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Judith Butler Corpos em alianga e a politica das ruas Notas para uma teoria performativa de assembleia Tradugao de Fernanda Siqueira Miguens Revisao técnica de Carla Rodrigues 2? edicZo BIVILIZACAO BRASILEIRA Semmes Rio de Janeiro 2018 Introdugdo Desde o surgimento de um nimero massivo de pessoas na Praca Tahrir, durante o inverno de 2010, estudiosos e ativistas renovaram 0 interesse sobre a forma e os efeitos das assembleias publicas. A questao é, ao mesmo tempo, extempordnea e oportuna. A reuniao repentina de grandes grupos pode ser uma fonte tanto de esperanga quanto de medo e, assim como sempre existem boas raz6es para te- mer os perigos da agao da multidao, ha bons motivos para distinguir 0 potencial politico em assembleias imprevisiveis. De certa forma, as teorias democraticas sempre temeram “a multiddo”, mesmo quando afirmam a importancia das expresses da vontade popular, inclusive em sua forma de desobediéncia. A literatura é vasta e remete a au- tores tao diferentes quanto Edmund Burke e Alexis de Tocqueville, que se perguntaram de forma bastante explicita se as estruturas do Estado democratico poderiam sobreviver as expressdes desenfrea- das de soberania popular ou se o governo popular degeneraria em uma tirania da maioria. Este livro nado pretende rever ou mesmo de- liberar sobre esses debates importantes na teoria democratica, mas apenas sugerir que os debates sobre as manifestagdes populares ten- dem a ser governados pelo medo do caos ou pela esperanga radical no futuro, embora algumas vezes medo e esperanga se interliguem de modos complexos. Assinalo essas tensdes recorrentes na teoria democratica para destacar como desde 0 inicio existe um descompasso entre a forma politica da democracia e 0 principio da soberania popular, uma vez CORPOS EM ALIANCA E A POLITICA DAS RUAS que nao sao a mesma coisa. Na verdade, € importante manté-las separadas se quisermos entender como expressdes da vontade po- pular podem colocar em questao uma determinada forma politica, especialmente uma que se autodenomina democratica, ainda que seus criticos questionem essa reivindicagado. O principio é simples e bastante conhecido, mas as Presun¢oes em questéo permanecem constrangedoras. Poderiamos desistir de definir a forma certa para a democracia e simplesmente admitir sua polissemia. Se as demo- Cracias sao compostas Por todas essas formas politicas que se au- todenominam democraticas, ou que geralmente sdo chamadas de democraticas, adotamos uma determinada abordagem nominalista do assunto. Mas se e quando as ordens politicas consideradas de- mocraticas sdo colocadas em crise por um coletivo em assembleia ou organizado que alega ser a vontade popular, representar o povo junto com a expectativa de uma democracia mais real e substantiva, entao tem inicio uma batalha sobre o significado de democracia, batalha essa qué nem sempre assume a forma de uma deliberagao. Sem decidir quais assembleias populares sdo “verdadeiramente” de- mocraticas e quais nado s&0, podemos notar desde o inicio que a luta pela “democracia” como termo caracteriza de maneira ativa varias situagdes politicas. Parece importar muito como nomeamos as forcas presentes na luta, dado que algumas vezes um movimento é€ considerado antidemocratico, até mesmo terrorista, e, em outras Ocasides ou contextos, © mesmo movimento é entendido como um esforco popular para a concretizagdo de uma democracia mais in- clusiva e substantiva. O jogo pode mudar com muita facilidade e, quando as aliancgas estratégicas exigem que se considere um grupo como “terrorista” em uma ocasido e como “aliado democratico” €m outra, vemos que a “democracia”, considerada uma designacio, pode facilmente ser tratada como