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Nietzsche e Hegel, Leitores de Heraclito — A Proposito de uma Sentenga de Zaratustra: “Da Superacao de Si” Scarlett Marton** Resumo: A partir das leituras que Nietzsche e Hegel fazem de Herdctito, trata-se de analisar de que maneira concebem 0 vir-a-ser. Ao examinar os pontos convergentes e divergentes de suas interpretagdes, retinem-se elementos para repensar a relagdo entre eles. Passando em revista a literatura mais recente, torna-se entéo passivel apreciar a tese da afinidade e ada oposigdo entre © pensamento hegeliano ¢ a filosofia nietzschiana ¢ avaliar, em particular, a pertinéncia dos comentarios de Kaufmann e Deleuze. Palavras-chave: vir-a-ser, principio légico, princfpio cosmolégico, superagio, luta, forgas, vontade de poténcia Quando se percorre a literatura mais recente, nota-se que a relagio Nietzsche/Hegel tem merecido especial atengao por parte dos comentadores. Ja em 1962, ao tentar reconstruir, de modo original, o pensamento de Nietzsche, Deleuze procura ressaltar o seu cardter “resolutamente antidialético”. Susten- tando ser Hegel o alvo principal de seus ataques, afirma que “o anti-hegelian- ismo atravessa a obra de Nietzsche, como o fio da agressividade” (Deleuze 4, p. 9). O cere da argumentagiio de Deleuze reside em mostrar que, se Hegel trabalha com 0 “nao dialético”, Nietzsche suprime o poder independente da hegagao e abre espago para o “sim dionisfaco”™. O abismo que separa a negagdo dialéticae a afirmagdo dionisiaca apontaria um outro: o que se instaura entre © monismo metafisico e o pluralismo radical. Em Hegel, a reconciliagio " Este texto foi apresentado no Coldquio Dialética Viva?, Congress Anual da Anpof, Sio Paulo, outubro de 1989. “* Professora do Departamento de Filosofia da FFLCH — USP 32 Marton, S., discurso (21), 1993: 31-51 das oposigées implicaria a supressao da diferenga; em Nietzsche, a filosofia pluralista exigiria justamente a afirmagao dela e, por isso, teria na dialética 0 seu “mais feroz”, o seu “tinico inimigo profundo”, No entender de Deleuze, é pela diferenga que Nietzsche substitui a ne- gacio, a oposig¢ao, a contradigdo. O conceito de forga, central em sua obra, tem cardter relacional: toda forca se acha numa relagao essencial com outra; relagao que nao abriga clemento negativo algum, mesmo porque uma forga nao nega a outra — apenas afirma a sua diferenga. Com isso, as nogées de luta, guerra, rivalidade e mesmo comparacao tornam-se secundarias. As forgas definem-se quantitativamente; a determinacao puramente quantitativa permanece, porém, abstrata, quando a ela ndo se juntam uma interpretagdo e uma avaliagdo das qualidades. Ora, a esséncia da forga reside na diferenga de quantidade que ela apresenta ao relacionar-se com outra, de sorte que nao se pode separar a propria quantidade ¢ a diferenga de quantidade. Assim, a diferenca de quantidade passa a constituir a qualidade da forga; mais ainda, ela acaba por remeter a um elemento diferencial das forgas em relagao, que é também o elemento genético de suas qualidades. Esse elemento, diferencial e genético, Deleuze redita encontré-lo na vontade de poténcia. Ela “é o elemento de que decorrem ao mesmo tempo a diferenga de quantidade das forgas postas em relagiio e a qualidade que, nessa rela , cabe a cada forga” (Deleuze 4, p. 56), A partir da diferenga de quantidade, as forgas seriam ditas dominantes ou dominadas; a partir da qualidade, ativas ou reativas. Fonte das qualidades das forgas, a vontade de poténcia precisaria ter, cla mesma, elementos qualitativos primordiais, que seriam justamente o afirmativo e o negativo. “Nao se pode julgar forgas”, declara Deleuze, “se nao se levar em conta, em primeiro lugar, sua qualidade, ativa ou reativa; em segundo lugar, a afinidade dessa qualidade com o pélo. | correspondente da vontade de poténcia, afirmativo ou negativo; em terceiro lugar, a nuanga de qualidade que a forga apresenta, num tal ou qual momento de seu desenvolvimento, relacionada com sua afinidade” (/d., ibidem, p. 69). Nesse registro, seria possivel entender a critica de Nietzsche ao positi- vismo, ao humanismo, & dialética. Ignorando as qualidades das forgas, essas _ Marton, S., discurso (21), 1993: 31-51 33 maneiras de pensar se revelariam impotentes para interpretar e incapazes de avaliar. A dialética, em espeeffico, seria uma forca que, impossibilitada de afirmar a sua diferenga, nao mais agiria; ela se limitaria a reagir as forgas que a dominam. Negando tudo 0 que nfo é, ela poria o elemento negativo em primeiro plano e dele faria a propria esséncia e o principio mesmo de sua existéncia, Pensamento fundamentalmente cristéo, ela apareceria como “a ideologia natural do ressentimento, da ma consciéncia”. E Deleuze conclui: “ndo existe compromisso possivel entre Hegel e Nietzsche. A filosofia de Nietzsche tem grande alcance polémico; ela forma uma antidialética absoluta, propGe-se denunciar todas as mistificagdes que encontram na dialética um Ultimo reftigio” (Deleuze 4, p. 223). Se é estaa tese mais difundida entre nds, acima do Equador é a outra que tem despertado interesse. So varios os comentadores que procuram salientar as similaridades entre o pensamento hegeliano e a filosofia nietzschiana, Uns insistem no fate de que Nietzsche e Hegel sentem profunda admiragao por Espinosa; outros, que se acham fascinados por Goethe. Uns querem provar que se opGem ao romantisma; outros