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KENIA KEMP. "GRUPOS DE ESTILO JOVENS: O 'Rock Underground’ e as praticas (contra) culturais dos grupos ‘punk’ e ‘thrash’ em So Paulo." Dissertapdo de Mestrado apresentada ao Departamento de Antropologia do Institute de Filosofia e Ciéncias Humanas da Universidade Estadual de Campinas, sob a orientacdo da Profa. Dra. ANA MARIA DE,NIEMEYER Cue! Este exemplar corresponde a redario final da dissertagdio defendido e oprovada pela Comissao — Julgadora em etfI5 193. UNICAMP DEZ/1993 Para Wvette, minha mae. AGRADECIMENTOS A CAPES e & FAEP (UNICAMP), pelas bolsas que possibilitaram a realizacao deste trabalho. A minha orientadora, a Prof? Dr? Ana Maria de Niemeyer, pelo incentivo, pela receptividade € pelas observagées sempre importantes. Pelo seu apoio académico © pessoal em todas 2s etapas até a conclusdo, que me pemmitiram chegar até aqui. os Professores do Mestrado de Antropologia, e em especial & Prof Guita G. Debert e aos Profs. José Luis dos Santos e Antonio Augusto Arantes, que colaboraram em diferentes momentos da elaboracdo desta dissertagao. Ao Rafael, amigo de tantos anos e de tantas leituras e conversas. ‘Ao Kiko Goifman e @ Juliana Jayme, pela casa sempre aberta. Valeu. A todos do “Movimento Anarco-Punk’, cuja receptividade foi fundamental para a realizagao de minha pesquisa. Imenso ¢ importante 0 papel de voods desde o inicio; um abraco mogada! Aos editores de fanzines de ‘rock underground’, que sempre corresponderam com informages necessérias e importantes. Especialmente ao Anderson Afonso ("Allied Forces”-SP), ‘a0 Marcelo Batista ("United Forces"-SP), ao Josinaldo e ao Joacy ("Sociedade dos Mutilados"-MA), a Luciana Angel ("Minchener*-SP), ao Arilson ("Excesso de Odio”-SP}, ao Paulo ("Putrid"-SP), a0 Denoir (“Utopia’-PR) e ao Ednilson (“OFFEQ”-BA). Grande forga que vocés me deram. Um agradecimento muito especial a familia Shimabukuro ( Dona Tereza, Sr. Kanitiro, Katia @ Monica) , pelo carinho e por todo o apoio. Alex, pelo companheirismo e pelo amor. SUMARIO: iNTRODUGAO 1, OS "GRUPOS DE ESTILO" 1.1 -A Juventude Invade a Midi ....... .2- Abordando os "Grupos de Estilo" 1.3 - A Pesquisa e 0 Trabalho EtnOgrafico srw. 14-0 Local e 0 Global nos "Grupos de Estilo" ... 31 Il, Punks e Thrashers nas Ruas Il. As Comunidades Imaginadas: Identidade Juvenil, Identidade Rebelde, Identidade de Classe 1V. 0 "Movimento Anarco-Punk" .. V. Os Fanzines e a Construgao das Comunidades Imaginadas .... VI. Cultura de Estilo: Moda x Underground. Consideragdes Finals: Reeducando os sentimentos, ou as novas comunidades de estilo Glossério de Termos e Expressées. Anexos. LISTA DE ANEXOS: (1) Revista da Folha, "Folha de Séio Paulo, 14/02/93, n® 42 (ou, como se veicula um “modelo burocratico"). (2) "Punk, @ nossa voz!", folheto do "Movimento Anarco-Punk", 1993. (2 paginas) (3) "Allied Forces Magazine", n? 5 (4) “United Forces”, n® 8 (2 paginas) {) "Excesso de Odio zine”, n? 1 (3 paginas) (6) "Phorkozine*, n? 3 (7) "Sociedade dos Mutilados zine“, n* 4 (3 paginas) INTRODUGAO Entre as camadas jovens da populaeao, existem alguns grupos cujas praticas remetem-se & um estilo como referéncia de pertencimento. Citando apenas alguns” : punks, hip-hops, grunges, rock'a'billies, hippies, gbticos, thrashers, grinders, etc. ‘So indistintamente grupos de estilo por recorrerem a uma linguagem visual e/ou musical que os substantiva. Mas uma diferenca importante deve ser apontada: enquanto alguns sao resultado de uma cuttura de consumo, outros engajam-se em préticas contracutturais que negam 0 funcionamento de mercado em qualquer nivel de suas préticas (s80 os grupos de estilo underground) £ 0 caso do Movimento Punk, que tomei como objeto. ‘Ném do levantamento bibliogréfico sobre 0 assunto, realizel uma pesquisa de campo durante varios meses do ano de 1991, com um dos grupos do Movimento Punk de Sao Paulo, 0 "Movimento AnarcoPunk”, Durante os anos de 1990, 1991, 1992 mantive correspondéncia com editores de vérios fanzines de rock underground, que me proporcionaram uma grande quantidade de fontes pimarias para serem consuttadas, além dos registros do caderno de campo. Este material também consta no corpo do trabalho. ‘A pesquisa procurou dar destaque a dois momentos: 4°, o das praticas coletivas, quando se acionavam as idéias concebidas pelos sujeitos, individualmente, sobre 0 pertencimento aquele grupo; 28, a elaboragéio de sentidos e Idéias sobre essas praticas, como elas aparecem nos fanzines e nos manifestos, panfletos e todo o material editado por pessoas dos grupos de estilo. Nos dois momentos, a questo das dimensées local e global desses grupos, aparece como ‘elemento constitutive. Apesar de tecerem uma rede de comunicagao propria, que da conta de seu carater transnacional, no se prescinde das retagdes de convivio, amizade, solidariedade © proximidade, que permite que cada grupo de estilo constrva locaimente sua propria historia, £ nesses momentos compartilhados em grupo, que se pode colocar em pratica todos os simbolos que esto presentes nos universos delimitados de pertencimento de cada estifo. 0 exemplo das situagdes observacias em campo, junto ao "Movimento Anarco-Punk* por um lado, e as redes de contato que os fanzines conseguem estabelecer, por outro, procuram dar atengo a esse movimento do local x o global. A relagdo desses grupos com a midia, a indistria musical e a moda, revela seu carater contracultural, ou underground. Etes procuram recusar qualquer envolvimento com essas esferas de produgaio e circulagio de bens simbolicos, por recusar modelo discriminador que pressupde ‘seu modus operandi. No final da tese, encontrase um glossairio de termos e expressdes que sao recorrentes durante o texto. Esto incluidos tanto aquetes de lingua inglesa, quanto os de portuguesa . “OS ’GRUPOS DE ESTILO’ " Neste capitulo, proponhome a expor o que sao os grupos de estilo, porque consider importante pensar no fenémeno de grupos que articulam sociabilidades e préticas socials em tomo de um estilo como portadores de especifidades contrastantes ©, porque criei essa denominago ( "grupos de estilo") para a eles me referir. No item 1.1, me propus a resgatar alguns aspectos das praticas sociais presentes nas camadas jovens da populagdo das sociedades urbancindusiriais e como @ mediatizagao das nogdes sobre juventude sao incorporadas na probiemética dos grupos de estilo. Em seguida procurei colocar os parametros que dirigram a abordagem dos fenémenos que associam a misica rock aos grupos de estilo (item 1.2) € de como os situo enquanto um grupo carregado de espesificidades que permitem esse recorte. Apesar de nao situar este trabalho como qualquer tipo de sociologia musical, os aspectos da producao, circulago e consumo musicais, encontram-se inextricavelmente ligados As préticas dos grupos jovens enfocados neste trabalho. Para se falar em punks, é importante que se fale na mGsica punk. Alguns aspectos musicais sero entdo enfocados, de forma a situar ‘0 fendmeno das produgées musicais underground e suas consequéncias para os individuos grupos que com ela se envolvem. Enfocarei também a metodologla de pesquisa utilizada (item 1.3), situando © conteddo selecionado para incorporar este trabalho. Nesse item, esto apontadas ainda, as fontes que foram utllizadas. © item 1.4 contém algumes reflexdes suscitadas pelo material, que apontavam os dois fiveis de articulago dos grupos de estilo, que so 0 local - onde se desenvolvem as sociabilidades mediadas pelo estilo comum - @ 0 global, por onde fluem nogdes de pertencimento desentaizadas de suas culturas locais. 