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CONSTRUCAO — DESCONTRUGAO — RECONSTRUCAO Tania Guerra* RESUMO Este artigo visa entender a relacdo entre arquitetura e fi- losofia desconstrutivista, bem como a analisar as conseqiién- cias que uma incorporagio deste discurso pode trazer para a pratica da profissdo. Para tanto, examina o projeto do Pare de la Villete, em Paris, realizado pelo arquiteto Bernard Tschumi € a contribuigiio-colaboragiio do fildsofo Jacques Derrida em sua elaboragdo. Palavras-chave: arquitetura; filosofia; desconstrucio; Parc de la Villete; Tschumi; Derrida. ABSTRACT This article aims at understanding the relationship be- tween architecture and deconstructive philosophy, as well as analyzing the consequences of the incorporation of such dis- course to the practice of the profession. For that, it examines Bernard Tschumi’s project for the Parc de la Villete, in Paris, and the contribution-collaboration of Jacques Derrida in the making process. Key-words: architecture; philosophy; deconstruction; Parc de la Villete; Tschumi; Derrida. *, Mestre em Teoria e Histéria da Arquitetura pela Universidade McGill, Montreal, Canada, Douto- randa do Programa de Pés-Graduagao em Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brast 105 CADERNOS ParAaNoA “Nao esquegamos que existe uma arquitetura da arquitetura. Mesmo. na sua fundagdo arcaica, o conceito mais fundamental de arquitetura foi construido.” Jacques Derrida A filosofia da desconstrugao tem sido cada vez mais relacionada 4 pratica arquiteténica, gerando dificuldades com relagdo ao signifi- cado que o termo pode adquirir para a profissdo. Arquitetura implica construgao. Nao s6 em seu aspecto fisico - enquanto materializagao de uma idéia -, mas também em seus fundamentos conceituais - base e fundagao de toda arquitetura. Compreendé-los e domind-los & es- sencial para 0 exercicio profissional. Edificagdes sem valor simbé- lico, sem vinculo com a tradigao arquiteténica, sem relagéo com o local, com a época e a sociedade em que foram construidas, tornam- se meras construgées: dispensdveis e, muitas vezes, inapropria cenario urbano. A arquitetura € produto sdécio-cultural. Expressa os valores, crengas e conhecimentos, bem como o momento histérico da cultura que a produz. Por este motivo necessita, para legitimar-se, da intera- ¢4o com outros campos do saber. Neste contexto, compreender o significado da teoria descons- trutivista, assim como as possibilidades que ela oferece para a pratica da profissao, torna-se imprescindivel. Do mesmo modo, € indispen- sdvel que se conhega as conseqiiéncias que a incorporagao desse pen- samento podem trazer a pratica da arquitetura. Bernard Tschumi, em seu projeto para o Pare de la Villete, em Paris, demonstrou pleno conhecimento do significado e da importan- cia do termo para a pratica da arquitetura no mundo contemporaneo. E por essa razdo que o presente ensaio vai concentrar-se na andlise critica dessa obra. Ser, para tanto, fornecido um pequeno resumo dos principais t6picos da teoria desconstrutivista propostos por Jac- ques Derrida - filésofo francés que inspirou e colaborou no projeto do parque -, bem como uma avaliagao critica deste. das ao 106 ConsTRUGKO ~ DESCONTRUGKO ~ RECONSTRUGKO * Tints GUERRA Construindo... Jacques Derrida e a desconstrugio filoséfica A desconstrucao origina-se do Estruturalismo! — corrente filo- s6fica que procura estudar a cultura por meio do estudo da lingua- gem, entendida como um sistema de signos — e, por esse motivo, é também conhecida como Pés-Estruturalismo. Jacques Derrida, um dos principais fildsofos pés-estruturalistas, constrdi seu pensamento a partir dos estudos de Ferdinand de Saussure, lingiiista suigo