You are on page 1of 14
discurso (28), 1997; 145-58 O Eterno Retorno do Mesmo de Nietzsche na Estética de Schopenhauer Jair Barboza* Resume: O artigo pretende mostrar que o pensamento do eterno retorno do mesmo de Nietzsche nao seu pensamento mais abismal (abgriindlicher), como diz Ecce homo, mas na verdade tem um Grund (fundamento) bem localizado na filesofia de Schopenhauer, em especial nos textos estéticos, Palavras-chave: Schopenhauer — Nietzsche — Vontade — mundo fenoménico — eterno retorno do mesmo Na sua autobiografia intelectual, Ecce homo, Nietzsche refere-se ao eterno retorno do mesmo como o seu pensamento propriamente mais abismal (mein eigentlich abgriindlicher Gedanke) (Nietzsche 3, p. 226). Temos fortes razdes para convencer-nos de que a origem de um tal Pensamento, apesar do “mais abismal” reivindicando originalidade, pode Temontar aos textos schopenhauerianos, em especial, os estéticos. * Estudante de pds-graduagiio do Departamento de Filosofia da Universidade de Sao Paulo. 5 146 Barboza, J., discurso (28), 1997: 145-53. Varios rascunhos foram feitos por Nietzsche num empenho nao muito pequeno em expor aquilo que compreendia por eterno retorno do mesmo. Neles, podem-se vislumbrar duas vertentes bastante nitidas em meio a diversificadas incursdes: uma cosmolégica e outra psicolégica. 0 presente texto preocupa-se sobretudo com dois aforismos de 1881, que julgamos serem emblematicos, na sua densidade, das mencionadas vertentes. No que tange a vertente cosmoldgica, temos: “A medida da forga total é determinada, nao é nada de ‘infinito’; guardemo-nos de tais desvios do conceito! Conseqiientemente, o numero das situagGes, alteragdes, combinagdes e desenvolvimen- tos dessa forga é, decerto, descomunalmente grande e praticamen- te ‘imensurdvel’, mas, em todo caso, também determinado e nao infinito” (Nietzsche 4, p. 387). Em termos fisicos, o mundo seria composto de um nimero “x” inal- teravel de forgas. Se o tempo é infinito, como dira a seqiiéncia do aforis- mo, no interior dele as forgas vao se combinando, e, por finitas serem, tais combinagées alcangam um termo, apés 0 qual retornam as combina- Ges anteriores... Todas as situagGes e tipologias daf resultantes se repe- tem. Faltaria ao mundo a faculdade da eterna novidade: “Guardemo-nos de pensar que o mundo cria 0 eternamente novo”, jé dissera A gaia cién- cta (id., ibtd., p. 199-200). O todo € regido por um processo circular, o que faz com que a filo- sofia nietzschiana entre em confronto com aquelas que postulam uma evo- lugdo histérica do homem em diregdo a um bom sélos, como no caso de Kant, para quem uma “sociabilidade insocidvel”” é um artificio empre- gado pela natureza com o propésito de instituir um “estado cosmopolila _ parboza. J.. discurso (28), 1997; 145-58 147 universal”, no seio do qual a espécie humana desenvolveria todas as suas disposigGes origindrias enquanto disposigdes da natureza mesma, esta que encontraria no homem a sua coroagio, de modo que a histéria humana, na verdade, seria a propria histéria da natureza com o fito de estabelecer uma boa constituigdo politica que possibilitaria a consumagao de talentos que lhe sao intrinsecos™. Nietzsche des a linha reta e adota 0 circulo. Para ele nao ha uma origem primeva nem um fim final. Na circularidade césmica nada se perde, nada se ganha, embora seja praticamente impos- sivel, j4 que “imensurdvel”, apreender-se as possibilidades combinatérias das forgas do mundo. As estagdes do ano, sempre recorrentes, 0 movi- mento dos astros, as vazantes e enchentes, e tantos outros cursos circu- lares sio apenas fndices puntiformes do cfrculo eterno das forgas. Ao cosmos, apesar do “descomunal” que o impregna, jamais podera ser con- ferido o atributo da infinitude; isto seria um “desvio” do conceito, ja que a quantidade da forga, finita, é lei origindria, do mesmo modo que o curso circular: “Guardemo-nos de pensar a lei