1.1; A Juventude Invade a Midla. ‘As formas de associac&o coletiva dos jovens podem ser resgatadas historicamente, como mestram os estudos de John R, GILLIS, em “YOUTH AND HISTORY ~ Tradition and Change in European Age Retations, 1770-Present”. Ele nos aponta a existéncia de grupos jovens desde © periodo préindustriat e, de como o processo de desenvolvimento que cuiminou com 0 capitalismo, afetou seus habitos, seus conteGdos asscciativos e enfim, suas formas expressivas. As relagdes com as mudangas institucionais e produtivas rumo & consolidagdo capitalista, afetaram diretamente as camadas jovens, cujas delimitacdes legals e educacionais serviram para demarcar direitos e organizar 0 fluxo © as condigdes de entrada no mercado de trabalho. Por seu tumo, aos diferentes perfodos histéricos, os jevens coresponderam com formas associativas cujo controle e cujos desenvolvimentos permaneceram, em diferentes medidas, fora das representagées institucionalizadas. Assim foram, por exemplo, as fratemidades - organizadas sob 0 concelto de ‘irmandades” - até 0 inicio do processo de industrializagéo (GILLIS,1981:22). O perfodo de modemizacéo , de 1770 a 1870 aproximadamente, exibiu meis nitidamente o fracionamento de classes emergentes; nessa 6poca: "(..) as tradigdes da juventude foram redesenhadas, com as classes trabalhadoras desenvolvendo sua propria cultura distintivamente organizada em torne da gangue de vizinhanga urbana, ¢ as classes média ¢ ascendente criando formas exclusivamente suas, incluindo 0 movimento estudantil modemo ¢ 0 boemianismo.” (op-cit 38) No inicio do séc.XX, as atividades de lazer comegam a se tomar comercializadas, com a criag&o de espacos de consumo como os saldes de danga, cinema, pubs jocais, espetaculos esportivos, etc. Uma parceta da juventude entao, passa a se desligar das tradigdes do grupo Jovem urbano (op.cit:129). Nessa época, ainda segundo GILLIS, os grupos de companheiros ‘com estrutura menos formal do que as gangues de rua tomam alguma visibilidade. © advento de duas guerras mundiais e a intemacionalizagao do capital, com 0 imenso desenvolvimento dos meios de comunicacéo de massa a partir do posguerra, afetaram qualitativamente essas tradi¢des de formagao de grupos jovens. Tanto do ponto de vista de seus modos de reproduco, como pelos referenciais de agregacao. 0 fato é que, a partir da década de 50, ndo s6 os grupos jovens comecaram a ter um ‘outro referencial associativo © consumatério com a crescente globalizagéo da sociedade urbana e de consumo, como as nogdes estabelecidas socialmente sobre as faixas etarias designaram ‘tratamentos diferentes a cada uma delas, consonantemente com esse proceso. Analisando 0 modo como os meios de comunicagio de massa contribuiram para profundas mudancas acerca das representagdes sociais, Edgar MORIN(1969) ressalta como o adolescente tornouse um "modelo gerativo” de identificacées; nos meios de comunicagao de massa, tomam-se adolescentes tanto as criangas quanto os idosos. ‘A cultura desenvolvida pela midia em tomo de "modos de vida jovem", “disposicies juvenis" e uma série de outros atributos veiculados como orientadores ¢ formadores de habitos de consumo ndo foi entretanto uma escolha arbitréria. lan CHAMBERS(1986) focaliza como a expanséio de economia no posguerra, com a declaragiio da “era da afluéncia" na década de 50, utilizou 0 concelto de juventude como metéfora para as mudancas sociais que ocorriam {op.cit.:44). ‘A democratizago do conceito de “adolescéncia” pete classes médias no séc.XIx (GILUS, op.cit.), ganha no nosso século ~ com a interferéncia dos meios de comunicagao de massa — uma autonomizagdo a partir do momento em que se Justapdem as idélas de juventude com a de realidade/projeto social. ‘A mediatizagdo dessa nova nogéo de juventude, que pretende atravessar a sociedade imbuindoa de um ‘novo espfrito’, confunde-se com o processo de massificagaio do consumo, para o qual, @ sensibilizago através das imagens foi um proceso decisive, Em primeiro luger, porque evitou o empecitho que poderia se revelar com o limite da compreensao oral e escrita. Segundo, através de um processo de de-substancializagio - ov seja, explorando imagens que nao precisam necessariamente remeter a um contetido (EWEN, 1988) — conseguiu estabelecer ‘como primordial, como referéncia basica, a necessidade de renovagao do consumo, através da necessidiade de renovacio das imagens, Nesse ponto, a juventude revela sua importancia como conceito desligado dos determinismos biolégicos/etérios e permite que pensemos em algumas consequéncias para aquelas pessoas que estdo situadas nas camadas jovens. Pois, enquanto metafora de mudanca, de renovago, os jovens tém exploradas no apenas suas proprias imagens (aquelas por eles exclusivamente geradas), como seus sentimentos e sua auto-imagem a partir do momento em que se vém refietidos - ou pelo menos suas ‘superficies descontextualizadas — de forma massiva nos meios de comunicagao de massa. : Abordando os Grupos de Estilo’. A masica tem sido para as cléncias socials um campo - dentro da produgao de bens simb6licos - pouco permefivel as elaboragdes tebricas, Ao mesmo tempo em que seus usos © 2s préticas derivadas mostramse ricos por proporem uma grande deversidade nas possibilidades de manipulagao simbélica, ela oferece & sistematizage de estudos uma série de dificuldades no tocante aos aspectos sociais de sua produgéo, reproduedo, e atribuicao de significados. Na introdugo de uma coleténea de estudos dadicados A sociologia da misica, WHITE(1987), atribui a falta de um corpo tedrico unificado nesse campo, a uma separacdo inicial e ainda no totalmente superada, da misica em si e seus aspectos técnicos {desembocando na musicologia), das tentativas de abordagem social via aspecto litico isoladamente.. © resultado disso, segundo WHITE(op. it), € que acabouse exigindo que alguns antrop6logos aprendessem a tocar o que ouviam — para examinar os padres estruturals do som — enquanto se criticava os musicélogos pela caréncia de atticulagéo € embasamento tedrico sobre os contextos sociais da produgtio musical. Desde 0 advento do rock'n'roll na década de 50, partindo dos Estados Unidos, a ligacéio desse tipo de misica com as camadas jovens da populagao nos: paises onde ele foi introduzido ‘comerciaimente, tem produzido fenémenos sociais que podem ser observados sod diversos angulos. Podemos ressaitar 0 aspecto do papel da midia como facilitadora e parceira das indGstrias tonografica e da moda ligadas aos estilos musicals do pop e do rock 1, E possivel ainda que isolemos a produgéo musical e sua parceira das inddstrias fonogréfica e da moda ligadas aos estilos musicais do aspecto lirico, como expresséo das representagdes presentes nos grupos que a produzem, acerca da organizacao social e de sua(s) telago(6es) dai decorrentes. Ainda, podemos tomer apenas as praticas coletivas de turmas de Jovens identificadas com algum tipo de misica em comum e, isotandoas entretanto de seu interesse musical, fazer observagdes acerca das possiveis diferenciages nas formas de soclabllidade nelas desenvolvidas comparativamente a outras turmas. E possivel separarse de um lado os aspectos “puramente" musicais e 0s contextos sociais de seus usos por outro. Entretanto, em um dos artigos de "LOST IN MUSIC", John SHEPHERD(in WHITE, op.cit.) nos lembra oportunamente que os diferentes estilos de misica, estdo relacionados com 0 *panodefundo cultural {ou, 0 cultural background) de sua criagdo. SHEPEHERD afirma que nao existem provas de que determinadas estruturas basicas de misica estejam necessariamente ligadas @ determinadas atribuigSes de sentidos e significados, sendo estes socialmente acrescentadios de forma atbitréria. Neste procasso entdo, € que um estilo de masica tomnase significative: “Isto néo € afirmar entretanto que a significacao da mmiisica esta localizada em alguma forma de realidade associal, tltima. Podese sustentar que, porque as fessoas criam miisica, elas reproduzem na estrutura basica de sua misica a estrutura bisica de seus préprios processos de pensamento. Se & accito que os processos de pensamento das pessoas so socialmente mediados, entao podese dizer que as estruturas basicas de diferentes estilos de miisica sio igualmente, socialmente mediados e socialmente significantes.” (SHEPHERD, in WHITE, 1987:57) 1. segundo FRITH{1987) a cise dos estilos pep ¢ rock teria acontecido ne inicio dos anos 60, senda anteriormente inaxistente. E neste ponto portante, quando a misica passa a ser compreendida como resultado de atribuigoes sociais