Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(1): 1-47, maio de 1999.
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ass
A experiéncia universitaria
entre dois liberalismos
FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA
RESUMO: O texto representa uma tentativa de tratar a experiéncia universita-
ria situando-a entre dois liberalismos, o dos fundadores da USP, a que chama-
mos liberalismo ilustrado, e o neoliberalismo atual. Neste sentido, organiza
elementos @ esboga uma reflexdo comparativa, de ordem histérica e
institucional, sobre a universidade brasileira, muito especificamente a USP,
focalizando 0 periodo compreendido entre os anos 30 ¢ a atualidade. Com
isso se pretende compreender a transformagao de um projeto inicial e funda-
dor num projeto terminal, aquele que esta sendo implementado em nome de
uma racionalizagao modernizadora. O objetivo do texto 6, portanto, o entendi-
mento do presente e dos compromissos que sao solicitados a assumir aqueles
que de alguma maneira vincularam suas vidas ao destino da Institui¢do.
ois liberalismos, no contexto do que se vai desenvolver aqui significa:
duas concepgées de modemizagao, dois processos dirigidos para um
mesmo objetivo, que seriao de colocar a instituigao universitaria& altura
da sua época, inseri-la na efetividade do tempo hist6rico.O primeiro
liberalismo ou a primeira “modernizagao” geraram as idéias expressas nos
propésitos dos fundadores da Universidade de Sao Paulo, o grupo de liberais
ilustrados que, nos anos 20 e 30, concebeu um projeto politico-educacional de
regeneracdo da sociedade brasileira em que a Universidade aparecia como 0
mais importante instrumento de formagao das elites dirigentes que deveriam
promover o ingresso do pais na modernidade politica, aliviando-o do lastro
incémodo das oligarquias atrasadas cujos vicios reiteradamente presentes na
sucesso das conjunturas constitufam os maiores obsticulos ao aprimoramento
UNITERMOS
liberalismo,
politica educacional,
projeto universitario,
istoria,
ideotogia,
tecnocracia.
Professor do Departa-
mento de Filosofia da
FFLCH - USPSILVA, Frankiin Leopoldo e. A experiéncia universitéria entre dos iberaismas. Tempo Social; Rev. Sociol. USP S. Paulo, 11(1)
1-47, maio de 1999.
da vida politica ¢ & realizagio dos ideais republicanos. O outro liberalismo é
aquele sob o qual vivemos presentemente, que trocou a ilustragdio pela tecnocracia
¢, alheio a qualquer projeto emancipatério para o pais, contenta-se em manter-
se indiscutivelmente alinhado com as diretrizes econémicas globalizantes ema-
nadas do centro do capitalismo, Embora nao se possa falar de um grupo em que
a.coesio seria sustentada por uma identidade de propésitos to nitida quanto a
que guiava os liberais ilustrados de Sao Paulo, ainda assim creio que se pode
falar da formulacdo de um projeto, atualmente em curso, e que mantém com os
objetivos do primeiro liberalismo pelo menos uma simetria: os liberais ilustra-
dos conceberam o projeto inaugural da Universidade; os liberais tecnocraticos
formularam o projeto terminal da Universidade. O estabelecimento de algumas
comparagdes no exame da trajet6ria entre 0 comego ¢ o fim talvez permitaacom-
preens%io de certos aspectos importantes do processo, sobretudo no que diz respei-
to.a0 modo de participacdo dos agentes hist6ricos na confluéncia entre os objeti
vos ¢ os resultados. E preciso considerar também que, estando este projeto termi-
nal em vigéncia, dele todos participamos, alguns porque a cle aderiram ¢ 0 defen-
dem, em nome da modemizagao necesséria e até mesmo em nome da sobrevivén-
cia da instituigao; outros, que mantém fidelidade a uma outra idéia de universida-
de, procuram organizar de alguma maneira um espaco de resisténcia dentro das
possibilidades restantes de atuagdo, a cada dia mais exfguas, seja em termos poli-
ticos, seja mesmo em termos estritamente universitarios. Em ambos 0s casos tal-
vez possa ser titil alguma tentativa de elucidagao do sentido destes compromissos.
