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I O PENSAMENTO DA ERA DO ILUMINISMO D’Alembert iniciou os seus Elementos de filosofia com um painel onde procura definir a situago do espirito humano em meados do século XVIII. No decorrer dos trés tltimos séculos, comega ele por assinalar, foi possivel observar que em meados de cada um desses séculos ocorreu sempre uma transformacao importante no conjunto da vida intelectual. Assim, em meados do século-X¥ inicia-se 0 movimento literdrio e intelectual da Renascenga; em meados do século XVI, a Reforma _religiosa estd no apogeu; € no século XVII é a vitéria da filosofia carte. siana que provoca uma revolug’o tadical na imagem do mundo Seré possivel descortinar um movimento anélogo no século XVIII e determinar sua diregdo e seu alcance? “Por muito pouca atengo que se preste” — prossegue D’Alembert — ‘‘aos meados do século em que vivemos, aos acontecimentos que nos agitam ou que, pelo menos, nos ocupam, aos nossos costumes, as nossas chras e até as nossas conversas, € muito dificil passar despercebsla a extraordinéria mudanga que, sob miiltiplos as- pectos, ocorreu em nossas idéias; mudanga essa que, por sua 19 rapidez, parece prometer-nos uma ainda maior. Cabe ao tempo fixar o objeto, a natureza e os limites dessa revolugéo, cujos inconvenientes e cujas vantagens a nossa posteridade conheceré melhor do que nds. O nosso século é chamado o Século da Filo- sofia por exceléncia. Se examinarmos sem prevengdo o estado atual dos nossos conhecimentos, nao se pode deixar de convir que a filosofia registrou grandes progressos entre nds. A ciéncia da natureza adquire a cada dia novas riqueZas;, a wea, a0 ampliar os seus limites, transportou seu Tacho para as regides da fisica que se encontravam mais perto dela; o verdadeiro sis- tema do mundo ficou conhecido, foi desenvolvido e aperfeigoa- do. Desde a Terra até Saturno, desde a histéria dos céus a dos insetos, a ciéncia da natureza mudou de feicgdes. Com ela, quase todas a¥ outras ciéncias adquiriram novas Formas e, com efeito, era imprescindivel que o fizessem. O estudo da natureza parece ser por si mesmo frio e tranqiiilo, porque a satisfagao que ele ocasiona é um sentimento uniforme, continuo e sem abalos, e porque os prazeres, para serem vivos, devem ser separados por intervalos e marcados por acessos. Nao obstante, a invengio e o uso de um novo método de filosofar, a espécie de entusiasmo que acompanha as descobertas, uma certa elevagiio de idéias que em nés suscita o espetéculo do universo, todas essas causas tive- ram que excitar nos espiritos uma viva fermentacao. Essa fer- mentacao, agindo em todos os sentidos por sua natureza, envol- yeu com uma espécie de violéncia tudo o que se lhe deparou, como um rio que tivesse rompido seus diques. Assim, desde os principios das ciéncias profundas até os fundamentos da Reve- lagdo, desde a metafisica até as questGes de gosto, desde a mt- sica 4 moral, desde as disputas escoldsticas dos tedlogos até os objetos de comércio, desde os direitos dos principes aos direitos dos povos, desde a lei natural até as leis arbitrdrias das nagoes, numa palavra, desde as questées que mais profundamente nos tocam até as que sé superficialmente nos interessam, tudo: foi 20 discutido, analisado e, no minimo, agitado. Uma nova luz sobre alguns objets, uma nova obscuridade sobre varios, foi o fruto ou a conseqiiéncia dessa efervescéncia geral dos espiritos: tal como 0 efeito do fluxo e do refluxo do oceano é carregar para as praias alguns materiais e delas afastar outros.” ! O homem que usa essa linguagem € um dos cientistas mais respeitéveis do seu tempo, um de seus porta-vozes intelectuais. Suas palavras fornecem-nos, portanto, uma idéia da indole e da diregao de toda a vida intelectual de sua época. Ora, a época em que viveu D’Alembert sentiu-se empolgada por um movi- mento Pujante “e, Tonge de abandonar- sea esse mOvimemto, em- Pefihiou-se ém compreender-Ihe a origem ¢ o destino. O con mento de seus proprios atos, a autoconsciéncia ¢ a previsto intelectual, eis o que Ihe parecia ser o verdadeiro sentido do ensamento, de um modo geral, e a tarefa essencial que, acre- ditava ele, a histéria Ihe impunha. Nao se trata apenas