de significados e passa a mediar as relagdes socials de uns ou outros grupos sociais, que situo as preocupagSes com os aspectos musicais neste trabalho. © rock, fruto de um momento cultural muito especifico da soctedade norte-americana, passou por um processo de mediatizagao intenso, do qual resulta sua reprodudo como estrutura musical basica em muitos paises ocidentais e orientais. Por trés de um imenso mercado consumidor representado por esse tipo de miisica, temos ainda um niimero quase incalculével de jovens envolvides com esse tipo de produce cultural, Ou seja, além de um significative consumo, 0 rock representa um meio de soci lidades e expressées culturals privilegiado por jovens que se espatham por quase todo o globo. Da mesma forma come todos os outros produtos cutturais comercializados hoje em dia, 0 rock n&io segue um padrao estilistico Gnico desde seu inicio, Ao contrario, em seu processo de desenvolvimento, passou por apropriagdes d ividuos @ grupos com diferentes conaicao e posigao sociais, que resultou em uma subdivisdo de estilos capaz de mapeslos. Obviamente, essa ligacdo entre posicionamento social ¢ estilo de rock possui um carater referencial, nao sendo uma regra. Uma vez inseride no mercado de produgao em massa, esse tipo de determinismo original (dasse & estilo), nao apenas perde sentido e peso, como qualquer discussdo fice impossibilitada, se n&o inserirmos as questdes ligadas aos interesse de expansdo € aprimoramento do funcionamento mercadologico. Intensamente comercializado, o rock conhece hoje uma enorme subdivisdo de estilos; muitos inclusive fazem referéncia e sao influenciados por estilos anteriores, 0 que permite encontrarmos um mesmo estilo ramificado em varias subdivisGes. Nessas subdivisdes, podemos encontrar tanto um consenso entre as pessoas que apreciam esse estilo, como multas vezes, uma dissidéncia irreconciliével que cotoca em disputa questdes de originalidade & legitimidade de uso da referéncia. Comercialmente, essa ramificacaio do produto, obedece a mesma légica que qualquer outro bem simb6lico inserido no mercado, adquirindo a propriedade de mapear estitos de vida, submetendo-se ao tempo de vida ditado pela necessidade de renovagao do repert6rio oferecido esse campo, que por sua ver, é determinado pelo funcionamento da moda. Socialmente, esses diferentes estilos de rock tracam fronteiras entre comunidades de mAsicos, pablico consumidor, colecionadores, comerciantes, especialistas, que por afinidade aoabam por atribuir uma determinada “personalidade" a cada grupo. De alguma forma, 0 que ocorreu no rock, foi uma transferéncia das diferencas da estrutura e formas musicals dos estilos da mAsica, para os estilos de vida das pessoas que se identificam com esta ou aquela sonoridade, e viceversa. A pattir do momento em que esse processo teve inicio, a especializagao de estilos foi se tomando cada vez mais rapidamente proliferada2 . © refinamento de elementos diferenciadores entre cada esiiio, tornouse um processo simbiético entre mdsica e cotidiano. Antes desse proceso atingir um desenvolvimento significativo, era possivel dissoctarmos 0 modo de vida de um misico de rock do de seus consumidores, ou destes ¢ dos comerciantes especializados nesse tipo de produto. Agora, em muitos casos, eles ndo apenas tém um modo de vida muito proximo entre si, como muitas vezes ‘a mesma pessoas se toma misico, consumidor e comerciante. No melo underground, como @ proposta vai no sentido de eviter todo o sistema de mercado que possibilita a massificagao de sua produgdo cultural, essa simbiose entre modo de vida e envolvimento com 0 mundo musical tornase inclusive imprescindivel. A identificagao nao se dé através do produto eleito pare consumo, mas peto ewvolvimento com as propostas de producdo independente, ou underground. Tanto que, & comum nos fanzines e em conversas de pessoas envolvidas com algum ‘estilo do rock underground, percebermos 0 uso constante da denominagdo cena, para se referirem ao meio musical-social desse estilo em um lugar qualquer. 2g literatura disponivel sobre o rock em geral, esclarece que, mesmo havendo oposi¢Ses murto precoces no mundo: do rock como entre rockers e teddy-boys, desde 0 inicio, a década de 70 & que este aspecto ganha visibilidade devido 4 explosdo quantitatva da diversidade de estllos e correntes de influéncias entao a disposicSo nesse meio musical 10 © paralelo com o significado de cena, ou cenério, sintetiza de forma extraordinaria as significagdes que estéo presentes na idéia de estilos dentro do universo de producdo underground. Cada estilo do rock underground tem sua propria cena em cada lugar. A cena, se refere & produgdo musical, piblico assistente, divulgadores, editores de fanzines, espagos para performances musicals, tudo isso relaclonado por aqueles que fazem parte da cena, de modo qualitative e quantitativo, Ou seja, eles conversam constantemente sobre 0 nimero e a qualidade de bandas e fanzines locais, @ frequéncia com que se consegue realizar gigs (shows de bandas), os espacos possiveis a serem utilizados; tudo o que acontece relacionado & atuago das pessoas pelo estilo, diz respeito & cena, Nessas cenas do underground, & comum encontrar pessoas que desempenham ngo apenas um, mas varios dos papéls relacionados a elas simuitaneamente. Quando um local possui elementos constitutivos para essa cena, muito visiveis qualitativamente e quantitativamente, apoiados por uma coletividade intensamente envolvida e ativa, os participantes dizem que "esse lugar tem uma cena forte”. UF: 0 que voce sabe sobre cana brasil ? Decay: A cena bras & fderso! Eo mahor! Voces tam am concerto com 7000 ttuoshers, els so todos locos! bo 6 grnde! Toiver wm da 26s possomas tocar off Quem sabe ? (UNITED FORCES ZINE, No. 8, enevsta com 0 bates da bonds “MORBID DECAPTATON’, Canad) —EA CENA MEXICANA, COMO ELA ESTA ? — Aho que estt um pouce ata, com gigs. Mas nds temas mio povcns bandas, ni, maid tompo& tcoso ver as mesma bonds.) — COMO VEEM A CENA SULAMERICANA EM GERAL ? — Acho que muitos pessoas esto nso apenas por moda ov dine, ok ? Mas 6 tempo ¢ dinero doles, nfo conhecem um jato melhor para gastélo. Certo ? (UTOPIA ZINE, No. 10, entrevista com Miguel do bonda “CACOFONIA", México /DF) u Nessa trajetéria de desenvolimento de estilos entio, 0 rock foi revelando que as diferencas formais diziam respeito também a existancia de diferentes tipos de pessoas com cada um deles. Ou seja, através do fracionamento estilistico da misica rock, podemos entrever diferencas que sé dadas a priori pela localizagao na distribuigao vertical do pertencimento de classes, bem como nas diferenciagdes horizontalmente localizadas (entre pessoas de igual condig&o social). Determinados estilos do rock tem uma tend@ncia de aceitagao e divulgagéo maior em algumas classes socials. Tanto os aspectos formais e os elementos sonoros e liricos podem influenciar nessa tendéncia, quanto 2s exigéncias econdmicas necessarias a produgdo © reprodugao de um ou outro estilo musical. Tais exigéncias referem-se a custos de instrumentos, desenvolvimento de habilidades técnicas para 0 desempenho musicel retativo a cada estilo € custos com montagem e organizacao de focais para exibiggo pablica. Esses aspectos a priorfsticos podem influenciar inclusive no tipo de envolvimento que cada sujeito individualmente entalha com um universo musical especifico. Ele pode, por determinadas circunstanclas de posicionamento no campo das praticas culturais ¢ por estratégias pessoais, sentirse satisfeito em limitar-se ao consumo dos produtos gerados por um ou varios estilos. Ou, diferentemente, envolverse na produgdo deles também, movido por necessidades e/ou estratégias politicas ou profissionais relacionados ao seu posicionamento & condigao dentro de determinados grupos sociais (BOURDIEU:1985). ‘Ném dessas diferengas dadas anteriormente e extelormente ao contato propriamente com 0 universo musical, temos também as que se sucedem deste. Nesse momento, as diferengas referentes a estilos e relagdo com a masica, deivam o terreno das determinagdes a