desse circulo como algo que veio a ser, segundo a falsa analogia dos movimentos circulares no inte- rior do anel. Néo houve primeiro um caos e depois gradativamen- te um movimento mais harmonioso e enfim um firme movimento circular de tod forgas: em vez disso, tudo é eterno, nada veio a ser: se houve um caos das forgas, também 0 caos era eterno € retorna em cada anel. O curso circular nao é nada que veio a ser, € uma lei originaria, assim como a quantidade da forga & lei ori- gindria, sem excegio nem transgressao” (Nietzsche 4, p. 389). No vir-a-ser, qualquer alteragao deve ser enquadrada como re- Corréncia, repeti¢io de algo anterior; portanto, nao chega a ser alteragao auténtica. 148 Barboza, J., discurso (28), 1997: 145.5¢ Naquele primeiro aforismo que citamos, 0 mtimero I do inexistente livro “Vontade de poténcia”, forjado por sua irma Elisabeth, Nietzsche dg prosseguimento a vertente cosmolégica do eterno retorno do mesmo: “Tudo esteve ai intimeras vezes, na medida em que a bal de todas as forgas sempre retorna”. ituagde glo- E no Aforismo 25 manterd fidelidade & sua doutrina: “O mundo das forgas nao é passivel de nenhuma diminuicio ... Seja qual for 0 estado que esse mundo possa alcangar, ele tem de té-lo alcangado, ¢ nao uma vez, mas intimeras vezes. Assim este instante: ele ja esteve af intimeras vezes e igualmente retornard, todas as forgas repartidas exatamente como agora: e do mesmo modo se passa com 0 instante que gerou este, e com o que é filho do de agora”. Isso emblematiza que, apesar das varias redagdes desde A getia cién- cia, quando ele apareceu pela primeira vez, 0 pensamento dito “mais abismal” mantém tragos basicos, inclusive no ano de 1888, quando 0 fi- ldsofo ficou dessiso; nesta ocasiao, a verve € tao exacerbada, que encon- tramos metdforas deveras ousadas: “OQ mundo subsiste; néo é nada que vem a ser, nada que perece. Ou antes: vem a ser, perece, mas nunca comegou a vir a ser e nun- ca cessou de perecer, — conserva-se em ambos .., Vive de si pré- prio: seus excrementos sao seu alimento” (Nietzsche 4, p. 396; Ultimo itilico nosso). parboza, J., discurso (28), 1997; 145-58 149 Ora, em O mundo..., Schopenhauer expde uma concepgao de his- toria repetitiva cujo fulero conceitual antecipa a vertente cosmoldégica do eterno retorno do mesmo. A histéria, para o filésofo de Frankfurt, ao narrar os fatos, empreende uma tarefa semelhante aquilo que fez Gozzi nos seus dramas, Este sempre ut ou as Mmesmas personagens nha com- posigdo das cenas, com os mesmos caracteres, intengdes e, no final das contas, destinos. Qs motivos e acontecimentos podem até mudar de um drama para outro, porém © espirito dos acontecimentos € sempre o mesmo. De igual maneira a histéria: mudam os atores, o palco da efe- tividade, mas os tipos sio os mesmos, com os caracteres € intengdes, Os destinos, repetindo-se. E o “espfrito da terra” (Erdgeist) declara altisso- nante que no mundo dos fendmenos, de que se ocupa a histéria, nao ha lugar para novidades “Neste mundo do fendmeno é tio pouco possivel uma auténtica perda, quanto um auténtico ganho” (Schopenhauer 5, p. 216). Ao mundo fenoménico de Schopenhauer, ¢ € isto que importa su- blinhar aqui, falta a faculdade da eterna novidade. Tudo € recorrente — como em Gozzi, as personagens sao as mesmas, € a mesma tipologia. Nada € autenticamente perdido ou autenticamente ganho; é um caleidos- Cépio que pode até num primeiro momento dar a impressio de infinitas hovidades, por conta das cintilagdes de luz, mas sabe-se que no fundo ele €composto de um niimero finito de fragmentos de vidro colorido, a repe- tirem os préprios movimentos. E dai, deste pano de fundo fisico-repetitivo dos fenémenos, anunciado pelo “espirito da terra”, a natureza estéril da harrativa histérica afeita exclusivamete aos fatos, condenada a lidar, sem- Pre, com a mesma quantidade de matéria, de fendmenos, isto ¢, com a Mesma quantidade