so dados que a minha posiego exterior & especialidade me impede aqui de ter em conta, pelo que me limitaret a uma andlise sumaria, preliminar, dos contetidos musicais do Cahier de Clara Benoudis Benhamrén, atendendo apenas a dados comparativos de earicter mais geral. Cruzando esta andlise com as informagdes veiculadas por outros conferencistas, poder-se-4 formar uma ideia mais precisa da natureza do repertério. Reportando-me num primeio momento apenas as estruturas mélicas (tal como as entendo), distinguirei dois grandes grupos de melodias: as de cardcter cidental, que so a esmagadora maioria, e as de cardcter oriental. Ora, mesmo esta simples distingdo ja estéerigada de dificuldades. Marrocos fica no extreimo ocidental de Attica, tal como a peninsula ibérica € ocidental relativamente a0 resto da Europa; mas enquanto a cultura europeia define, em sentido mais lato, 0 ‘Ocidente,” Marrocos é um pais marcado pela cultura drabe e pelo Isldo. ‘Océ dental’ 6 aqui uma categoria geogritica independente de identidades religiosas, Gtnicas e politicas, mas também uma categoria cultural. Onde tragar a fronteira Para uma arqueologia melédiea do romanceiro de Aledcer Quibir 203 entre metodias orienta e ocidentais, sabendo-se dos séculos de permanente vai- ‘véin cultural entre 08 dois extremos do Mediterraneo, bem como da tensio hostilidade histériea entre a Europa cristl ea Africa islamizada? Creio que uma fronteira estilstca regional se desenhou claramente a partir do século XIII, que foi a varios tinulos um importante ponto de viragem na histé- ria da musica mediterrinica, E nesse século que se afirma, a Oriente, o sistema modal de magam que domina até hoje a miisica da érea islimica, do Turquisttio 4 Tunisia; a sua penetrago é menos pronunciada na Argélia e sobretudo em Marrocos, onde « presenca berbere & forte e a tradiglo clissica de corte tem origem ocidental. Foi na sequéncia do avango da reconquisia cristd na peninsula ibérica, em meados do século XIIL, que a tradido cléssica andaluza se enraizou definitivamente no Magrebe. Neste sentido, a fronteira entre Ocidente ¢ Oriente ‘encontra-se na oposigo entre as modalidades diat6nicas documentadas em todo ‘0 espago meditertinico, desde a Antiguidade, ¢ as modalidades nao diaténicas acolhidas no sistema de magam, a partir do século XII; tal frontera também se reencontra nos modelos de composig4o associados ao magam, modelos que privilegiam a variaga0 nao direccional, de cardcter improvisatorio, a partir de ‘uma eélula melddica de Ambito tetracordal ou pentacordal, em oposigao as subi- das e descidas em arco do melodismo ocidental ou 20 modelo, mais antigo, de expansio ornamental de uma recitagfo, ou ainda a deseida melédica em patama- res das camadas mais arcaicas do folclore. também na segunda metade do século XIII que @ miisica do Ocidente ccuropeu se separa, até a0 século XX, do destino da testante masica mediterrani- a, com 2 definitiva afirmagio da polifonia, apoiada num sistema de notagao ‘mensural como forma privilegiada de invengdo musical, e a concomitante for- rmalizagdo artistica do ritmo, progressivamente emancipado relativamente a formulas melédieas e a padeBes convencionais. Neste sentido, um ritmo estrita- ‘mente padronizaco, tal como um ritmo assimétrico ou nao estritamente medido, remete ou para o Driente ou para realidades ovidentais anteriores a 1300, As distingées esilisticas assim esbogadas pecardo certamente por algum simplismo; a realdade & sempre mais complexa e matizada do que o observador distante consegue perceber. Para dar s6 um exemplo, as excepsdes a um diato- nismo estrito existiam certamente, a Ocidente como a Oriente, muito antes do século XII Tanbém 0 estado do conhecimento histérico coloca limitagdes inguperdveis. Assim, devido as incertezas relativas aos periodos mais recuados da misica bizantina, particularmente entre 1300 € 1450, ¢ preferivel por entre paréntesis a quesito da sua evolugdo modal, que podera ter conhecido ja entio as segundas aumentadas normalmente associadas a0 magam. Apesar de tudo, creio util manter