prior, passando a obedecer o jogo das subjetividades envolvidas em seu campo. Se enxergarmos 0 rock como um campo de praticas socials, veremos que 0 seu Universo comporta a expresso de lutas que se travam em toro do projeto social bem como da distribuiggo de poder e de papéis sociais que j4 se encontram definidos (BOURDIEU, op.cit.). Assim, tomando no a misica isoladamente, mas esta como resultado de apropriagées que diferentes sujeitos fazem dela enquanto possibilidade expressiva de condicionamentos, mas 12, também de desejos, podemos véla como um campo privilegiado que pode ser utilizado como expresso de comportamentos divergentes e/cu dissidentes. © campo representado pela produgo, circulago e consumo do rock, sofreu em sua trajetoria de desenvolvimento, a propriedade de comportar e transmitir discursos diferentes e ‘até mesmo antagénicos acerca das tendéncias de interforéncia no projeto social. Ele néo é Tepresentativo de um Gnico grupo e de suas préticas politicas. Por isso, nao se pode afirmar que © rock expresse inevitavelmente idéias politicas de esquerda ou de direita. Uma vez que os sujeitos entram em contato com 0 funcionamento desse campo, vao se posicionando conforme identificagdes, interesses disposides subjetas que este Ihes desperta. Encontramos de um lado a expresso de vozes que interpretam 0 universo do rock apenas pela dimensao mercadolégica que ele representa. Nesse caso, 0 que encontramos & uma disputa de posicdes de destaque que movimenta imensa e rapidamente uma sucesso de nomes e modismos, envolvendo consumidores que igualmente disputam a acumulago e atualizagao do capital cultural que se produz. Portanto, ‘concordam com @ concorrem em uma relagio estabelecida verticalmente, que expressa uma hierarquia que esta presente em todos os nivels de suas praticas enquanto sufeitos sociais. Por outro lado, o rock também fol escolhido como meio, por sujeitos que interpretam a dimensio mercadologica desse universo apenas como um dos aspectos das relagdes possiveis nesse campo de préticas. Ainda, pare uma parcela deles, 0 aspecto mercadolégico € no somente dispensével como profundamente recusado. Esse grupo, recusa esse nivel de relagao, or recusar a distribuigdo vertical de poder que ele representa, Disputam, através desse campo de préticas, 0 controle e a autodeterminagdo sobre seu desempenho como sujeitos sociais de forma ampla. Temos entéo um movimento dicot6mico que divide as relagdes entre os sujeitos que se ‘encontram de aiguma forma figados ao universo do rock. De um iado, temos aqueles que se ‘engajam no desenvolvimento da importancia do rock como mercadoria, na rede do processo de @lobaliza¢ao da socledade de consumo. Por outro, aqueles que negam a legitimidade de sua izagao para esse fim, vendo-o como canal de expressdes de negagao do establishment da sociedade de consumo e de comportamentos esperados para a sua reproducao. 13 € deste segundo lado que situ os grupos de estilo do rock underground. —COMO VOCES VINCULAM A ATITUDE SONORA AO COTIDIANO? —0 sistema nas implied todos as formas as suas regras, em ods os mes posstvais de comunicacto, A misica é uma delas. Procoramos dar o troco oo sisterna com o Hard Cora, onde procuromos deixar bem coo as nassos pensomentas e mensagens para que ‘vhs jovens venhara a se conscientzer. 0 som/afiude faz parte do nasso cotidiano, sé assim podemos acrediar que cade dia, cada ono, cada més, coda gerogto poderd saber ‘que a lta Punk nd é em vio. Tudo possaré, mas nossas pclae e ideologia nfo. (UTOPIA ZINE, No. 10, entrevista com a banda “BIOKEIO MENTAL" de Cuiabé/AT) Esses grupos so engalados, em diferentes graus, no projeto de produgao contracultural, como este se definiu durante a década de 60. ‘A adogo de um estilo para os jovens que se envolvem no campo de praticas socials do Tock, no se esgota portanto em uma questao de opgao estética, mas principalmente, os situa enquanto agentes sociais. Expressa as expectativas, os desejos, os projetos individuais & colativos, as estratégias enfim, dentro do contexto em que se encontram. © resultado disso é que, podemos analisar os grupos de estilo do rock underground pelo aspecto das relagdes objetivas de pertencimento social, bem como a partir dat, pela expresso de subjetividades e sentimentos que decorrem das interpretagdes a respeito dessa condicao. ‘Sdo interpretagdes as quais se sucedem posicionamentos politicos. Eles recusam (ou concordam com) 0 aspecto comercial do rock por recusarem (ou aceitarem) de forma ampla a sociedade de consumo para a qual ele se inser como um produto carregado de sentidos que @ alimentam. Por grupos de estilo Jovens, me temeto portanto, & formagao de coletividades - marcadamente juvenis - que tomam como referéncia para condicao de pertencimento ao grupo, um estito, que elabore além de uma proposta estética, um modelo de comportamento. 0 estilo 6 resultado de elaboragdes coletivas e aceito consensualmente como modelo substantive. Assim, ctiam-se denominacdes coma: rocker, teddy boy, hippie, gOtico, punk, hiphop, clubber, skinhead, ‘grunge, mod, etc. Quando um grupo situa-se no meio de produce contracultural, recusando © 14 aspecto comercial na relacéo com os bens simbélicos gerados, eles so grupos de estilo underground, Um grupo de estilo, pode ter como referéncia de construcdo de seu estilo, tanto o meio musical {todos os citados acima}, como outros meios tais como 0 meio esportivo (skaters), ou algo bastante genérico como 0 meio urbano ¢ profissional jovem (yuppies). ‘S80 modos de identidade coletiva que surgem na cedeia simbélica gerada pelo meio urbano e que consituem sua paisagem: “Os proprios individuos contrdenrse (cle ov ela) como objeto de arte da maa, como {cones piiblicos: © corpo s¢ toma o canvas da mudanga dos signos urbanos.” (CHAMBERS, 1986:11) O estilo deve compor-se de um conjunto expressivo de carater conotativo da condigéo de particularidades as quais o grupo se atribul frente & organizacgo social contextualizada. Ou seja, 0s grupos de estilos apontam para a demarcagao de diferenciagdes coletivas, de divergéncias no modo de vida © na condugdo de priticas socials que, entio, se expressam na elaboracao de conjuntos de particularidades estilisticas capazes de definir fronteiras socials. Enquanto efetivago de um modelo juvenil de sociabilidades, os grupos de estilo apresentam préticas que respondem a problemas ¢ contradizes encontradas pelos jovens no que diz respeito @ sua necessidade de interferéncia em um sistema no qual nao encontram espago. Responde & formaco de turmas e na qualidade das relagdes estabelecidas; & necessidade de ressaltar sexualidades € distinguHlas; ao desejo de inverter a logica de disoriminagdo social baseada no consumo; a necessidade de interferir na \ogica discriminatoria mais ampla que se baseia nas diferencas de sexo, etnia, religido, idade e classe social. Mas no articulou ainda de forma definitiva uma resposta a questées como profissionalizagao e trabalho ou casamento e familia. Esses limites portanto, fazem com que 0 exercicio de alteridade dos grupos se esgote a partir do momento em que cada individuo, isoladamente, vai assumindo sucessivamente papéis que aqueles grupos de estilo ndo construiram a seu modo, Tals comunidades portanto, 15 sucedemse através de novos integrantes, sendo excegdes aqueles cuja idade avanga sem terem se afastado do convivio em grupo. Comentando sobre os limites do estilo, CLARKE(in HALL; JEFFERSON [eds.],1976:189ss) ‘atribul alguns “pontos fracos* as subculturas da juventude da classe trabalhadora relativos principalmente a predominéncia da experiéncia do lazer como geradora do ‘espago’ para a forma subcuttural desenvolver-se. [sso resulta, segundo 0 autor, em uma falta de resposta em outros Ambitos como as estratégias de trabalho, produg&o e sexualidade. “A subcultura que fetichiza o lazer € vidvel apenas enquanto 0 padrio coletivo de lazer pode ser mantido como predominante sobre outras éreas. Quando demandas de trabalho ou familia passam a assumir maior significdncia, 0 estilo de lazer coletivo, precisamente porque nao possibilita soluges ou alternativas aquelas areas, dissolvese como uma sequéncia de biografias (...)