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larer XoaN EE) Cle CMe a Vay.) Deus, Ala, Jeova, Buda, Maomé, Oxala... a palavra que todos falam é “Sim”. segui varias religides e acho que cada uma delas tem Juma coisa interessante. Mas hd algo em comum entre as Teligiges em geral, que € a idéia de Deus como um cara oti- mista. Os verdadeiros figis se julgam to pequenos compa- rados a presenca de Deus que se sentern como se fossem bbebés engatinhando ainda no processo de evolucio. E Deus std a cem anos-luz, sem dtivida alguma, em termos de conhecimento, inteligéncia e de bondade, E como contador de histérias, ou seja, como uma pessoa que vive da palavra, costumo dizer que Deus estd na forga da nossa palavra. Se julgarmos a nés mesmos como um pobre miserdvel, um pobre coitado, que no serve para nada, Deus olha para a gente e diz: "Sim", mas se fizermos o contrério, € dissermos que somos ricos e queremios um pouco mais de felcidade, ele também nos diré: “Sim”. A forga da gente esté na pala- vra e na expressio, O que a gente fala volta para a gente Se abrirmos a boca e falarmos em'“flores”, a forga de nossa palavra atinge a nossa interlocutora e retorna para nés mes- mos. Porém, se falarmos algo negativo, poderemos atingir 0 préximo e receberemos de volta aquilo que ofertamos. Em esumo, 0 que falamos acontece. Dessa maneira, devemos estar muito atentos para com as nossas palavras. O maior exemplo do que aconteceu comigo nese sentido foi quan- do resohi dizer que no voltaria para aquele lugar. que ndo iria sofrer. Acho que nesse dia Deus virou-se para mim e disse: "Sim". A forga da minha palavra € pensamento me auxiliou a colher o bem. Nessa época uma pedagoga francesa chamada Margherit Duvas chegou ao Brasil para conhecer 0 pais. E com essa Noga de espirituatdde| 95 mulher que comecou o meu contato com as pessoas com- petentes, com as pessoas magnificas e extraordinarias. Mais uma vez eu havia fugido e tinha ficado na rua durante um més todo, Uma senhora que trabalhava no pronto-socorro as vezes me via na rua, sempre me dava alguma assisténcia, fazendo curativos nos meus machucados, Um dia eu estava caminhando na rua — havia roubado uma bicicleta —, quando fui preso. Encaminharam-me nova- mente para a Feber. Logo que cheguei a insttuigdo, sentei num banco e esperei para ser atendido pelas assistentes sociais, quando por mim passou uma mulher muito alta e loura, com um perfume Chanel ntimero 5. Eu estava sem muito animo e me mantinha cabisbaixo. Naquela época, quando se entrava na Febem,a pri- meira coisa que o adolescent fazia era olhar para o cho por- ‘que se por acaso olhasse para os instrutores estaria correndo © risco de levar um tapa no rosto. Era freqiiente esse tipo de reaco dos instrutores: agredir um interno e sempre perguntar em tom de desafio: “Por que vocé esta me encarando?” Eu estava sentado no banco olhando para o chiio quando. passou aquela mulher loura, e a minha sorte foi que vieram acompanhando-a duas daquelas funciondrias insatisfeitas com a vida e com colares de pedra que as deixavam parecidas com girafas. Quando passaram por mim, me olharam e res- mungaram, sem nenhuma preocupacio com 0 fato de que eu pudesse ouvir: — Nao é possivell O Roberto Carlos esté de voita, Esse menino nao tem jeito! Ele é um caso irrecuperdvel, Ele deve- ria € ser mandado para uma escola do interior onde ele poderia fazer alguma coisa. © comentério daquelas funciondrias demonstrava que definiivamente jé no me queriam naquela unidade. Era o desejo de todos me trancar numa escola para menores in- fratores, que era uma prova de fogo, pois assim teriam uma preocupacio a menos lidar com um