provisoriamente, como sugestio orientadora, uma distingio centre caracteristicas musicais ocidentais e orientais, porque permite concentrar a ‘tengo em diferengas reais e bem audivels e langar uma hipétese verosimil sobre a sua origem. A misica sefardita ¢, primitivamente, ocidental, mas a dids- pora e a longa tredigto oral tomaram-na permeavel és mais diversas influéneias ¢ sujeitaram-na a continuas reformulagdes e enriquecimentos, pelo que a questo das origens musicais deve ser recolocada caso a caso. 208 Act 12 Romances de Aledcer Quibir Com caracteristicas clara ou tendencialmente orients e aie de it, somente dias melons, de Exo era una Flmena oa priela dos cantares de boda, Este dia la nuestra novia, Esto era wa Filomena € wna conti- tua veriagio em tomo de um intervalo de quart, sol-dd, preenchido diversa- mente em situagdo ascendente ou descendent: nas descidas, surge uma segunda aiumentada entre sie I bemol; a extensio do ambito para o agudo até mi bemol cria uma quarta diminuta com o si. O cantar de boda, de pulsagdo muito mareada ¢ modalidede de Ré, tem uma primeira frase em euja cadéncin a entoagao da tereeira menor acima da final é sistematicamente abaixada de cerca de um {quarto de tom; o resto da melodia é, em grande medida, uma variaglo livre sobre © tetracorde diaténico entre sole ré. A parte estas duas melodias, que facilmente se inserem dentro da modalidade e dos modelos composicionais orientais, as restantes vine e una podem bem entenderse ¢ expcarse den do fio Gala mise do Ose «da mca meses anor &aimacto ‘Numa abordagem preliminar, proponho-me clasifiear estas metodias em trés grupos: (1) modernas, (2) atigas, (3) mistas ou ambiguas. As mielodias moder- nas, ou seja, aquelas que reflectem a evolugdo da estrutura tonal ea organizagdo métrica da misica europeia de finais do século XVII em diante, incluem as dos fomances Una tarde de Verano, La reina Cherifa mora, El rey moro tenia in hijo, En ta bella Zaragoza, a segunda versio melédica de Este sevillano e 0 segundo canard bods, dns se me arrino, bm somo a cango espanola Clarins meloi aigas 0 sj, ue retlizam mates elites ntadas na Idade Média e no Renaseimento ou cujos arquét jee- tam necesariamente num passa ainda mas longinquo, sto as ds romances Qué se piensa a la reina e Ay que rueda, ambas na modalidade de Ré ou Lé (a primeira com alteraglo ascendente do 3° grau, a segunda com o 6° grau mével)s Todas las aves dormian (igual & primeira melodia de Yo me levantara un lunes), Exams Oo lemons rss leer aioe tte so eels Mi (a ikima com 6° grau mével, dé sustenido na subida de lia 8); En la chudad de Toledo e Levantdivos muera, na modalidade de Fé ou Dé; e mais tré3 na modalidade de Sol, Quien tuviera tal fortuna (Gerineldo), A caza va el caballero 4 primeira versdo de Este sevillano Estas metodias antigas estéo as vezes intimamente entretecidas com a orna- mentagdo, solidéria com um certo estilo interpretativo; ovtras vezes mantém ‘uma base estrutural simples ¢ relativamente rua. A facetaestrutural mais sim- ples pode ser exemplificada pela melodia do romance Gerineldo, com 0 seu {mbito de quinta periita estruturado em cadeias de tereiras; ha uma onnamen- tag localizada que nao chega a ocultar a estrutura (Sol, sol, si, sis, 6, d,s etc.) A faceta mais omamental encontra-se em Todas las aves dormian, onde & estrutura intervalar, formada pelos tetracordes conjuntos mi, ier, é submer- sida por caseates de notas, apogiaturas e apoios na subcfinal; a expansdo assi- miétrica de uma frase através da unio de dois versos e a respiragdo a meio de palavra sio outros sinais de antiguidadeestilfstica. Para uma arqueologin melédica do romanceiro de Aleécer Quibir 205 ‘Dentro deste grupo ha ainda a destacar, para além do cardcter modal de base diaténica e da construgo melédica em arco (ou, no caso de Presa llevan a Bel- fico, om patamares descendentes), as particularidades riimicas e métricas. Ritmicamente, terros padronizagao estrita 20 estilo medieval em A cazar va el ‘caballero; o metro binério é algo alterado por uma ligeira oscilagio do