um termo discursivo estratégico, Portanto, a parte os nominalistas, os quais acreditam que democra- cias so aquelas formas de governo chamadas democracias, existem INTRODUGAO gs estrategistas do discurso que se apoiam nas formas do discurso _ pablico, do marketing e da propaganda para decidir a questdo sobre \gezis Estados e quais movimentos populares vao ou nao ser chama- Ges de democraticos. (Clero que € tentador dizer que um movimento democratico é eqeele chamado por esse nome, ou que chama a si mesmo por esse ome, mas isso é desistir da democracia. Embora a democracia im- plique o poder de autodeterminagao, nao se pode concluir que qual- g@eer grupo que se autodetermina representativo pode reivindicar corretamente ser “o povo”. Em janeiro de 2015, 0 Pegida [Patriotis- che Europaer gegen die Islamisierung des Abendlandes — Patriotas Esropeus contra a Islamizacgao do Ocidente], um partido politico glemao abertamente anti-imigrantes, afirmou “Nés somos 0 povo”, ‘ema pratica de autonomeacdo que buscava precisamente excluir os imigrantes muculmanos da ideia vigente de nagdo (e 0 fez associan- do-se a uma frase popularizada em 1989, dando um significado mais sombrio a “unificagdo” da Alemanha). Angela Merkel respon- den que “o isla é parte da Alemanha” praticamente ao mesmo tem- po que o lider do Pegida, denunciado por ter se vestido como Hitler pera uma sessao de fotos, foi forgado a renunciar. Uma discussdo como essa levanta a pergunta: quem realmente é “o povo”? E que operacao de poder discursivo circunscreve “o povo” em qualquer dado momento, e com que propdsito? =O povo” nao é uma populacao definida, é constituido pelas li- nhas de demarcacao que estabelecemos implicita ou explicitamente. Como resultado, assim como precisamos testar se qualquer modo determinado de apresentar 0 povo é€ inclusivo, s6 podemos indicar populacées excluidas por meio de uma demarcagao ulterior. A au- toconstituigao se torna especialmente problematica sob essas condi- des. Nem todo esforco discursivo para estabelecer quem é “o povo” funciona. A afirmacdo muitas vezes € uma aposta, uma tentativa de hegemonia. Portanto, quando um grupo, uma assembleia ou uma CORPOS EM ALIANGA E A POLITICA DAS RUAS coletividade organizada se autodenomina “o povo”, maneja o dis- curso de uma determinada maneira, fazendo suposi¢des sobre quem esta inclufdo e quem nio esté e, assim, involuntariamente se refere a uma populacao que nao é “o povo”. De fato, quando a luta para definir quem pertence ao “povo” se intensifica, um grupo contra- pOe sua propria versio do “povo” aqueles que esto de fora, os que considera uma ameaga ao “povo” ou opositores da versio proposta de “povo”. Como resultado, temos (a) aqueles que buscam definir o povo (um grupo muito menor do que o povo que buscam definir); (b) © povo definido (e demarcado) no curso dessa aposta discursiva; (c) 0 povo que nao é “o povo”; e (d) aqueles que esto tentando es- tabelecer esse ultimo grupo como parte do “povo”. Mesmo quando dizemos “todos”, em um esforgo para propor um grupo que inclua a todos, ainda estamos fazendo suposigdes implicitas sobre quem esta incluido, de forma que dificilmente superamos o que Chantal Mouffe e Ernesto Laclau descreveram tao acertadamente como “a excluso constitutiva”, por meio da qual qualquer nogao particular de inclusao é estabelecida.! O corpo politico € postulado como uma unidade que ele nun- ca sera. No entanto, essa nao tem que ser uma conclusao cinica. Aqueles que, no espirito da realpolitik, consi ‘am_que, em raza . de toda formagao dé “6 povo” ser parcial, deveriamos simplesmente aceitar essa parcialidade como um fato da politica sdo claramente os “ quais procuram expor essas formas de exclusdo e se opor a elas, com “Frequéncia sabendo