que privilegiam os pré-socraticos. Mas tanto quanto os que advogam a tese da total incompatibilidade de Hegel e Nietzsche, estes que defendem a proximidade entre eles também encontram nos textos de Nietzsche apoio para suas consideragées. Na busca dos pontos que os fildsofos teriam em comum, Kremer-Marietti Ppretende mosjrar que, se Nietzsche rejeita as conclusdes de Hegel e, aparente- mente, refuta suas afirmagées, acaba por operar com a dialética e revelar, assim, o seu “profundo hegelianismo” (Kremer-Marietti 19). Robert Zimmer- mann espera fazer ver que Nietzsche € tao dialético quanto Hegel, pois sua Metafisica o levaria a uma “visao hegeliana, o que equivale a dizer dialética, _ da negagao” (Zimmermann 30). Bernard Pautrat, por sua vez, trabalhando com figuras de linguagem, tenta evidenciar que a metéfora do circulo, presente nos | &scritos de Hegel e de Nietzsche, determina 0 pensamento de ambos; inscre- vendo-se no mesmo espa¢o textual, eles se movimentariam segundo o modelo _ Circular requerido pela inversio radical e pela negagiio dialética, de sorte que _ “Nietzsche ¢ indispensavel a Hegel como Hegel a Nietzsche: eles se respeitam como a desrazio do vir-a-ser e a razio da dialética” (Pautrat 26, p. 230). 34 Marton, S., discurso (21), 1993: 31-51 Ma Por outro lado, Daniel Breazeale, preocupado em situd-los em face da afi tradigao filoséfica, sublinha que os pensadores tomam como ponto de partida cili de suas investigagdes a crise gerada pelo criticismo kantiano; procurando tlti converté-la num novo triunfo, dedicam-se a critica da critica da razao pura Eni (Breazeale 2), Beerling, caracterizando-os como os “inimigos do além”, en- psi tende que se posicionam pela Anti-Jenseitigkeit, somando forgas na luta contra age o dualismo metafisico, epistemolégico e moral (Beerling 1). Na mesma linha de de raciocinio, Jean Granier considera que combatem a divisdo entre este mundo for e 0 outro e recusam a “coisa em si” transcendente; mas, embora o tema da ens imanéncia ontolégica esteja presente no pensamento de ambos, é a fungao poc mediadora que atribuem & contradic¢{o que sela o profundo acordo entre eles can (Granier 5). Walter Kaufmann, um dos primeiros defensores da tese das afinidades, jéem 1956, empenha-se em aproximé-los, che gando a sustentar que bel “Nietzsche foi um monista dialético” (Kaufmann 16, p. 204). Se Kaufmann julga que, na época da elaboragio de Humane, Demasiada® S Humano, o filésofo ainda no procurava um principio fundamental ¢ abordava, AP entao, a vontade de poténcia por duas vias distintas: tomava-a enquanto suces-ie so mundano ou impulse psiquico. Quando da redagio de Aurora, persistindo Ree nessa segunda via, acreditou esclarecer, através da poténcia ¢ do medo, todosHe; os fenémenos psiquicos. “Em seu entender”, assegura Kaufmann, “vontade desan poténcia ¢, primeiramente ¢ antes de mais nada, 0 conceito-chave de umaRUr hipdtese psicolégica. Nos trabalhos aforisticos anteriores a Assim Falavalon Zaratustra, Nietzsche procurou responder a algumas pequenas questdes de® 0 mode muito aberto e totalmente assistematico. Nesse tempo, tratava-se em suaen opinigio de p6r A prova uma ampla hipétese” (d., ibidem, p. 178). O comentador®ss\ vai mais longe: essa hipétese nunca foi abandonada, mas, de certo modoKar apenas transformada no decorrer da obra. Em Assim Falava Zaratustra, suruti gindo como a forga em que repousariam todas as atividades do homem, # 82 vontade de poténcia converteu-se no impulso psiquico capaz de explicar todos os fendmenos da psique humana; e acabou transformando-se na forga funtla dadora de todo o universo. ‘i De acordo com Kaufmann, se os textos nietzschianos de juventude revel! lavam o dualismo do principio apolinea e do dionisiaco, os da maturidadé"” | i 51. Marton, S., discurso (21), 1993: 31-51 8 da afirmariam a vontade de poténcia enquanto princfpio tinico, capaz de recon- da ciliar Dioniso e Apolo, natureza e valor, physis ¢ cultura. Mas 0 monismo dos do iltimos escritos teria de enfrentar um problema central: 0 da sublimagao, ara Enquanto vigorava 0 dualismo, a idéia de sublimagao aparecia vinculada a sn- psicologia e 4 moral, expressando-se no triunfo da razio sobre os impulsos; tra agora, impulsos ¢ razao seriam vistos como duas formas de aparigdo da ventade tha de poténcia. Nesse contexto, “em vez de perguntar se € legitimo supor que uma do forga pode superar-se”, afirma Kaufmann, “deve-se assumir que a superagio da envolve duas forgas. A pergunta entéo se transforma nesta outra: uma forga io pode diferenciar-se em duas forgas? Com esse problema, entra-se num novo les campo: 0 da cosmologia” (Kaufmann 16, p. 204). das Colocando nesses termos a questio do auto-superar-se, Kaufmann esta- jue belece um paralelo entre a Aufhebung de Hegel ea Sublimierung de Nietzsche. Se a Aufhebung se apresentava como um processo eminentemente conceitual, idoa Sublimierung apareceria como um processo fundamentalmente psicolégico, va,Apesar das diferengas, tanto © conceito hegeliano de espirito quanto o es-fietzschiano de vontade de poténcia implicariam as idéias de conservagio, idonegagdo e superacdo, “A esse respeito”, declara Kaufmann, “as filosofias de dosHegel e de Nietzsche sao estritamente andlogas” (id., ibidem, p. 205). Recu- deSando todo monismo que nao pudesse explicar a diversidade, ambas insistiriam imahum monismo metafisico, postulando uma tinica forga basica, cuja esséncia avat