cujo trabalho deu origem ao Estruturalismo. Saussure afirmava que o significado, em um dado sistema de signos, € uma questao de diferenga, e que sua relagio com o signi- ficante é puramente arbitraria. Isso quer dizer que o significado da palavra luz, por exemplo, nao é intrinseco 4 palavra, tendo sido a ela atribufdo, artificialmente, por meio do contraste com seu oposto, ou seu par bindrio: a escuridao. O sistema da lingua €, desse modo, cons- truido com base em pares bindrios, ou seja, as palavras recebem seu significado por meio do contraste com seu oposto € nao por qualquer relagdo com o signo. Derrida amplia as conclusdes de Saussure ao separar iambém 0 significado de seu referente. Para ele, o significado nao est4 presen- te no referente, estando sempre deslocado, ou seja, postergado, uma vez que s6 € acessado por meio do diciondrio. O problema é que, no diciondrio, outros signos, com significados também deferidos, sao encontrados, gerando nova deferéncia e implicando na impossibilida- de do conhecimento do significado. O resultado é a desestabilizagao ~ a desconstrugao de todo o sistema da lingua. O significado passa a depender do contexto, transforma-se em uma convengao, uma cons- trucdio estabelecida com o objetivo de permitir certa inteligibilidade —ou a ilusdo desta. Este € um dos principais problemas da aplicagao da teoria pés- estruturalista ao campo da arte — a negagdo de qualquer possibili- dade de significado dado no objeto. O sentido da obra de arte passa 107 CADERNOS PaRANOA a depender de construgGes conceituais, sem as quais é impossivel compreendé-la. E 0 caso da arquitetura desconstrutivista que, como veremos, s6 pode ser compreendida por meio da explicitagao de seu arcabougo conceitual. Derrida questiona, também, os pares bindrios. O filésofo fran- cés observa sua conformagao e percebe que 0 significado de um ter- mo é sempre dado pela auséncia do outro - a escuridao é definida pela falta de luz, o mal pela auséncia do bem — 0 que implica no privilégio de um dos termos em detrimento do outro. A partir dessa dinamica, Derrida conclui que a tradigio filosdfica ocidental privilegia a pre- senga em detrimento da auséncia, e i um processo de descons- trugao do que ele denomina Metafisica da Presenga. Derrida observa que, ao longo da tradigdo ocidental, Deus, o ser humano, a mente, o homem, sempre ocuparam posigGes centrais no pensamento, permitindo e estimulando 0 dominio desses elementos sobre seus pares bindrios. Seu objetivo nao é anular um dos termos, mas desconstruir a oposi¢do entre eles, demonstrando que esta, além de ser uma construgao relacionada a determinado contexto, encobre e justifica estruturas de dominagio. O centro é sempre o local de onde 0 poder emana: Deus, o bem, a luz, em oposigao ao diabo, ao mal ¢ a escuriddo; 0 homem em oposigao 4 mulher; a razdo em oposigado ao poético, ao inconsciente, ao sentimento; 0 ocidente em oposigao ao oriente, ao outro, Como estratégia, 0 filosofo adota o par bindrio fala/escrita que, segundo ele, traz implicita toda a estrutura de domi- nagao da metafisica. A fala, termo privilegiado da oposi¢ao bindria, implica presen- ga do ser, do individuo, do autor, ou seja, de uma fonte de onde tudo emana, ao mesmo tempo em que faz referéncia a idéia de algo primi- tivo, original e originario. Ela remete, em tiltima andlise, 4 crenga em um significante transcendental, fonte emanadora de poder e significa- ¢ao, central para a prépria nogio de metafisica. A escrita, ao contr- rio, implica a auséncia, e é entendida como mera transcrigdo da fala, devendo a esta seu significado. E por essa razao que Derrida resolve 108 CONSTRUGA0 ~ DESCONTRUGAO ~ RECONSTRUGAO * Tints GUERRA escrever, subvertendo o