tempo na realizaglo sonora, o que pode sugerir compassos assimétricos. Em Levanidivos huera temos uma ligeira irregularidade © irracionalidade na subdivisio do tempo, com alternincia entre divisdo ternria (2+1) e bindria (I+1) de uma pal- seqdo invariével. Fenémeno diverso & a alternincia entre compassos binrio Simples (2/4) e binério composto (618) na orgenizagdo métrica da primeira ver- sto de Evte sevillano: ai é a pulsagio métrica que Varia, nfo 0 valor ritmico dos seus componentss. Finalmente, nc grupo de cantos de carécter misto ou ambiguo, coloco as melodias de En la ciudad de Madrid, Abrisme cara de rosa, Al pasar yo por la ‘alle e La donzella guerrera. Esta classificagio pode reflectir tanto a moderni- Zagdo de uma toada antiga (talvez o ¢as0 de En la ciudad de Madrid, com a Sensibilizagio do grau inferior ao alvo cadencial) como uma real aculturago de nelodias modernas através da aplicagao interpretativa de idiomatismos tradicio- nais (possivelmente o caso da 2* aumentada que aparece em La doncella guerre- tra); poderé ainda exprimir a perplexidade do analista ao ser incapaz. de devil fa base da informagio disponivel, entre leituras alternativas. Perante uma toada como ade Al pasar yo por la calle, &se primeiramente impressionado pela ap- Tente modemidade da estrutura melodica e depois pelo arcaismo da ornamenta- ‘plo e da volta final. Abrisme eara de rosa é compativel com a modalidade de Ré, mas também com uma classificagdo em Sol menor sem sensivel (e com 0 7* {rau superior abaixado), sendo a omamentago, em todo 0 caso, tradicional ‘Melodias claramente modemnas podem combinar-se as vezes com um estilo interpretative de cariz arcaico; podem também apresentar solugdes. formais pouco usuais, com precedentes antigos. A segunda versdo, moderne, de Este Fevillano tem una construgio melodica cujo caricter ciclico Ihe & dado pela finalizagao no 3° grau da escala maior em que esta vazada a melodia. Um pro- ‘cesso semelhante, a finalizagio no 2° grau, pode encontrar-se noutro romance, de caracteristicas melédicas globalmente mais antigas apesar de alguma possivel contaminagdo estlstica, Zn la ciudad de Toledo, Evitar a final do modo para feforgo da continuidade musical de uma composigdo estrOfica é win truque onstrutivo que se pode encontrar jé no século XIII — por exemplo na Cantiga de Santa Maria n? 250, que termina no 3° grau do respectivo modo (Ferreira 2001, 187-208 [190 e nota 12). ‘Em suma, as melodias deste terceiro grupo pdem em evidéncia os limites de ‘uma compreensio preliminar do repert6rio cujo horizonte seja exterior a tradi {do em eausa e exigem um trabalho analtico-comparativo mais aprofundado ¢ focalizado. Nao podendo dar por ora esse passo, acrescentarei apenas que tal trabalho supde uma clara caracterizagio dos perfis melédicos encontrados nas varias tradigSes do romanceiro, especialmente as marroquinas, ¢ uma nao menos jturada caracterizagio dos estilos interpretativos legados pela tradigdo. No que Tespeita a0 estilo herdado por Kelly Basilio, € para mim evidente 0 sou 206 Act 12 — Romances de Alescer Quibir arcaismo, que se manifesta na ornamentagio profusa, normalmente fluida ¢ {quase sempre no medida — como em muito do canto medieval anterior a 1300 ~ bbem como no frascado aparentemente caprichoso, que passa pela ligasdo do final de uma frase ao inicio da seguinte, com pausa no interior do verso, fre- quentemente no interior de silaba, e retoma do mesmo som voeilico (como no cante alentejano) ~ 0 que leva a uma expansio assimétrica das frases ¢ a nfo coincidéncia entre segmentagio musical e textual. S6 a possibilidade de apreciar ¢ tio imprevisivel e raro, teria justificado o esforgo de recupera- cio da memria familiar em boa hora protagonizado por Kelly Basilio. Obras Citadas Ferteia, Manvel Pedro, 2001, Afinidades musicais: as cantigas de loor ea lirica profana sgalego-portuguesa. In Meméria dos afectos. Homenagem da cultura portuguesa a Giuseppe Tavani. Edigio de M. Simbes, . Castro ¢ J, Correia. Lisboa: Colibri

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