de que © pensamento se esforga por alcangar novas metas, desconheci- das até entéo; € que quer agora saber para onde o seu curso leva e quer, sobretudo, dirigir 0 seu_préprig curso. Aborda o mundo com a nova alegria de descobrir e com um novo espi- tito de descoberta; todos os dias aguarda novas e infaliveis reve- lagdes. Contudo, a sua sede de saber, a sua curiosidade intelec- tual nao se voltam somente para o mundo. O-; -Pensemento sente-se ainda mais profundamente conquistado, mais 1is. apaixonadamente comovido por uma outra questa ade s de sua propria natureza € do seu préprio poder. Nao é por isso que que: ele se afasta Ticessan- ‘temente do curso das descobertas destinadas a ampliar o hori- zonte da realidade objetiva, a fim de retornar & sua origem? A sentenga de Pope, the proper study 0} of mankind _is_man, ex- prime com impressionante brevidade o sentimento ‘profundo qu que essa €poca tinha de si mesma. E uma €poca que sente, em seu préprio amago, uma nova forga atuando e que, nao obstante, esté menos fascinada pelas criagdes incessantes dessa forga do 21 que pelo seu modo de agao. Nao contente de usufruir os seus resultados, ela explora _a forma dessa atividade produtora para tentar analisé-la. E nesse sentido que se apresenta, ‘Para © con- ‘junto do século XVIII, o problema do “progress” intelectual. Nao existe um século que tenha sido tio profundamente penetrado e empolgado pela idéia de progresso intelectual quanto. Século das Luzes, Equivocar-se-iam, porent, SBBiE"O- sentido essencial’ dessa idéia, aqueles que_tomassem “progresso” num sentido quantitativo como uma ‘simples_ extensao_do _saber, como um progressus in indefinitum. A par da ampliagao quantitativa en- conitra-se sempre uma determinacdo qualitativa; 4 constante ex- tensio do saber para além dé sua periferia corresponde um ‘regresso sempre mais consciente e mais pronunciado_ao centro proprio e caracterfstico da éXpansio Se se-busca a multiplici- dade, € para af encontrar a certega da unidade. Dedica-se a extensio do saber com o sentimento, com a segUranga de que ela nao vai enfraquecer e diluir 0 espirito mas, pelo contrario, vai reanimé-lo e “concentré-lo”. Percebe-se que os diversos ca- minhos que o espfrito deve percorrer, franqueando-lhe a reali- dade como um todo a fim de the tracar o quadro completo, s6 aparentemente séo caminhos divergentes. Objetivamente consi- derados, os caminhos divergem, mas essa divergéncia nada tem de disperséc. Todas as energias do espirito perman adas ‘unt Cefitto motor comum. A diversidade, a variedade das for- thas € tdo-s6 0 desenvolvimento ¢ 0 desdobramento de uma forga criadora tinica, de natureza homogénea. Quando o século XVIII quer designar essa forca, sintetizar numa palavra a sua natureza, recorre ao nome de “razdo”. A “razio” € o ponto de encontro € 0 centro de expansao do século, a expressBo de todos os seus desejos, de todos os seus esforcos, de seu querer € de suas reali- zagdes. Cuidemos, porém, de nfo cometer o erro de nos satis- fazermos precipitadamente com essa caracteristica, de acreditar- mos que o historiador do século XVIII vai encontrar af o ponto 22 de partida e de chegada de suas investigagdes. O que foi aos olhos do século o seu programa e a sua realizagéo é para o his- toriador apenas o comego, o infcio de seu trabalho; onde se acreditou encontrar entéo uma resposta, apresenta-se a verda- deira questao. Qséculo XVIII esté impregnado de fé na unidade e imutabilidade da razio. A razio é una e idéntica para todo 0 ‘individuo- pensante, para toda a a a naci , toda_a 8 época, toda ci De todas as variagdes dos dog dogmas Teligiosos, jas maximas" e convicgdes morais, das idéias e dos julgamentos tedricos, des- taca-se um contetdo firme e imutével, consistente, e sua unidade € sua consisténcia sao justamente a expresso da esséncia propria da razo. Para nés — se bem que estejamos de acordo, no plano das idéias e dos fatos, com determinadas teses da filosofia do Tluminismo — a palavra “ ‘razao" ’ deixou de ser hé muito tempo uma palavra simples e unfvoca. Assim que recorremos a esse vocfbulo, sua histéria logo revive em nés e ficamos cada vez mais conscientes da gravidade das_mudangas de sentide_que ele sofreu no