de eventos e formagGes tipoldgicas: 0 rei, 0 escravo, O ‘rapaceiro, o honesto, enquanto exposigdes fenoménicas; daf também a Tecusa de um possivel bom télos. A finitude dos fenémenos e das situa- {Ges impede qualquer esbogo de uma evolucao para algo mais bem situa- A 150 diseurso (28), 1997: 145.53 do num distante, embora possivelmente alcangavel, télos, ou a melhoracag da humanidade pela lapidagao moral dos caracteres, ou até a alteragio dos tipos. Como bem o retera Nietzsche, em Schopenhauer o simbolo da na. tureza € 0 circulo, nao a linha reta kantiana. “Sem excegio, por toda parte, o circulo € 0 auténtico sfmbolo da natureza, porque € 0 esquema do retorno (Schema der Wieder- kehr): retorno que €, de fato, a forma a mais geral da natureza, que ela em tudo leva a efeito, do curso das estrelas até a morte eo nascimento dos seres orginicos, e apenas devido ao qual, na tor- rente fugidia do tempo e do seu contetido, é possfvel uma existén- cia que permanece, isto é, uma natureza” (Schopenhauer 5, v. 3, p. 545). Quer dizer, a vertente cosmoldgica do eterno retorno do mesmo nietzschiano ja est4 antecipada naquele Erdgeist da estética de Scho- penhauer (terceiro livro de O mundo...), ¢, depois, no Schema der Wieder- kehr — o circulo —, dos suplementos & sua obra principal: por eles, nao € aceitdvel verdadeira perda, nem ganho no que af est4 dado. A matéria é constante, a tipologia humana também, que nao passa de objetivagao feno- ménica do Em-si do mundo, a Vontade, através dos seus atos origindrios, as Idéias, dispostas numa pirdmide hierarquica primeva e inalterdvel. Obviamente teremos de abrir um pequeno paréntese dizendo que, no fi- I6sofo de O mundo..., encontra-se o dualismo irredutivel entre Vontade & Tepresentagao. Ja Nietzsche rejeita a cisdo, Neste, os predicados da apa- réncia sto os da esséncia. Falar do fendmeno ja é falar da Vontade, e vice- versa. O Nietzsche de A gaia ciéncia dizia: “O que é agora, para mim, ‘aparéncia"! Na verdade, nao o contré- rio de alguma esséncia — 0 que sei eu dizer de qualquer esséncia, a nao ser, justamente, apenas os predicados de sua aparéncia! Na verdade, niio uma mascara morta, que se poderia por sobre um X SS parboza, J., discurso (28), 1997: 145-58 151 desconhecido e que também se poderia retirar! Aparéncia, para mim, é 0 préprio eficiente e vivente...” (Nietasche 4, p. 194), De modo que, se em Schopenhauer a finitude das situagdes se res- tringe ao mundo fenoménico, da representag&o submetida ao principio de faziio (espago, tempo e causalidade), ficando intocado o meta-fisico, em Nietzsche esta finitude € conferida ao mundo na sua completude. Desde que se atente a tal diferenga, na estética mesma de Schopenhauer 0 “es- pirito da terra”, ao lado da referéncia aos dramas de Gozzi — completa-os 0 “esquema do retorno”, o circulo ~, pode ser considerado como um teci- do conceitual do qual saird o eterno retorno do mesmo. Alids, pode-se ir mais adiante e dizer que ha uma heranga léxica. Basta voltarmos ao se- gundo livro de O mundo..., considerando ao mesmo tempo a metdfora nietzschia-na de que para 0 mundo “seus excrementos sao seu alimento”, ¢ observar-se-4 uma frase que, com poucas alterages, € a mesma encon- trada em Nietzsche: depois de argumentar acerca da disputa pela mat ria, constante, entre os diversos organismos para efetivarem uma Idéia (organismos que sio uma mesma Vontade, apenas no universo da repre- sentacdo, fenoménico, pluralizivel devido as formas do principio de ra- Zio: espago + tempo + causalidade), Schopenhauer expressa-se nos seguintes termos, simultaneamente enfatizando que a |uta entre os indivf- duos, e entre as espécies entre si, é, em tillima instAncia, um reflexo da discérdia (Entzweiung) intrinseca da Vontade consigo mesma: ..a Vontade de vida em toda parte se alimenta de si mesma e em diversas formas é seu proprio alimento...” (Schopenhauer 5, p. 175). Ou