onsistiria em manifestar-se de diferentes maneiras ¢ criar a partir de si mesma de® multiplo. O"conceito de vontade de poténcia, elaborado por Nietzsche, sua¢onstituiria esse principio tinico que, autonegando-se, seria criativo na sua dorsséncia mesma. “Que o seu pensamento seja dialético fica claro”, conclui sdoKaufmann, “quando se concebe a ventade de poténcia essencialmente como surAulo-superagdo (Selbstiiberwindung), do mesmo modo que antes compreendia 1, ## Saiide como aptidio para superar a doenga” (Id., ibidem, p. 176). dos Hegel e Nietzsche? Hegel ou Nietzsche? O que dizer dessa relagdo? Seria funtla de cumplicidade ou conflito? O que dizer desses pensadores? Seriam eles Adversiirios ou aliados, parceiros ou antipodas? Abandonemos, por alguns svementos, as consideragdes dos comentadores e passemos a palavra aos lade" Volvidos nessa trama. “Aqui vemos terra”, confessa Hegel, “nio existe frase 36 Marton, S., discurso (21), 1993: 31-51, ¥ de Herdclito que eu nao tenha integrado em minha Légica” (Hegel 9, p. 344; ol 10, p, 72). E Nietzsche confidencia: “antes de mim nao ha essa transposigao, © do dionisfaco em um pathos filoséfico: falta a sabedoria trégica — procurei em Vo por indicios dela mesmo nos grandes gregos da filosofia, os dos dois di séculos antes de Séerates, Restou-me uma diivida quanto a Herdclifo, em cuja proximidade me sinto mais aquecido, sinto mais bem-estar do que em qualquer ¢ outra parte” (Nietzsche 24, Ecce Homo, O Nascimento da Tragédia, § 3). A ai célebre passagem das Prelegdes & Histéria da Filosofia tem como contrapar- ¢ tida a declaragao de Ecce Homo. O fato € que Heraclito anteciparia tanto 9 ™ pensamento hegeliano quanto a filosofia nietzschiana; pelo menos, € isto 0 que} Nietzsche e Hegel, eles mesmos, afirmam. ;° } ta ‘pl re = Eos envolvidos tornam-se comentadores, comentadores dos mesmos frag- mentos. No entender de Hegel, decididamente, a filosofia comega na Grécia; comega com Tales, Parménides, Heraclito™, Com Tales, porque é 0 primeira a pensar o Universal, embora o conceba sob uma forma puramente sensivel. 0 espirito atinge a generalidade, mas mio se liberta de sua dependéncia en relagdo a natureza. Em Tales ¢ nos jénicos, o pensamento, As voltas com as figuras materiais, ainda nao é pensamento puro, Com Parménides, porque é ¢ primeiro a pensar a generalidade enquanto ser, embora rejeite as determinagdes como ilusérias e |hes atribua o estatuto de meras opinides. Pelo movimento que poe o ser através da negagao do miltiplo, inaugura-se a dialética — nfo ums “dialética exterior”, que negligencia o contetido das representagdes, mas “umi dialética imanente do objeto, situando-se, porém, na contemplagao do sujeito” Em Parménides e nos eleatas, colocando-se a si mesmo, 6 pensamento atingé sua propria identidade ao lancar-se em diregdo ao ser, mas permanece exterio! a ele; separando os contrarios para isolar um deles como o verdadeiro, mam tém-se na oposigio entre subjetivoe e objetivo; enfim, é apenas pensamento dé entendimento. Com Herdclito, porque é o primeiro a pensar “a Idéia filoséfict em sua forma especulativa”, apresentando a verdade do ser enquanto vir-a-set Momento decisivo, a passagem do ser ao vir-a-ser implica ultrapassar o set, _ mediatiza-lo para reencontra-lo, a um s6 tempo, o mesmo € 0 outro. A dialética: adquirindo alcance ontoldgico, instaura-se sob uma terceira forma: a | moon Se q w SE ve di di ce Marton, S., discurso (21), 1993: 31-51 37 objetiva como princ{pio de todas as coisas, Apreendendo-se a identidade dos contrérios ¢m sua Unido no conceito superior de vir-a-ser, estabelece-se a “unidade de real e ideal, de objetivo e subjetivo”. Em Herdclito, encontra-se o discurso da razao. Assim, a filosofia, aparentemente, teria vdrios comecgos. Contudo, cla comegaria efetivamente com o encontro do que nado é mais com o que nao é ainda, ou seja, com a sintese do ser e do nfio ser no conccito de vir-a-ser. “O comego da filosofia”, assegura Hegel, “é o fundamento, que € presente e se mantém em todos os desenvolvimentos seguintes, o que permanece imanente a todas as suas determinacoes ulteriores” (Hegel 11, p. 75). Residindo no saber em seu proprio desenvolvimento, o comecgo sé pode comparar-se ao fim. E talvez Hegel lesse, nessa diregdo, as palavras de Herdclito: “pois comum (é) principio ¢ fim em periferia do circulo” (Heraclito 12, DK 103). Pensar a relagao Hegel/ Heraclito equivaleria, pois, a pensar, juntos, o comego e o fim da filosofia; enquanto um se empenharia na sua completude, o outro encarnaria Oo seu momento inaugural. Compreende-se agora por que Hegel escolheu Herdclito por precursor: entre eles, existiria uma continuidade tal que a metafisica hegeliana apareceria como a realizagdo do projeto heraclitiano“. Hegel, leitor de Herdclito, pée em sua boca “o ser nao € mais que o nao ser” — e os estudiosos ndo deixam de evidenciar o fato de ter atribufdo a ele O que Aristételes dizia de Leucipo e Demécrito). Mais importante, porém, do que apontar o equivoco é captar a intengdo. Hegel quer ressaltar o que, a seu Yer, constitui o cerne mesmo do pensamento heraclitiano: a idéia de que “ser € nada so 0 mesmo, a esséncia é a mudanga”, de sorte que o vir-a-ser constitui “a primeira unidade de determinagdes apostas”. Aqui, a afirmagao do vir-a-ser nao significa a mera inversdo da tese de Parménides, no equivale a tomar o Ser dos eleatas em sua identidade como ilusdo e a pura