transcurso dessa hist6ria. Nessas condigées, sempre Tios acode ao espirito como a expressio de “razio” ou a de “racionalismo” tém pouco peso, mesmo no sentido de uma ca- racterfstica puramente histérica. Tanto isso é verdade que 0 conceito genérico como tal permaneceu _vago e indeterminado ‘até O momento de receber uma differentia specifica,-um senudo verdadeiramente preciso e determinado. Onde procurar, para 0 século XVIII, essa diferenya especifica? Se tanto se comprazia em autodenominar-se um “século da razio” e um “século filo- s6fico”, onde encontrar o trago caracteristico e distintivo dessa designacio? Em que sentido devemos tomar aqui a “filosofia”? Quais as tarefas particulares que lhe sao atribufdas, de que re- cursos dispde para as levar a cabo e para estabelecer sobre ali- cerces seguros uma doutrina do mundo e do homem? Se se comparar a resposta que o século XVIII deu a essas questGes com as que j4 encontrou prontas no comego de suas 23 atividades intelectuais, o que impressiona de imediato é uma diferenga negativa. O século XVII via na construgdo de “siste- mas filos6ficos” a tarefa_prépria do_conhecimento_filoséfico. ‘Para qué The parecesse Verdadeiramente “ “filosofico”, era preciso que o saber tivésse alcangado eStabelecido c com firmeza a idéia primordial de um ser supremo € de uma certeza suprema intui- fivamente apFéendida, e que tivesse transmitido a luz dessa certeza a todd-o ser € a todo o saber dela deduzido. E o que efetivamente ocorre quando, pelo método da demonstragao e da dedugio rigorosa, so mediatamente ligadas & certeza primordial outras proposigées, a fim de se percorrer, por meio dessa cone- xao mediata, toda a cadeia do cognoscivel e de a encerrar sobre Si mesma. Nenhum elo dessa cadeia pode ser separado do con- junto, nenhum deles se explica nem se conclui por si mesmo. A inica explicagao de que é suscetivel consiste em sua “dedu- ¢&o” rigorosa e sistematica, a qual o reconduz & causa primeira do ser e da certeza, permitindo assim avaliar a distancia a que se encontra em relag&io a essa causa primeira.e ao ntimero de velos intermediérios que o separam daquelaf/O século XVIII ‘renunciou a esse modo e a essa forma de “deducao”, de ¢ deriva- 50 e de explicagao sistemética. Nao rivaliza, em absolut, com ietaiete Walebranche’ tin Letonis c Spilibza, no meante ao rigor e€ & autonomia do método. Busca uma outra concepgao da verdade e da “filosofia” que confere a uma € a-Ottra mais amplitude, uma forma dotada de mais Miberdade ¢ mobilidade, mais Concreta e mais viva. A Era do Iluminismo nao outorga esse ideal de pensamento as doutrinas filoséficas do- passadq; prefere formé-lo tomando por exemplo a fisi itempordnea, ¢ujo mo- delo tem sob seus olhos. Em vez do Discurso do-método de Des- cartes, apbia-se nas Regulae_philosophandi de Newton para re- solver o problema central do método da filosofia. E essa solugéo logo encaminha a investigacéo para uma direcdo inteiramente diferente. A via newtoniana nao é a da deducdo pura mas a da 24 andlise. Newton nao comega por definir certos principios, certos conceitos e axiomas universais, a fim de percorrer passo a passo, por meio de raciocinios abstratos, o caminho que leva ao conhe- cimento do particular, dos simples “fatos”. E na dirego inversa que se move seu pensamento. Os fendmenos sio 0 dado; os principios, o que € preciso descobr E Se os princfpios sao, com efeito, 0 mpdtepoy ti += gdost ~—, os fendmenos devem permanecer 0 gdregov mgés ude ~—- E. por isso que © verdadeiro método da fisica jamais poderd consistir_em partir de algum dado arbitrariamente admitido (de um willkiirlich-an+ genommenen Ansatzpunkt), de uma “‘hipotese”, para desenvolver' até ovfim as conclusdes que af estdo implicitas. Tais hipéteses so imaginadas ao arbitrio de cada um, modificadas e transfor- madas da mesma maneira; logicamente consideradas, todas se equivalem, e s6 lograremos sair dessa equivaléncia e dessa indi- ferenga racional para atingir a verdade, a determinagao fisica, se procurarmos alhures os nossos critérios. Um ponto de partida’ verdadeiramente unfvoco nfo nos pode ser fornecido pela abstra. $40 e “definigio” fisica mas somente pela experiéncia e obser- vagao. Nao se trata, em