No projeto de fundagdo da Universidade de Sao Paulo, as determina-
¢gGes de origem esto marcadas por profundas contradigdes. Se é verdade que o
mesmo acontece em todos os processos hist6ricos, neste caso 0 interesse deriva
do teor extremado de idealizagiio de propésitos, expresso no discurso daqueles
mais empenhados no projeto. Seria talvez analiticamente insuficiente atribuir
esta caracteristica 4 necessidade de racionalizagao e sublimagio dos interesses
de classe, algo muito prdprio do discurso liberal. E preciso dar importancia equi-
valente ao fato de que, no caso da intelectualidade liberal comprometida com 0
projeto, a coincidéncia entre a proposigaio de objetivos ¢ a defesa dos interesses,
certamente existente, passa pelo confronto com as oligarquias dominantes e por
uma relagao complicada com o poder, que se constr6i ora por acordos estabele-
cidos a revelia de principios, ora por confrontos em que a defesa intransigente
de prineipios aparece como marca de superioridade intelectual e moral. Parando
simplificara trama ideolégica seria conveniente mencionar as idéias gerais con-
siderando-as em primeiro lugar no seu momento afirmativo, aquele em que se
enfatiza a prioridade da educagao (e sobretudo da universidade) no horizonte de
reordenacao politica da sociedade,
Tais idéias aparecem sempre melhor articuladas nos textos de
Fernando de Azevedo, como por exemplo, 0 “Inquérito sobre a Instrugao Pti-SILVA, Franklin Leopoldo @.A experiéncia niversitria entre dois liberalismos. Tempo Social; Rev. Sociol. USPS. Paulo, 11(1)
1-47, maio de 1999,
blica em Sao Paulo”, de 1926, Acompanhando a anilise de Irene Cardoso,
vemos que é possivel destacar af pelo menos 5 pontos
1. O estado € o principal, sendio mesmo o tinico responsével pela
educago, sobretudo a de nfvel superior. Na década de 20, a questo escola
piiblica versus escola privada certamente nao se colocava como um debate im-
portante, tal como acontece nos nossos dias. Mas nio deixa de ser digno de nota
aafirmagio do caréter ptiblico da educago por parte de liberais. O aprimora-
mento da educagio se faz por via de uma convocacdo, que os cidadaos dirigem
a0 poder puiblico, para que este assuma de forma mais efetiva e racional a sua
responsabilidade. Certamente, mesclada ao carter civico de que se reveste esta
posigdo, esté também a idéia de que a pluralidade de concepedes e diretrizes,
inevitivel numa situagdio em que o estado compartilhasse com a iniciativa pri
vada a responsabilidade pela educagao, prejudicaria a unidade de um projeto
politico-educacional. Em sentido semelhante si criticadas as variages e adap-
tages que ocorrem no plano educacional, mais sujeito aos caprichos da peque-
na politica do que a uma orientagdo firmada em critérios tecno-pedagégicos,
que s6 poderia existir se a educagao fosse pensada como projeto fundamentado
ede longo alcance, a salvo das injungdes de grupos e partidos.
2. Nem por isto a educacao estaria, contudo, desvinculada da politi-
ca. Pelo contriirio, liberada da pequena politica que expressa to somente a am-
bigdio de pessoas ou de partidos, poderia a educagéo, concretizada num sistema
coerente ¢ slido de ensino, transformar-se num “maravilhoso instrumento poli-
tico de coesdio”, Se a educagdo apresenta um quadro desconexo, que reflete a
auséncia de um projeto politico mais amplo em todos os setores da vida nacio-
nal, somente aelite “educada” segundo os padrdes cfvicos, morais e intelectuais
proprios do liberalismo poderd articular a coesao politica a partir de critérios
mais elevados do que aqueles que ordinariamente servem aos interesses imedi
atos dos partidos. A educagio precisa, pois, estar acima da politica partidaria
para exercer verdadeira influéncia politica nos destinos da nagio. A feigaio ide-
alista de um discurso como este tem duas faces: em primeiro lugar, a falsa abs-
tragio, isto é, a colocagiio dos “interesses nacionais” nas alturas de um mundo
supra-sensivel faz com que 0 cuidado destes interesses s6 possa ser exercido
pelos portadores das virtudes morais, cfvicas ¢ intelectuais que os liberais atri-
buem asi proprios, e que desejam transmitir As “elites” de cuja formagio pre-
tendem se encarregar. Em segundo lugar est a idéia, que 0 correr dos tempos
tornou ingénua ou esdnixula, de que o governante sera tanto mais politico quan-
to mais consiga ver, de uma perspectiva superior (que seria verdadeiramente a
perspectiva politica), os problemas técnicos que os governos devem resolver e,
apartir desta posigdo, imprimir diretrizes politicas que orientardo as solugdes
técnicas. Daj a idéia de que a universidade somente formard este dirigente “de
elite” se no estiver totalmente voltada para a profissionalizagdo. A formagao
do dirigente politico nao pode ser a formagao do profissional. Nao hd de ser 0
“profissional liberal” que dirigird o pafs, mas o liberal nao profissional.
3. Ehd um motivo para isto. O papel civilizador deste governante
(Cardoso, 1982, p.28
ss). Todas as citagdes
silo tiradas deste livro,
no qual esto também
calcadas as anilises €
0s comentérios que
fago no meu texto,
Azevedo, F.. A Edu.
cagao Piiblica em Sao
Paulo ~ Problemas ¢
Discussdes, citado em
Cardoso (1982, p. 29),
aSILVA, Frankiin Leopoldo e, A experiéncia universtéria entre dois liberalismos. Tempo Social; Rev. Sociol. USP. S. Paulo, 11(1):
4-47, maio de 1999.
idealizado exclui que ele seja apenas treinado para exercer certas habilidades,
a partir de informagdes que receberia, em variados graus de especializagao. A
elevada posigao que Ihe confere a sua fungao politica é inseparavel da “forga
criadora”, sem a qual nao podera desempenhar o papel de imprimir 4 nagao os
rumos civilizatorios. Esta idéia repercute diretamente na proposta de univer-
sidade que est neste momento sendo gestada. A universidade nao pode ser
apenas transmissora de saber, mas deve também elabord-lo. Somente quando
labora, desenvolve e transmite conhecimento a universidade pode ser consi-
derada um “organismo vivo”, constantemente sensivel 4 sociedade em que
estd inserida, nao s6 para satisfazer necessidades imediatas mas principal-
mente para dirigir a evolugao social em todos os aspectos, o que est em con-
sondincia com a idéia de que as elites bem formadas compreendem
dades do povo melhor do que o préprio povo. Para cumprir esta “fungao su-
perior e inaliendvel”, a universidade serd, essencialmente, um centro de alta
cultura, em que 0 cultivo do saber desvinculado dos interesses imediatos tera
um lugar destacado, que sera a Faculdade de Filosofia, Ciéncias e Letras.