menino rebelde. Quan- do elas passaram por mim, acompanhadas daquela mulher loura, a expressiio "um caso irrecuperivel” despertou a cu- riosidade da visitante. Essa francesa tinha vindo para o Brasil para conhecer as ci- dades de Salvador € Ouro Preto, que seriam tombadas pelo Patriménio Cultural da Humanidade. Na verdade, ela deve- ria ir para o Haiti, mas desistiu dessa viagem, e velo para © Brasil. Ao pasar por Belo Horizonte, ela viu uma propa- ganda que dizia que a Febem de Minas Gerais era a melhor escola do pais, com creches de qualidade, educadores com- petentes, meninos felizes. Enfim, era a escola que fazia tudo pelo social. Ela ficou encantada com a propaganda e se inte- ressou por conhecer a escola porque, segundo ela, que era educadora "na Franga nunca vi uma escola to interessante como esta”, Justamente naquele dia, na hora exata em que cela chegava no carro do consulado, eu vinha num camburao da Policia Militar, Era a minha entrada cento ¢ trinta e dois, e, definitivamente, a ciltima. Naquela época eu havia passado por vérias unidades da Febem no interior do Estado. Em Minas Gerais eu havia passado por doze escolas da Febem e fugido de todas. Em ma das unidades eu ndo tinha nem nome. Cada aluno +inha um nimero, mas nao tinha um nome. Meu prontuério, era o de ntimero 374. No meu uniforme estava escrito esse Nacdo de esprituaka gy ‘ndmero, assim como em minha roupa de cama. Entdo os ‘meus colegas me chamavam de 374.Tudo o que me resta- va de dignidade era o meu nome, e até isso me tiraram, Eu no seria um numero outra vez, nao! EM VEZ DE NAVE ESPACIAL E (CAPACETE DE ASTRONAUTA, CABO DE ENXADA E CHAPEU DE PALHA. Eu tinha completado nove anos quando comecaram as minhas viagens para tais escolas. Naquela época assistia semanalmente, em uma loja da cidade, aos episddios do Seriado O homem de seis milhdes de délares, que contava a Fistéria de um astronauta que havia sofrido um acidente aéreo e praticamente tinha sido dado como morto, mas, gracas aos avancos tecnolégicos e especialmente cinemato- graficos da época, teve os membros reconstituidos em tita- nio, numa operacio fantéstica que havia custado a também fantéstica quantia de seis milhdes de délares. Um brago bid- nico que Ihe dava uma forga descomunal, pemas binicas que ‘he permitiam andar mais répido que um carro e um olho biénico que Ihe tornava possivel ver a distancias inimagin- veis — tudo isso a servigo do bem, salvando vidas em peri- 80 € vivendo aventuras emocionantes. Por tudo isso, aquele astronauta era 0 idolo da meninada da época, nfo sé dos riquinhos, mas também da turma de rua. Apés cada episé- dio safamos imitando 0 nosso heréi em camara lenta e co- ‘mentando que quando crescéssemos seriamos astronautas. E eu, particularmente, adorava imité-lo cantando a miisica 98| Roberto Carlos Ramos do seriado e andando como se estivesse na gravidade zero. nada me faria mudar de idéia:"Um dia eu vou ser astronau- ta’,""Um dia vou ter superpoderes e fazer coisas fantasticas em prol da humanidade”. Até que um dia caf novamente na Febem, e como de costume as assistentes sociais nos pregavam aqueles ser- mes ¢ faziam perguntas a que nés nunca sabiamos respon- der, do tipo:"O que vocé pensa da vida, menino?” "Onde festd 0 seu julzo?" “O que voce vai ser quando crescer?” Até ento achava que o fato de nao saber responder a tais per- guntas era o motivo do tratamento dspero que eu sempre recebia naquela escola, mas depois de assistir aos episSdios do seriado na televisio tinha resposta para pelo menos uma daquelas perguntas. Quando eu crescesse seria astronauta. E com certeza as tias iam ficar contentes com a minha res- posta