muito bem que a inclusividade completa nao é- “possivel, mas para os quais a luta é permanente. Ha pelo menos duas raz6es para isso: por um lado, muitas exclusoes sao feitas sem © Conhecimento dé qué éstao sendo feitas, uma vez que a exclusao é com frequéncia naturalizada, tomada como “o estado d de coisas”, e nao £omo um problema explicito; por outro lado, a inclusividade-nao é © tnico objetivo da politica democratica, « especialmente da politica democratica radical. E verdade, é claro, que qua quer versio de “o INTRODUGAO povo” que exclua uma parte do povo nao é inclusiva e, portanto, também nfo é representativa. Mas também é verdade que cada de- terminagdo para “o povo” que exclui alguns nao é inclusiva e, por esse motivo, nao € representativa. Mas também é verdade que cada determinagao de “o povo” envolve um ato de demarcagdo que traga uma linha, geralmente com base na nacionalidade ou contra 0 con- texto de Estado-Nagao, e essa linha se torna imediatamente uma fronteira contenciosa. Em outras palavras, nao existe possibilidade de “o povo” sem uma fronteira discursiva desenhada em algum lu- gar, tracada ao longo das linhas dos Estados-Nac6es existentes, das comunidades raciais ou linguisticas ou por afiliagdo politica. O mo- yimento discursivo para estabelecer “o povo” de um modo ou de outro é uma oferta para ter determinada fronteira reconhecida, quer 2 entendamos como a fronteira de uma na¢do ou como o limite da classe de pessoas a serem consideradas “reconheciveis” como povo. Portanto, uma razao pela qual a inclusividade nao € 0 tnico ob- jetivo da democracia, especialmente da democracia radical, é que 2 politica democratica tem que estar preocupada com quem conta 0 “o povo”, a demarcagao é estabelecida de for- i . 2 I pratt pest eed ma a evidenciar quem é “o povo” e a relegar ao segundo plano, 4 ou ao € to OS que ndo contam como “o povo”, 0 reconhecimento igualmente a todas as pessoas, mas, em vez disso, compreender que apenas modificando a relacdo entre o reconheci- wel € o irreconhecivel (a) a igualdade pode ser entendida e buscada < (b) “o povo” pode se abrir para uma elaboragdo mais profunda. Mesmo quando uma forma de reconhecimento € estendida a todo 0 ovo, permanece uma premissa ativa de que existe uma vasta regido dagueles que permanecem irreconheciveis, e esse poder diferencial € reproduzido toda vez que a forma de reconhecimento é estendida. Paradoxalmente, conforme certas formas de reconhecimento sao es- tendidas, a regido do irreconhecivel é preservada e expandida ade- " CORPOS EM ALIANGA E A POLITICA DAS RUAS quadamente. A conclusdo é que essas formas explicitas e implicitas de desigualdade, que algumas vezes so reproduzidas por categorias fundamentais, tais como inclusio e reconhecimento, tém que ser encaradas como parte de uma luta democrdtica temporariamente | aberta. O mesmo pode ser dito sobre as formas implicitas ou expli- citas de politicas de fronteiras contenciosas, que so originadas por algumas das formas mais elementares e aparentemente normais de se referir a0 povo, a populagao e a vontade popular. Na realidade, a ’ compreenso da exclusao persistente nos forca a retroceder no pro- cesso de nomear e renomear, de renovar o que queremos dizer com “o povo” e o que diferentes pessoas querem dizer quando invocam o termo. A questaéo da demarcagao acrescenta outra dimensio ao proble- ma, uma vez que nem todas as a¢g6es discursivas relativas envolvidas no reconhecimento e no reconhecimento equivocado do Povo sao explicitas. A operagao do seu poder é até certo ponto performativa. Isto é, elas estabelecem determinadas distingdes politicas, incluin- do a desigualdade e a exclusao, sem necessariamente nomeé-las. Quando dizemos que a desigualdade é “efetivamente” reproduzida ’ | : ; ; quando “o povo” é apenas parcialmente reconhecivel, ou até mesmo : “completamente” reconhecivel dentro de termos nacionais restriti- ' Vos, entao estamos afirmando que a pressuposigao de “o povo” faz mais do que simplesmente nomear quem:é 0 povo. O ato de deli- ) mita¢ao opera de acordo com uma forma performativa de poder que estabelece um problema fundamental da democracia ao mesmo | tempo que — ou precisamente quando ~ fornece 0 seu termo-chave, “oO povo”. Poderiamos nos demorar mais nesse problema discursivo, visto que existe uma questéo sempre aberta sobre se “o povo” corresponde aos que expressam a “vontade popular” e se esses atos de autono- meacao se qualificam como autodeterminagio ou mesmo expres- sdes validas da vontade popular. O conceito de autodeterminacgdo 12 INTRODUGAO sembém est4 em jogo aqui e, portanto, implicitamente, a propria ‘deia de soberania popular. Tao importante quanto isso é esclarecer esse léxico da teoria democratica — especialmente 4 luz de debates secentes sobre as assembleias e manifestagdes publicas que vimos Gecante a Primavera Arabe, 0 movimento Occupy e as manifesta- gBes contra a condigo precdria - e perguntar se esses movimentos podem ser interpretados como exemplos verdadeiros ou promissores é2 vontade popular, a vontade do povo, a sugestao deste texto € que peecisamos ler tais cenas nao apenas nos termos da verso de povo _qee cles anunciam explicitamente, mas das relagdes de poder por ‘=eio das quais so representadas. Essas representagGes sao invaria- scimente transitérias quando permanecem extraparlamentares. E, sgeendo produzem novas formas parlamentares, arriscam perder sua ‘ceracteristica de vontade popular. Assembleias populares se formam ‘seesperadamente e se dissolvem sob condigées voluntarias ou invo- Jeetérias, e essa transitoriedade esta, eu gostaria de sugerir, rela- ‘Genada 4 sua fungio “critica”. Assim como as expressdes coletivas 2 vontade popular podem colocar em questao a legitimidade de ‘== governo que afirma representar 0 povo, elas também podem se ender nas formas de governo que apoiam e instituem. Ao mesmo ‘Smo, governos nascem e morrem, algumas vezes, em virtude de ‘gees por parte do povo, de forma que essas agGes concertadas sao @@eelmente transitérias, ¢onsistindo na retirada do apoio, descons- ‘Seuindo a reivindicagao'de legitimidade do governo, mas também ‘ceestituindo novas formas. Conforme a vontade popular persiste ges formas que institui, ela também deve deixar de se perder nessas Seemas se quiser reter 0 direito de retirar seu apoio a qualquer forma politica gue fracasse em manter sua legitimidade. __ (0, entao, pensamos essas reunides transitérias e criticas} nto importante que se segue é que importa que. Os Corpos se e que os significados politicos transmitidos ‘poles manifestacGes sejam no apenas aqueles transmitidos pelo dis- 13 CORPOS EM ALIANGA E A POLITICA DAS RUAS curso, seja ele escrito ou falado. A Ges corporificadas de diversos tipos significam, de de forma que nao sao, _estritamente falando, nem Scursivas nem pré a ee Sembleia ja té ificado antes e apesar de qualquer reivindicacao “particular que facam. R Reuilides-silenciosas, incluindo-vigilias e fu- nerais, muitas vezes Significam mais do que qualquer relato, escrito seen SIENA VEZES:S ou vocalizado, sobre aquilo eee tratam. Essas formas da Stporificada e pluralsao componentes importan- dé"qualquer entendimento sobré “o povo”, mesmo que sejam “~~ necessariamente parciais. Nem todos podem aparecer em uma for- tna corpérea, € muitos daqueles que nao podem aparecer, que estao impedidos de aparecer ou que operam por meio das redes virtuais e digitais, também sao parte do “povo”, definidos precisamente por serem impedidos de fazer uma aparigao