4. Por isso mesmo, no conjunto do sistema educacional, inegdvel
predomindncia é atribuida a universidade. Assim o exige a concepgao da ne-
idade, da superioridade e do carter diretor das elites. " (...) a marca das
civilizagées nao € dada pela amplitude da educagio popular, mas pela forga
das elites dirigentes"(Cardoso, 1982, p. 30). Esta confluéncia entre um ide-
alismo filos6fico-hist6rico e a funcao politica da universidade € que do tom
caracteristico deste projeto modernizante. Sendo a educagio publica, o cara-
ter democratico do processo de recrutamento das futuras elites estaria como
que automaticamente assegurado. Nao mais haveria a constante reprodug’o
das oligarquias porque, por meio da educagio universitria, a barreira das
classes sociais seria vencida, qualquer um podendo ascender & condigao de
membro da elite pela demonstragao de mérito. O encontro entre a universida-
de ptiblica e a vocagao é a condigao para que o individuo transponha, de ime-
diato, todos os obstdculos de uma sociedade dividida. Vistas as coisas desta
maneira, a universidade cumpre fungao politica em dois niveis: permite a
compatibilizacdo entre elite ¢ democracia; ¢ recruta, na totalidade do espectro
social, para formé-los segundo os mais afinados padrdes de saber €
discernimento, os futuros membros da elite dirigente.
5. Como nem todos serao recrutados, cumpre pensar também na
educagio daqueles que permanecerio nos niveis das massas ¢ das classes
médias. No estado moderno 0 direito a instrugao foi universalizado, ¢ ele de
fato € necessério, até para que o direito universal do voto possa ser exercido
com efetividade. E preciso portanto estender o direito educagao a toda a
sociedade, mas na justa medida, para que a coeréncia do todo faga ressaltar as
diferengas, cuja anulagao ¢ ficticio pretender. Assim, ap6s as elites, com aces-
so A universidade, esto as classes médias, “elemento assimilador e propagador
de correntes de idéias e de opiniaio”, que Fernando de Azevedo considera im-
prescindivel para a subsisténcia e desenvolvimento de uma democracia. As
necessi-SILVA, Franklin Leopoldo e. A experiéncia universitéria entre dois liberalismos. Tempo Social; Rev. Sociol. USP S. Paulo, 11(1):
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classes médias corresponderia 0 ensino médio, isto é secundario, que € sufici-
ente para a disseminagao do saber elaborado na universidade. E finalmente as
massas, para as quais 0 curso primério cumpre a fungao de inserg&o da parte
na totalidade harménica e funcional. A correspondéncia entre proposta edu-
cacional e concepgio de divisao social € extremamente reveladora, e esta
emacordo com o teor idealista que permeia a definigiio da fungao politica da
educagio. As classes sociais so fixas como categorias; mas isto nfo impede
ademocracia, desde que a mobilidade seja pensada em fungao do mérito, vis-
tocomo 0 tinico fator de acesso 4 camada da elite, sempre aberta e receptiva a
capacidade e ao valor.
Os pontos acima arrolados evidenciam a relagao intima entre educa-
¢4o sociedade presente no projeto dos liberais ilustrados. Nao apenas devido &
mencionada correspondéncia entre projeto educativo e concepgiio da sociedade,
mas também porque este projeto é visto como a tinica maneira de reverter 0
processo de degradagio politica que se expressa na “crise das oligarquias”. A
educagdo nao deve ser vista como um elemento entre outros numa sociedade
democratica. Ela tem que ser vista como procedimento construtor da democra-
cia, e 6 isto que estaria faltando na visio dos governos. J4 que a democracia é 0
governo do povo pelas elites ilustradas, ¢ no 0 governo do povo pelo povo,
definigdo imprecisae precipitada, além de irrealista, é preciso que Sao Paulo,
isto 6, a ilustragdo paulista, marche mais uma vez para cumprir 0 seu destino
pioneiro, mostrando com palavras ¢ ages os caminhos para a solucdio dos gran-
des problemas nacionais. Como, dentre estes, nenhum excede em importanciae
profundidade o da educagao, serd o projeto da Universidade de Sao Paulo 0
passo decisivo nesta primeira investida modemnizadora.