mudanga como o Verdadeiro. A mudanga, deixando de ser pensada enquanto simples diversi- dade, Surge sob o modo da oposi¢ao dos contrarios — e, com isso, o “momento da negatividade” torna-se imanente. Mais ainda: a mudanga, que opde os Contrarios, é também o que os une —e¢, com isso, realiza-se a Totalidade sob © modo do “concreto”. O ser de Parménides s6 se punha por diferenciagdo, mas © Pensamento do entendimento nao apreendia essa mediacio; é 0 discurso da 38 Marton, S., discurso (21), 1993: 31-31 razio que, levando-a em conta, transporta no ser o movimento da diferenga que caracterizava a subjetividade. Ultrapassando a oposi¢fio entre subjetivo e objetivo, ele abandona a linguagem da representagao para atingir a do “con- ceito”. E por isso que, segundo a interpretagdo hegeliana, Parménides deve necessariamente anteceder Herdclito; é preciso passar pelo entendimento para chegar A raziio®. De acordo com Hegel, em Herdclito, a Totalidade apresenta dois aspectos indissocidveis: é vir-a-ser, mas também & jogos. Uma vez que pensamento ¢ ser so idénticos, ao transportar no ser as diferengas que permaneciam subjeti- vas, 0 pensamento puro interioriza todas as determinagGes que ficavam exte- riores a ele. Nessa medida, embora apresente algumas caréncias, a filosofia heraclitiana revela-se exemplar. Apesar de pensar a unidade dos contrarios ainda de forma muito imediata, nao refletir em si o bastante a idéia de unidade e testemunhar um naturalismo ingénuo com a cosmologia do fogo, ela descobre o ultrapassamento dialético do ser. Entendendo a mediagio dos contrarios como processo, processo do pensamento e da natureza — pois sfo apenas w —, afirma que é pelo vir-a-ser que o ser assegura a sua identidade, ou seja, po © vir-a-ser como principio légico. “Esta filosofia nao 6 passada”, conclui Hegel, “seu principio é essencial e encontra-se em minha Légica, no comeco, jogo depois do ser e do nada” (Hegel 9, p. 350; 10, p. 93). Por outro lado, Nietzsche também reconhece sua divida em relacao @ Her‘iclito. Num de seus primeiros textos, A Filosofia na Epoca Trdgica dos Gregos, j4 manifesta admiragdo por esse pensador “orgulhoso e solitério”. D fato, como nao respeitar nele o descaso pelos homens que se aproximaria dé sua critica ao “espirito de rebanho”, o desdém pela politica dos efésios qué precederia os ataques ao falatério democratico, o desprezo pela polimatia qu anteciparia 0 combate a erudigao e, até mesmo, a linguagem oracular qu prenunciaria o estilo aforismadtico? Como nao reconhecer a proximidade enti a idéia de que um mesmo objeto se presta a avaliagdes opostas, se feitas di pontos de vista distintos e o préprio perspectivismo? Mas talvez devéssemo buscar em outra parte as afinidades mais profundas entre os dois pensadores. Marton, S., discurso (21), 1993: 31-51 39 No entender de Nietzsche, Herdclito recusa a dualidade de mundos, que Anaximandro foi levado a admitir; rejeita a separagdo entre “um reino das qualidades determinadas” ¢ outro da “indeterminagio indefinivel”. Mais ainda: nega, em geral, o ser, julgando-o uma ficgdo vazia, ¢ questiona o testemunho dos sentidos), nado por revelarem a diversidade e a mudanga, como quis Parménides, mas por nio as revelarem o bastante — e apresentarem os objetos como se fossem dotados de unidade e duragdo, Entendendo que este mundo, aqui e agora, nao mostra, em parte alguma, permanéncia, dele retira a estabili- dade ¢ também a tranquilidade. Conclui, entio, segundo as palavras de Nietzsche, que “toda a esséncia da efetividade é, justamente, apenas efetuagao que, para ela, nao ha nenhum outro modo de ser” (Nietzsche 25, A Filosofia na Epoca Trdgica dos Gregos, § 5), A recusa da dualidade de mundos, a negagao do ser ¢ a afirmagao do vir-a-ser, estes seriam os pontos fundamentais que o filésofo alemao considera comuns ao seu pensamento e ao de Heraclito. Nao € por acaso que ele declara: “a afirmagio do perecimento ¢ do aniquila- mento, o que é decisive em uma filosofia dionisiaca, o dizer-sim a contradigiio ¢ guerra, 0 vir-a-ser, com radical recusa até mesmo do conceito de ‘ser’ — nisso tenho de reconheer, sob todas as circunstdneias, 0 mais aparentado a mim que até agora foi pensado” (Idem 24, Ecce Homo, O Nascimento da Tragédia, § 3). Assim, a filosofia heraclitiana apresentaria o mundo como o jogo de Zeus ‘eu, em termos fisicos, o jogo do fogo consigo mesmo e, por essa Via, pensaria ‘um como sendo ao mesmo tempo o miiltiplo. As qualidades perceptiveis nio Temeteriam a algo permanente nem assinalariam ilusdes dos sentidos; elas expressariam o préprio impulso Iidico, Apresentando uma unidade, o processo Natural segue uma lei uniforme, mas é pela diseérdia, pelo conflito do miltiplo, {ue esta se realiza. Se o homem acredita existir injustiga, contradigao, culpae Softimento, é porque, limitado, nao pode perceber que os elementos confli- fantes convergem para uma harmonia invisivel. Isso nao significa, porém, que © fogo sempre vivo, em sua perpétua atividade construtiva e destrutiva, busque Cumprir algum ditame ou alcangar algum fim. O mundo nao abriga nenhuma ‘endéncia telealégica ou moral; se ele oferece o espetaculo de uma justiga Soberana, € porque existe uma diké imanente — ¢ nela devem basear-se todas a Outras leis. Nessa diregio, Nietzsche talvez lesse as palavras de Herdclito: ‘alimentam-se todas as leis de uma s6, a di ; pois, domina tao longe quanto 40 Marton, S., discurso (21), 1993: 