privilégio concedido a fala, e demonstrando que a referida dicotomia nao é nada além de construgio, cujo objetivo € privilegiar e justificar estruturas de dominagio. Sua estratégia é por ele denominada écriture double (escrita dupla), e consiste na desestabilizagao, na subversao do sentido, na exploragdo da ambigiiidade presente em todo discurso, de maneira a demonstrar que tudo nao passa de construcao. Desse modo, Derrida desconstréi ndo somente as nogdes de ordem ¢ hierarquia que susten- tam as estruturas de dominagao, mas também « prépria metafisica ea primazia da razao implicita nesta, levando as tltimas conseqiiéncias a proposta heideggeriana do fim da filosofia. Em verdade, a critica ao iluminismo nao € recente e permeia toda a filosofia do século XX. Husserl, Heidegger, Sartre, Merleau- Ponty, Gadamer, Ricouer, dentre outros, j4 a proclamavam desde as primeiras décadas do século. Foi, entretanto, Kant, quem primeiro criticou a razao é seus limites. Em suas trés criticas: Critica da raz@o pura, Critica da razdo pratica e Critica do juizo, Kant jé apontava para os limites da aplicagiio da razao para o entendimento do mundo e para a busca da verdade. Com isso, ainda no século XVIII, 0 filéso- fo alemao expunha as fraquezas e incertezas do projeto iluminista. Depois de Kant, Nietzsche destrinchou os mecanismos do pen- samento racional e demonstrou sua inabilidade e insuficiéncia para lidar com os problemas essenciais da existéncia humana. Questionou, também, a prépria metaffsica e seus sistemas fechados, que visam a descobrir a verdade ultima das coisas. Foi, na verdade, Nietzsche quem explicitou como a busca de uma verdade tinica e absoluta como principio fundador da realidade servia apenas para encobrir sistemas de dominagao politico-ideoldgicos. As idéias de Nietzsche serviram de base para todo o pensa- mento filoséfico do século XX, de Heidegger aos pés-estruturalistas franceses. Estes ultimos, Derrida inclufdo, continuaram seu projeto de destruigaio dos fundamentos da metafisica, e foi esta proposta que chamou a atengdo de Bernard Tschumi. 109 CADERNOS PARANOA A arquitetura, assim como as demais artes, atravessou 0 século XX em crise. Esta crise intensificou-se com o fim do movimento mo- derno, provocado pela exaustao das idéias que Ihe serviram de base, em especial a teoria funcionalista. Estudos recentes na histéria da arquitetura comprovam que, sempre tenha feito parte da obra arquitet6nica, nun- embora a fungai ca representou sua esséncia.? Esta era sempre entendida como depen- dente da relagdo que a obra estabelecia com 0 mundo, a sociedade e © pensamento da época. Era a capacidade de expressar sua prépria realidade e, ao mesmo tempo, transcendé-la, que conferia A arquite- tura seu valor e seu sentido. Ao pregar a fungaio como fundamento € propdsito da arquitetura, os arquitetos modernistas, desde Durand, reduziram a prdtica da profissio a simples construgao de edificios sem valor histérico, cultural, ou mesmo existencial.? O retorno ao historicismo, no primeiro momento apés o fim do modernismo, comprova o fato. Para remediar a crise de uma ar- quitetura incapaz de expressar seus valores, arquitetos, atendendo a criticas advindas da propria sociedade, foram buscar em formas his- toricas tradicionais a solugdo para as mazelas da arquitetura. Acre- ditou-se, por um momento, que a simples adogio de elementos sim- bolicos seria capaz de conferir sentido a arquitetura. O problema do sentido da arquitetura, entretanto, é mais profundo e nfo pode ser reduzido a experimentos formais, ainda que as formas manipuladas parecam ter, nelas mesmas, algum significado. Ea partir deste entendimento que arquitetos comegam a procu- rar, na filosofia, uma solugiio para o problema do significado na arqui- tetura. A dissociago entre arquitetura e mundo, essencial em toda a questao, passa a ser enderegada e discutida por arquitetos, interessa- dos em descobrir novas bases nas quais fundamentar sua pratica de maneira significativa. Foi essa busca por fundamentos que conduziu Bernard Tschumi as teorias da desconstrugao e a Jacques Derrida. 