." (CLARKE, op.cil.:190-191) © modelo comparative para CLARKE 6 0 dos hippies, que segundo ele possibilita carreiras felativamente mais duradouras, pela tentativa - mesmo que limitada e com suas proprias contradigdes - de criar elternativas a uma gama mais extensa das areas de suas vidas, ‘0 que Ihe confere uma “maior viabilidade como uma forma cultural altemativa” (ibid.,1976:191). De fato, a frequéncia com que se encontram hippies cuja idade ultrapassa os 30 anos é maior do que a de punks, por exemplo. Os grupos de estilo do rock underground, seriam grupos de estilo especificos que se sucederam do movimento de cultura underground ligado ao rock na década de 60. 0 termo underground, surgiu como forma de designar produgSes culturais que, na década de 60, partiam de grupos nao conformados com os padrées exigidos pela midia e pela indistria cultural de modo geral, como modelo de produtos e de comportamentos figados @ sua comercializagao. Criaram entéo toda uma proposta de atuagéio politica, com o fim de contraporem ao modelo de veiculagéo dominado pelo grende capital a producdo de bens 16 culturais. A denominagio “contracuttura” entdo, impiica no estabelecimento de uma série de Préticas sociais que, gerando produtos culturais ¢ todo tipo de bens simbélicos se contrapdem 4s préticas determinadas pela cultura de consumo e pela massificagao imposta como requisito para seu funcionamento. 0 underground se localiza nessa oposicao, @ ele est “em baixo”, "no subterraneo”, oculto enfim, em relagdo a visibilidade massificada dos produtos da cultura dominante. A partir de um determinado momento no desenvolvimento @ aperfeicoamento do mercado cultural entretanto, foram langados nesse circuito, uma série de produtos com a denominacZo underground, que perderam seu sentido original - devide & perda de contexto - e passaram a colaborar com a mera diversificacao mercadol6gica (BAUDRILLARD,1972). Os grupos underground por seu lado, passaram a desenvolver estratégias de reprodugao e tentativas de diferenciagao em relacéio aos produtos comercializados com esse rétulo e que circulavam nos meios de comunicago de massa e no mundo da moda, perfeitamente integrados a0 funcionamento do mercado. Ou seja, quase que concomitantemente ao surgimento da cultura underground, temos a mercadologizacéio de produtos com tragos desse repertério original cujo sentido era endo o de renovat 0 repertério colocado @ disposigao do mercado de consumo, Mas ambos, os mundo underground € a moda underground, continuam a se desenvolver, fazendo surgir possibilidades de interferéncias, sobreposicdes, cruzamentos e meiostermos que nem sempre nos permite determinar (ou aos sujeitos envolvidos nesse meio) uma produgao de bens simbélicos como localizada totalmente no melo underground ou no mercado que de seu repertorio se utiliza. 0 que se pode perceber no contato com os grupos punks, na leitura dos fanzines e nas correspondéncias com seus editores, no desenvolvimento do trabalho das bandas de rock e no ‘acompanamenta de seu pablico, é que a idéia de underground nao conseguiu escapar das interferéncias que @ apropriagZo mercadol6gica dela terminou construindo. Ou seja, diferentes pessoas possuem diferentes concepcées sobre o que € underground e o que é de mercado. Principalmente no meio musical dos estilos derivados do heavy metal, a idéia de produgdo underground se confunde muito com algo a set trazido & tona. Muitas pessoas envolvidas com bandas, fanzines, o préprio piblico que se identifica com esse estilo, pensam na 17 telagdo underground/midia néo como excludentes ~ diferem apenas suas dimensdes mas nao as implicagSes no resultado de velcular através de um ou outro meio, - mas como uma fronteira a ser derrubada. Assim, 0 envolvimento com o rack atualmente, conta com uma grande comunidade que tende a investir em préticas para conseguir espaco nos meios de comunicaco de massa ¢ em todo o sistema de mercado da indGstria musical, em nome de uma “batalha elo underground". Essa confuséo toma implicagdes pouco sutis para a di mica de resisténcia contracultural, uma vez que ctesce a apropriagdo dos meios criados pela comunidade underground como forma de contraposigao ao sistema de mercado de bens simbélicos, por grupos que passam a utiliz4os para nele obter espago. Ou seja, existe uma faixa extensa de pessoas Intermediando o uso dos mecanismos criados como forma de resisténcia contracultural para ampliar 0 leque de ongdes em um mercado massificado que tem capacidade e necessidade de incorporéias. A confusdo para esses jovens, centra-se na quest4o dos contetdos que a indUstria musical aparentemente prioriza. Eles tomam a relago pop x rock como se na verdade estivessem opondo cultura de consumo e contracultura. Nao questionam a forma como esses bens séio veiculados pela midia e suas implicagdes profundas nas relagdes que decorrem de sua estrutura que separa producdio (determinadas produtores) por um iado e consumo por outro (qualquer consumicior entendido no aspecto de orientador do fluxo de capital movimentado). Como esse processo de incorporagéo esconde as diferencas existentes entre os produtos - que uma vez inseridos no sistema da midia e do mercado passam a equivaler € ‘competir com aqueles nele originados -, esconde também as diferengas das praticas socials implicadas em sua concepgo. Por isso, tome-se por vezes muito nebufosa essa fronteira que se estabelece entre contracultura e cultura dominante, fazendo com que os sujeltos tomem-se por ‘um ou outro lado de forma pouce articutada. A relaeéo contracultura - cultura de consumo, nao se define a prior! ent&o enquanto ‘campos desvinculados, mas a partir de uma dialética de interferéncias (MUSGROVE,1974:18), ‘onde ambos os termos esto sujeltos a incorporarem em seu proceso atributos de seu ‘oponente. 18 1. 3: A Pesquisa e o Trabatho Etnografico. A prioridade de minha pesquisa de campo, voltouse para observar a forma como se estabelecla na pratica em grupo, no momento dos encontros e atividades, as nodes que sao construidas anteriormente e exteriormente sobre esse pertencimento a um grupo de estilo underground. As idéias que os sujeitos elaboram € carregam de sentidos sobre fazer parte de um grupo de estilo, podem corresponder em maior ou menor medida &s suas préticas de fato. E, em Gitima instancia, sao essas idéias que, colocadas em pratica, que permitem o processo de continuidade de qualquer tipo de grupo. Ou seja, existem as idéias atualizadas sobre esses universos de pertencimento por um lado, e por outro, sujeitos diferentemente localizados que as praticam conforme determinadas condigdes. O cotidiano deies, recebe atribuicdo de significados e valores através da interferéncia do exercicio de ser punk, headbanger, hippie. ‘A tendéncia a idealizar ou subjetivar 0 que 6 0 underground, ou os Movimentos a ele ligados, pode se manifestar facilmente em um contexte de entrevista - quando se requisitam elaboragdes de sentido sobre sua prética - ou em qualquer situacdo extregrupo quando a avaliagao individual predomina sobre as caracteristicas do grupo. Assim, procurei evitar situagdes de entrevistas ou contatos afastados do grupo, quando 0 sujeito pode estabelecer um discurso elaborado ~ ou muitas vezes parcial e precario em funcao da situagao emocional de uma “entrevista’- sobre suas proprias préticas e as do(s) grupois) em cujo universo se envolvem. Considerei ainda, ser suficiente como material onde aparecem as elaboragdes de sentido - que permitem a circulagdo das idéias sobre 0 que 6 um ou outro grupo — © conjunto de fanzines e correspondéncias obtidas durante a pesquisa de campo. A Gnica excegdo a esse critério foi em relagdo a visita ao editor de um fanzine (Anderson AFONSO, do "ALLIED FORCES"), pois neste caso me interessava esclarecimentos a respeito do envoivimento com a imprensa alternativa e seu funcionamento. Como nao existem turmas constituidas apenas de editores de fanzines — pois esta é uma das atividades entre outras das quais participam as pessoas que fazem parte de um grupo de estilo — 0 contato individual era necessério. 