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Berkeley Os Pensadorés Berkeley ~ | iume “As idéias impressas nos sentidos slo caisas reais ou existe realmente; no 0 negamos, mas negamas que exis tam fara do espirito percipiente ov que sejam semelhangas de arquétipos exte- riores a0 espiritd, pols uma sensagio ‘ou idéia consiste em ser percebida, © uma idéia 56 pode assemelharse a coma idéia Insisto em que as ideéias dos sentidos podem chantarce externas ‘quanto a origem, visto nao serem gera- das pelo espirito mas rele impressas por um Espirito diferente daquele que 28 percebe. Os objetos sensfveis tame ‘bém podem considerar-se ‘Tara do espi- rito’ em outro sentido, o de existirem ‘em outro espirito; assim, quando fecho ‘a5 olhos as coisas que vejo existem mas 56 pode ser em autroespirita.”” BERKELEY: Tratado sobre @ conheci- mento humano. “Toda idéia 6 copiads de alguma impressio ou sentimento anteriar; €, quanda nao podemos encontrar menhu- ma impressdo, podemos estar certas de que no ha idéia alguma. Em todos os exemplos isolados de operacao de ‘compos ou mentes, nada hi que predu- 2 qualquer impressdo de poder ou co- nex necessiria €, conseguintemen- te, poses sugerir qualquer idéia dese genero. Mas quando se apresentam, muitos exemplos uniformes & ao mes- mo objeto segue-se sempre 0 mesmo acontecimenty, comecgamos @ nutrir a idéia de causa © conexdo. Experimen- tamos entéo um novo sentimento ou impressio, a saber: a de uma conexio habitual, no pensamento. ou na imagi- nacao, entre um objeto ¢ a scu acom- panhante usual; e esse sentimento é 0 original da idéia que procuramas," HUME: Investigagdo sobre 0 entendi- mento humana. Os Pensadorés ClP-Brasil. Catalogagio-na-Publicagio (Ciara Brasileira do Livro, SP Berkeley, George, 1685-1753, Tratado sobre os principioy do conhecimento humano. ; Trés. didlogos contre Hilas © Filonous em aposiclio aos céticos © aleus / George Berkeley. Investigagao sobre © entendimemto humana ; Ensaivs morais, politicos ¢ li- teririos / David Hume ; tradugdes de Antonio Sérgio .., det al), — 3, od. — Sho Paulo : Abril Cultural, 1984. (Os peasadlores) Inctui vida © obra de Berkeley ¢ Hume, Bibliografia, 1, Conhecimento - Teoris 2. Empirismo 3. Filosofia inglesa 4. Idealis- mo inglés 1, Hume, David. 1711-1776. I, Sérgio, Antinio, 1883-1968, HI, Titulo. IV. Titulo: Tr€s didiogos enue Hilas © Filonous em oposigio 05 eéticws steus, V. Tilo: Investigagio sobre © entendimento humano. VL. Titulo; Emstiay morais, potiticas ¢ litririos. VIL. Série, CDD-192 indices pura catslagn sistematico: 1. Canhecimento : Teoria : Fifosofia 12 2. Empirisma : Filosofia 146.4 3, Filosofia imglesa 192 4. Idealism : Filosofia 141 5. Teoria do conheciments : Filosofia 121 GEORGE BERKELEY TRATADO SOBRE OS PRINCIPIOS DO CONHECIMENTO HUMANO TRES DIALOGOS ENTRE HILAS E FILONOUS EM OPOSICAO AOS CETICOS E ATEUS DAVID HUME INVESTIGACAO SOBRE O ENTENDIMENTO HUMANO ENSAIOS MORAIS, POLITICOS E LITERARIOS ‘Tradugoes de Anténio Sérgio, Leonel Vallandro, Joao Paulo Gomes Monteiro, Armando Mora D' Oliveira 1984 EDITOR: VICTOR CIVITA ‘Titelos originais: ‘Textos de Berkeley: Treatise Concermang che Principles of Haman Knowledge Three Divioguer Between Aylas and Plilorous ‘Textes de Hume: An Empuiry Concerrang Hionar Understanding Esuuys, Moral. Polite! unt Leary © Copyright Abril S.A. Cuhutal, Si0 Paulo, 1973. 2.rediggo, 1981, —3* digo, 1984, ‘Tradhigos poblicadas seb licenga de Addntida Edtora, 5.8.0.1, Coitabea (Travade sobre as Principics des Couhecimenno Humane; Trés Didlogor enure Hffas ¢ Filonous em Oposigdo aos Céricos); de Ealtors Globo 8,A.,, Pom Mlegre (livestigegie sobre a Emtendiciento Hamano). Diets exclasives sobre a tradugio Frsaiar Morais, Polucar # Sociair, ‘Abril $.A. Cultural, Sia Paulo, Direitos exclusives sobie “*Berkeley — Vida © Qbea"™ ¢ “Hume — Vida © Obra", Abril S.A. Cultural, So Pala, BERKELEY VIDA E OBRA ‘Consultoria; Jodo Paulo Gomes Monteiro sei eS eS SS Se G eorge Berkeley nasceu em Kilkenny, Irtanda do Sul, em 12 de marco de 1685. Estudou na escola da cidade natal, por Cujos bancos tinha passado, alguns anos antes, 0 autor das Viggens de Gulliver, 0 conhecido satirista Jonathan Swift (1667-1745), Os es tudos superiores fram feitos no Trinity College de Dut onde Ber- keley tornoy-se fellow em 1707, quando passou a lecionar hebraico, grego © tealogia. Nessa época, lia muito os fildsofos (especialmente Locke, Newton ¢ Malebranchel @ anotava abservacées, reunidas sobs © titulo de Comantirios Fifoséficas, hoje de grande imporincia para a compreensio de sua abra posterior, Seu sistema filosética foi concebido e realizado quando ainda re- lativamente jovem. Em 1709, aos vinte e quatro anos de idade, Berke- ley publicou 0 Ensaio para uma Nova Teoria da Viseo. Um ano de- Pols, surge o Tratado sobre os Principios do Conhecimento Humana © em 1713, os Trés Didlogos entre Hilas © Filonous, nos quais reto- mae desenvalve as teses © argumentos do Tratado, Trata-se, portanto, de uma abra inteiramente estruturada nos co- megas do século XVII, quando as cidnetas naturals s¢ desenvolviam libertas do finalismo aristotélico ¢ escolastica & capacitadas a explicar os fendmenes de manetra autonoma, sem qualquer intervengio de fa- tores sobrenaturais, A natureza era Vista como um conjunto de fatos explicaveis por si mesmos, cabendo ao homem tio somente decifrar a ordem matematica inerente a eles. Tal maneira de ver a matureza conduzia a uma concepgao mate- fialista do universo. Pola menos foi o que acontecey historicamente, dada a ausencia da necessidade de conceitos coma “espirito” © ou. tros analogos. Nesse sentido fe importante a concepcao dualista tor. mulada por Descartes (1596-1650), segundo a qual existem duas sul. tancias independentes (pensante e extensal, cada uma com scus domi- hios prdprios. Minava-se, assim, a visdo crista medieval de uma natu feza criada por Deus ¢ subsistindo apenas em funcda dele. Nao bas. tasse i580, Descartes desenvolveu muito mais a parle de suas obras re ferentes 8 substancia externa e criou as coordenadas de uma fisica ma- temitica, que se propunha a explicar as fenémenos fisicos de manei- ra auténoma. vil BERKELEY Na Inglaterra, Newton (1642-1727) caminhava no mesmo senti- do © mostrava a verdadeira via para o conhecimento dos fendmenos fisicos: a unio entre a matematica e a experimentag3o. Thomas Hob- bes (1588-1679) formulou um rigido sistema materialista e John Loc- ke (1632-1704) desenvolveu uma teoria empirista do conhecimento que — pensava Berkeley — conduzia diretamente ao materialisma e a9 ceticismo, Uma filosofia imaterialista Dentro desse panarama, Berkeley dispas-se a restabelecer o pi mada do espitito, investigando ““as principais causas do erro e das di- ficuldades nas ciéncias e os fundamentos do Caticismo, do ateisma ¢ da irreligiio” (subtitulo do. Tratada sobre os Principios do Combaci- mento Humano), Para alcangar esses objetivas, tomau como panto de partida a filosofia de Locke, admitindo 0 essencial da teoria do co- nhecimento empirista, mas chegando a resultados intciramente dife- rentes @ até certo ponto paradoxais. john Locke tinha desenvolvido, no Ehsdia sobre o Entendimento Humano, a concepgao de que todo conhacimento se origina da expe- riéncia sonsivel ¢ néo existem idgias no intelecto humano produzidas exclusivamente pelo proprio intelecto. Nao existiriam as chamadas “idéias inatas", admitidas por Descartes, As idéias matematicas de quantidade, por exemplo, nav constituem, para Locke, formas impres- sas na mente antes do aparecimento das lunges sensiveis na crianga Quando © homem nasce, sua mente seria como um papel em bran: €o. ‘Sobre esse papel, os contates fisicos, estabelecidos pelos cine sentidos, imprimiriam aos poucos os caracteres que, depois de miilti- plas experiéncias do mesmo tipo, formariam as idéias gerais. Exempli- icando-se, se © homem tem em sua mente uma idéia geral de drvore (que nao deve ser confundida com a fepresentagdo mental desta ou daquela arvore em particular), essa idéia & apenas o resultado final das indimeras @ sucessivas impresses de drvores particulares, qué fo- fam produzidas cada vez que esse homem viu drvores concretamente existentes na natureza, Assim, todas as idéias que o homem possut Mm sua mente seriam o resultado de um processo que se inicia com uma sensacdo particular (pela visio, tato, olfate, paladar ou audig3o), repetida muitas vezes, Essa teoria supunha, conseqdentemente, que as coisas exteriores a mente humana possuiriam qualidades objetivas, capazes de prov. Car © aparecimento das sensagées subjetivas da mente humana e as idéias resultantes. Chegava-se, assim, @ concepcao de que o mundo exterior @ constituldo por algumas qualidades primdrias, & soma das quais as filésofos da patureza detam o nome de matéria, ou substan. cla material. Essa substancia material nao poderia ser revelada directa mente aos sentidos, resultando seu: conhecimento de um processo de inferéncia puramente intelectual. £m outros termos, a matéria — dife- rentemente das coisas materiais — no pode ser vista, ouvida, cheira- da, etc. Esses pracessos sensoriais 36 ocorreriam com ‘as coisas consti- tuidas a partir da matéria. VIDA E OBRA Ix Berkeley concorda com as linhas gerais da teoria empirista de John Locke, mas nao admite a passagem do conhacimento dos dados forne- cidos pelos sentidos para o conceit abstrato de substancia material, Aderinda ao mais complete empirismo, afirma que essa substincia material nao pode ser conhecida em si mesma. O que conhecemos do mundo exterior resume-se as qualidades reveladas no process de Percepgao ¢ nada mais, de tal forma que é forcoso concluir pela alir- magéo de que a existéncia das coisas nao é mais do que um feixe de sensacoes, Em poucas palavras, “ser & ser