31-5] quer, ¢ € suficiente para todas (as coisas) e ainda sobra” (Herdclito 12, DK 114). Compreende-se agora por que elegeu 0 pré-socratico come seu precursor: eles teriam 0 mesmo projeto; procurariam, ambos, desenvolver as reflexdes éticas a partir de teses cosmolégicas. Nietzsche, leitor de Herdclito, encontra no espirito dos fragmentos doutrina do eterno retorno — e os estudiosos nao deixam de ressaltar o fato d ter atribuido a ele o que veio a constituir uma tese estdica®. Mais importante, porém, do que apontar o deslize é investigar as razdes. E enquanto hipste: cosmolégica e pensamento ético que Nietzsche concebe o eterno retorno Partindo do principio de conservagao da forga e entendendo o tempo com eterno, sustenta que o mundo é finito mas incriado. Se ele tivesse algu objetivo, j4 o teria atingido; se tivesse alguma finalidade, ja a teria realizado Hipdtese cosmoldégica, o eterno retorno adianta que tudo jé existiu e tudi voltard a existir: cada instante retorna um numero infinito de vezes, traz em si a marca da eternidade. Pensamento ético, ele fornece um imperativo para agdo: o de sé querer algo de forma a também querer que retorne sem cessat com isso, remete A nog’o de amor fati, Nem conformismo, nem submissal passiva: amor; nem causa, nem fim: fatum. Converter o impedimento em. meio © obstdculo em estimulo, o adversdrio em aliado, € afirmar, com alegria, mundo do vir-a-ser. Ora, 0 pensamento de Heraclito, segundo a interpretaga nietzschiana, poderia muito bem conter os pré-requisitos da visao do etern retorno: a nogio de amor fati e a idéia de repetigao. Negando a dualidade entr mundo verdadeiro e mundo aparente, o pré-socratico julgaria que, se para olhar humano habitual hé coisas justas e injustas, para quem é semelhante al deus contemplativo, deixando sua inteligéncia particular unir-se ao logo: todas as coisas so belas, boas e justas’ — e, dessa forma, a visio engloban poria em cena o amor fati. Concebendo o munde enquanto criagdo e destruica permanentes, entenderia que ele sucumbe periodicamente para ressurgir se: pre o mesmo — e, desse modo, a conflagrago geral colocaria em pauta repetigao), Bo quanto basta para o filésofo afirmar em sua autobiografia’ “ doutrina do ‘eterno retorno’, isto é, da translagao incondicionada e infinil® mente repetida de todas as coisas — essa doutrina de Zaratustra poderia, afindl ja ter sido ensinada também por Herdclito” (Nietzsche 24, Ecce Homo, Nascimento da Tragédia, § 3). Marton, S., discurso (21), 1993: 31-51 41 De acordo com Nietzsche, no pensamento heraclitiano, o construir e destruir, esse movimento que se repete com periodicidade, surge da guerra dos opastos, pois é dela que “nasce todo vir-a-ser”. Universal, a guerra esta em toda parte; eterna, ela manifesta a soberana justiga. “E preciso saber”, diria o pré-socratico, “que 0 combate é o-que-é-com, e justiga (é) discérdia, e que todas (as coisas) vém a ser segundo discérdia e necessidade” (Herdclito 12, DK 80). Sem trégua ou termo, a guerra é permanente; caso contrario, a unidade do processo natural estaria comprometida, a sua conformidade a lei ficaria abalada e o préprio cosmos desapareceria. Como dois contendores, os opostas combatem, de sorte que a tensdo, que se instala entre eles, faz com que ora um ora © outro tenha supremacia. Como os atletas nas palestras, os artistas nos anfiteatros, os partidos politicos na dgora ¢ as cidades-Estado na Hélade, os indimeros pares de opostos lutam “em alegre torneio”. Com Heraclito, a nogio de competi¢4o, em que se baseia toda a vida politica e social dos gregos, atinge a “maxima universalidade”. A idéia de luta com seu cardter agonistico, enten- dida agora como o que gera 0 vir-a-ser, transfere-se para o mundo e conyerte-se em principio césmico. Comentadores de Herdclito, Nietzsche ¢ Hegel, certamente o léem a luz de suas préprias doutrinas. Em Hegel, esse modo de proceder encontra legitimi dade gracas 4 concepg4o de um desenvolvimento dialético do pensamento; em Nietzsche, ele se justifica, talvez, pela conviegao de jé se acharem na filosofia pré-socratica todas as hipéteses da ciéncia moderna”. Se Hegel interpreta Heraclito seguindo as categorias de sua légica especulativa, Nietzsche o faz, perseguindo 0 objetivo de dar embasamento cientifico as suas teses cosmolégi- cas. Nao se trata, pois, de apreciar aqui as interpretagdes que apresentam ¢, muito menos, de julgar qual delas teria captado o sentido do pensamento heraclitiano. Trata-se apenas de levantar, nas leituras que fazem, alguns pontos de divergéncia. E os comentadores tornam-se outra vez envolvidos, envolvidos na mesma trama. Enquanto Hegel acredita encontrar no elemento especulativo o que mais © aproxima de Herdclito, Nietzsche julga achar na filosofia da natureza sua maior afinidade com ele. Ambos, porém, acabam por adotar, em certa medida, 42 Marton, S., discurso (21), 1993: 31-51 a antiga interpretagao do pré-socratico, interpretagao de origem platénica, que faz dele o fildsofo do panta rei); tanto & assim que a analogia do rio, presente em alguns fragmentos (cf. Herdclito 12, DK 12, DK 49 e DK 91), desempenha papel relevante em suas andlises. Entendem, ambos, que o fluxo incessante traduz o pensamento fundamental de Herdclito, o pensamento do vir-a-ser. Mas, se Hegel © percebe enquanto ultrapassamento dialético do ser, Nietzsche o vé como mudanga continua de todas as coisas no mundo. Para aquele, o vir-a-ser