19 Realizei uma etnografia do grupo, com as técnicas da observagdo participante, O material coletado durante a pesquisa eto, foram: os dados obtides desse etnografia, realizada durante seie meses (de margo a setembro de 1991, e outros encontros esporéidicos posteriormente) e que constam em um cademo de campo ; @ correspondéncia com alguns integrantes do "Movimento AnarooPunk" / Maranh&o os fanzines recebides de correspondéncias variadas; @ entrevista gravada com 0 editor do “ALLIED FORCES MAGAZINE"; 0 video com a participagao do “Movimento AnarcoPunk" / Sao Paulo; matérias publicadas em jomais e revistas ~ Folha de So Paulo, Jomal da Tarde, 0 Estado de Sao Paulo, Veja, Isto E, Bizz. A localizagaio social dos integrantes dos grupos de estilo, no esta dada a priori. Como trata'se de um fendmeno com grande envolvimento dos meios de comunicacéio de massa, existe a possibiidade de encontrarse turmas de punks, headbangers, rock‘a’bitfies, etc, tanto nas camades populares quanto em diversos setores da classe média. 0 enfoque dessa pesquisa, recaiu sobre uma turma pertencente as camadas populares. € um grupo de punks que faz parte do "Movimento Anarco-Punk / Sao Paulo”. 0 "Movimento Anarco- Punk", tem uma organizagdo presente em varios paises, e no Brasil, em varios Estados da Federagao. O Movimento ndo possui uma organizagao hierérquica e sua articulagdo mantemse através de correspondéncia entre os varios centros onde existe uma representatividade, sendo eventualmente organizados encontros entre alguns deles. Compartithando dos encontros regulares do “Movimento AnarcoPunk", pude tomar elementos indicativos de seu pertencimento de classes. A falta de disponibilidade de dinheiro para gastos no grupo, fosse com bebida, comida ou até mesmo passagens para transporte urbano era constante. Passar 0 dia todo juntos, era possivel em muitas ocasides de finaisde-semana, quando alguma atividade inicial os reunia (panfletagens, manifestagdes, reunides, etc) fazendo com que pequenos grupos, depois, se dividissem com rumos e objetivos diferentes - muites vezes, apenas arranjar um local para todos ficarem conversando em uma praga — até que um outro encontro, ja de noite, os reunisse todos 2. sobre 0 conceito € a delimitagéo de "grupo" e "rede", me basoei no travalho desenvolvide por MAYER(1987: 127- 188), com 2 reasalva de que ole atribul aos "quase-grupos interativos a caracterstica de ser“centrado no ego" © organizar.se com base em um ‘conjunto-de—acdo" ,oU tarefas intencionais, que ands cumpridas, permiter que a coletividade reunida se desfaca. Com excegdo dessa caracteristica atribulda pelo autor, o concelto de quase-grupos encaixa-se na forma como se estabelecem esses coletividades jovens. qué nao possuem carater formal ou Instone, mntendoerretaie seu fnctramert for és infuroiedo grup primi de seus in duoe (2 ria). 20 novamente, Muitas vezes podia “rolar um som" para onde todos iam, ou mesmo se reurirem novamente para as discussdes e contatos de praxe do Movimento. Era comum passar-se entao 0 dia todo sem comer nada, au fazer um lanche com paes ou outro alimento barat, comprado com colaboragdo coletiva, ou trazido por algum deles. Muitas vezes, alguns ainda, abordavam transeuntes pedindo dinheiro, até que fosse suficiente para be 1s @/ou alimentos. Muitos deles trabalhavam durante a semana. Recebi muitos papéis com telefones do trabalho, anotados para contatos ou recados, Também era comum durante a semana, quando eu tentava utilizé4os oom esse fim, ser comunicada de que a pessoa jé néo trabalhava mais no local. Ou seja, seus empregos ndo eram muito fixos, havendo muita rotatividade de colocagdes, @ muitos reclamavam que estavam ha tongos periodos desempregados. As mulheres normatmente relatavam experiéncias de trabalho como telefonistas, recepcionistas ou secretarias; escritérios e lojas eram os lugares citados. J os homens falavam sobre trabathos tanto em escritérios © setores administrativos de empresas, como atividades ligadas a construgdo civil (trabalhos temporarios em obras e consertos domésticos), gréficas, vendas de consércios, lojas. ‘A maioria tinha idade entre 17 e 25 anos e moravam em bairros periféricos de Sao Paulo, ou da 4rea metropolitana da cidade como, Maud, Guaruthos ou Franco da Rocha. Nao frequentavam casas noturnas que normalmente so voltadas a0 pttblico jovem consumidor de algum estilo de misica. Para encontros nao usavam como referéncia locais de comércio como loja de discos, por exemplo, mas sim os locais piblicos ou eventualmente, a casa de um detes (quando essa pessoa ndo residisse com os pais ou parentes). Os gastos com a manutengao das atividades do grupo, eram portanto minimos ou mesmo inexistentes em algumas ocasiées. Nao utilizavam (¢ nao possulam) carros ou motocicletas para ‘transporte ou passelo; apenas os meios coletivos. ‘Muitos relataram ter abandonado a escola sem concluir 0 primeiro grau, enquanto alguns ‘estavam retornando a ela em supletivos notumos para tentar os exames que atribuem diplomas. ‘As condigdes em que eles viviam e suas préticas em grupo, definitam os constrangimentos econdmicos aos quais estavam submetidos. A aproximacdo "burocrética” a esse tipo de agrupamento, na condigao de “observador* pode complicar-se se, em algum momento, for confundida com um trabatho de imprensa. Eles tém para com os meios de comunicagao em geral, uma relacao conflituosa, pois reprovam quase todo tipo de material publicado sobre eles, por considerarem os contetidos parcials, “distorcidos", supetficiais e descaracterizantes de suas praticas, Por outro lado, interessam-se profundamente em tentar passar por esses metos, aspectos contetides que consideram relevantes, verdadeiros @ importantes de serem divulgados. Alguns deles colecionam matérias, noticias e, se possivel, fitas de video a respeito dos grupos de estifo ou de sua mtsica apenas. Mas em geral, acusam os meios de comunicagao por todos os maus entendidos que existem a respeitos de seus grupos; por disoriminagdes e preconceitos que se criam extemamente sobre suas atividades e 0 tipo de pessoas que deles fazem parte. Entdo se, por um lado, rechagam os conteddos veiculados a seu respeito, entendem que precisa tentar mostrar seu ponto de vista e suas opinides a respeito de como e porque vivern daquela forma. ‘Além disso, colecionar matérias e edigdes veiculadas pelos meios de comunicagao de massa a seu respeito, revela que eles consideram importante conhecer os conteddos que esto sendo revelados. Isso Ihes possibilita ampliar 0 poder de comunicagao sobre a aut-imagem do gTupo, elaborando estratégias para lidar com esses meios. Por conhecerem a pratica jomalistica, da entrevista com perguntas que procuram respaldar argumentagées consideradas “nocivas" ao(s) grupo(s), considerei pertinente nao dar margem a confusdes sobre 0 tipo de pesquisa que eu estaria realizando entre eles. Muitos estavam a par das minhas intengdes. Mas muitos deles s6 tonaram conhecimento de meus objetivos depois de alguns meses. E que como nao se tratava de um grupo fixo, mas ‘onde, dependendo da ocasiao surgiam umas ou outras pessoas, se tomava dificil conseguir estabelecer contato com cada um detes na tentativa de esgotar todos os frequentadores. A fluidez territorial do grupo sempre foi muito grande. Os encontros n&o podiam contar com um focal fixo, pois muitas vezes eam expuisos dos pontos apés algumas poucas vezes, ou pela policia, ou por estratégias contra possiveis ataques de gangues de carecas, ou mesmo de gangues punks. Isso torava indispensdvel o contato constante, para que se atualizasse sempre a localizagao do grupo. Além disso, as referéncias deles sobre os locais, nem sempre eram precisas ou condizentes com a minha nogo dos espacos urbenos. Quando se marcava um encontro em uma estagdo de metré — de onde sairiamos apés a chegada de todos para um outro local distante, que necessitasse uma viagem de Onibus - ndo queria dizer que as pessoas estariam na estagao de metro. Eles poderiam