110 ConstRugio — DESCONTRUGAO ~ RECONSTRUGAO + Tanta GUERRA Bernard Tschumi e a desconstrugao arquiteténica Tendo como base a teoria de Jacques Derrida, Bernard Tschu- mi desenvolve 0 projeto para o Parc de la Villette, em Paris. Em 1982, o governo francés decidiu criar um parque no local dos antigos abatedouros de carne de Paris, uma rea chave na cidade. Situada a noroeste do centro, tencionava-se criar, ali, um espago que se tornas- se simbolo de uma era, 0 que concedia aos 470 arquitetos convidados para apresentar propostas uma licenga para a ousadia. A proposta vencedora, de Bernard Tschumi, além de ousada, era também inova- dora, apresentando um novo programa para os parques urbanos. Durante o século XX, ocorreu uma mudanga na concepgio de parques urbanos. Até entio, eles eram entendidos como uma imagem da natureza dentro da cidade — um local onde esta nao deveria estar presente. Era como se um pequeno microcosmo — um “pedacinho”, uma miniatura do mundo — estivesse contido dentro da cidade, ofere- cendo um reftigio para a agitacio e o frenesi urbano. O projeto de Tschumi expressa bem o entendimento deste novo paradigma. O parque proposto nao é um reftigio da vida citadina, mas uma extenso desta. Longe de ser um local de contemplagao bucélica da natureza, 0 parque é um grande centro de atividades de lazer e cultura — um verdadeiro centro cultural ao ar livre. Além do Museu da Ciéncia e da Cidade da Miisica, j4 existentes, foram criados espagos para teatros ao ar livre, restaurantes, oficinas culturais, play- grounds, locais para displays de videos, banhos, jogos, competigées, concertos, exposigGes e, claro, jardins. Desconstruindo... O Programa Para este novo programa de parque urbano, uma nova estraté- gia urbanistica também foi concebida. Conceitos como “sobreposi- ¢40”, “combinaciio” e paisagens “cinematicas” foram introduzidos no CADERNOS PARANOA processo projetou, gerando uma nova dindmica de trabalho, na qual, ao invés de trabalhar somente com a proposi¢do de espaco funcio- nais — espagos criados para fungoes especificas - Tschumi resolveu propor, também, espagos flexiveis, ou livres, onde os “eventos” nao fossem pré-determinados e onde “surpresas” pudessem ocorrer. Essa estratégia foi importante por criticar a teoria funcio- nalista da arquitetura. Segundo esta, a forma da arquitetura € re- sultado do correto relacionamento com a fungiio — a fungao faz a forma. Tschumi, ao propor espagos flexiveis, demonstra que, embora a fungdo seja importante na criagdo da arquitetura — fato expresso na prépria nogao de programa -, a forma arquitetOnica transcende a fungio. Os edificios histéricos, nos grandes centros urbanos, em todo © mundo, so, também, prova disto. Eles sao, hoje, utilizados para abrigar atividades que, muitas vezes, sequer existiam no momento de sua criagao. No entanto, eles nao sé siio capazes de abrigd-las, como também o fazem de maneira “funcional”, ou seja, apropriada. Com a flexibilizago dos edificios e do programa, Tschu- mi desconstr6i, também, a figura do autor, entendida por Derrida como um dos centros dominantes da tradig&o ocidental. Ao pro- por espagos de livre apropriagao pelos usuarios, ele divide sua res- ponsabilidade com estes, uma vez que os concede parte do poder de decisao sobre os possiveis “eventos” a ocorrerem no parque. O acaso também tem papel