corpérea especifica em um espaco ptiblico, o que nos leva a reconsiderar as formas restritivas por meio das quais a “esfera publica” vem sendo acriticamente pro- posta por aqueles que assumem o acesso pleno e os plenos direitos de aparecimento em uma plataforma designada. Um segundo sentido da representacao surge, entao, aqui, a luz das formas corporificadas de agao e mobilidade que significam além do que quer que seja dito. Se considerarmos por que a liberdade de assembleia é diferente da liberdade de expresso, veremos que € precisamente porque 0 poder que as pessoas tém de se reunir é ele mesmo uma importante prer- rogativa politica, bastante distinta do direito de dizer o que quer que tenham a dizer uma vez que as pessoas estejam reunidas. A reunido significa para além do que é é dito, e esse modo de significa- Os ficar tentados, com base em velhos habitos, a dizer: “Mas se algo significa, entdo é certamente discursivo”, e talvez isso seja verdade. Mas essa réplica, mesmo que se sustente, nao nos per- mite examinar a importante relagdo quiasmatica entre as formas de 14 rsivas. Em. Em outras tras palavras, formas le as- Gao é uma represe: agao corp6rea concertada. a forma plural, dé fe perfotmatividade. Ses ode INTRODUCAO aa re performatividade linguistica/e as formas de/performatividade corp =| = 3 eA eae cat rea! Elas se sobrepdem; elas nado séo completamente distintas; elas ~ nao sao, no entanto, idénticas uma a outra. Como Shoshana Felman demonstrou, mesmo 0 ato da fala est implicado nas condigdes cor- poreas da vida.* A vocalizagao requer uma laringe ou uma protese tecnoldgica. E algumas vezes o que alguém significa pelos meios de expressao é bastante diferente daquilo_¢ reconhecido como 0 objetivo do ato da fala em sig£e a performatividade € com ‘Tequencia associada ao desempenho individual, pode se provar im- portante reconsiderar essas formas de performatividade que operam apenas por meio das formas de acao coordenada, cujas condigées ¢ cujo objetivo sao a reconstituigao de formas plurais de atuacao ed Ati jail ‘ortanto, esse movimento ou inércia, esse estacionamento do meu corpo no meio da ago do outro, nao é um ato meu ou de outros, mas alguma coisa que acontece em virtude da relagao entre nds, surgindo dessa relacdo, usando frases equivocas entre 0 eu e o nds, buscando a uma 86 vez preservar e disseminar o valor generativo desse equivoco, uma relacdo ativa e deliberadamente sustentada, uma colaboracdo distinta da fusdo ou confusao alucinatéria. A TESE ESPEC{FICA DESTE LIVRO é a de que agir em concordan- cia pode ser uma forma corporizada de colocar em questao as di- mens6es incipientes e poderosas das nog6es reinantes da politica. O carater corp6reo desse questionamento opera ao menos de dois modos: por um lado, contestagdes so representadas por assem- bleias, greves, vigilias e ocupagao de espacos piiblicos; por outro, esses Corpos sao 0 objeto de muitas das manifestages que tomam a condigao precaria como sua condicao estimulante. Afinal de con- tas, existe uma forca indexical do corpo que chega com outros corpos a uma zona visivel para a cobertura da midia: é esse corpo, 15 CORPOS EM ALIANCA E A POLITICA DAS RUAS € esses Corpos, que exigem emprego, moradia, assisténcia médica e comida, bem como um sentido de futuro que nao seja o futuro das dividas impagaveis; € esse corpo, ou esses corpos, ou corpos como esse Corpo e esses corpos que vivem a condi¢ao de um meio de subsisténcia ameagado, infraestrutura arruinada, condicao pre- cdria acelerada. De alguma maneira, o meu objetivo é constatar 0 ébvio em con- dig6es nas quais 0 6bvio esta desaparecendo: existem modos de ex- pressar e demonstrar a condic4o precaria que engajam de maneira importante ages corpéreas e formas de