estar em um bar préximo bebendo, ou nas imediagies da estagdo, em ‘uma praga ou no terminal de Snibus (as vezes havia mais de um terminal, em diregdes diferentes). Considerei importante acompanhar esse transito do grupo, priorizando seus encontros como locat privilegiado de minha pesquisa. Pretendi ressaitar 0 momento em que, se concretizavam, coletivamente, os significados elaborados do pertencimento aquela coletividade. A pesquisa desse grupo, realizou-se no grupo. A etnografia © a observagdo participante foram portanto, os recursos metodolégjcos utilizados na tentativa de obter um resultado que privilegiasse uma visdo des interpretagdes e das priticas posstveis na (da) vida social através da interferéncia da identidade diferenciada com base no pertencimento ao grupo. Essa preocupagao pautou e centralizou minhas observagdes de campo, bem como as preocupagdes com a selegao daquilo que, uma vez observado, deveria constar no texto final. Por compreender que, as possibilidades de objetivacdo das idéias sobre um universo de pertencimento, convergem-se nas préticas coletivas de um grupo e al conseguem atingir profundamente os sujeitos envolvidos, optei por ressaltélas. Quando digo, "conseguem atingir profundamente", faco referéncia a niveis de ‘comprometimento possiveis a partir do momento em que um sujeito entra em contato com 0 universo de uma determinada cultura de estilo, ou com a cultura underground mais especificamente. Significa que alguns tomar os elementos constitutivos dessa cultura, simplesmente pelos aspectos de fruicdo estética, ou ainda, tomar os valores e todo 0 conjunto de idéias sobre o modo de vida, moidando a partir disso seu proprio cotidiano, No segundo caso, se 0 conjunto de idéias sobre essas culturas de estilo so capazes de atingir profundamente as percepgdes @ os valores de alguém, sua vida cotidiana passa a ser filtrada pelas lentes do universo punk, ou hippie, ou thrash, ou hardcore, E esta interferéncia profunda, essa alteragdo de percepgdes e praticas acionadas por algumes pessoas que tomam contato com a cultura underground que me interessou analiser e ressaltar, Paralelamente & pesquisa junto ao “Movimento Anarco-Punk", mantive correspondéncia com editores de fanzines de estilos do rock underground: punk, hardcore, thrash. 23 © primeiro enderego de contato que pude encontrar, foi através da revista “Chiclete com Banana”, uma publicagao de historias em quadrinhos (H.Qs.) que dedica uma seco para divulgar enderecos de fanzines, tanto de H.Qs., como fanzines de masica, poesia, ecologia, etc. Nao existe uma classificago dos fanzines de acordo com o contelido, de forma que 0 nome é o nico indicativo do tipo de edic&io de cada um deles. Enviel uma carta de pedido do fanzine “United Forces”, por intuir que se tratava de misica @ ndo de quadrinhos ou poesia. Na resposta, o editor explicou que para obter sua publicacao bastava que eu enviasse Cr $ 280,00 que equivaliam a: "prego do xerox 5,00 yezes 46 (ndmero de paginas) + 50,00 (despesas do correio)". E acrescentava: “Mos ontes que vacé 0 compre quero deixar cro que o ULF. & um zine dedicado & bandas metal © HC, acho que vocé pensou que era um zine de His, certo? Desculpe se the decopcionsi!* Primeira observagao: 0 preco do fanzine equivalia ao custo das cépias e do correlo. Existe 0 costumo de nao se vender fanzines, mas de cobrir os custos de sua divulgagao apenas. Segunda ‘observagaio: um editor procura esclarecer sobre 0 conteGdo de sua publicagao; para esse tipo de imprensa nao interessa eolocar sua edi¢ao, mas divulgéla apenas entre os leltores que realmente tenham interesse pola atualizagao e informagées sobre a produgae underground desta ou daquela tea e que constituam elos em sua rede Interativa. Escrevendo de volta ao editor em questo, insistindo no pedido e solicitando endereco de outros fanzines com que eu pudesse entrar em contato, recebi um envelope com mais ou menos uns 45 2 20 flyers com diferentes nomes e enderegos de fanzines de rock underground de cidades de todo 0 Brasil e alguns do exterior, como de Lisboa, de Lima e do México-DF. Terceira observagdo: os editores tm preocupagao de ampliar a divuigagao de sua rede de contatos, que interage através do interesse comum na produce contracultural. Em outubro de 1992, finalmente consegui uma visita a um editor de fanzine com quem me correspondi desde o inicio da pesquisa (no final de 1990). Ele havia se mudado de Santos para So Caetano do Sul, na divisa com Sao Paulo. Fui endo entrevistéto e conhecer seu trabalho com o fanzine. 24 Sua forma de sustento ~ e do fanzine ~ era ento a pintura de faixas e placas de estabelecimentos comerciais, Trabalhava autonomamente no poréo da casa onde morava provisioriamente com sua av6, Trouxe com ele de Santos uma parte do material pera continuar 0 fanzine — arquivos pessoais de revistas, fanzines, demo-tapes de bandas a serem comentadas em ‘seus proximos nGmeros (ou que o foram em anteriores), centenas de cartas que eram recolhidas semanatmente de uma caixa postal - tendo o restante ficado em sua residénela anterior em Santos, que dividia com um irmao casado, que era seu colaborador para editar 0 fanzine. Durante todo 0 tempo em que conversou comigo, AFONSO nao parava de trabalhar, pintando uma falxa que deveria ser entregue no dia seguinte pela manha, que jé havia sido paga. Ligou um aparetho de som e foi trocando muitas vezes de fites, me mostrando 0 tipo de material que estava recebendo mais recentemente das bandas, bem como outros fanzines. 0 Global e 0 Local nos Grupos de Estilo. 0 conteddo que selecionei entaéo do material obtido dessa pesquisa, obedeceu 0 critério de responder sobre os modes de articulagae dessas redes interativas formadas pelos grupos de estilo. Primeiro a nivel local, onde as turmas que se formam, desenvolvem habitos de encontros € atividades regulares, colocando em pratica as idéias recebidas sobre o universo de cada estilo, do underground mais amplamente. Nesse nivel, a organizago do "Movimento Anarco-Punk” respondia a questées sobre 0 cotidiano e a importancia atribuida & identidade punk na conduta das préticas sociais e na construgao das sociabilidades presentes em um grupo de estilo. ‘Segundo a nivel global, e do modo como essas identidades flue e encontram penetragaio em lugares com modos de vida, condigSes econdmicas e disposigées culturais completamente distintos. Paralelamente a0 trabalho da midia ~ que se timita a informar e seduzit para novos produtos e modas -, uma rede comunicativa prépria, apoiada pelos fanzines e pelos tapetraders, tem a capacidade de atualizar sobre as tendéncias e os desenvolvimentos: de cada estilo do underground. Assim, sua imprensa alternativa contréi, mantém e reproduz as idéias correntes sobre essa cultura underground e 0 modo como ela & colocada em prética por pessoas com diferentes condigdes e contextos. A manutengéio dessa rede comunicativa se da de forma oposta a0 modus operandi da midia, Para os fanzineiros @ tapetraders no interessa profissionalismo, 25 estrutura material, lucro e competitividade. Manter-se em uma dessas atividades, requer antes de mais nada, envolvimento com as idéias do underground. Editar um fanzine, indica a vontade de colaborar com a citculacio e 0 aperfeicoamento quantitativo e qualitative da capacidade comunicativa de um ou de varios estilos contracutturais ou, “colaborar com 0 fortalecimento do nosso underground", como me escreveu uma editora de um fanzine em correspondéncia pessoal. © material em conjunto me colocava primeiramente a questao da especificidade da faixa etéria que normalmente esta envolvida em tais prétices, Mesmo néio havendo qualquer tipo de Tegra ou determinagao explicita que condicione as praticas dos grupos de estilo a uma determinada faixa etéria, o interesse que recal sobre 0s grupos de estilo do rock underground, predominantemente localizado entre as camadas jovens da populacdo. 