importante neste processo, demonstran- do que 0 autor nao € onisciente e a razio nao pode tudo controlar. Para reforgar este argumento, Bernard Tschumi convida outros arquitetos a participarem do projeto de partes do parque, ndo per- mitindo que o parque, a exemplo do sujeito contemporaneo, tenha uma identidade definida e definitiva. Outra maneira encontrada para desconstruir a identidade, e juntamente com ela, a unidade — um dos temas centrais na historia e na teoria da arquitetura -, foi a desconstrugao do préprio programa. Ao invés de agrupar as atividades em edificagées, Tschumi calculou a drea necessdria para desenvolvé-las, criou um cubo com as referidas 112 ConsTRUGA0 - DESCONTRUGAO ~ RECONSTRUGAO * Tina GuERRA dimensGes, e submeteu-o a uma exploséo, no computador, e distri- buiu-as no territério. O resultado foi a criagdo de, aproximadamente, 25 unidades fragmentares e disjuntas que 0 arquiteto denominou de Folies — pontos de intensidade onde ocorrem as principais atividades do parque. “Maintenant as Folies... elas desestabilizam 0 sentido, o sentido do sentido. Elas poem em questo, deslocam, de- sestabilizam ou desconstroem tal edificio. Por isto sio” loucuras “, elas lutam contra 0 préprio sentido da arquite- tura, mas sem remeter 4” anarquitetura “, ou ao grau zero da escrita, onde a prosa seria feita de volumes abstratos, neutros, inumanos, sem utilidade, inabitéveis e sem sen- tido. Elas entram no maintenant, mantendo, renovando e reinscrevendo a arquitetura através da negacio da carta atual ou moldura metafisica que s6 levou a beleza formal, * a finalidade, a utilidade, ao funcionalismo (servigos), que levaram a arquitetura a um fim. Fragmentando 0 objeto arquitet6nico, Tschumi nega a idéia de monumento, outro elemento central na histéria da arquitetura e que, em ultima instancia, serve ao propésito de glorificar, justificar ou legitimar estruturas de poder temporal ou atemporal. Ademais, ele consegue des- construir a prépria forma arquitet6nica ao reduzi-la a figura geométrica original — 0 ponto. Isso permite ao arquiteto trabalhar também o urbanis- mo do parque por meio dos trés elementos basicos da geometria: 0 ponto, a linha e a superficie, e, assim, aplicar sua estratégia de desconstrugiio tanto no plano abstrato quanto no formal. Reconstruinds “Algumas palavras sao bastante fortes no vocabulrio de Tschumi: trans, de ou di, desestabilizagao, desconstrugao, dissociagao, disjun- ¢do, diferenga. Mas elas, por si s6, no resultam em um trabalho. E necessdrio invengdo. Uma outra escrita que mantenha a dis-jungao per se: junta a dis, mantendo a distancia. O maintenant da arqui- tetura seria esta manobra de inscrever o dis ¢ fazer dele uma obra 113 CADERNOS PARANOA em si. No La Villette, € um problema de formar, de trabalhar a dis- sociagao. [...] isso nao acontece sem dificuldade. Para dar forma A dissociagao, é necess4rio que toda a estrutura de suporte (0 Parque, a instituigao) esteja estruturada como um sistema de montagem. O ponto vermelho das Folies é 0 foco deste espago dissociado”. Uma forga junta e mantém junta a dis-jungdo per se. Mas o efeito nao externo e se da a partir do interior. De um lado, 0 ponto concentra, em torno de si, uma grande forga de atragdo (magnetiza os fragmentos do sistema explodido). Uma série descontinua de instantes e atragdes. Cada ponto é uma quebra, interrompendo, absolutamente, a continuidade do texto e do grid Atragio e interrupgio. Por outro lado, a dissociagao nao acontece pelo exterior, pois o pon- to é, a0 mesmo tempo, divisivel e indivisivel. Do ponto de vista externo, ela atrai e interrompe, mantém e divide o grid, mas des- te ponto nio se sabe que acontece na Folie. Se a considerarmos absolutamente (isoladamente), ela nio é um ponto, mas um cubo, divisfvel, “aberto internamente ao vazio”.5 Ponto “Nao loucura, mas loucuras (/es Folies). Folies: nome préprio e assinatura. Tschumi nomeia, assim, o grid pontual que distribui um ntimero nao finito de elementos num espago que ele de fato ocupa, mas nao preenche. Folies: funcionam como figuras metonimicas do Parque, que, além dos pontos, possui linhas e superficies. Folies: pontos vermelhos divisfveis, oferecidos na sua estrutura articulada a substituigdes e a permuta- des combinatérias em relacdo a si mesmas e as outras partes. Ponto aberto e ponto fechado: me- tonimia dupla, aberta 4 vasta semantica do con- ceito de loucura, 0 grande nome ou denominador comum de tudo 0 que acontece com o sentido quando este se deixa, se aliena e se dissocia sem nunca ter sido sujeito, se expde ao exterior e se ocupa naquilo que nao é: no a semantica, mas, em primeiro lugar, a assemAntica de Folies.”* 114 ConstRUGKO — DESCONTRUGAO — RECONSTRUGAO * Tia GUERRA As Folies — “loucuras” — abrigam atividades que Tschumi de- nominou pontuais: balcdes de informagées, oficinas, restaurantes, cinema ao ar livre, espetéculos, salas para video e computadores, livrarias, etc, 0 que nao significa que todas elas tenham fung6es pré- determinadas. Algumas foram, propositalmente, deixadas sem fungdo, podendo, assim, serem apropriadas conforme a necessidade, seguindo o projeto original de questionar a funcionalidade . arquitet6nica. Seguindo a nogiio de produgao em massa vigente no mundo atual, para, em seguida critjca-la, as Folies tém todas a mesma estrutura: dez metros ctibicos, divididos em trés médulos - a dizima periddica resultan- te é apenas mais um detalhe transgressor. Sua forma e fungio podem, porém, variar conforme a localizacao e 0 tipo de evento programado para ali acontecer. Séo todas vermelhas, detalhe que confere ao todo, fragmentado e disjunto, uma certa identidade. Tornaram-se, por esse mo- tivo, o simbolo do parque. As Folies sio agrupadas em um sistema % & i my, de coordenadas, um grid pontual e linear, que oe as reorganiza, reordenando também o progra- ~ & &).4 bs ma. Desse modo, a seqiiéncia ritmica do grid a une, de maneira “frouxa”, o que antes havia sido # ‘& Vai 7} separado, completando a seqiiéncia construgio, “os aie: desconstrugao, reconstrugaio proposta por Ts- vt oa chumi. “Por outro lado, maintenant sugere outra car- ta, um retorno & arquitetura. Este maintenant seria uma assinatura, uma subscrigéo a uma nova carta, a um outro contrato (propésito das Folies). [...] Tschumi fala sobre “desconstru- do / reconstrugao” com respeito as Folies. A questo é inventar novas relacées, nas quais 08 componentes tradicionais da arquitetura stio desmantelados e reconstruidos ao longo 115 CADERNOS PARANOA de outros eixos. Ou seja, a arquitetura nao vai obedecer, sujeitar-se a imperativos externos. Estes continuardo a existir, mas serio subordi- nados ¢ reinscritos em outros lugares do texto, levando a arquitetura a seus limites — 0 prazer.”” Linha “Portanto, nao podemos falar de monumento, este complexo hyle-morfico que & dado, de uma vez por todas, nao permitindo nenhum trago, nenhum acaso ou transformacdo, permutagao ou substituigo. As Folies s&o justamente o contrério, elas sao, na ver- dade, uma série de experiéncias, implicando viagem, trajetéria, translagao, transferéncia. O percurso pelas Folies sio prescritos, ponto a ponto, jé que elas cons- tam de um programa de possfveis experiéncias ¢ no- vos experimentos (cinema, jardim botanico, oficina de video, biblioteca, gindsio). Mas a estrutura do grid e dos cubos deixa em aberto oportunidades para 0 acaso, para a invengdo formal, para as transformagdes combinatorias, para as divagacées, ¢ estas sfio dadas a todos através de um engajamento do corpo.”