percebido" (“esse est perci- pi’). Dizendo o mesmo de maneira mais concreta, a cor dos objetos nao serla mais do que algo visto; 0 som, algo ouvide; a forma, algo visto ou sentido pelo tato © assim por diante. Todo a mundo corporeo seria sempre © sensorial, um conjunto de fatos existentes unicamante nos sujeitas que conhecem. Nao existiria qualquer possibilidade de conhecer-se uma existéncia independente, determinada pela estrutu- ra das préprias coisas, como queriam Locke € os fildsofos da nalureza do século XVI. Nao se tratava, portanto, de negar a existéncia das coisas mate- riais que constituem o meio ambiente do homem. © que Berkeley pos em questao foi a idéia abstrata, entao corrente, de matéria co- mo uma substancia fundamental, constit de todas as coisas e dicalmente diferente da substincia pensante, segundo a terminologia cartesiana, A teoria berkeleiana de que “ser é ser percebido'” nao significa, Contudo, que o mundo se redaz A mente de cada individuo, pais Bere keley ajunta um complemento essencial para evitar todo subjetivismo individualista. Trata-se da postulagao da existéncia de uma mente cés- mica, superior & mente de cada homem. Essa mente césmica é Deus, Concebida como sujeito cagnescente absoluto, no espirita do qual to das as caisas seriam percedidas. O mundo é, portanto, concebido por Berkeley como um conjunto de coisas corpdreas existentes na mente divina @ tendo nela toda sua razio de ser. As Gltimas obras de um idealista Berkeley tentou salvar © espitita @ a religiéo cam suas obras filo- soficas, Se aleancou o objetivo almejado, ou apenas substituiu a idéia abstrata de matéria por outra nao menos abstrala, a de Deus, é assun- to discutivel. Nao se discute, contuda, que foi um homem piedoso ¢ idealista (no sentido moral da palavra) até os altimos dias de sua vida. Depois de concluido o essencial de sua filosofia imaterialista, em 1713, quando contava apenas 28 anos de idade, viajou para Londres, onde manteve contatos cam os poetas Jaseph Addison (1672-1719) « Alexandre Pope (1688-1744), © escritor Richard Stoole (1672-1729) ¢ Jonathan Swift, e escreveu alguns artigos contra os livres-pensadores. Numa segunda cstada na capital inglesa, de 1716 a 1721, escreveu um pequena ensaio em latim, Sabre 0 Movimento, 00 qual critica 3 fi- losafia da matureza de Newlon © a woria da forga de Leibniz (1646-1716). x BERKELEY Cronologia Em 1724 tornou-se deao em Derry (Irlanda) e, na mesma época, Projetou a fundagdo de um colégio nas Bermudas, onde pretendia educar, para o ministério cvangélice, ndo sé os filhos dos colenos americanas, mas também negros © indigenas. Procurou ajuda finan- ceira © parti pera Rhode Island. nos Estados Unidas, onde planejava estabelecer fazendas para prover o colégio de alimentos. Depois de algum tempo, cansado de esperar pele apoio que acabou nao vindo, abanconov © projeto e voltoy para Londres, em 1731. Nesse meio tempo escreveu uma obra sab forma de diglogos, Alciphron, contra 05 livres-pensadores ¢, no periodo de 1732 a 1734, redigiu O Amalise ta, no qual criticava 0 calculo diferencial ¢ integral de Newton, ¢ Uma Defesa do Livre Pensamenio em Matematica. Em 1734 fai escolhida para o cargo de bispo de Cloyne, regido isolada e pobre da Irlanda, onde encontrou problemas que o fizetam refletir sobre os assuntos econdmicas. O resultado disso foi O Ques- tionadr, obra na qual apresenta uma série de quesiées econdmicas ¢ sociais, como a pobreza e a ociosidade, propondo algumas solugdes, através de trabalhos puiblicos e educayao. Preocupou-se também com problemas de sadde piblica e entusiasmou-se com os valores medici- nais da 4gua de alcatrao, na qual acreditou ter encontrado uma verda- deira panacia universal, Escreveu entic sua Gltima obra, Siris ou Re- flexées e@ lnvestigacées Filasdticas sobre as Virtues da Agua de Alca- tréo, na qual se aproxima de doutrinas do antigo necoplatonismo & anafisa as causas dos fenémenos fisicos, achando que elas devem ser explicadas pela agao divina. Siris foi publicada em 1744 e, dessa data em diante, pouco se sa~ be sobre a vida de George Berkeley, a nao ser que em 1752 se ustabo- leceu em Oxford, onde faleceu no ano seguinte. 1685 — Goone Berkeley nasce em Kilkenny, trfanda, a 12 de mango. Nasei- mento de Bach, Handel e do pintor J. M. Nattier, 1687 — Malebranche publica Coisquias sobre 9 Metallica © Newton, 09 Princinias de Filasovia Natural. 1690 — Ver a luz 0 Ensaio sobre 6 Entend:mento Humanode john Locke, 1700 — Berkeley ingrossx no Trinity College so Dublin, 1701 — Funda-se, na Inglaterra, a Sociedade para Fomonty do Conhecimen: into. 1702 — Funda-se o primeino didria ingles, © Daily Courant, 1707 — Berkeley torna-se professor no Trinity College de Dublin. Denis Pa pin constiéi um barco a vapor. 