No entanto, os liberais ilustrados t¢m de se haver com os procedi-
mentos autoritérios caracteristicos do Governo Provisério, instalado em 30. Isto
08 coloca, durante certo tempo, na posigaio de ambigiiidade em que se manter’io
até 1932, Para compreender, deste ponto de vista, o quadro politico no contexto
imediatamente anterior 4 fundagao da USP, é titil referirmo-nos ao modo como
0 jornal O Estado de S. Paulo, polo aglutinador do grupo, se comporta em
relagdo ao Decreto do Governo Provisorio de 1931 que regulamenta o ensino
universitario no Brasil (cf. Cardoso, 1982, p. 95 ss). Levando em conta as
preocupagées do grupo, ja tio veementemente expostas publicamente, como
vimos acima, seria de se esperar um noticiério farto e amplamente analitico,
para o que nao faltariam no jornal pessoas altamente abalizadas; mais do que
isto, seria de se esperar ainda forte reago e oposigao aberta a tudo aquilo que,
no Decreto, contrariava 0s prineipios ¢ as expectativas do grupo acerca do que
deveria seruma universidade. Mesmo porque elementos deste teor estavam abun-
dantemente presentes na regulamentagao oficial, em todos os niveis, o que mos-
tra as notaveis diferengas entre as regras que o governo autoritdrio da épocaSILVA, Franklin Leopoldo e. A experiéncia universitria entre dois liveralismos. Tempo Social;
1-47, maio de 1999.
eu Sociol. USP . Paulo, 11(1:
ditou e 0 que preconizava o grupo liberal congregado em torno d’ O Estado.
Para citar apenas alguns poucos exemplos destas diferencas, podemos assinalar
que a regulamentacao do governo era, obviamente, centralizadora, criando me-
canismos de controle federal sobre todas as instituigdes universitarias, a ponto
de provocar sérias dtividas acerca da viabilidade efetiva de uma universidade
estadual. Acrescente-se a isto restrig6es explicitas no que conceme a autonomia
universitéria, que o governo entendia dever ser “conquistada” ao longo de um
processo de maturaco institucional e ndo imediatamente concedida. Do ponto
de vista da organizacZo institucional, sobressafa no Decreto aexisténcia de uma
Faculdade de Educagao, Ciéncias e Letras, fundada na idéia de que se deveriam
ajustar mutuamente os objetivos de cultivo do saber tedrico (ciéncias bésicas)
com a necessidade urgente de formar professores para o ensino secundario ¢
superior. Neste caso, é not6ria a disparidade na compreensiio da fungi politica
do instituto medular: 0 grupo liberal entendia esta fungao em estrita conexado
com o perfil de uma Faculdade de Filosofia, Ciéncias e Letras, mesmo porque se
previa um Instituto de Educago para desempenhar sua fungao especifica. Ain-
da que uma Faculdade de Filosofia pudesse e mesmo devesse, formar professo-
res, isto nao poderia, como vimos, sobrepor-se & sua outra funciio, esta sim,
“inalienavel”, do preparo das classes dirigentes,
Pois bem, mesmo diante de todas estas diferengas, O Estado prati-
camente silenciou diante do Decreto, limitando-se ao noticidrio convencional,
sem maiores destaques, seja para atacar os muitos pontos divergentes, seja
para enaltecer os poucos pontos comuns. Apenas o desenrolar histérico pos-
terior esclarece este comportamento aparentemente insdlito. Fora do poder, 0
grupo assume posigao olimpicamente acima das querelas partidérias e dos
interesses particulares ou setoriais. Nao entra em confronto direto como go-
verno para melhor oferecer prova de que se mantém eqiiidistante, pronto a
aplaudir, pronto a condenar, mas segundo critérios que decorram objetiva-
mente “dos mais altos interesses da nagdo”, como s6 0 jornal sabe interpreté-
los, Até mesmo a ditadura pode ser boa, desde que “bem intencionada e pro-
vis6ria”, pois 0 autoritarismo do decreto pode vir a resolver problemas urgen-
tes. Enfim, é como se qualquer sistema pudesse ser aceitavel, desde que os
homens possuam reta intengdo. Mas de qualquer maneira, enquanto no se
est no poder, ¢ portanto nao se tem condigées de controlar aquilo que vai
sendo implantado, melhor calar, para que 0 consentimento que dai decorra
no se confunda com adeso explicita. Isto nao impede que se fagam comen-
tarios gerais acerca das iniciativas educacionais do governo, que na época
proliferam, todas afetadas dos mesmos vicios basicos derivados da obsessio
centralizadora, no entender do jornal. Embora 0 tom critico seja por vezes
acentuado, nao se abre polémica acerca de um problema particular, mas da
maior importancia no idedrio do grupo, o da concepgdo de universidade. O
que isto parece indicar é que a discuss de projetos educacionais estaria, pelo
‘menos neste Momento, subordinada a interesses politicos mais gerais, vincu-
lados 4 citada ambigiiidade deste grupo liberal no estabelecimento e manuten-SILVA, Franklin Leopoldo e.A experiéncia unverstira entre dois lberalismos. Tempo Social; Rev Sociol. USP S. Paulo, 11(1):
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gao de relagdes com 0 governo autoritdrio. Ha um jogo de aproximagio e
distanciamento cujos lances, embora envolvendo o problema da educagio e
dacultura, so de muito maior alcance, tanto naquilo que os jogadores podem
perder quanto naquilo que podem ganhar. E isto estar demonstrado pela pré-
pria circunstncia da fundacdo da USP. O momento propicio para o grande
passo cultural ¢ educacional coincide com 0 momento politico em que o repre-
sentante do grupo liberal congregado em tomo d’O Estado, Armando de Salles
Oliveira, assume a interventoria de Sio Paulo, isto é, 0 momento em que os
liberais desfrutam de uma fatia do poder autoritario. Desta maneira fica clara
aestreita vinculagao, sendo mesmo a subordinagio, do projeto educacional ao
projeto politico. Ao fim e ao cabo estas observagdes servem apenas para nos
predispor a ver como efetivamente esdrixulas as interpretagdes que vinculam.
a fundago a um projeto educacional considerado como auténomo em relagio
a0 jogo politico que entao ocorria, Se um projeto educacional esta sempre
vinculado a um projeto politico, esta tese geral se torna ainda mais evidente
quando 0 projeto educacional ¢ elaborado por um grupo que tem ambigoes de
poder, ainda que, para a época, singularmente fundadas nos critérios “moder-
nos” de racionalidade, competéncia e amplitude cultural.