seja, Schopenhauer, ao dizer que a Vontade, no plano feno- MEnico, ao alimentar-se de si mesma, ao ser seu proprio alimento (seine eigene Nahrung), e isto nada mais sendo que um signo da sua discérdia €ssencial consigo mesma, emprega uma metéfora na qual os termos prin- Cipais so os encontrados, e num mesmo sentido, em Nietzsche: mostrar _ 152 Barbora, J.. diseurso (28), 1997: 145.52 que no mundo das forgas (matéria em Schopenhauer) hd uma constancig condicionante do retorno das mesmas situagdes, Ora, como no fildsofo de A gaia ciéncia o mundo é Vontade de poténcia e nada mais, ¢ 0 eterno retorno do mesmo s6 0 € enquanto retorno das situacées que envalven esta Vontade de poténcia, logo, se pata 0 mundo “seus excrementos sao seu alimento”, isto, ao nosso ver, significa que no interior do cfrculo da eternidade € a Vontade de poténcia mesma que esta se alimentando de si, como, em Schopenhauer, a Vontade de vida em toda parte e “em diversas formas [€] seu préprio alimento”. O filésofo de Frankfurt nao deixa die vida quanto ao que pensa, quanto a eternidade do automanter-se do mun- do, assessorada por uma constancia da matéria que reflete a constancia das espécies eternas, inalterdveis, imutaveis, por conseguinte, que reflete a inalterabilidade dos tipos humanos: “No fundo ... a Vontade tem de alimentar-se de si mesma, ja que fora dela nada subsiste e ela € uma Vontade faminta” (Schopenhauer 5, p- 183). I Ne tocante a vertente psicolégica, encontramos na continuagio do Aforismo 25: “Homem! Tua vida inteira, como uma ampulheta, serdé sempre desvirada outra vez e sempre escoard outra vez, — um grande mi- nuto de tempo no intervalo, até que todas as condigdes, a partir das quais vieste a ser, se retinam outra vez no curso circular do mundo. E entdo encontraras cada dor e cada prazer e cada amigo e cada esperanga...” (Nietzsche 4, p. 389-90, italico nosso). —_— 9 parboza, J.. discurso (28), 1997: 145-58 = Perceba-se: 0 eterno retorno do mesmo cosmoldgico nietzschiano € suporte para o psicoldgico, tanto € que, depois de falar de as “condigdes” que geram 0 homem novamente poderem reunir-se pelo curso circular, ou seja, apds certas combinagées de forgas novamente retornarem, Nietzsche lanca mao de um “entdo”, inferindo que © substrato fisico provoca uma ressonancia psicoldégica. “Entao”, se as combinagGes sido recorrentes, en- contra-se novamente cada prazer, cada amigo, cada esperanga, vale di- ger, as Vivéncias se repetem as mesmas. As emogdes colocam-se sob a rubrica da finitude e, seja o herdi, o pequeno homem, o senhor ou o e: cravo, estardio todes sempre ai, faces voltadas para as mesmas dores, pra zeres, amizades, esperangas e outros sabores e dissabores, resultantes do dinamismo de seus entrechoques morais. A ampulheta da existéncia sem- pre estd a cambalhotear, e o seu contetido nao se altera. O 6dio de hoje é ode amanha, o amor de amanhi foi o de ontem, 0 circulo eterno submete asi desde a mais infima manifestagdo inorgdnica até a mais superior for- ma de consciéneia, Ora — e aqui estabelecendo uma simetria com a pri- Meira parte da nossa investigacao —, a estética de O mundo... fornece uma passagem em que podemos rastrear © eterno retorno do mesmo em sua vertente psicoldgica estribada na cosmoldgica. Discorrendo sobre a opo- sigdo entre histéria ¢ poesia, aquela circunscrevendo-se ao dominio do fendmeno e esta tendo acesso ao Em-si, Schopenhauer, ao apontar 0 inestimavel quilate da poesia lirica, expde sua teoria do constante retor- No das emogoes (cantadas pelo poeta), justamente servindo-se do termo Wiederkehr, que, principalmente na variante Wiederkunft, foi empregado Com freqiiéncia por Nietzsche. Nesse momento, diz que a psicologia emo- Cional de toda a humanidade se repete ¢ tudo aquilo que se sentiu ou se Sentird se conecta As situagdes que continuamente retornam, fazendo com que os produtos liricos, que captaram e exprimiram o fntimo da