liberdade expressiva que pertencem mais propriamente a assembleia publica. Alguns criticos argumentaram que os movimentos Occupy tiveram éxito apenas em levar as pessoas para as ruas e facilitar a ocupagao de espagos pti- blicos cujo estatuto publico vem sendo contestado pela expansio da privatizagao. Algumas vezes, esses espacos sao contestados porque esto, literalmente, sendo vendidos como propriedades para investi- dores privados (como 0 Parque Gezi, em Istambul). Mas outras vezes esses espagos estao fechados para as assembleias publicas em nome da “seguranga” ou mesmo da “satide publica”. Os objetivos expli- citos dessas assembleias variam: oposi¢ao a um governo despético, a regimes securitarios, ao nacionalismo, ao militarismo, a injustiga econémica, a desigualdade dos direitos de cidadania, 4 condigdo de apatrida, aos danos ecoldgicos, a intensificagao da desigualdade econdmica e a aceleragdo da condigao precaria. Algumas vezes, uma assembleia busca explicitamente desafiar 0 proprio capitalismo ou o neoliberalismo, considerado um novo desenvolvimento ou variante, ou as medidas de austeridade na Europa e a potencial destruicao da educagao superior pablica no Chile ou em outros lugares.‘ E claro que essas sao assembleias diferentes, e aliangas diferentes, € nao acredito que alguém possa chegar a uma narrativa tinica des- sas formas mais recentes de manifestagdo publica e ocupagdes que as ligue de maneira mais ampla a historia e ao principio das assem- 16 INTRODUGAO bleias pablicas. Elas nao se resumem a permutagdes da multidao, mas tampouco estdo tao desconectadas a ponto de nado podermos tracar. ligages entre elas. Um historiador social e do direito teria que fazer parte desse trabalho comparativo — € espero que continuem a fazé- Jo a luz das formas recentes de assembleia. Do meu ponto de vista mais limitado, quero sugerir somente que quando corpos se juntam na rua, na praca ou em outras formas de espago piiblico (incluindo os Tirtuais), eles estdo exercitando um direito plural e performativo de aparecer, um direito que afirma e instaura o corpo no meio do campo Politico e que, em sua fungdo expressiva € significativa, transmite uma exigéncia corporea por um conjunto mais suportavel de condig6es “econémicas, sociais e politicas, no mais afetadas pelas formas indu- ~zidas de condigo precaria. este momento em que a economia neoliberal estrutura cada vez mais as instituigdes e os servicos puiblicos, o que inclui escolas Stniversidades, em um momento em que as pessoas, em numeros crescentes, esto perdendo casa, beneficios previdencidrios e pers- mao ermutabili sabilidade dos povos trabalha- dores. Esses desenvolvimentos, reforgados pelas atitudes predomi- nantes em relacdo ao seguro de satide e a seguridade social, sugerem que a racionalidade do 4 decidindo quais satides e vidas i _devem ser protegidas.¢ quais.ndo-dever. E claro que ha diferencas Ehtre politicas que buscam expli itamente a morte de determinadas populagées e politicas que produzem condigées de negligéncia siste- matica que na realidade permitem que as pessoas morram. Foucault nos ajudou a articular essa distingao quando falou sobre as estraté- gias bastante especificas do biopoder, a gestao da vida e da morte, de forma que nao requerem mais um soberano que decida e ponha 7 CORPOS EM ALIANGA E A POLITICA DAS RUAS em pratica explicitamente a questao sobre quem vai viver e quem vai morrer.