Creio, no entanto, que o mais importante a assinalara propésito do
que se descreveu acima, é que a Universidade de So Paulo, mesmo antes de
sua fundagao, nos tiltimos perfodos de gestagao de seu projeto, j4 se encontra,
por assim dizer, numa situagao de cruzamento hist6rico entre dois tempos, 0
que se repetira muitas vezes, a ponto de se poder dizer que se trata de uma
marca da Universidade. A discrepancia, j4 apontada entre a concepgiio de uni-
versidade dos gestores do governo em 1931 e a idéia subjacente ao projeto da
Universidade de Sao Paulo, j4 mostra que esta nascerd fora dos padrdes re-
queridos pelo tempo histérico, notadamente fora das predeterminagoes
conceituais de uma concepgao autoritaria em matéria de educagio e de politi-
ca. E claro que a concepgio liberal de universidade foi concebida, nos moldes
particulares em que foi adaptada ao nosso pats, segundo interesses politicos
determinados, Mas a extemporaneidade da Universidade também provocou a
transformaciio destas determinagdes, operando um divércio entre a causa e os
efeitos, do que é testemunha elogiiente o perfil de universidade critica que
acabou prevalecendo na pritica (Cardoso, 1996, p. 4). Isto nao quer dizer de
forma alguma que a Universidade possa escapar, por vocagao, ao assédio das
ideologias, mas sim que ela pode, até ha bem pouco tempo, fugir de um estrito
ajustamento as determinagées historicas.
Oconfronto politico entre os liberais e 0 Governo Provis6rio, que vai
se tornando rapidamente inevitavel, transparece, no nivel de politica educacio-
nal e mais particularmente no que se refere a concepgdes de universidade, no
manifesto redigido por Femando de Azevedo e assinado por muitas figuras im-
portantes do meio intelectual e educacional. Hé dois aspectos a relevar quanto
as discrepancias em relagdo as iniciativas do governo federal. Em primeiro lu-
gar, €como sempre ocorre nos documentos do grupo, sio apontados o empirismo_SILVA, Franklin Leopoldo e. A experiéncia universitria entre dois liveralismos. Tempo Social; Rev. Sociol, USP S. Paulo, 11(1):
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ea improvisagdo que caracterizam as reformas do governo, bem comoa princi-
pal causa destas insuficiéneias, qual seja a recusa das autoridades em ouvir aqueles
educadores que, orientando-se para horizontes mais amplos ea partir de uma
fundamentago mais consistente, poderiam conferir aos planos educacionais uma
articulagdo mais completa e um aleance mais sistematico, organizando um pro-
jeto verdadeiramente transformador e a altura das solicitagdes hist6ricas da época.
Como, em vez disto, o governo opta por organizar pacotes de medidas insufi-
cientemente respaldadas no plano técnico e vulnerdveis a interferéncia de gru-
pos de pressio, 0 resultado € via de regra mediocre, representando inclusive um
atraso em relagdo as iniciativas promissoras que teriam vindo a luz na década de
20 e que.a revolugio de 30 nao soube aproveitar. No nivel das propostas conti-
das no plano governamental, os liberais notam, além do costumeiro centralismo,
que contraria as tendéncias modemas e a prépria idéia federativa, a transigéncia
em principios que deveriam estar acima de qualquer negociagao, como o enfra-
quecimento do monopélio estatal da educagdo, a instituigdo do ensino religioso,
emambos os casos para contentar a Igreja Cat6lica, além de uma idéia priméria
de unidade que, a pretexto de salvaguardar a coesio nacional, impoe ao sistema
de ensino uma uniformidade manifestamente incompativel com um pais marca-
do por significativas diferengas regionai
A iniciativa do Manifesto justifica-se portanto pelo dever civico de
oferecer & nagio uma peca coerente, coesa, sistemética, solidamente fundamen-
tadae susceptivel de se transformar num instrumento eficiente para a reconstru-
do nacional, uma vez que a educagao € o sustentculo da democracia. O que se
destaca, entre outras coisas, € a reivindicagdo de uma ampla autonomia para o
setor educacional, com a finalidade de resguardé-lo dos interesses partidérios e
de manter a primazia da competéncia técnica no gerenciamento do sistema. E
claro que esta autonomia implica descentralizacdo, notadamente a possibilidade
de que os estados venham a organizar suas universidades a partir de critérios
significativamente distintos das regras elencadas no decreto de 1931. O cruza-
mento entre 0 educacional eo politico adquire suficiente grau de nitidez quando
se distingue o substrato ideolégico do discurso que os liberais contrapdem ao
projeto do governo autoritério: “Os pontos considerados, autonomia da fungao
educacional e descentralizagaio, opdem-se claramente aos defendidos pelas ini-
ciativas federais em matéria de educagao (...) Por outro lado revelam-se como de
fundamental importancia, quando se tem em mente a possibilidade de criagao
deuma universidade em Sao Paulo, nos moldes em que era projetada, como uma
universidade paulista e como uma universidade da Comunhao” (Cardoso, 1982,
p. 113). Mas este desideratum ligado & autonomia de Sao Paulo nao se esgota
obviamente na reivindicagao de uma independéncia relativa e regional. O eixo
politico da reconstrugo educacional é a reconstrugao da nacionalidade, segun-
do 0 idedirio da ilustrago paulista. Poristo os temas que aparecem na discussio
sii tratados deliberadamente de forma ampla, nao s6 porque assim o exige a
dimensio “filoséfica” do debate, que os paulistas querem impor a burocracia
federal, mas também porque esta amplitude esté inscrita na prépria dimensao deSILVA, Frankiin Leopoldo e. A experiéncia universitaria entre dois lberalismos. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(1):
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um projeto de hegemonia.