humani- dade, tenham valor sempiterno. Ora, é exatamente uma tal estrutura argu- Mentativa, de estribar uma ressonancia psicolégica sobre uma base fisico-cosmolégica, como vimos, 0 que Nietzsche faz, ao inferir depois de um “entio”, que “cada dor e cada prazer e cada amigo e cada esperan- fa... empre estdo af, nao sem antes expor as “condigdes”, 0 esqueleto fisico do retorno. E isto impossibilitara tomarmos @ seu pensamento como _ 154 Barbora, J., diseurso (28), 1997: 145.59 “proprio” (mein eigentlich) e indice de algo inédito (ab-griindliche, Gedanke), pela primeira vez algado ao estatuto de conceito filoséfico, pois antes dele ja dissera Schopenhauer: i “Contudo, reproduz-se na poesia lfrica do genufno poeta o fntimo da humanidade inteira, e tudo aquilo que milhdes de homens pas- sados, presentes e futuros sentiram e sentiraéo nas mesmas situa- ¢Ges (visto que continuamente recorrentes) encontra nela sua expressdo apropriada. E, na medida em que estas situagées, pelo retorno constante (bestdndige Wiederkehr), bem como a humani- dade mesma, est4o af permanente e continuamente a despertarem Os mesmos sentimentos (selben Empfindungen); — os produtos li- ricos do genufno poeta permanecem séculos afora verdadeiros, efi- cazes e joviais” (Schopenhauer 5, p. 294). Compreenda-se, Como para Schopenhauer a quantidade de matéria permanece, é constante, nao foi criada nem vird a sé-lo, os individuos tra- vam uma pugna infinddvel pela sua posse, em diferentes locais, circuns- tancias e tempos, repetindo o conflito das existéncias que grassa na natureza desde que houve objetivagao da Vontade em fenémenos. A globalidade da vida humana nao foge a regra: cada homem € contendor potencial de um outre — homo homini lupus —; cada um quer tornar o sell carter inteligivel, acentuagio da Idéia de humanidade, em carter emp rico, vale dizer, quer agir, é impelido a agir, por motivos diversos, e 20 fazé-lo restringe o agir de um outro individuo, dificultando-lhe a posse da matéria®. Ora, se em todo este inter-relacionamento conflitivo leva mos em conta as consciéncias nele envolvidas, entdo, pode-se inferir, eM Schopenhauer os sentimentos recorrentes devem ser vistos como ress0- nancias, nas consciéncias, das idénticas situagdes conflitivas a retornd rem as mesmas no curso dos séculos, O termo que o fildésofo de Frankfurt usa para conectar situagdes e sentimentos recorrentes é hervorrufen: as situagdes, desenhadas pela pugna por matéria, chamam, pelo “retorn? constante”, os mesmos sentimentos, despertam-nos, ainda mais que parbora, J., discurso (28), 1997: 145-58 155 emprego do termo Empfindung, que na sua pena adquire a conotagao de sentimento relacionado 4 constituigdo corpdreo-material, que antecede muitas vezes © sentimento espiritualizado, o Gefiihl. O poeta Ifrico sera aqucle que, intuindo a Idéia estética por tras das variegadas situagées, ins- titui um modelo para tudo aquilo que af est4, vira ou j4 veio; concomi- tantemente a reprodugao artistica, evoca as emogoes envolvidas na concepgao. Assim, a estética de Schopenhauer, mais precisamente 0 terceiro li- yro da sua opus magnum, € doutrina das mais ricas para se averiguar o esquema do eterno retorno do mesmo, vale dizer (repita-se), no interior do tempo a mesma quantidade de matéria impede a variedade das situa- ges, impede que os individuos, as formagdes tipolégicas sejam ines- gotavelmente originais, ainda mais que tais tipos deverao expor Idéias, as quais foram origindria ¢ inalteravelmente hierarquizadas pelos atos ori- gindrios da Vontade, do Em-si do mundo. Ligadas a tal pano de fundo ideacional, as emogdes se conservarao nos limites da constancia da ma- téria, da tipologia exposta na finitude fenoménica; neste quadro, retorna- rio as mesmas em individuos empiricos que nao podem ser infinitamente diferentes: ¢ a imagem do caleidoscépio. O Schopenhauer dos Parerga e paralipomena ainda dira: “_. sabre o palco do mundo mudam as pegas e as mascaras, mas 0s atores permanecem os mesmos. Nés nos reunimos e falamos e nos damos conta uns dos outros, os olhos luzem e as vozes res- soam: exatamente do mesmo modo outres se reuniram, ha milha- res de anos: foi do mesmo modo, ¢ eram os mesmos: exatamente assim sera por milhares de anos” (Schopenhauer 5, v. 6, p. 293-4). Observe-se a intengio dos itdélicos de Schopenhuer: num momento ele destaca “outros”, mas depois “os mesmos”, “Outros” = “os mesmos”. De fato, tanto para o jovem quanto para o velho Schopenhauer, falta ao Mundo a faculdade da eterna novidade. . 136 Barboza, J., diseurso (28), 1997: 145.5g Ora, em assim sendo, é dificil para o leitor aceitar a pretensag nietzschiana de que o pensamento do eterno retorno do mesmo — inclusj- ve 0 seu esqueleto tedrico, de assentar uma ressondncia psicolégica so. bre um fundamento fisico — seja seu pensamento propriamente “mais abismal”, ab-griind-licher, como Ecce home reivindica. Jé em Schopen- hauer podemos registrar a sua presenca, em léxico e sentido equivalentes aos nietzschianos, como foi apontado atras; portanto, ha um Grund fi- lossfico para ele. Abstract: The main purpose of this article is to prove that Nietzsche's eternal recurrence Is not his abgriindlicher thought, as it is said in Eeee homo, but has a Grund in Schopenhaue’S aesthetics, Key-words: Schopenhauer — Nietzsche — Will — phenomenal world — eternal recurrence Barboza, J., discurso (28), 1997: 145-58 157 Notas do da \déia. (1) Cf. Quarta proposig (2) Eis o cabegatho da oitava proposigo da \déia...: “Pode-se considerar a historia da espécie humana, em seu conjunto, como a realizagao de um plano ocitlto da natureza para estabelecer uma constituigde politica (Staatsverfas- sung) perfeita interiormente e, quanto a este fim, também exteriormente per- feita, como o tinico estado no qual a natureza pode desenvolver plenamente, na humanidade, todas as suas disposigdes” (Kant 2). (3) Aforismo 341, “O mais pesado dos pesos": “Ese um dia ou wind noite wn deménio se esgueirasse em tua mais solitdria solidao e te dissesse: ‘Esta vida, assim como tu a vives agora e coma a viveste, terds de vivé-la ainda wma vez ainda imimeras vezes; e ndo haverd nela nada de novo, cada dor ¢ cada pra- zere cada pensamento e suspiro e tudo o que ha de indizivelmente pequeno e de grande em tua vida hd de retornar, e indo na mesma ordem e seqiiéncia —e do mesmo modo esta aranha ¢ este luar entre as drvores, e do mesmo modo este instante e eu proprio. A eterna ampulheta da existéncia serd sempre vire da outra vez — eu com ela, poeirinha da poeira!'” (Nietzsche 4, p. 209). (4) Indique-se que para Schopenhauer a esséncia da matéria é o fazer-efei- to, Wirken, dat a Wirklichkeit, ow realidade efetiva, efetividade. Cf. Schopen- hauer 5, p. 10. (5) Cf, id., ibid., p. 62. Na verdade a distingda vem de Kant: “...entendemos sob o nome sensagdo (Empfindung) wma representacae objetiva dos sentidos; €, para néo incorrermos sempre no perigo de sermos mal interpretados, que- remos denominar aquilo que tem de permanecer a todo momento meramente Subjetive e nao pode absolutamente engendrar nenhuma representacdo do objeto, com 0 nome, alids usual, de sentimento (Gefihly” (Kant 1, p. 118-9). 158 Barboza, J., discurso (28), 1997: 145.55 Referéncias Bibliograficas 1. KANT, I. Werkausgabe, v. X, Kritik der Urteilskraft. Frankfurt-am- Main, Suhrkamp, 1990, ps . Idéia de wma histéria universal de um ponto de vista cosmo- polita. Trad. de Rodrigo Naves e Ricardo R. Terra. S40 Paulo, Bra- siliense, 1986. 3. NIETZSCHE, F. Séimtliche Werke, v. 6, Ecce homo. Berlim, Walter de Gruyter & Co., 1980. 4, . Obras incompletas. Excertos traduzidos por Rubens Rodri- gues Torres Filho. Saio Paulo, Abril, 1983. 5. SCHOPENHAUER, A. Séimtliche Werke, v. 2, Die Weit als Wille und Vorstellung. Wiesbaden, F.A. Brockhaus, 1972,

You might also like