implica um salto qualitativo, gragas 4 mediagdo da negagio; para este, expressa a mera passagem de uma configuragdo a outra. La, enfatiza-se a superagio dos opostos, com a sua reconciliago numa nova unidade; aqui, acen- tua-se a luta entre eles, com a transferéncia da supremacia de um para 0 outro. “Alles ist werden”, exclama Hegel; “alles aber ist geworden”, retoma Nietzsche, para acrescentar: “ado hd fatos eternos: assim como nio ha ver- dades absolutas” (Hegel 9, p. 349 ou 10, p. 93 e Nietzsche 24, Humano, Demasiado Humano, § 2). Se fosse dado a Herdclito pronunciar-se, talvez ele dissesse: “morte de terra é tornar-se 4gua, morte de agua é tornar-se ar, de ar fogo, e vice-versa” (Heraclito 12, DK 76), E se nos fosse dado comentar, talvez arriscdssemos que a luta dos opostas exprime menos uma mudanga do que uma relagio reversivel: as coisas tomam o lugar umas das outras, de sorte que se efetua uma troca em que o fogo aparece como medida. “Por fogo se trocam todas (as coisas) e fogo por todas”, afirma Herdclito, “tal como por ouro mercadorias e por mercadorias ouro” (Herdclito 12, DK 90). Ora, a reversibili- dade, que os fragmentos parecem indicar, seria tao inaceitavel para a con- cepgao dialética quanto para a visdo circular do eterno retorno. Contudo, mais. importante do que ousar uma interpretagiio é in: no fato de que tanto Hegel quanto Nietzsche tomam o pré-socratico por precursor. E, ao fazé-lo, enquanto um se empenha em situar a sua originalidade num desenvolvimento dialético e considera 0 vir-a-ser sobretudo enquanto principio ldgico, o outro preocupa- se em localizar na cosmologia o seu carater inovador e encara 0 vir-a-ser como principio césmico''*?. Hegel e Nietzsche? Hegel ow Nietzsche? O que pensar dessa relagio? Ela seria, a um s6 tempo, de cumplicidade e conflito. Cumplicidade, uma vez que Marton, S., discurso (21), 1993: 31-51 43 | ambos conferem a Herdclito lugar de destaque na hist6ria da filosofia; conflito, porque, enquanto pensar Hegel e Herdclito, juntos, significa pensar a comple- tude ¢ o momento inaugural do filosofar, pensar Nietzsche ¢ Herdclito, juntos, equivale a pensar o mesmo projeto, o de assentar as reflexdes éticas em teses cosmolégicas. Leitores de Herdclito, Hegel ¢ Nietzsche seriam, a um sé tempo, adversdrios e aliados. Aliados, visto que privilegiam no pré-socratico o pen- samento do vir-a-ser; adversdrios, porque, se um 0 concebe enquanto ultrapas- samento dialético do ser e 0 encara sobretudo como principio légico, o outro © percebe enquanto mudanga continua de todas as coisas do mundo e 0 considera como prinefpio césmico, E talvez o conflito seja mais relevante do que a cumplicidade. Estas conclusdes, no entanto, nado permitem avaliar as leituras que Kaufmann e Deleuze, por exemplo, fazem da relagie Nietzsche/ Hegel. E preciso, ainda, examinar os conceitos de forga e vontade de potén no interior do pensamento nietzschiano, pois é a partir deles que os comenta- _ dores se posicionam. Em Assim Falava Zaratustra, Nietzsche apresenta, por vez primeira, sua concepeao de vontade de poténcia, Identificando-a coma vida, concebe-a como vontade organica; ela é propria nado unicamente do homem, mas de todo ser vivo, mais ainda: exerce-se nos dérgios, tecidos e células, nos numerosos seres vivos microscépicos que constituem o organismo. Atuando em cada elemento, ' encontra empecilhos nos que o rodeiam, mas tenta submeter os que a ela se opdem e colocd-los a seu servico. Manifestando-se ao deparar resisténcias, desencadeia uma luta que nado tem pausa ou fim possiveis e permite que se ' estabelegam hierarquias jamais definitivas. Com a teoria das foreas, 0 fildsofo € levado a ampliar o Ambito de atuagao desse conceito; se, ao ser introduzido, ele opera apenas no dominio orgdnico, agora passa a atuar em relagio a tudo © que existe. As forgas tendem a exercer-se 0 quanto podem, querem estender- se até o limite, agindo sobre outras e resistindo a outras mais; as forgas efetivam-se, manifestando um querer-vir-a-ser-mais-forte, irradiando uma Vontade de poténcia. “Toda forga motora”, assegura Nietzsche, “é vontade de | Poténcia, nao existe fora dela nenhuma forga fisica, dinfmica ou psfquica” (Nietzsche 23, 14 (121) da primavera de 1888). A vontade de poténcia aparece assim como explicitacao do carater intrinseco da forga. 44 Marton, S., discurso (21), 1993: 31-51 Na biologia, 0 filésofo buscou subsidios para elaborar seu conceito de vontade de poténcia; na fisica, encontrou elementos para construir sua teoria das forgas. Tributéria da ciéncia da época, a nogio de forga permite-lhe postular a homogeneidade de todos os acontecimentos; entre orginico e inor- ganico, nfo existe trago distintivo fundamental — e tampouco entre fisico e psiquico ou, se se quiser, “material” e “espiritual”. Em face dessa concepgio de mundo, devem vir abaixo as velhas dicotomias da metafisica. A vontade de poténcia, que diz respeito ao efetivar-se da forga, € fendmeno universal ¢ absoluto; em outras palavras, “esse mundo é a vontade de poténcia — e nada além disso!” (Nietzsche 23, 38 (12) de junho/ julho de 1885) Atuando nas forgas, ela leva cada uma delas a querer prevalecer na relagfio com as demais —e desafid-las todas. Nao é por acaso que Nietzsche entende “tudo © que ocorre, todo movimento, todo vir-a-ser como um constatar de relagdes de graus ede forgas, como um combate...” (Id., ibidem, (65) 9 (91) do outono de 1887) O