Como exemplo desta atitude pode servira conferéncia pronunciada
por Fernando de Azevedo em fins de 1932, “O Estado e a Educagao”. O autor
procura justificar a responsabilidade hegemsnica pela educagdo por parte do
estado argumentando que a evolugao hist6rica do Estado na modernidade se
tem caracterizado pela progressiva transferéncia para este de atribuigdes antes
incias sociais
desempenhadas por outras i no caso da educaco, notadamente
a familia. Este processo histérico tem suscitado desconfiangas e, na verdade, ha
razbes para isto. Quando 0 Estado torna-se presa de grupos que o utilizam para
promover seus préprios interesses, ocorre a subordinagao do Estado a uma re-
presentagao parcial dos interesses sociais e politicos. Esta é a tendéncia para
confundir 0 “pablico” com um conjunto de aspirag6es proprias de uma determi-
nada facgao social. Isto se deve a que o Estado, em muitos casos, ainda nao se
organizou para desempenhar as suas fungdes a partir da universalidade requerida
pela distingao entre interesse geral e interesse particular. Mas quando a esfera
publica é concebidae coordenada de acordo com as finalidades gerais, por meio
de procedimentos marcados pelo pluralismo, pela variedade e pela harmonia
dos fins particulares, entio todas as atividades puiblicas como que fluirdo da
“forga coordenadora e reguladora do Estado”, o que significa pérem acordo
todas as necessidades de todos os grupos sociais.
Para que isto ocorra, no entanto, é necessdrio que o Estado seja
pensado de acordo com uma estrutura social piramidal: 0 Estado, isto é, as
elites governantes, formam o pice, e na base “fremem as massas”, em rela-
G40 As quais a idéia de autogoverno ¢ totalmente descabida. Mas no seio des-
tas massas, submetidas & educagao, surgem, no modo de uma diferenciagéio
dinamica, as minorias que deverdo governar. O que impede que tais minorias
se instalem permanentemente como classe dominante é a “continua renova-
do”, fruto da selegdo operada por meio dos sucessivos degraus da educagio
A idéia que transparece aqui é a de que a substituigdo dos membros das clas-
ses dominantes impede que elas se consolidem como dominantes. Como a
educagio é 0 que garante o continuo afluxo as posigdes dirigentes, o sistema
escolar nao pode ficar 4 mercé de interesses de facges, que tomem elas pré-
prias 0 governo do sistema ou que imponham ao Estado a satisfago de seus
interesses particulares. Somente o Estado, liberto de tais injungdes ¢ tecnica
mente aparelhado para desempenhar as suas fungGes, pode evitar a transfor-
macio da educacao em instrumento de poder politico.
Data importincia de uma universidade pensada em consonancia com
esta concepedo das relagdes entre Estado e sociedade. Pois é a universidade que
formard o dirigente esclarecido, capaz de pensar e gerir 0 Estado a partir do
“jnteresse geral”, que torna a vida democrética algo concreto e vidvel. Mesmo
Jevando em conta o mascaramento ideolégico, impressiona sobremaneira esta
crenga no poder da educagao, e sobretudo na educagdo guiada por parimetros
generalistas e desinteressados, que é aquela que recebem os que se qualificam
para integrar as elites, O grau extremo a que chega esta intelectualizagio daSILVA, Frankin Leopoldo e. A experiéncia universitria entre dois liberalismos. Tempo Soc
1-47, maio de 1999,
» Grifos meus.
10
lev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(1):
politica é que permite projetar este equilibrio praticamente divino entre poder ¢
saber, como se conhecimento, moral e politica pudessem se recobrir perfeita-
mente. A confiarnos discursos, quase se poderia dizer que Platdo ndio esperaria
mais do sistema educacional da Reptiblica do que esperavam os Mesquita da
Faculdade de Filosofia, Ciéncias e Letras da USP.