1709 — Berkeley publica o Ensaio para uma Nova Teoria da Visdo, 1710 — Surge @ Tratade sobre os Principios do Canhecimento Humano de Berkeley. Leibniz publica a Teodicei, 1713 — Berkeley cuida da publicagsio dos Trés Didlogas entre Hilas e Filo- nous € comeca im periodo de viagens, que se estende até 0 ane seguine, 1716 — Nave periedo de viagens que se prolonga até 1720. 1721 — Publica vm pequeno ensalo Sobre 0 Movimento, po qual critical Newton e Leibniz, 1724 — Tara-se deio de Demy tirlanda). Nasee a filésofo Emanuel Kant. VIDA EOBRA XI 1728 — Borkoloy casa-se © val movar ein Newport, Rhode Islind, nas Feta. dos Unidos. 1732 — Novamente em Londres, Berkeley publics Alciphrun. 1734 — Eescolhide bispo de Clayne (Irland) ¢ publica C Analista 1735 — Publica Uma Defesa do Livre Pensamento em Matematica ¢ O Questionador. Surge o Ensaio sobve o Homem de Alexander Pope. 1744 — Berkeley publica Siris. Nasce Lamarck. 1752 — Berkeley tanstore-se para Onion’. 1753 — Falece em Oxlord. ne dia 14 de janeiro. Bibliografia Moos. G.E.: Refidation af Idealista in Philosophical Studies, Londres, 1922. Jownston, G. A.: The Development of Berkeley's Philosophy, 1923. Hiexs, G. Dawes, Berkeley, Londres, 1932, Loct, A. Av: Berkeley and Malebranche, Londies, 1934, Luet, A. A.: Berkeley's Immaterialism, 1945. Luet, A. A. The Life of George Berkeley, Bishop af Cloyne, Londres, 1949. Wee coupe Berkeley, a Study of his Lie and Philasophy, Nova Yerk, abe Heoms, |.: Sensationalism and Thealogy im Berkeley's Philosophy, 1936. Gaiam, Nie ba Renée Religieuse de Berkeley et [Unité de sa Phiolophie 1995, Waswocx, G. J. Berkeley, Pelican Books, 1953 Gutrouly Martai Berkeley, Quatre Etudes sur le Perception et sur Pleu, Aue bier, Edition Montaigne, Paris, 1956. Suu, E. As George Berkeley and the Proofs for the Existence of God, Lon= res, 1957. Linoy. A. L.: George Berkeley, Presses Universitaires de France, Paris, 1959. Ansttonc, D.M.: Berkeley's Theory ef Vision, Melbourne, 1961 Modern Studies in Philosaphy: Lacke and Berkeley, editado por C. B. Martin ©. M, Annstiong, Ed, Macmillan, Londres ¢ Melbourne, eS GEORGE BERKELEY TRATADO SOBRE OS PRINCIPIOS DO CONHECIMENTO HUMANO Pradagio de Anténio Sérgio PrEFACcIO po AUTOR O que haje publico pareceu-me depois de longo e minucioso estudo inteira mente exato, ¢ de algum proveito, em especial aos jd tocados de ceticismo ou desejosos de uma demonstracdo da existéncia v imaterialidade de Deus ou da natural imortalidade da aima. Seja assim ou ndo, basta-me que o leltor 0 examine imparcialmente, pois nenkum outro éxito quero para o que escrevi sendo o acordo com a verdade. Para isso peco ao leitor que suspenda 0 jutzo até ter fido tudo coma atengdo © a reflexdo que o assunto parece merecer. Aleuas passos em sepa- rado podem levar (e 0 caso é inevitdvel, a graves erros de interpretagdo e a conse- qiéncias ahsurdas, que uma leitura cuidada mostraré néo derivarem detes. Mesmo wma leitura completa mas superficial trairé provavelmente a meu pensa- mento; mas para o leitor refletide confio que serd claro e dbvio. Quanto & novi dade ¢ singuiaridade de algumas nogaes epresentadas, espero que seja desneces sario tecer a apologia. Muito fraco ou muito pouca dado eo saber sera quem rejelte uma verdade demonstrével s6 por ela ser nove ox contrdria a prejuizos da ftumanidade. Por isso tratei de prevenir, se for possivel, a censura precipitada dos que s@a prontos em condenar uma opinido antes de té-la verdadeiramente compreendido. INTRODUGAO 1, Niio sendo a filosofia sendin o deseja da subedoria ¢ da verdade, ¢ de esperar dos que nela gastaram o melhor do seu tempo ede seu trabalho que fruam de maist ealma ¢ serenidade espiri tual, maior elareza e evidéneia de eonhecimento, ¢ sejam manos assediados por difleuldades e di vidas do. que 0s outros homens. Apesar disso, vemos o grosso iletrado da humanidade pereorrer © tritho do simples senso comum, governado por itames da naturesa, com’ facilidade © sem perturbagic. Nada do que é familiar thes parece inexplicivel ou duro de entender. Niio se quei- xam de falta de evidincia nos sentidos. ¢ © periga do ceticismo nao os ameaga, Mas apenus sal mos dos sentidos ¢ do instinto para a luz de um principio superior, para meditar, pensar ¢ refletir nn naturcea das coises, mil escnipulos surge no espirite sobre © que antes parecia compresn- dermos claramente. De toda 4 parte s¢ nos levantam preconecitos, ¢ erros dos éentidos: e, a0 ten tar corrigh-los pela razdo, insesnsivelmente caimws em singulares paradoxos, diffculdades, inconsis- ‘éneias, que se multiplicay a0 progredir ni especulagdio, até que depots de ter percorride verdadeiras labirintos nox achamas onde esivamos: od, 0 que é pior, eniresuer a um mésero ceticismo, 2, Da-se como causa disto a obscuridade das coisas ou n natural fraqueza ¢ impecfeigio do nosso conhecer. Diz-se que as noxsas faculdades slo poucns, dadas pela natureaa para conserve: gio ¢ comodlidade da vida, nfo para penetra a esséncia ¢ constituigin das