* A esse grid, 0 arquiteto sobrepée, entao, outros planos geomé- tricos. O primeiro deles é uma estrutura linear de caminhos, também dividida em duas camadas. A primeira consta de dois eixos perpendi- culares que cruzam toda a extensio do parque. Estes sao encaixados sobre o sistema de coordenadas, porém com uma pequena inclinagao, de maneira a nao coincidir com as linhas do primeiro e, com isso, causar um certo desconforto. Os eixos cruzam as Folies que abrigam as atividades mais freqiientadas e sao, por esse motivo, recobertos por uma cobertura ondulada. A segunda camada é composta de ca- minhos curvos, aparentemente aleatérios, contrastando com a retilinidade e ordena- * cdo dos outros caminhos e do grid. Esses caminhos entrecortam 0 sistema de coor- 116 ConstRUGAO - DESCONTRUCAO = RECONSTRUGKO + Tanz GUERRA denadas e os eixos, proporcionando encontros inesperados. Sio, em. geral, arborizados e conduzem aos varios jardins tematicos, ou su- perficies: tiltimo plano acrescentado a composigao. Superficie A sobreposi¢ao de todos esses planos origina su- perficies: espagos abertos onde sao programadas ativi- dades que demandam espagos horizontais como jogos, brincadeiras, exercicios fisicos, diversao em massa e fei- ras. Cada uma dessas dreas é projetada por um arquiteto diferente, dando continuidade 4 estratégia de descons- trugao da figura do autor enquanto sujeito onisciente. So recobertos pelos mais diversos tipos de revestimen- tos: dgua, grama, vegetagiio, pedra, etc, fato que enriquece as experién- cias vivenciadas em cada um desses locais. Tschumi chega a relacionar © percurso por estes as cenas de um filme, no qual os diferentes tipos de piso produziriam diversos tipos de ruidos, 8 semelhanga de uma trilha sonora. Alguns deles, entretanto, naio possuem funcao especifica. Outros siio completamente livres, sendo revestidos apenas com terra e pedrisco, em referéncia a outros parques da cidade. Jacques Derrida confessou nao entender como a arquitetura poderia ser desconstruida. O fato revela que seu entendimento da arquitetura limitava-se, como o de alguns arquitetos contem- poraneos, a apreensao de um edificio construido, limitava-se aos seus aspectos funcionais, formais e fisicos. A arquitetura vai além da forma, da matéria ou da fungio. Ela pode representar, justificar e legitimar instituig6es e pode, tam- bém, questiona-la: Bernard Tschumi, em seu projeto do Pare de la Villette, recu- sou trabalhar com formas classicas de composigio, criando estraté- gias de trabalho condizentes com os desafios e problematicas relacio- 117 CADERNOS PARANOA nados a pratica da profissaio. Assim sendo, ele rompeu com conceitos badsicos como os de ordem, de hierarquia, de unidade e de identidade. Ele desconstruiu esses conceitos e, em seguida, os remodelou e os rearranjou, reconstruindo algo diferente. Com isso, ele foi além da desconstrugao formal, atingindo também 0 nivel conceitual e progra- miatico da arquitetura. Mas, mais do que isso, ele conseguiu mostrar a Jacques Derrida que a arquitetura, ao questionar a ordem vigente, pode também agir como instrumento politico, ampliando os horizon- tes da desconstrugio filoséfica. “Quando me deparei com o trabalho de Bernard Tschumi, tive de desistir de uma hipétese: 0 recurso a linguagem da desconstrugio, pois desconstrugao, em si, vai contra os princfpios estruturais da ar- quitetura, Ao invés disto, fui encontrar em seu texto The Manhattan Transcripts e Folies a rota obrigatéria da desconstrugio na sua im- plementagdo mais intensa, mais afirmativa e mais necesséria. A des- construco de Tschumi se mede contra instituigdes na sua solidez, no