absolutu, tanto para Newton quanto Bare seus discipulos € sucessores, de afirmar uma oposigao entre “experiéncia” e “pensamento”, de abrir um abismo entre o do- , ‘minio do pensamento puro e o dos “simples fatos”. Nao é ques- t&o de um conflito de validade, de um dualismo metédico entre as ‘relations of ideas”, de uma parte, € a “matter of fact”, de ‘Outra parte. como o que encontrou sua | Expresso | mais nitida na Enquiry concerning human understanding, de Hume. O newto-. fiismo nao pressupde, como obj inviolével da i vestigagao,-senao a prim e a legalidade perfeiga da realidade ‘empirica. Enifetanto, esst-legalidade signitica“que os fatos, co- ‘mo tais, nao s4o um material simples, uma incoerente massa de | detalhes, masf a existéncia jue se pode demonstrar, nos fatos e pelos fatos, uima Jorma QUES pencira Tea Eau ay Fe forme 25 -Bpresenta-se_cOmo-matematicamente determinada, estruturada e Sttigulada segundo o ntimero ¢ a medida. Mas é justamente essa articulagéo que nao pode ser objeto de uma antecipagao gon- ceptual; ela deve ser encontrada e demonstrada nos fatos. O encaminhamento do pensamento nao vai, por conseguinte, dos ‘conceitos e dos axiomas para os fendmenos, mas_Q inversof/A observacao €0 datum; 0 principio, a Tei, 0 quaesitum. E esse ‘hove programa metédico ih deixa sua marca em todo o pen- samento do século XVII esprit systématique nem por isso € subestimado ou marginalizado; mas foi cuidadosamente distin- “guido do esprit des Systeme y /Toda a teoria do conhecimento se empenha em confirmar essi distincao. D'Alembert, no “Discurso preliminar” da Enciclopédia, situa-a no centro do debate, e o Tratado dos sistemas, de Condillac, dé a essa idéia sua forma explicita e sua justificago. Tenta o autor, nessa obra, aplicar a critica histérica aos grandes sistemas do século XVII, procurando mostrar a causa de seus respectivos fracassos: em vez de se prender aos fatos e de deixar que os conceitos se formem no contato com aqueles, tais sistemas elevaram unilateralmente ao status de dogma o primeiro conceito que lhes ocorreu. Em con- traste com esse “‘espirito de sistema”, cumpre doravante estabe- “Tecer novos vinculos entre o espirito “ “positive eo csi ra- “ORG confit mas a se conseguird obter uma ais ‘sintese entre eles se se Tespeitar uma auténtica via de medlacfio. ‘Nao se busque, portantoya ordem, a legalidade, a uma regra “anterior” aos fendmenos, concebivel exprimivel a priori: que se demonstre a razio nos préprios fenémenos como a forma de sua ligagdo interna e de-seu encadeamento imanente. Que nio se pretenda antecipar a raza0 sob-a forma de um sis- tema fechado: ha que deixé-la desenvolver-se a longo prazo, pelo conhecimento crescenté dos“fafos, € Impor-se pelos progressos em sua clareza e em sua perfeicdo. A légica que todo o mundo 26 busca e que todo o mundo est4 persuadido de encontrar, em todo o caso, no caminho da ciénci: néo € a nem _uma I6gica de concepgo puramente mat gica dos fatos”. Que © éspitito se abandone, pois, a toda a ti- queza dos fenémenos, que se mega continuamente por ela: longe ‘de corrér”o risco de ai se perder, est seguro de encontrar nela sua verdade e sua propria dimensdo. F assim que se estabeleceré a verdadeira reciprocidade, a verdadeira correlagéo de “sujeito” € “objeto”, de “verdade” e “realidade” e que se produziré entre esses termos a forma de “adequacao”, de correspondénicia, que € a ‘condigao de todo o conhecimento ‘crenilfico. e 2 do * “tacional”’ no é uma exi: géncia puramente tedfica; essa sintese € um fim acess{vel, um ideal realizdvel: 0 pensamento setecentista vé ai a prova con- creta, imediatamente convincente no curso que as ciéncias, desde © seu renascimento, efetivamente adotaram. Nos progressos da ffsica, na sucess&o das etapas percorridas por essa ciéncia, uma por uma, ele esté inteiramente convencido de que tem, de certo modo, sob os olhos a realizag&o do seu ideal. Pode acompanhar ai, com efeito, passo a passo, a marcha triunfal do espirito ana- Iftico moderno. Num intervalo de um século e meio, apenas, esse espirito acaba de submeter-se a totalidade do real, parece ter até fealizado, enfim, o grande designio de unificar sob uma regra nica e absolutamente universal toda a