coisax. Demais, quan do 0 espirito finito do homem quer ocupar.se do que participa da infinidade, niio admira vé-lo cair ‘4m absurdos ¢ contradigSes de que nio consegue devenredar-sc, por ser di natareza de intinito a sua incompreensibilidiade pelo finito, 3. Mas talvez, sejamoy injustos conosco situands o defeito originuriamente nus fossas facul- dades © nia no mau uso delas. E dificil accivar que dedugdes correias de prineipios verdadeiros aportem a canseqiiéacias inaccitaiveis ou inconsistentes. Devemos crer que Deus foi mais liberal com os homéns, ¢ nio thes dew um forte desejo de conhecimento colacada fora do. seu alcanee, Jsto opor-se-ia ao metodo indulgente da Providéncia, que a todas os apetites inspirndos as suas criaturas forneveu ardinariamente meios — se justamente utilizadng — de poder satistinzé lox, Além disso parece-me que 8 maior parte, se no todas as difiealdades que até agora detiveram os fildsofos © barrarum o caminho do conkecimento, ady as provecamos, levantando a poeira & de- pois queixando-nos de nao ver. 4. Tentarei pois deseobrir os principios introcutores desta clivida ¢ incertezu, destes absur- dos ¢ Contradigdes em virias escolas de Filosofia. 2 ponte de as homens mais sibios terem julgado incurivel o nossa ignorincia, como frato netural da fraqueza ¢ limitagio das nossas Faculdades, Decerto vale bem @ pena inquirir estritamente dos primeiras principios do conhecimento humane. fom especial se ha motivo de suspeitar quc as barreiras ¢ dificuldades encontradas pelo espitito nl busea da verdade nao resulta de obscuridade © complexidade do objeto ou natural defeito de compreensiin, canto quanto de falsos principios em que se tem insistido e devem rejeitar-se. 6 BERKELEY S Bem parece tarefa dificil ¢ desanimadora, ve pensar quantos homens grandes e extraordi- drios me precederam nela; mas tenho algums esperanga consiclerando que nem sempre as vistas laigas so as mais claras, ¢ que um miops, obrigado a eolacar 0 objeto mais perto, pode talver por um exame proximo descobrir o que no viram muita melhores olhos, 6. Para preparar o leitar a mais facil inteligéneia do que se segue. convém por como introdu- 30 alguma coisa sobre a natureza ¢ 0 abuso da finguagem. Mas o deslindar deste tema de certo todo antecipa o meu plano, por tratar-se do.que parece tr sido origem principal da divida ‘complexidade da especulagio como de erros e dificuldades indmeras em quase todos os dominios do conhecimento. E foi a apinie de que 6 espirito pode construir idéias abstratas ou nogdes de coisas. Quem nie for de todo atheia a obras e discussées de fikinotos reconhceers que nfo peque- a parte delas se trav acerca de idéias abstratas. Eas passam especialmente por objeto das vig: tias denominadas Ldgioa ¢ Metaffsiec © de quanta se tom pelo mais abstrato ¢ sublime extudo, onde entretanto raro s¢ encontra uma questie pasta de mode que ndo suponba a sun existének no espirito € que isso & bem conforme com elas. 7. Bet nssente que as qualidades ou modos das coisas nunca existem realmente cada uma Por si e-em separado, mas em conjunto, varias no mesmo objeto. Mas. como digsemos, o espirito & capar de considerar cada uma scparada ou abstrafda day gutras a que esti lizada, formando assim idéias abstratas, Por exemplo, a viste aprecnde um objeto extenso, colorido, mével; esta iddis compdsita resolve-a » espirita nos seus elementos e isolando cada um forma as idéias abstea: tas de extensio, cor, movimento, Nao podem cor ¢ movimento existir sem extensiiox mas ¢ espi- rite pode formar por ebsirapdo a idéia de cor, excluindo a extensio.e a de movimento, excluindo asoutras duas. 8. Depois, tendo observado nas extensdes sensiveis particulares algo semelhunte ¢ comum ¢ algo peculiar come a forma ou a grandeza que as distinguem, considera i parte © que ¢ comum formanda a idéia muito mais abstrata de extensio que nio & linha, superficie ou vokume sem forma ov grandezt mas tia iaéia abstraida de todas elas. De igual modo, pospondo cores part- sulares sensiveis ¢ distintas © conservando apenas © que Ihes 6 comum, 6 espirito faz idéia da cor fm abstrato. que ndo é vermelha, azul, brasca ou qualquer cor determinada. Por idéntico proves 80, abstraindo 0 movimento nig % do corpo mével mas da irajetéria, ¢ de todn velocidade ou diregdo particular, forma a idéia ubstrata de movimento, correspondente a qualquer especie de movimento particular sensivel. 