combate todavia nao se confunde com exterminio nem a precedéncia com hegemonia. Para que ocorra a luta, € preciso que existam antagonistas; como ela é inevitdvel e sem trégua ou termo, nao pode implicar a destruigao dos beligerantes — ¢ nisso se revela o seu carater agonistico De acordo com Deleuze, o pensamento nietzschiano apresenta-se como “resolutamente antidialético”, porque a filosofia pluralista exige a afirmagao da diferenca e, com ela, exclui a guerra, a rivalidade e mesmo a comparagao. A diferenga de quantidade de cada forga na sua rela¢do com outra constitui sua qualidade e remete a vontade de poténcia, Concebida como elemento diferen- cial das forgas em relag&o e elemento genético de suas qualidades, a vontade de poténcia teria elementos qualitativos primordiais: o afirmativo eo negativo, assim como as forgas, a partir de sua qualidade, seriam ativas ou reativas. Contudo, Nietzsche julga que é da luta que se trava entre as forgas que se estabelecem hierarquias. Com estas, que so sempre tempordrias, surgem as que mandam e as que obedecem, as que atuam e as que reagem, as que 540 “ativas” € as que sao “reativas” num determinado momento. O mundo, tudo 0 que existe — seja natureza inerte ou vida organica —, é constituido por forgas em combate permanente, agindo e reagindo umas em relagao as outras. Com preende-se por que Deleuze ressalta o aspecto antidialético do pensamento nietzschiano; entendendo o movimento dialético enquanto negagao da negagao, Marton, S., discurso (21), 1993; 31-51 45 a ele opée a afirmagao da diferenga e, ao fazé-lo, acaba por atribuir carater secundario 4 luta e conferir qualidade as forgas. Da perspectiva de Nietzsche, o mundo apresenta-se como pleno vir-a-ser: acada mudan¢a se segue uma outra, a cada estado atingido se sucede um outro. Totalidade incessantemente geradora e destruidora de si mesma, ela nao cons- titui, porém, um sistema. Pluralidade de forgas, tampouco se apresenta como mera multiplicidade. O mundo é antes um processo — e nfo uma estrutura estavel; os elementos em causa, inter-relagdes — € nao substancias, dtomos, ménadas. Totalidade interconectada de quanta dindmicos ou, se se quiser, de campos de forga instaveis em permanente tensiio, ele niio é governado por leis, nao cumpre finalidades, nao se acha submetido a um poder transcendente —e mais: sua coesio nao é garantida por substancia alguma. Se permanece uno, € porque as forcas, multiplas, est@o todas inter-relacionadas. Processo circular que nao tem fim, o mundo pde-se, nas palavras do filésofo, “como forga por toda parte, como jogo de forgas e ondas de forga, ao mesmo tempo, um e mUltiplo, aqui acumulando-se e a0 mesmo tempo ali minguando, um mar de forgas tempestuando e ondulando em si préprias, eternamente recorrentes, com descomunais anos de retorno” (Nietzsche 23, 38 (12) de junho/julho de 1885). Querendo vir-a-ser-mais-forte, cada forga esbarra em outras que a ela resistem, mas o obstaculo constitui um estimulo. E inevitavel a luta — por mais poténcia, A cada momento, as forgas relacionam-se de modo diferente, Poem-se de outra maneira. “A vontade de poténcia”, escreve Nietzsche, “nado Um ser, nio um vir-a-ser, mas um pathos, é o fato mais clementar, do qual resulta um vir-a-ser, um efetivar-se...” (Id., ibidem, 14 (79) da primavera de 1888) Vencendo resisténcias, ela se auto-supera e, nessa superagao de si, faz Surgir novas formas. Enquanto forga eficiente, & pois forga plastica, criadora. Concebida como pathos, nao se impée, porém, como nomos; impulso para as \tansformagées, nao poderia coagir as forgas a se relacionarem seguindo Sempre © mesmo padrao, Tampouco reflete um felos; superando-se a si mesma, Nao poderia ter em vista nenhuma configuracio especifica das forgas. Ora, no entender de Kaufmann, Nietzsche seria “um monista dialético”, Porque afirmaria existir uma forga basica, a vontade de poténcia, que se Manifestaria de diferentes maneiras e criaria a partir de si mesma o muiltiplo. 46. Marton, S., discurso (21), 1993: 31-5] Principio tinico, ela seria concebida essencialmente como auto-superagio, Contudo, em momento algum 0 fildsofo acredita haver uma tinica forga, a forga criadora de tudo o que existe. O cardter pluralista de sua filosofia também esta presente af, ao nivel de suas preocupagées cosmoldgicas. A forga s6 existe no plural; nao é em si, mas na relagdo com outras; nao € algo, mas um agir sobre, Quando trata do mundo, ele sempre postula a existéncia de uma pluralidade de forgas presentes em toda parte. A luta que se trava entre elas néo visa a metas nem a objetivos, mas reveste-se de carater agonistico e implica uma pluralidade de beligerantes. E 0 quanto basta para nfo se confundir a idéia nietzschiana de Selbstiiberwindung com o conceito hegeliano de Aufhebung. Compreende-se, entio, por que Kaufmann sustenta ser Nietzsche “um monista dialético”; tomando a vontade de poténcia como principio que se auto-supera, ele acaba por ignorar a teoria das forgas. Compreende-se, também, por que Deleuze insiste no carater “antidialético” do pensamento nietzschiano; entendendo que as forgas apenas afirmam a sua diferenga, ele acaba por negligenciar a idéia de luta. Ora, luta, forgas e vontade de poténcia sao conceitos decisivos para Nietzsche; e aparecem intimamente ligados nos textos a partir de 1883. Mas que sejam suas as palavras finais. “E este segredo a prépria vida me contou”, confidencia Zaratustra, “vé, falava