° E Achille Mbembe elaborou essa distingdo com o seu conceito de “necropolitica”. E isso foi, para alguns de nés, profundamente exemplificado na reunido do Tea Party nos Estados Unidos durante a qual o congres- sista Ron Paul sugeriu que aqueles que tém doengas graves e nao podem pagar pelo seguro-satide, ou “escolhem” nado pagar, como ele colocou, teriam simplesmente que morrer. De acordo com 0s relatos publicados, um grito de alegria percorreu a multidao. Foi, imagino, © tipo de grito entusiasmado que costuma acompanhar as idas a guerra e as formas de fervor nacionalista. Mas, se para alguns, foi uma ocasido jubilosa, ela deve ter sido fomentada por uma crenga em que aqueles que nao ganham 0 suficiente ou que nao tém empre- gos suficientemente estaveis ndo merecem a cobertura do sistema de satide e pela crenga de que nenhum de nds é responsdvel por essas pessoas. A implicacao é claramente que aqueles que nao sao capazes de conseguir empregos que garantam 0 seguro de satide pertencem a uma populacao que merece morrer e que, por fim, s4o responsdveis pela sua propria morte. Chocante para muitas pessoas que ainda vivem sob os enquadra- mentos nominais da social-democracia é a presun¢4o subjacente de que os individuos devem se preocupar apenas consigo, e ndo com os outros, € que a assisténcia a satide nado é um bem publico, mas uma mercadoria. Nesse mesmo discurso, Paul louvou a fungdo tradicio- nal da igreja e da caridade na assisténcia aos necessitados. Embora algumas alternativas da esquerda crista para essa situagdo tenham surgido, na Europa e em outros lugares, a fim de garantir que aque- les abandonados pelas formas de bem-estar social sejam assistidos pelas praticas de “assisténcia” filantrépicas ou comunitérias, essas alternativas muitas vezes complementam e sustentam a destruigao dos servigos piblicos como a assisténcia médica. Em outras pala- vras, elas aceitam 0 novo papel para a ética e as praticas cristas 18 INTRODUGAO (e para a hegemonia crista) que a destruicao dos servigos sociais basicos proporciona. Algo semelhante acontece na Palestina, onde as condigées infraestruturais de vida sdo constantemente destruidas pelos bombardeios, pelo racionamento de Agua, pela destruicgéo dos olivais e pelo desmantelamento dos sistemas de irrigacdo construi- dos. Essa destruicgdo é amenizada por organizagoes no governa- mentais que reconstroem estradas e abrigos, mas a destruigao nao muda —a intervengdo das ONGs presume que a destruigao vai conti- nuar e compreende que sua tarefa é amenizar e reparar as condigdes entre os episddios de destruigao. Um ritmo macabro se desenvolve en- tre as tarefas de destruigao e as tarefas de renovacao € reconstrugao (muitas vezes abrindo potenciais tempordrios de mercado também), ¢ tudo isso sustenta a normalizagao da ocupagao. E claro que isso nao significa que nao deveria haver um esforgo para reparar casas ruas, para proporcionar uma melhor irrigagdo e fornecimento de 4gua e replantar os olivais destrufdos, ou que as ONGs nao tenham o seu papel. O papel delas € crucial. No entanto, se essas tarefas assumem o lugar de uma oposigdo mais profunda a ocupagao que conduza ao seu fim, elas correm 0 risco de se transformar em prati- cas que tornam a ocupa¢gao funcional. E aquele grito sddico de jabilo na reunido do Tea Party, traduzin- do-se na ideia de que aqueles que nao conseguem encontrar uma for- ma de ter acesso a assisténcia médica vao, justamente, contrair doen- as ou sofrer acidentes e morrer, justamente, como consequéncia? Sob quais condigées politicas e econdmicas tais formas jubilosas de crueldade surgem e tornam suas opinides conhecidas? Queremos chamar isso de um desejo de morte? Parto do pressuposto de que alguma coisa deu muito errado, ou tem estado errada faz muito tem- po, quando a ideia da morte de uma pessoa pobre ou sem seguro suscita gritos de jubilo de um proponente do republicanismo do Tea Party, uma variante nacionalista do libertarianismo econémico que eclipsou completamente qualquer sentido de responsabilidade social 19

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