9. B, assim como forma idéias abstratas de qualidades ou modas, a espirito, pela mesma Sepuragio mental, forma iddias abstratan dle sores mais complenos que abrangem varias quattida- des cocxistentes. Por exemplo, tendo observado cm Pedro, Jaime ¢ Jodo certag semelhangas de estatura ¢ outras qualidades, pic de parte ni idéia comploxa ow composta de Pedro ou Jaime on qualquer homem particular o que peculiar a cada um, conservando apenas o que € comumn.a todos e assim forma a idéia abstrata, apliesvel a todos 05 particulares, abstraindo e separando Sircunstincias ¢ diferengas determinantes de uma existncia particular. Diz-se que desta forraa ve chega i idéia abstrata de homem ou. se preferirmos, humanidade ou natureza humana; onde de fate se inclui a cor, pois tedo homem tem aiguma, mas niio branca nem preta nem qualquer cor pardeular, pois neniuma existe em todos os homens, O mesmo para fl estatura, nao alta nem baixa nem média, mas algo abstraide de todas, E assim pars tuda mais. Além disso, havendo grande variedade de crintures com alguns mas io todos os catacteres da complexa idéin de homem, a espirito, rejeitando o peculiar ao bumem ¢ aproveitanda si o que € comum 208 seron vivos, forma a idéia de animal abstraida nao x dos homens particulares mas também de todas ax ves, quadripedes, peines © insetos. Os elementos constitutives da idéia abstrata de animal aio Sorpo, vida, sentidos, moviniento espontaueo. Por corpo entende:se corpo sem qualquer tamarho Ou figura par nia os haver comuns a todos os animnis; sem cobertuca de pel, de penas, ou de ‘escamas, nent sequer mis; pele. penas, escamas, nudex sio propriedades de animais particulates INTRODUCAO 7 « par isso estranhos a idéta abstrata, Pela mesma raze o movimento espontines no pode ser andar acm voar nem ragtejar. No catanto € niwvimento, mas no & facil conteber a que seja. 10, Se outros tém esta maravilhosa faculdade de sbstrsir as suas idéias. eles melhor dirdo: por mim tenho realmente a faciiciade de imoginar ou representar-me idéias de coicas purticulares ede variamenic as compar ¢ dividir, Posse imaginar um homem bicfpite ou a parte superior de ua homem ligada a um corpo de cavalo: posso comsiderar a mao. 08 olhos.o nariz separados do rest do corpo, Mas olho ¢ mao imaginados teria forma e co particulares. Igualmente a idéia de homem imaginads tem de ser de homem brazco ou preto ou moreno, dircho, curvado, alto, haixe ou mediano. Nio consigo. por mais que pense, conceber a idGia abstcata acifa descrita, Também me €impossivel formar idéia absteata de movimento diferente da de corpo mavel e que nio ¢ nem sapido nem lento, curvilinco ou ratifies. O mesino s¢ diga de quaisqer Idélas abstratas. Em suma, sou capaz de abstrair em um sentido, como ao considlérar partes ou qualidades, separadas de outras com que estio unidas no mesmo objeto mas possam existir sem clas. Mas nego que poss abstrair ¢ conceber sepuradumente qualidades que € impassivel encontrar sejsoradas: on que Possa formar uma nogao geral, abstrainée de particularidades pelo modo reféride — c sio afinal os dois sentides de “abstragio". E ha razio para supor que a maioria dos homens esta no meu e280. A genctalidade dos Bomens simples ¢ iletradas nunca pretende abstrair nogdes. Diz-se que elas sho diffeeis © exigem trabalho ¢ estudo. Se assim &, conclui-se que esti teservadas 208 doutos. 11, Vou exuminar o que pode alegar-se em defesa da doutrina da-abstrago, @ wer se deseus bro 0 gue leva os homens dla especulagdo « aceitar um parecer (0 remato do senso comum. Um fildsofo recente ' justamente apreciado dew-the sem ciivide grande apoio, purecendo pensar que as idtias abstratas marcavam a maior diferenga de entendimento entre homens ¢ anima “As ideias petai sii 0 que cxtabelece distingio perfeita entre aniimais ¢ homens. As ficuldades do animal nunca podem atingir esta excelénciay ¢ evidente que nao abservamnos neles 0 usu de sinais para essas teins; de onde temos razio de spot que ndo tém faculdade de ubstrait ou formar idéias gerais, porque no empregam palavtay ou quaisquce outros: sinais enéric ns. Fonte pouso adiaate: “Por isso me piirece que nisto os unimals se diferenciam inteiramente dos homens que esa difermga estabelece entre eles» maior distincia. Porque, se eles tém algumas idéins ¢ no gio simples miquinas (como alguém j pensou}, nfo pode nogar-se-thes algum uso de rari. Parece- ‘me Lv evidente que em cerlos casos eles pensim come que tém sentidos; mas sao apenas idéias Particulares, como os sentidhs Ihes fenceem. Ox melhores esti encerrados neste estreito limite eaiio tem — ereio eu — faculdade de amplid-to por qualquer forma de abstragdio™, De pleno acerdo com o sdbio autor cm que as faculdades dos anémais no alcangam # Abstragiio, reccio que, se tal for w diferenea. um grande nimero dos que passa por omens tena de incluir-se no mesmo grupo. A raaiio alegada para negar aos animais idgizs abstratas éa de no terem palavras ou outros sinais genéricos: isto agseta na hipétege de que usar palavess implica ter idéias gerais. De onde se segue: os homens que usim a linguagem podem abstrair ou genera liear as suas idéias. Que este € 0 sentido do autor mostra‘o a sus resposta a esta pergunta em ‘outro passa: "Se todas as evinas existentes so purticulares, como chegamos a termax gorais?” A sua Fesposta é: “As palavras vém a ser gerais por serem sigaificativas de idéias gerais". Mas antes Parece que nao por serem sinal de uma idéia geral abstrata, ¢ sim de muitas iddias particuluncs, cada uma sugerivel indiferentemente uo espirito. Por exemplo, quando se diz: “A mudanga de movimento ¢ proporcional a forga aplicady” .ou "tudo que & extensa & divisivel”, estas expresses entendem-se da mavimento ¢ extonsdo em geral; catreuunto no se eoaclui yue me sugiram idéia de movimento sem corpo mével-c diregio ¢ velocidade determinudas, ou que eu dova conceber uma id¢ia abstrata ¢ geral de exiensdo sem ser linha, superficie ou volume, nem Brande neny * Locket &ssav on Human Undersranding, Liv. Weap. XI, sec. 10, 11.