diversidade dos fenémenos naturais. E a f6rmula cosmoldgica que se apresenta na lei newtoniana da atraco universal nao foi encontrada por caso nem descoberta as apalpadelas: é um método rigoroso que d& suas provas nessa descoberta. Newton conclui o que Kepler e Galileu tinham comecado: esses trés nomes nfo evocam simplesmente as personalidades de grandes sdbios, mas autén- ticos simbolos, marcos importantes do conhecimento cientffico a ee eS ee e do proprio pensarnento cient{ficof Partindo da obse 27 fendmengs celestes, Kepler leva essa observagic.a um grau de rigor, de “exat " matematica que_jamais fora atingido antes dele. Gracas a Sa watalloe drum ‘uma paciéncia infatigdvel, ele chega Ys leis que estabelecem a figura das trajetérias dos planetas e determinam a relacao entre o periodo de revolugéo de cada pla- neta e a sua distancia do Sol. Mas essa observacao dos fatos é apenas um primeiro passo. A tarefa que a mecanica de Galileu se impés tem mais amplitude e maior alcance; a sua problemé- tica penetra numa nova camada, mais profunda, da conceptua- lizagao em fisica. Com efeito, j4 nao se trata de examinar_um determinado setor dos fendménds da natureza, por muito vasto @ importante que éle seja, mas de fundamentar universalmente a dinamica, a feoria da natureza como tal. E nao escapa a Gali- Tea qué aTntuigao imedtata da natureza nao esta a altura de semelhante tarefa, q “que ela deve recorter a outros ‘Instrumentos de conihécimento, a outras fung es intelectuats. Os fendmenos ‘da natureza oferecem-se A intuigao na unidade de seus processos, como totalidades indivisfveis. Ela percebe-os como simples dados individuais; pode descrever em largos tragos seu desenvolvi- mento, mas essa forma de descri¢éo nao poderia substituir uma “explicagéo” verdadeira. Para explicar um_fendmeno natural. no basta apresenté-lo emi seu sere em sua manefra defer; € THecessAtic Tazer ver de que a aalisbes Saou aT tenoreno ‘depende e reconhecer com impecdvel rigor em que espécie de ‘dependéncia ele se encontra_a respelto dessas condigoes. “BagUncia 86 pode ser satisfeta pela decomposigt® ae tmagem sintética do fendmeno que _nos é fornecide pela intuicao e pela observagao-imediat fata para ra tesoivéla em § ‘seus momentos consti- tutivos. Esse procedimento analitico é, segundo Galileu, a con- ‘digfio de todo o conhecimento rigoroso da hatureza. Esse método de construgo dos conceitos ffsicos é, simultaneamente, um mé- todo de “resolucéo” e um método de “‘composigao”. S6 decom- pondo um acontecimento aparentemente simples em seus elemen- 28 tos e depois reconstruindo-o a partir desses elementos que se consegue compreendé-lo. Galileu dé um exemplo cldssico desse procedimento na sua descoberta da trajetéria parabdlica dos corpos langados no espago. A forma dessa trajetéria nao podia ser diretamente decifrada pela intuigfo nem aduzida de um grande numero de observacées separadas. A intuicZo fornece- nos, € certo, alguns tragos gerais: mostra-nos que a uma fase ascensional sucede uma fase de queda do corpo langado etc., mas faltam sutileza, exatidao, rigor e precisao nessa determina- gao. S6 podemos chegar a uma concepgao exata, verdadeiramente matemética, desse processo se relacionarmos esse fendmeno corh ‘as condigées particulares que o determinam, e considerarmos se- paradamente cada um dos planos de determinacao que nele se entrecruzam para procurar estabelecer a lei. E descoberta a lei da trajetéria parabélica: o recrudescimento e o decréscimo de ve- locidade explicam-se de modo rigoroso a partir do instante em que se consegue provar que o fenémeno balfstico € um processo complexo cuja determinac3o depende de duas “forgas”: a forca de impulsio originéria e a forca de gravitagdo, Todo o desen- volvimento ulterior da fisica est’ dado de antemfo nesse sim- ples exemplo como num modelo elementar; toda a estrutura do seu método jé af esta implicita. A teoria de Newton conservou e confirmou todos os tragos que af ja so nitidamente reconhecfveis. Ela est construfda, com efeito, pelo cruzamento dos métodos de “‘resolugdo” e de “composigéo”. Tomando como ponto de partida as trés leis de Kepler, a teoria newtoniana nao se satisfaz em ler e interpretar essas leis como