e logo me arranjariam a cirurgia de reposi¢io biénica para que eu salvasse o mundo. $é que nao foi bem assim. No dia em que adentrei na instituigdo com aquela ideia fixa ina cabeca e aquele sonho fantastico no coragéo, a assisten- te social riu de mim, nao de maneira educada ou discreta, mas com escémio. Ela ria e perguntava novamente, com se no tivesse entendido a minha resposta'"O que voce disse que vai ser quando crescer?" “Astronauta’’ respondia meio sem graca.E ela ria, cada vez mais alto. A principio pensei que ria para mim, pelo fato de eu ter escolhido uma profis- so to importante, mas depois de algun tempo percebi que ela ria de mim, como se eu estivesse falando da coisa mais esdrixula do mundo. O mais terrivel vei depois: ela abriu © meu prontuério, anotou alguma coisa e me olhou novamente com escarnio, dizendo:“Vou te encaminhar para Nogto de esprtuaiade| 99 luma escola da cidade de Ant6nio Carlos, interior do Estado, ‘onde vocé vai poder fazer o seu curso de astronauta". Acho que naquela hora os meus olhos brilharam com o desium- bramento da perspectiva de ser alguém na vida. Eu tinha acertado a resposta, por isso ela ria daquele jeito. Levantei- me apressado, pois, segundo ela, 0 veiculo que me levaria & Nova escola partiria dentro de algumas horas, Ao sair daque- la sala todo sorridente, tive impetos de voltar e abragar efu- sivamente aquela mulher e demonstrar o quanto eu estava agradecido, mas faltou-me coragem. Corri salttante pelos corredores em direcéo ao almoxarifado para ganhar roupas € novos conselhos das tias: me comportar direito e aprovei- tar essa nova oportunidade que me estava sendo dada, A viagem até a Escola Lima Duarte, no interior de Minas, me pareceu um verdadeiro teste de resisténcia. Eramos Quinze criancas e adolescentes apertados em uma Kombi velha seguindo para um mundo completamente distante e desconhecido pela maioria. Um instrutor sisudo ia no banco da frente, a0 lado do motorista. Nos dois bancos traseiros, dez adolescentes espremidos com suas respectivas mochi- las, E no fundo, em cima do motor, eu e mais quatro crian- cas esmagadas umas sobre as outras, com as pernas enco- thidas, cercadas por caixas de prontudrios e documentos e sufocadas pelo calor e pelo barulho do motor: A partida foi emocionante, e pude sentir até uma dorzinha de barriga Pela emogdo da viagem. Mas, a medida que nos afastavamos de Belo Horizonte e ganhavamos as estradas, a emogio foi sendo substituida pelas caibras e pelo calor infernal prove- niente do motor e do sol que batia na lataria do veiculo — 100 | Raberto Carlos Ramos aquela viagem era a tortura mais cruel que se pode aplicar ‘a um ser humano, As nossas bocas secas no nos permi- tiam sequer reclamar, a sensacdo era de morte iminente. Lembro-me de ter visto um colega ir fechando 0s olhos & apoiando a cabeca no meu ombro como se estivesse dor- mindo, mas, ao balangé-lo, percebi que ele estava mole e com ‘a boca chela de espuma. Comecamos a gritar de panico, pen- sando que ele havia morrido, mas gracas a Deus tinha sido 56 um desmaio, e bem providencial, pois pelo temor de um novo desmaio o motorista discutiu com o instrutor, que meio a contragosto permitiu que ele fosse no primeiro banco en- tre eles, Ganhamos um pouco mais de espaco, mas, em con- trapartida, também as gargalhadas dos adolescentes, que nos chamavam de fracotes e mariquinhas. Aquelas foram as cin- co horas mais apertadas da minha vida. ‘A chegada a escola foi uma tragicomédla parecia um car- ro de circo despejando seus artistas 96 que em vez de pa- Ihagos fazendo piruetas desciam meninos desfigurados pela desidratacio, mancando de caibras e