(N. do A.) 8 BERKELEY pequena. branca, preta, vermeftia ou de qualquer cor determinada, Apenas implicn soja qual tor ‘0 movimento considerado, répido ou lento, vertical, horizontal ou obliquo, e seja qual for o obje- to, que o axioma seri verdadeiro. Do mesmo modo para a cxtensio, ni importa se é linha, super- ficie on volume nem a sua grandéca cu forma. 12. Observanda coma as idéias vém a ser gerais mais fusilmente o ontenderemos das pala vras. Note-se que cu néo nego cm absoluto a existéncia de idGias gerais mas apenas a de idéias pe- fais abstratas; nos passos citados, quando ce fala de idéins gerais, supSem-se sempre formadas Por abstragia, do modo indicat nos parigrafos 8 ¢ 9. Ora, ac quisermos atribuir sentido as nos- sas palavras © falar somente do que podkemgs cunceber, concordaremos — crete eu — que uma idéis particular, quando considerada em si mesma, s¢ toma geral quando representa todas as idéiss particulares da siesma espécie. Suponhamos, para exemplificar, um gedmetra que ensina a dividit uma linha em duas partes iguais. Traga, por exemplo, una linha preta de uma polegada de comprimento: é ume linha particular: no enitanto, pelo significado geral, representa todas ag li nhas possiveis; de modo que o demonstrado quanto a ela fica cemonstrado para todas as linkas ©, por cutras palavras, para a linha em geral. E assim como a linha particular fica geral por ser um simbalo, 0 nome “linha”. que em absoluto particular. enma sirabolo fien sendo geral. E, como para ¢ caso anterior a generulidade nie provém de sor sinal de uma linha geral abstrata, mas de todas as linhas particulares passiveis. também no segundo deve pensar-se que a generali- dade provem da mesma causa, isto 2, das viring |inhas particulates indiferentemente denotadas. 13, Para dar ao leitor nogio mais clara da natureza ¢ emprego necessirio das idtius abstrn- tas, citarei mais um passo do Essay on Hamar Understanding: “As idélas absiratas nito sio tio dbvias c faiceis para as crinngas ¢ para espiritos no exerci- tados como as particulares. Se assim parecem a adultes ¢ pelo uso constante ¢ familiar. Refletindo cuidadosamente, achamos que as idéias gerais sao icgGes ¢ artificios do espirito, que encerram dificuléades ¢ nio se revelam to simplesmente como imaginamos. Por exemplo, no s¢ exige tra- balho ¢ saber para formar a idéia gerul de tridngulo {que no é do mais abstreto, complicado Aiffsil) porque ele nde pode ser obliquingulo nem retingulo. nem eqiildtero, isosceles ou escale- no, mas ¢odas estas coisas ¢ nenhuma delas? & na verdade uma coisa imperfeita que nko pode existir, uma idéia em que se conjugam partes de idéias diferentes ¢ ineompanivels, E verdade que © espirito,na suaimperfoigiio, necessitade tais idéias ¢ serve-sedelas como pode por conveniineia de comunicagdo ¢ alargamento do conhecer, seu objetivo natural ¢ dileto, Mas hd motive de suy- Ppeitar serem tais idéias indices da nossa imperfeigio. Enfim, basta mostrar que as idéias mais abs- rulas gerais nfo sio as que o espirico mais depressa adquire nem as com que 0 conhecimento mais cedo se familiariza”. = Sc um homem tem a facuklade de formar a idéia de teifngulo aqui desceita, ¢ vile pretender sontestartha, nem cu faria tat, $6 desejo que o leltar refita com preciso © seguranga se tem Ou nio tal idéia; ¢ isto no parece tareft ardun para alguém, Nada mais ficil do que éxaminar alguém o pensamente priprio, procurando saber se tem ou pode cheyur a tor idtin correspondent 4 deserigao anterior da idéia geral de um tmangulo nio acutingulo nem retannulo, eqiilitero, is6sceles ou escaleno, mas todas estas coisas enenhuma delas, 14. Muito se disse ja da dificuldade inerente ds idéias abstrutus ¢ do esfo1go © rabatho de formi-las, 6 todos concordam na necessidade de grande labor ¢ fudign do espirito para emaacipar 9 pensamento de objewos particulares ¢ leva-lo ds especulagies sublimes, relativas A idéias abstra tas. De onde parece concluir-se ser esta coisit te dificil de formar idéias abstratas demecossiria & comunteagdo, tio simples ¢ familiar 4 wda casta de homens. Mas, disse ev, se elas purecem 6b- vias ficeis aos adultos ¢ 56 pelo seu uso constante e familiar. Ora, eu gostarin de saber em que ‘tempo os homens