expresséo de um simples estado fatual da obser- vacao; ela tenta, ademais, reconduzir esse estado de fato aos seus pressupostos, provar que ele é a conseqiiéncia necessdria da convergéncia de diversas condigdes. Em primeiro lugar, cum- pre que cada um dos sistemas de condigdes seja explorado por si mesmo e que o seu modo de agao seja conhecido. Foi assim 29 que o fenémeno do movimento planetério, que Kepler vira como um todo, revelou ser uma formacao complexa. A teoria newto- niana reduziu-o a dois tipos de lei fundamentais: & lei da queda livre ¢ a lei do movimento centrifugo. Cada uma delas tinha sido estudada separadamente, e de maneira rigorosamente con- clusiva, por Galileu e Huyghens: todo o problema consistia en- tio em realizar a sintese das descobertas deles, reduzindo-as a um unico princfpio inteligivel. A faganha de Newton esté jus- tamente na realizacao dessa sintese: consiste menos na descoberta de um fato desconhecido antes dele, na aquisigéo de um material inteiramente novo, do que no remanejamento_intelectyal operado na base do material empirico. J4 nao se trata mais de contemplar a estrutura do cosmo e sim, doravante, de a penetrar: ora, 0 Cosmo s6 se abre para essa espécie de penetragio quando sub- ‘ReHTO a0 _pensamento | matemftico € a0 seu_método analitico. Ao-eriar,com_o célculo dos fluxos e 0 célculo | infinitesimal, um instrumento universal a servigo desse programa, parece evidente que Newton e Leibniz demonstraram, pela primeira“ vez em ter- mos de rigor absoluto, a “inteligibilidade da natureza”. O cami- ‘tho do conhecimento da ristareza desefirota-se indefinidamente, mas sua diregéo permanece fixada com firmeza, porquanto o seu ponto de partida e o seu destino nao so exclusivamente deterrninados pela natureza dos objetos mas também ém pela forma e pelas fa) especificas da razao. =a A filosofia do s€ctTO-KVIIT esté, em todas.as-suas_partes, vinculada 20 exemplo privilegiado, ao paradigma metodolégico da fisica néwtoniana; mas logo sua aplicagao foi generalizada. Nao se contenta em compreender a anélise como a grande fer- ramenta intelectual do conhecimento fisico-matemético e vé af © instrumento necessdrio ¢ indispensdvel de todo o pensamento em geral. Em meados do século, o triunfo de tal concepgiio j& est4 assegurado. Se € verdade que certos pensadores e certas escolas divergem em seus resultados, h4, nao obstante, uma 30 concordancia unaénime quanto a essas premissas da teoria do conhecimento. O Tratado de metafisica, de Voltaire; 0 “Discurso preliminar” da Enciclopédia, dg _D’Alemb¢ TE e~es-Fnvestigacoes sobre a clareza dos principios da teologia e da moral, de Kant, falam a esse respeito a mesma linguagem. Todos proclamam-que o verdadeiro método da metafisica harmoniza-se, basicamente, com 0 que foi introduzido por Newton na fisica e proporcionou t&o copiosos frutos. Voltaire declara que o homem que se desco- nhece ao ponto de pretender penetrar a esséncia interior das coisas, conhecé-las na pureza do seu “em si” (An-Sich), nao tarda em adquirir consciéncia do limite de suas faculdades: ele vé-se na posigfo de um cego que tivesse de julgar a natureza das cores. A benevoléncia da natureza colocou, porém, uma bengala nas maos do cego, que é a anélise. Munido dessa bengala ele vai poder abrir caminho entre as aparéncias, ser informado dos seus efeitos e de seu ordenamento, de nada mais necessitando para orientar-nos intelectualmente, para organizar sua vida e a ciéncia? “E claro que jamais se deve formular hipéteses; nao se deve dizer: comecemos por inventar principios com os quais trataremos de explicar tudo. Mas temos que dizer: fagamos exa- tamente a anélise das coisas. Sempre que nos é impossivel ter a ajuda da bussola da matemética e do farol da experiéncia e da fisica para guiar o nosso rumo, é mais do que certo que no podemos avangar um s6 passo.” Contudo, de posse desses dois instrumentos, vamos poder e devemos arriscar-nos no mar alto do saber. Bem entendido, devemos renunciar & esperanca de arrancar alguma vez as coisas o seu segredo, de penetrar no ser absoluto da matéria ou da alma humana. Mas o “‘seio da natu- reza” nos esté francamente aberto se entendermos por isso a ordem e a legalidade empiricas. E