Vv
Ao traduzir a concessao getulista em aceitar a sugestio dos liberais
paulistas para que Armando de Salles Oliveira fosse nomeado interventor no
estado, devida unicamente a intengdo do governo autoritério de estender sua
base de apoio comprometendo segmentos da oposi¢ao, em vitéria da rz eda
liberdade, da ponderacao e da competéncia, do respeito devido a Sao Paulo,
como se as qualidades pessoais do interventor—entre as quais a maior era certa-
mente ade fazer parte do grupo d’O Estado -, pudessem anular os prinefpios
autoritérios com os quais teria de comungar no desempenho de suas fungdes, os
liberais procuram legitimar a adesdo ao poder e justificar a situago de compro-
misso, transformando um epis6dio de adesismo politico num passo significati-
vo para a realizaciio dos grandes objetivos que vinham elogiientemente pregan-
do. Veremos na seqiiéncia dos desdobramentos desta participagao no poder au-
toritdrio a manifestagao reiterada do vezo liberal de assumir o autoritarismo
como modalidade natural de reagir ao autoritarismo dos outros, reservando para
0 seu proprio exercicio autoritério a justificativa de defesa dos “interesses ge-
ais”. O fato € que somente esta participagdo no poder propiciou ao liberalismo
ilustrado as condigdes de implementagao do projeto de universidade.
Nao surpreende, pois, encontrar na redagdio do Decreto de fundagaio da
USP as mesmas idéias ¢ o mesmo tom retorico dos textos em que batalhavam pela
instauragdo da universidade paulista. Mas hé de se levar em conta, todavia, que,
vistas a partir de hoje, isto é, da indigéncia e do amoralismo do liberalismo que
sofremos na atualidade, certas pérolas daquela ret6rica possam até afigurar-se
como dignas de nossa ambicdo. Assim, por exemplo, quanto ao que reza.o Decre-
tono que se refere 4 responsabilidade do Estado pela educagao: “E dever do Esta-
do incentivar e fomentar 0 espirito cientifico, de pesquisa e de produgio original,
abrindo todas as possibilidades para o maximo desenvolvimento e utilizagao das
vocagdes cientificas e aperfeigoando os recursos de expansiio cultural, para que 0
ensino seja cada vez mais eficaz c as investigagdes contribuam para o progresso
daciéncia”. Ou entio, quando o texto do Decreto retoma as idéias insistentemente
repetidas acerca do papel da Faculdade de Filosofia, Ciéncias e Letras: “(...) estu-
do desinteressado das questdes que pairam nas altas esferas, que nao podem atin-
gir todos os cérebros, questdes e problemas estes queentrosam diretamente com
a orientagao mental — portanto politica e econdmica — que deve seguir o pais”
(citado em Cardoso, 1982, p. 123)’. Nota-se a confluéncia daquilo que o Estado
deve promover em termos de educago superior, ou seja, fazer expandiraculturae
fazer progredir a ciéncia através do fomento do espirito de investigagao e de pro-SILVA, Franklin Leopoldo e. A experiéncia universitria entre dois lberalismos. Tempo Social; Rev. Sociol. USP. S. Paulo, 11(1):
1-47, maio de 1999,
dugdo original, com a concepedo de um ensino “realmente universitério” , que se
imagina voltado para as grandes questdes, que 0s idealizadores da USP acreditam
pairar “nas altas esferas”, mas que ainda assim “entrosam diretamente” com a
orientagao politica e econdmica que deve seguir o pais. Seria certamente notivel o
que uma andlise mais acurada, que aqui nao fago por falta de competéncia, poderia
encontrar neste tipo de discurso, em termos de uma dialética entre o elemento.
ideoldgico-regressivo, ligado ao esforgo de umaclasse para construir a justificati-
va racionalizadora do monopélio do poder, ¢ 0 elemento civilizador-emancipatério,
mesmo liberador, contido na letra das propostas. Ou seri isto uma ilusdio prove-
niente da 6tica de quem se situa na fase do liberalismo barbaro incentivador do
capitalismo predatorio?
fato é que a participago no poder, sobretudo nas circunstincias do
perfodo pés-revolugdo de 32, teve conseqiiéncias para a conduta politica e para
a imagem auto-constituida do grupo de liberais paulistas que idealizou a Uni-
versidade de Sao Paulo. E importante pensar a fundagiio da Universidade no
contexto daquela atualidade, mais do que a partir das reconstituigdes posterio-
res, mesmo que feitas pelos prdprios protagonistas, j4 que a simples mudanga
na énfase dos fatores determinantes —sem mencionar as reinterpretagées mais
profundas e desviantes — tende a distorcer a compreensio do proceso’. As raci-
onalizagSes idealizantes da vontade de poder politico possuem um alcance in-
calculavel, e a andlise nestes casos sempre corre o risco da simplificagao no
julgamento dos resultados da correlagao de forgas. Para o propésito deste texto,
no entanto, basta mencionar que 0 projeto de fundagao da USP, elaborado pelo
grupo liberal paulista, teve como condigdo de sua implementagao a alianga des-
te grupo com 0 governo autoritdrio, o que nao péde deixar de repercutir no
proprio projeto, em termos da continuidade imediata de sua realizagao, Nao €
possivel ignorar a proximidade entre 1934 e 1937, isto é, entre a fundagaio da
Universidade, sob o Governo Provisério, ¢ 0 advento do Estado Novo.