ela, ‘eu sou o que sempre deve stperar-se a si mesmo’. (...) Que eu deva ser luta e vir-a-ser e objetivo e contradigio dos objetivos: ah, quem adivinha minha vontade, adi- vinha também quao fortuosos sio os caminhos que ela tem de seguir. O que quer que eu crie e como quer que eu 0 ame, — logo tenho de ser adversdrio seu e de meu amor: assim quer minha vontade!” (Nietzsche 23, Assim falava Zaratustra, Ila, Parte, Da superacio de si) Abstract: Starting from Nietzsche's and Hegel's readings of Heraclitus, it is attempted to analyze how they conceive the “becoming”, The relation between these interpretations is reassessed by an examination of their convergent and divergent aspects. Taking into account the recent literature, it is possible to evaluate the thesis of affinity and opposition between Hegelian thought and Nietzschean philosophy and, in particular, the pertinence of Kaufmann's and Deleuze’s comments. Keywords: becoming, logical principle, cosmological principle, overcoming, fight, forces, will to power, ? s t 1 5 Marton, S., discurso (21), 1993: 31-51 47 Notas (1) Essa mesma idéia também é defendida por Murray Greene (6} e por Michel Haar (8). (2) Nas Prelegdes & Histéria da Filosofia, Hegel emprega formulas andlogas, ao referir-se aas trés pré-socrdticos: “com Tales, comegamas propriamente a histéria da filosofia": “com Parménides, comegou o filosofar propriamente dito”; “é de Herdclito que deve datar 0 comeco da existéncia da filosofia”. Cf. Hegel 9, respec- tivamente p. 210, pp. 312-13 e p. 362. (3) Utilizamos a edi¢do Diels-Kranz (DK) dos fragmentas de Herdclito, traduzidos por José Cavalcante de Souza para o volume Os Pré-Socraticos da colegdéo “Os Pensadores”. (4) Nos rastros de Hegel, Ferdinand Lassalle tentou reencontrar nas formulas de Herdclito toda a Ciéncia da Logica (Lassalle 20) e Lénin acreditou encontrar “uma Stima exposigéo do materialismo dialético” (Lénin 22). (5) Cf. a esse propésito, Clémence Ramnoux (27, p. 20); Daniel Saintilian (29, pp. 37-8); Dominique Janicaud (14, P. 261); John Burnet (3, p. 162, nota 1); Gérard Legrand (21, p, 95, nota 1). (6) Se Kart Reinhardt (28) defende a anterioridade de Parménides em relagda a Heréclito, a maioria dos helenistas advoga a relagdo inversa ou, no limite, a contemporaneidade imediata dos dois pré-socrdticos. A propdsito da interpretaga@o hegeliana, cf. Dominique Janicaud (14 p. 260) e Daniel Saintillan (29, p. 49). (7) Os fragmentos de Herdclito DK 9, DK 13 ¢ DK 58 convergiriam nesse sentido e ainda o DK 61, ande se lé: “mar, égua mais pura e mais impura, para os peixes Potdvel e sauddvel, para os homens impotdvel e mortal”. (8) Nessa direcao, seria posstvel ler o fragmento DK 107: “mds testemunhas para °S homens sdo olhos ¢ ouvides, se almas bdrbaras eles tem". (9) Cf. a esse respeito Hershbell, Jackson P. / Nimis, Stephen A. (13, pp. 17-38, em ®Special pp. 34-5). 48 Marton, S., discurso (21), 1993: 31-51 (10) Nietzsche leria, nesse sentido, o fragmento de Herdclito DK 102: “para o deus sdo belas todas as coisas e boas e jusias, mas homens umas tomam (como) justas, outras (como) injustas”. (11) B provdvel que Nietzsche lesse, nessa diregdo, o fragmento de Herdelito DK 65, relatado por Hipdlito na Refutatio omnium haeresium, JX, 9: “e 0 chama (ao foga) de fartura e indigéncia; indigéncia é de acordo com ele a formagdo do mundo ea conflagragdo geral é fartura”. Kirk observa que “fartura e indigéncia” sao as tinicas palavras de Herdelite nesse fragmento, de sorte que, ao identificar fartura com @ conflagracao geral, Hipélito segue uma interpretagdo estéica (Kirk 17, p. 337). Burnet adota a mesma posigdo, embora faca a ressalva de que Zeller, Diels e Gomperz acreditam ser de Herdclito a idéia da conflagragdo geral (Burnet 3, p. 180, nota 3); alids, no século passado, grande parte dos estudiosos defendia essa tese. (12) Nesse sentido, pode-se ler os fragmentas péstumos 41 (4) de agosto/setembro de 1885: “hoje, nés nos reaproximamos de todas essas formas essenciais que a inteligéncia grega trowxe @ luz com Anaximandro, Herdclito, Parménides, Empédo- cles, Demécrito e Anaxdgoras — a cada dia, nds nos tornamos mais gregos” e 14 (116) da primavera de 1888, que apresenta Herdelito e Demécrito como “os tipos cieniificos da antiga filosofia”. (13) Essa interpretagdo é até hoje defendida por Jeanniére (15) e Gunthrie (7), embora seja contestada por Kirk (18) e Burnet (3). (/4) Entender o vir-a-ser como principia légico ou princtpio edsmico é uma questo discutida pelos helenistas, Enquanto, por exemplo, Burnet adverte que ndo devemos acreditar que “o que Herdelito descobriu assim era um principia [dgico” (Burnet 3, p. 162), Jeanniere acredita existir em Herdclito “certamente uma légica da com tradigao” (Jeanniére 15, p. 52). Marton, S., discurso (21), 1993: 31-51 49 Bibliografia 1. Beerling, B. F.. Hegel und Nietzsche. In: Hegel Studien, 1, 1961, pp. 229-46. 2. Breazeale, Daniel. The Hegel-Nietzsche Problem. In: Nietzsche Studien, TV, 1975, pp. 146-64. 3, Burnet, John. L'Aurore de la Philosophie Grecque. Paris, Payot, 1919. 4. Deleuze, Gilles. Nietzsche et la philosephie. Paris, Presses Universitaires de France, 4a, edigdo, 1973. 5. Granier, Jean. Le Probléme de la Vérité dans la Philosophie de Nietzsche. Paris, Seuil, 1966. 6. Greene, Murray. Hegel's ‘Unhappy Conciousness’ and Nietzsche's ‘Slave Morality’. 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