nesse ponto central que vamos nos estabelecer a fim de, a partir daf, avancarmos em todas as diregdes. A poténcia da razio humana no esté em romper os limites do mundo da experiéncia a fim de encontrar um caminho 31 de saida para o dominio da transcendéncia, mas em ensinar-nos a percorrer esse dominio empirico com toda a seguranga e a habilité-lo comodamente. Uma vez mais, manifesta-se aqui a mudanga de significagao caracteristica que a idéia de razio so- freu em relagao ao pensamento do século XVII. Para os grandes sistemas metafisicos seiscentistas, para Descartes e Malebranche, para Spinoza e Leibniz, a razio € a regio das “verdades eter- nas”, essas verdades que sao comuns ao espitito humano € a0 Espirito divino. O que conhecemos e do que nos apercebemos & luz da razio é “em Deus”, portanto, que o vemos imediata- mente: cada ato da razo assegura-nos a nossa participagéo na esséncia divina, franqueia-nos 9 acesso ao dominio do inteligivel. do supra-sensivel puro e simples. O século XVIII confere a razao um sentido diferente e mais modesto. Deixou de ser a soma de “jdéias inatas”, anteriores a toda a experiéncia, que nos revela a esséncia absoluta das coisas. A razéo define-se muito menos como uma possesséo do que como uma forma de aquisigao, Ela no € 0 erério, a tesouraria do espirito, onde a verdade é depo- sitada como moeda sonante, mas o poder original e primitivo que nos leva a descobrir, a estabelecer e a consolidar a verdade. Essa operacao de assegurar-se da verdade constitui o germe e a condig&o necessdria de toda a certeza verificdvel. E nesse sen- tido que todo o século XVIII concebe a razao. Nao a tem em conta de um contetido determinado de conhecimentos, de princi- pios, de verdades, preferindo consider4-la uma energia, uma forca que s6 pode ser plenamente percebida em sua ado e em seus efeitos. A sua natureza e os seus poderes jamais podem ser plenamente aferidos por seus resultados; é & sua fungao que cumpre recorrer. E a sua fungao essencial consiste no poder de ligar e de desligar. A razio desliga o espirito de todos os fatos simples, de todos os dados simples, de todas as crencas basea- das no testemunho da revelagao, da tradicao, da autoridade; s6 descansa depois que desmontou peca por pega, até seus Ultimos 32 elementos e seus tltimos motivos, a crenca e a “verdade pré-fa- bricada”. Mas, apés esse trabalho dissolvente, impée-se de novo uma tarefa construtiva. E evidente que a razao nao pode perma- necer entre esses disjecta membra; dever4 construir um novo ediffcio, uma verdadeira totalidade. Mas ao crian ela prépria essa totalidade, ao levar as partes a constituirem o todo segundo a regra que ela propria promulgou, a razao assegura-se de um perfeito conhecimento da estrutura do ediffcio assim erigido. Ela compreende essa estrutura porque pode reproduzir-lhe a construgao em sua totalidade e no encadeamento de seus mo- mentos sucessivos. E mediante esse duplo movimento intelectual que a idéia de razdo se concretiza plenamente: nfo como a idéia de um ser mas como a de um fazer. Essa convicgéo abre caminhos nos diversos dominios da cultura do século XVIII. A sentenga famosa de Lessing, de que nao se deve procurar o verdadeiro poder da razio na posse da verdade mas em sua ‘aquisigdo, encontra por toda a parte seu paralelo na histéria das idéias do século XVIII. Montesquieu tenta dar uma justificagéo teérica geral para essa sede de sa- ber inscrita na substancia da alma humana, para essa infatigé- vel curiosidade intelectual que nos impele de idéia para idéia, sem permitir que nos detenhamos jamais naquele pensamento que acabamos de atingir: “A nossa alma é feita para pensar, ow seja, para aperceber: ora, semelhante ser deve ser dotado de curiosidade, pois como todas as coisas estéo numa cadeia ininterrupta, em que cada idéia precede uma e segue-se a uma outra nfo se pode gostar de ver uma sem ver uma outra.” A libido sciendi, que a dogmatica teolégica tinha banido e a que aplicara o ferrete ignominioso do orgulho intelectual, foi desse modo proclamada qualidade necesséria da alma e como tal restabelecida em seus direitoc raturais. A defesa, o reforgo e a justificagéo desse pensamento sao as finalidades essenciais que a