Alfredo Bosi fala, a propdsito, que “ndio convém subestimar a forga
real das determinag6es de origem. Elas pesam e resistem no centro da institui-
¢40 (...)" (Bosi, 1982, p. 15)*. A questio dificil e delicada é conceder os pesos
respectivos a estas determinagées e ao movimento hist6rico que se Ihes seguiu,
eno qual elas se inserem niio como causas absolutas mas como um elo no enca-
deamento de outras determinagées. De fato, esta duplicidade origindria detém, a
meu ver, um alto poder explicativo, ¢ a ela podemos remeter a ambigiiidade que
caracteriza a insergdio da Universidade no seu tempo hist6rico, algo que j4 men-
cionei. Se de um lado temos um projeto de institucionalizagao de um instrumen-
to de poder, e neste sentido um objetivo autoritério, de outro temos também um
projeto elaborado contra o autoritarismo dos entdo ocupantes do poder, o que se
observa concretamente na oposigo dos liberais aos procedimentos
centralizadores das instincias de poder, e que evidentemente é mais do que uma
luta contra a burocracia. O fato de que foi preciso o surgimento de uma situa
contraditéria para que a USP fosse fundada, e o fato de que a aparente vit6ria
dos liberais na caracterizagio da fungdo politica da universidade somente foi
+ Acerca deste aspecto
io particularmente ar-
‘gutas e de largo alcan-
ee as anslises de Irene
‘Cardoso (1982) princi-
palmente na Apresen-
{agio, no capitulo 1 da
Parte 1, no capitulo 4 da
Parte Ie no capitulo
dda Parte ILSILVA, Franklin Leopoldo e. A experiéncia universitaria entre dois liberalismos. Tempo Social; Rev. Sociol. USP S. Paulo, 11(1):
1-47, maio de 1999.
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possibilitada pela situagao contraditéria, jé indica a ambigiiidade que depois se
manifestard de muitas outras maneiras. Creio que serd possfvel observar mais
adiante que esta ambigiiidade, ao mesmo tempo em que “salvou” a Universida-
de da completa subordinagao as “determinacdes de origem’”, fez também com
que ela se mantivesse sempre pelo menos alguns passos aquém do total rompi-
mento com estas determinagoes.
Anhist6ria imediatamente posterior a fundacdo ja nos revela que a ali-
anga dos liberais com 0 governo autoritério tem como uma de suas primeiras
conseqiiéncias a reinterpreta¢o autoritéria, por parte destes mesmos liberais, das
idéias propagadas na campanha pela fundagio e registradas no proprio ato funda-
dor. A educagio é procedimento construtor da democracia; a educacao superior
tem como finalidade formar as elites dirigentes desta democracia; a relagao entre
iversidade e democracia ¢, portanto, interna ¢ constituinte. Logo, cumpre a uni-
ide defender a democracia da investida dos totalitarismos, em especial do
comunismo. Eis porque a liberdade de pensamento possui necessariamente limi-
tes, precisamente para que esta liberdade nao chegue ao ponto de destruir-se a si
propria, ao esposar 0 dogmatismo politico totalitério, E preciso entao adjudicar 4
liberdade de pensamento um predicado disciplinador, para que 0 seu exercicio nao
resulte em auto-aniquilamento. Antes que sobrevenha a violéncia do totalitarismo,
que é a morte do pensamento, é necessério que se estabelega a forga do esclareci-
mento, que €a condigdo de continuidade do pensamento livre. Em tiltima andlise,
no basta mais a elite pensante, armada da razdo; mas é preciso que a razio da
elite esteja ela prdpria armada, para proteger a raziio da “anarquia mental” e da
instabilidade fruto de uma liberdade sem freios. “A Comunhao armada é a nega-
ao do estado-maior intelectual, O cérebro fortemente armado dispoe fundamen-
talmente da forga paraa imposigio do seu projeto. A raziio por si s6 nao é capaz.de
se impor, Precisa estar armada” (Cardoso, 1982, p.183). Esta inevitvel encampagao
do autoritarismo, inclusive como restri¢ao da liberdade de pensamento, dentro da
Universidade, permanece sendo objeto de reiteradas justificativas, no Ambito de
uma cruzada anti-comunista. Pelo menos até que o feitigo se volte contra feiticei-
ro: em 1940 ocorre a invasio d’O Estado pelas forgas de seguranga. E entio os
liberais voltam a lembrar-se do liberalismo.
E preciso dizer, todavia, inclusive para a compreensio de diferen-
gas que se estabelecerao posteriormente, que a cruzada anti-comunista nao
‘ignifica um alinhamento incondicional com as liderangas do “mundo livre”,
sobretudo com os Estados Unidos. Na imagem ideologizada, idealizada e algo
megalémana que os liberais ilustrados tinham de si préprios, a defesa dos
valores capitalistas se expressava como defesa dos valores universais da ra-
zo e da liberdade ea crenga num poder de interferéncia real na preservagao
destes ideais sustentava a passagem da simples militancia intelectual ao apoio
explicito da ditadura, desde que houvesse alguma participagao dos liberais
neste poder ditatorial, que eles julgavam poder moderar pela simples forga
das idéias que defendiam, alicergadas numa complicada e pouco coerente ali-
anga da forga com a democracia. Desta maneira era que se justificava 0