0 rock, nao apenas por ser um produto associado as nogdes socials teferentes ao joven (Tupa G.CORREA,1989), como por determiner préticas coletivas em seu ambito de interesse & identificagdo que normalmente atraem — predominantemente ~ adolescentes e adultos jovens, pode ser visto hoje como um campo de praticas e de produgao de bens simbélicos privilegiados como expresso dos modos de vida presentes nessas camadas etarias. em disso, ele se diferencia de outros estilos de mésica popular, para os jovens que com ele se identificam, por implicar em uma atitude diferenciada na relagao com o universo musical. Os apreciadores de rock, tomam para com ele uma relac&o que superpde misica € estilo de vida. Para essa superposigo colaboram 0 tipo de letras compostas, a performance dos misicos 20 vivo e 0 grau de envolvimento deles para com @ mdsice que produzem FRITH(in, WHITE,1987). Segundo autor, a separagao na década de 60 entre pop @ rock, demonstra essa diferenciagdo, e pequisas posteriores a confirmam, Ocorre que, de acordo com FRITH, cada segmento de estilo musical acaba possuindo um tipo predominante de lirismo, que acaba determinando sua audiéncia. Algumas pesquises foram realizadas nesse sentido, indicando que a audiéncia de misica pop mal sabe o contetido das letras, ou entéo no reflete sobre elas. Nesse caso, a letra funciona mais como um suporte para a vocalizagéo e as técnicas que possam fazer referéncia a emogoes, sentimentos (ibid., op.ci.). 26 © rock se particulariza nesse aspecto, no apenas como um produto com estratégias de venda diferenciadas, mas também pelo contetido lirica e pela importancia que a audiéncia atribui As composigdes, Nesse caso, mesmo que 0 ouvinte nao se prenda a letra (seu contetido e seu sentido), a performance utilizada em sua execugao determina uma identificaggo com a misica que esta sendo executada. Se 0 ouvinte de rock também nao presta atengao muitas vezes a0 conteUde Iirico, entdo por qué ele se toma importante no processo de identificagao de sua audiéncia? Basta que lembremos que executar uma misica com letras de contetdos diferentes, requer performances diferentes para expressélas. A postura dos masicos, a entonagao de voz @ as expressdes corporais utilizadas pelo vocalista esto inextricavelmente associadas a0 contetido Iirico. De uma forma direta ou indireta, € a parte lirica que vai determinar o uso que o ouvinte faz de suas masicas (FRITH, op.cit), ou seja, em que aspectos de sua vida se encaixam as emogies por ela despertadas. E 6 exatamente essa performance musical que toma a linguagem de determinados estilos de masica tao adaptaveis em qualquer contexto cuttural. Tomando esse aspecto dos diferentes percursos socials aos quais a mésica esta sujeita, que podemos compreender as especificidades que guardam cada estilo e a audiéncia a ela relaclonada. E € nesse aspecto de apropriacdo social diferenciada que eu vejo a possibilidade de pensar essa audiéncia dividida em préticas socials particulares — no caso deste trabalho, via mésica — enquanto grupos de estilo. "Se a miisica da as letras sua vitalidade linguistica, as letras dao as unfisicas seu uso social” (FRITH, p.cit:101, grifo do autor) As teorias sobre subcuttura da Universidade de Birmingham, oom uma série de trabalhos Dublicados4 inseriram os estudos sobre as praticas culturais da juventude nos debates sobre cultura popular e cultura de massa. Entretanto, centraram-se na questo especifica da produgao e 4. entre 08 quais o que foi fundamental para muitos avangos no trtamento tebrico das préticas cultura da juventuce, foi a coletanea "Resistance Through Rituals’, edtado por S HALL e T.JEFFERSON, 1976. 27 ‘consumo dos bens ibélicos, tornando necessério que localizemos os jovens trabalhadores em termos das suas escolhas do tipo de roupas e discos (FRITH,1981:13), ou seja, dos habitos de consumo, isso retira desse universo cultural toda uma populagdo que se localiza nos paises ‘economicamente dependentes, onde os habitos de consumo so to pouco significativos que nao t@m capacidade de expressar qualquer relagdo de praticas de resiténcia cultural. Kinda, a teoria subcultural procura tragar um histérico sobre o cresoimento do mercado de bens culturais voltados a juventude, sem entretanto, tratar do desenvolvimento histérico da nogao € da institucionalizagdo do “jovem". Com Isso, as experiéncias geracionals, com importantes especificidades, acabam desaparecendo. Por exemplo, a mediatizaco dos estilos criados por grupos jovens ligados & misica, colaborou imensamente para o processo de perda do referencial que os ligava aos loceis de origem. A idéia que ligava por exemplo, 0 mod e © teddy-boy tao intrinsecamente 2 uma caracteristica da cultura popular inglesa, hoje j& no possul esse sentido de pertencimento local. Nessa descontextualizagao de estilos, 0 punk e o skinhead parecem ser atualmente os mais desenraizados. Esse desenraizamento proporciona a5 geragdes atuais que vivenciem um estilo e as pessoas que com eles convivem, uma experiéneia bastante diferente daquelas que enteriormente a tiveram. A nocéio de costumes locals, a associagao entre um tipo de ambiente cultural e as praticas desses grupos, ja no é tomada como referéncia primordial. No momento, as referéncias a localizaco social, @ caracteristicas de comportamento consumidor, a praticas profissionais ¢ nivel educacional, por exemplo, so muito mais frequentes nas abordagens desse tema pela imprensa e pela midia em geral, do que 2s questées referentes origem cuttural desses grupos. Além disso, para os jovens envolvides com 0 melo musical do underground, ndo se coloca - em nenhum momento - questées sobre “cultura nacional" ou "imperialismo cultural", ou estrangeirismos quaisquer. Eles simplesmente ndo problematizam 0 rock como algo distanciado de suas tradicdes culturais Jocais; essa mGsica ocupa aspectos de suas vidas que prescinde de nogdes como heranca cultural, identificagao com o meio ou manutencao de costumes. A midia por seu tumo, no apenas colaborou para, como beneficiouse dessa autonomizacao de praticas culturais. E, se antes, os jovens ligados a um estilo, se viam e eram 28 vistos como pessoas de seus proprios bairres, ¢ dessa relagéo dependiam as estratégias de manutengao e reproducéio do grupo, bem como sua relagao com representantes de instituigdes responsaveis localmente por seu controle, agora essa delimitagao ja nao 6 mals possivel. MUSGROVE(1974) coloca que, a partir de meados da década de 60, com o advento da contracultura, a discuss&o em tomo dos problemas relacionados juventude e sua expresso de desejos sobre 0 projeto social, sofreu uma mudanca qualitativa importante. Até ent&o, era possivel que se tratasse a juventude como teenagers, girando seus problemas em tomo da questdo de status © poder. Reivindicava-se igualdade de condigbes para participar na reprodugo do sistema social, tal qual ele se encontrava definido. A partir da contracuttura entretanto, além de ndo ser mais possivel fatarmos em jovens apenas como adolescentes, as questées colocadas por eles, passam a girar em tomo da reivindicacdo de mudanca de valores. 'E verdade que hoje o jovem provavelmente fala mais a respeito de poder e de autoridade do que antes, mas os problemas de hierarquia © legitimidade que eles discutem nao estio relacionados especificamente a uma idade. Eles estéo preocupados com questics de dignidade e respeito que surjam onde quer que exista posigoes subordinadas ¢ superordinadas.” (MUSGROVE,¢p. 2 Essa mudanca qualitativa, obviamente, foi excluida des contetdos veiculados pela micia. BAUDRILLARD(1972:222) aponta que, os contetidos transgressivos da ordem social estabelecida, passam pela midia, mas nao sem serem "sutilmente" esvaziados, ficendo em seu lugar apenas 2 forma. Essa, transformase entéo em um “modelo burocrético" a distancia, incapaz de adauirir significados transgressivos. Com um forte apelo anti-consumista, tanta a contracultura hippie da década de 60, quanto ‘9 Movimento Punk que sobrevive desde 76, mostram que ao lado das camadas jovens cujas especificidades baseiam-se no consumo, existem também aquelas que se tomadas apenas sob tais condigdes de andlise, seriam deixadas de fora.

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