cultura do século XVIII se atribuiu. Portanto ela nao viu 33 sua tarefa principal na aquisigfo e ampliagao de certos conhe- cimentos positivos. No que se refere a propria Enciclopédia, que se converteu no arsenal de todos esses conhecimentos, essa ten- déncia fundamental manifesta-se igualmente sem ambigiiidade. Diderot, o seu fundador, declara nao ser sua intengao adquirir um mero acervo de conhecimentos mas provocar uma muta¢ao no modo de pensar. A Enciclopédia foi criada “pour changer la fagon commune de penser”® A consciéncia dessa tarefa sensi- biliza e agita todos os espiritos, suscitando neles um sentimento inteiramente novo de tensfo interior. Até os mais moderados € os mais refletidos entre os pensadores verdadeiramente “cientf- ficos” sentem-se impelidos para a frente, empolgados por esse movimento. Ainda nao se atrevem a definir seus fins ultimos, mas nfo podem escapar a sua poténcia e acreditam sentir que se avoluma nele, através dele, como que um novo futuro da humanidade. Por exemplo, Duclos escreveu em suas Considéra- tions sur les moeurs de ce siécle: “Nao sei se tenho uma opiniao excessivamente benévola do meu século, mas parece-me haver uma certa fermentagao universal [.. .] cujos progressos poderiam ser dirigidos e acelerados por uma educagio bem entendida”. Pois o que se quer nao é deixar-se muito simplesmente contami- nar pela efervescéncia geral e empolgar pelas forcas em acao. Quer-se, outrossim, compreendé-las e domind-las & medida que se adquire essa compreensdo. Nao se quer mergulhar apenas em redemoinhos e turbilhdes de idéias novas, mas assumir o leme e guiar 0 curso do espirito para metas definidas. O primeiro passo nesse caminho foi, para o século XVIII, partir em busca de uma fronteira determinada entre o espirito matemdtico e o espirito filoséfico. A tarefa era dificil e com- plicada ainda por uma dialética interna, porquanto se tratava de satisfazer igualmente a duas exigéncias diferentes, em apa- rente oposigao. Nao se devia, obviamente, quebrar o vinculo entre matematica e filosofia, nem mesmo afrouxé-lo: nao eram 34 as mateméticas o “orgulho da razio humana”, sua pedra de toque, sua caugao e fianga? Mas, por outro lado, via-se com crescente clareza que o poder inerente as matematicas deparava- se com certos limites: elas sao, sem dtivida, o exemplo e o mo- delo da razao, mas sem lograr, no entanto, dominé-la, esgotar-lhe © contetido. Assim se estabelece um curioso processo intelectual que parece acionado por forgas diametralmente opostas. O pen- samento filoséfico parece querer, de um sé movimento, liber- tar-se das mateméticas e vincular-se-lhes, emancipar-se do seu dominio exclusivo, tentando simultaneamente, digamos, nao re- chagar ou contestar essa autoridade mas justificé-la por um outro lado. Ele ganha em ambos os planos, no sentido de que a andlise, que constitui a forma essencial do pensamento matemé- tico dos tempos modernos se reconhecida em sua significagéo profunda, extravasa largamente, por sua prépria fungdo univer- sal, os limites da matematica pura, da grandeza e do ndmero. O tratado de Pascal, Do espirito geométrico, dedica-se a deter- minar cuidadosamente os limites das ciéncias mateméticas da natureza e da ciéncia do espirito, prentincio de que j4 no século XVII se percebia com nitidez o deflagrar iminente desse movi- mento. Nessa obra, Pasealopoe o“espirito geométrico” ao “esprit | fin” para mostrar como eles se distinguem um do outro em suas| “Fespectivas estruturas € usos. Mas essa severa deliniifagéo nao tardaré em ser questionada de novo. Fontenelle, por exemplo, no prefacio de seu Tivro De Iutilité des mathématiques et de la psysique,* declara que “o espirito geométrico no esté tio exclu- sivamente ligado a geometria que nao possa separar-se dela transportar-se para outros dominios. Uma obra de moral, de po- litica, de critica, até mesmo uma obra de elogiiéncia jamais ser4, ceteris paribus, tao bela € tao perfeita quanto se fosse concebida num espirito geométrico”. O século XVIII dedica-se a esse pro- blema e resolve-o no sentido de q&®O “espirito geométrico”, se © entendermos como o espirito da anélise pura, € de aplicacio 35

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