lugar de sua maior resisténcia: estruturas politicas, instdncias de decisdes econdmicas, ¢ nos aparatos materiais ¢ fantasmagéricos que conectam 0 Estado, a sociedade civil, o capital, a burocracia, o poder cultural e a educagio arquiteténica”? No entanto, como o presente trabalho demonstra, Bernard Tschumi utilizou-se da teoria da desconstrugao para justificar manipulagGes pura- mente formais. O sentido de sua arquitetura depende do entendimento dos conceitos da teoria desconstrutivista. Nao pertence a obra, nao é dado nesta. B, antes associado a ela de maneira intelectual. Isto nos impele, neste mo- mento, a fazer uma observagao sobre a fungiio da obra de arte. Segundo Kant, a arte pertence ao dominio do belo, conforme defini- do pelo filésofo em sua Critica do juizo.’° Nela, 0 filésofo afirma que o belo € aquilo que agrada sem conceito e que nao se submete a uma finalidade pré-determinada. O entendimento conceitual, fundamento das ciéncias e da filosofia, é, por um lado, inadequado para a compreensio da obra de arte. Por outro lado, ele nao serve como fundamento para uma prati- ca significativa. Podemos inferir, portanto, que o problema do sentido, na arquitetura, transcende o plano conceitual. Este ¢ importante somente na 118 CONSTRUGKO - DESCONTRUGKO — RECONSTRUCKO * Tinta GUERRA medida em que informa ao arquiteto sobre a realidade e as expectativas em relagdo a seu trabalho. E, no entanto, insuficiente para lidar com os desa- tios da pratica, assim como com os problemas da interpretacao das obras. Da mesma maneira, a obra de arte nao pode ter uma finalida- de. Sua finalidade tem de ser sua propria existéncia. Ela tem de se realizar nela mesma. Nao pode servir a fins religiosos, educativos ou politicos. Nao pode, portanto, ser utilizada como instrumento de questionamento de ideologias. Ou seja, a filosofia da desconstrugao, aplicada a arquitetura, torna a desestruturagao dos paradigmas poli- tico-ideolégicos seu fundamento e finalidade, trazendo a tona o pro- blema da finalidade da obra apresentado por Kant. Resumindo, a construgiio do sentido, na arquitetura, passa pelo entendimento filosdfico da questio. Entretanto, este entendimento nao pode servir de instrumento, seja conceitual seja formal, para a pratica da arquitetura. Esta, como obra de arte, necessita.de um en- tendimento do mundo e de sua condigéo, mas n&o pode reduzir-se a ele. Deve ser capaz de transcendé-lo e afirmar-se por si s6. Referéncias Bibliograficas Todas as imagens foram obtidas no site: www. images. google.com DERRIDA, Jacques. “Point de Folie - Maintenant Parchitecture,” in Hays, K Michael Architecture Theory Since 1968. New York: MIT Press, 1998. Trad.: Tania Guerra EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura - Uma Inirodugdio, Sao Paulo: Martins Fontes, 2001. TAYLOR, Mark. Deconstruction in Context — Literature and Philosophy. Chicago: The University of Chicago Press, 1986. REACH, Neil. Rethinking Architecture - A Reader in Cultural Theory. London: Routledge, 1997. HAYS, K Michael. Architecture Theory Since 1968, New York: MIT Press, 1998. LYALL, Sutherland. Designing the New Landscape. New York: Thames and Hudson, 1991 Notas 1. Para uma definigdo de Estruturalismo e de P6s-Estruturalismo, ver Eagleton, Terry. Teoria da Literatura, Si Paulo: Martins Fontes, 2001. 2. A esse respeito, ver, em especial, Pérez-Gémez, Alberto. Architecture and the Crisis of Modern Science. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1983. 3. Ibid. 4. Derrida, 1968. 3. Ibid. 119 6. Ibid. 7. Ibid. 8. Ibid. 9. Ibid. 10. Kant, Imannuel. Critica da faculdade de juizo. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002. 120

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