wpronderars a veneer a dificuldade ¢ receberam 0 auxilio necessirio pata disor ter. No pode ter sido depois de adulios, porque entio parece nao terem consciencia de tal esfor {905 Tost portanto que seja uma tarefa da infincia. E na verdade o grande ¢ miiltiplo labor de for ‘mar nogdes abstratas seria tarefa rude para aquela tenra idade. Nao é diffeil imaginar que duas ‘erlangas aie podem falar dos seus bombons, das suas matracus e pequenos brinquedas enquanta INTRODUGAO 9 do tiverem ligado inconseqiiéncias inimeras e formado no espicito idéias gerais abstratas, ancxando-as a0 nome comum de que usam? 13. Nem creto minimamente sejam mais necessérias & ampliagid do conhecimento do que a eomunicagao. Bem sei que se insist em que tode conhecimenio ¢ demonstragio assentam em nogdes universais, ¢ estou de acorda; mas nfo me parece que tais nogdes se formem por abstragio do modo referida, Uiniversalidade, tanto quanto compreendo, mio consiste na absoluta, positive naltireca on concepgio de alguma coisa, mas ne relapdo que sigaifica entre purticulares: por isso coisas, nomcs ¢ nogSes, por natureza particwlares, tornam-se universais. Assim, quando demons {¥o um teorema sobre tridmgulos, supde-se tenho em vista a idéia univers de tridngulo. que nao deve entender-s¢ como idéis de um tridngulo nem eqiilitero nem escaleno nem isdsceles: mas 6 tridngulo particular considerado, desta ou daquela forme, pouco importa, representa todos os tridngulos retilineos: ¢ neste sentido & amiversal. Tudo isto parece simples ¢ no envolver dificwldade, 16. Pode pergontar-se como: reconhecer a verdade de uma proposicio relativa a todos os {riingulcs particulares a nilo ser demonstrando-a da idéia abstrata de tridngulo adequada a todos. Porque de demonsirat-se uma propriedade para um triangulo particular nfo se conclui que ela pertenga a outro triingulo a todos os respeitos diferente, Por exemplo: demonstrado que on trés Angulos de um isésceles retangule so iguais a dois retos, nio posso concluir a mesma proprie- dade em outros triangulos que nem sio retiingulos nem cém dois lados iguais. Parece pois neces: sirio a verdade universal da proposigiio ou demonstrita para cada (ridngulo particular, o que & impossivel, ou uma vez por todas demonsicd-la da idéis abstrata de triangulo onde se abrangem todos os particulares ¢ onde todos esto Igualmente representadas. A isto respendo: Embora. a minha idéia ao fazer a demonstragie seja u de um fsdsceles retngulo, com determinada extensiio de Indes, ev posse enerali¢d-la a outros tridngulas retilineos quaisquer porque nom o Angulo reto fem & igualdade oa © comprimento dos lados entram na demonstragio. & verdade que o meu dia- grams inclui esses particulares mas no se aludem na prova da proposi¢aa. No se diz que os trés Angulos siio iguais a dois retos por haver um Angulo oto ou por ele ser formado por Indos iguais. Teo buster pars mostrar que poderia o Gngule teto ser obliquo ¢ os lados desiguais sem invalidar 2 domanstragia; por issu concluo ser verdadeira de am obliquangulo ov escaleno a relagio Gemonstrada para am trkingulo particular retingulo isésceles ¢ aio por ler Uemonstrado & propo- siglo da idéia abstrata de trifingulo, E aqui deve reconhecer-se a possibitidade de considerar-se apenas a forma triangular sem alhar a qualidades particularcs dos Angulos ou relagGex entre os Jados. Até ai pode abstrair, mas nunca isso prova poder formar unta idéia abstrata, geral, inconse- gilente, de tridngulo, Semelhantemente podemos considerar Pedro como animal au camo homem seen formar a reforida idéia abstrata, 17, Seria intermindyel ¢ invitil seguir os escolistivos, grandes mestres da abstragio, pelo inextricavel lnbirinte de exros e discusses em que parece t-los metido # sua doutrina de nogées enatureras abstratas. Disputas ¢ controvérsias, pocira nitbia levantada sobre tal matéria e a gran- de vantagem resultante para a huraanidade, tudo iss & bem conhecido ¢ ndo vale a pena insistir, E bom fora que os muaus efeitos se confinassem nos que disto fazem profissio. Quando se consi- dora 0 eslorgo, a indiistris, a capacidacte, por (Ho longo tempo. consagrades A cultura ¢ avange da ciéncia, ¢ que esta apesar disso continua na maior parte chein de escuridio e incerteeas ¢ que discusaies ao parecer intermindveis, ¢ até as apoladas nas mals claras ¢ convincentes demonstra ges, contém paradoxos iacompreensiveis para o entendimenw humuno; ¢ ainda que tomada em conjonto s6 uma bem pequena parte é Gil & humanidade, ¢ por autre Lado apenas inocente diver- sao € recreio — parece-me que tudo isto pode levar 4 desilusio, ¢ 20 desprezo completo de qual quer estudo. Mas talver isto possi findar pela revisio de falsos principios adotados no mundo; ¢ entre eles nonhum talver exerceu maior império no pensamento especulative do que o das idéias gerais abstratas.

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