roxos de vontade de urinar Mesmo meio zonzo, pude perceber que aquilo ali se parecia mais com uma fazenda do que um centro de treina- mento de astronautas. E as minhas suspeitas rapidamente se confirmaram. Fui informado pelo diretor, a que todos cha- mavam' professor”, que 0s cursos ali eram de sapateiro, mar- ceneiro e priticas agricolas e que eu havia sido enganado. E mais: por nao ter idade para fazer um dos cursos profissio- nalizantes daquela escola, eu ficaria na capina e ganharia rnaquele dia mesmo uma enxada e um chapéu de palha, pelo qual eu teria de zelar como se fossem meus. Imaginem: em Noga de espirtuatidade| 101 vez de nave espacial e capacete de astronaut, eu estava ganhando uma enxada e um chapéu de palha, € 0 que era © pior, como naquela escola tinha uns dez Jodos, vinte Josés uns quinze Robertos, todos ento ganhavam um niimero, € pela ordem de chegada, eu seria o aluno numero 374. De imediato protestei e disse que Robertos podem ter muitos, ‘mas Roberto Carlos eu sé tinha ouvido falar de dois: eu um outro que era cantor, € seria fécil ndjo me confundirem, © diretor nao me deu bola e repetiu dividindo as sfabas, como se ja estivesse cansado de me explicar: —Vo-cé € 0 3-7-4, en-ten-deu? Abaixei a cabeca e discordei: — Meu nome € Roberto Carlos! — Olhe para mim — ordenou o diretor Levantei 0 rosto, ele me sorriu e me deu uma bofetada que quase me partiu © maxilar:O tapa foi tio forte, que de- Vo terme deslacado uns trés metros de distincia de onde eu estava, Nada mal para um primeiro vo nos primeiros inte minutos naquela escola, Parei ajoelhado no chao, com jas pernas cruzadas, as mos no rosto, sem entender 0 que tinha acontecido, zonzo pelo coice, chorando como uma ‘menininha e queimando de vergonha pelas gargalhadas dos veteranos da escola, —Vou repetir s6 mais uma vez: seu numero € 3-7-4, enten- deu? — ameacou-me o diretor falando entre os dentes — Sim, senhor — respondi, sem saber a que me referia. ‘A minha permanéncia naquela escola foi breve. Depois de mais uns trés ou quatro coices iguais aquele primeiro Para aprender outras normas, cheguei 4 conclusdo de que no valia a pena ser astronauta, nem sapateiro ou mesmo 102| Roberto Covios Ramos +técnico agricola. Mas, se preservasse o meu nome, eu pode- ria, um dia, ter minha prdpria astronave, milhares de sapatos novos e minha prépria fazenda. Cinco dias depois Id estava eu na estrada, livre como eu sempre quis. Larguei a minha enxada debaixo dos pés de laranja, joguei para © alto aquele chapéu de subserviéncia € fug pela mesma estrada que me havia levado aquele cam- po de concentragdo e de formacao de mao-de-obra bara- ta, desesperado pela idgia de nfo conseguir voltar para 0 meu planeta, mas certo de que escola nenhurna me coloca- ria uma rédea novamente, E assim foi, um internato apés ‘outro, tudo igual: viagens em Kombis lotadas, fugas s6 com a roupa do corpo, caronas e mais caronas € muitas hist6rias para ganhar um novo chinelo Havaiana que furaria nos cal- canhares e se perderia na poeira do asfalto, em busca de um refigio seguro e de mais uma carona. Até aquele dia em que me encontrei com a francesa, A mulher que ndo tinha seis mi- Ihdes de délares para me emprestar, mas que possula a f6r- mula que me tornaria dali a alguns anos,ndo o astronauita bié- nico, mas uma pessoa mais forte, mais répida e capaz de ver muito mais longe, sem que para isso tivesse de abrir mao de tudo 0 que me restava de dignidade: “O meu nome” Tudo © que me restava de dignidade era apenas isso, € até isso me tiraram. Eu nao seria um numero outra vez, nao! ‘Nocao de espirituaidode| 103

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