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| MARIA LUIZA MARCILIO HISTORIA SOCIAL DA CRIANGA ABANDONADA pol Elion Huciee Ld. Rom Cl Eanes, 713, O41 M12 Sto Pal (o11)240.9318 ¢ 543-0553, Vedas: (011)330-4552. Facsimile: (0119830 ISHN 85-271.487-7 Hci Foi feito w Dep srg eetrica: Ouripedes Callone Ywonne San ‘Apoio do Govemo do Estado de Sao Paulo através da Secretaria da Crianga, Familia @ Bem - Estar Social - Secretaria Marta Teresinha Godinho SUMARIO APRESENTAGAO, Parte I EUROPA 1. O abandono de bebés na Antiguidade 2, Piedade e caridade: Alta Idade Média 3. Catidade puiblica em emergéncia, Séculos XT a XIV 4. A Europa Clissica: institucionalizagio da assisténcia caritativa a0s expostos A evolucio do sistema de assisténcia Amas-de-leite: pilar do sistema de assist@ncia aos expostos Morealidade infantil dos expostos das Rodas O século da crianga abandonada na Europa, A filantropia do Oitocentos A emergéncia da filantropi O abandono de criangas na historia de Portugy Origens medicvais da assisténcia 3 infiincia desvalida Expostos e abandonados no Antigo Regime portugues Uteis asi ea pétria”, O século do menor abandonado em Portugal 6 ICONOGRAFIA Parte I~ BRASIL Introdugio TA trajetsria da assiseéncia a siangas abandonadas 89. 93 106 8 SunAno 1) A fase caritativa da assisténeia a infineia abanclonada (até meados do século XTX) Expostos, filhos de criagio Os expostos assistidos pelas C:lmaras Municipais A Roda de Expostos: findagies e trajetérias A assisténcia as meninas sem-familia, até meados do século XIX A formagio dos meninos, filhas da Roda A fase da filantropia (até meados do século XX) ‘Mudangas na assisténcia aos expostos A roda dos enjeitados em debate Novas instituig6es de assisténeia filantrépica 3. A emergéncia do Estado do Bem-Fstar do Menor (apés 1960) Il —A Emnodemogratia dos expostos 1.0 volume da populagio de menores expostos. Bstimativas 2. Criangas sem futuro. O massacre dos inocentes, 3. A questio do leite, As amas-de- com a amamentagao artificial Parte III — A CRIANGA ABANDONADA, 1. Causas do abandono 2. O bebé abandonado 3. A vida cotidiana do exposto na fase de “educagio” 4. Iniciagio dos expostos no mundo do trabalho 5. Dotes ¢ casamentos para as filhas das Rodas e dos Recolhimentos 6. Tucela, perfilhagio, adogio CONSIDERAGOES FINAIS FONTES F BIBLIOGRAFIA BIBLIOGRAFIA 14 136 139 44 163 178 191 191 196 201 ABREVIATURAS AHU — Arquivo Histérieo Ulemmarino, Lisboa ANRJ — Arquivo Nacional. Rio de Janciro ANTT — Arquivo Nacional da Torce do Tombo. Lisboa APESP — Arquivo Piiblico do Estado de Sto Paulo ASCMS — Arquivo da Santa Casa de Miserie6rdia de Salvador, Bahia ASCMSP — Arquivo da Santa Casa de Miserivérdia de Sio Paulo BNI — Biblioteca Nacional de Lisboa BNRJ — Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro Cedhal — Centro de Estudos de Demogratia Hist Latina, USP DI — Documentos Interessuntes para a Histéria € os Costumes de Sto Paulo. Publicagio do Arquivo Publico do Estado de Sio Paulo ‘ebem — Fundagio Estadual do Bem-Estar do Menor. S30 Paulo IHGSP — Instituto Histérico e Geogrifico de Sie Paulo RIHGB — Revista do Instituto Histérico Geogrifico Brasileiro RPP — Relatérios anuais de Presidentes de Provincia (Império) ica da América Hie Bre rests mone s rola inf do fonémeno do abandono de eriangas, através da His ' téria, no Ocidente € no Brasil. A antig fo da pritiea de abandonar 0s filhos vém aqui associadas as formas de proteyio © de \\assineenca a ssas eriauras,eonstrufdas ao fongo dos séeulos, prime’ ramente no Velho Mundo, e, depois, transplantadas e estabelecidas no Brasil, desde os primérdios da colonizacio. A tarefa de reconstitui intese cht hist6ria da exposigio de bebés na Europa foi facilitada pela erescente literatura que vem sen: do publicada sobre o tema, especialmente nas duas ditimas décadas. Demografia Hist6rica a frente, acompanhada de diversas eiéneias do Homem, vem dando énfase ao estudo da infincia desvalida No caso do Brasil, como os estudas sio pontuais € raros, houve a necessidade de um enorme e longo esforgo, que comegou com a des: coberta ¢ o levantamento de fontes em arquivos brasileiras © portu- ueses, teve continuidade com o rastreamento de trabalhos que privi- dos resultados que fosse, a idade e a evalu legiam 0 tema, até chegar a uma exposi tum sé tempo, informativa e reflexiva A “Ilistéria € filha de seu tempo”, dizia, com sabedoria Mare Bloch De regitio de cifras impressionantes de abandono de eriangas (hd pou- 20 mais de um século, houve anos, em certas dreas da Europa Ociden- tal, em que de cada duas eriangas naseidas, uma era abendonada), a Europa passou a ser hoje, com sua pirimide eviria emagrecida nas bi- Ses, uma area acolhedora de bebés sem-familia, trazidos dos paises ais pobres para serem adotados por casais sem filhos. Mais do que isso, hoje a Europa reconhece a crianga, como saeito de \irite Para se chegar 8 atualsituagio house uina longa e dura constu- — 3 12 APRESENTyEAO Gio, tabalhada, particularmente, uo longo dos iiltimos duzentos anos, no periodo dla filantropia dita ciavrfica, até se alcancar a formulagao © a0 tabelecimento do Estado do bem-estar social de nossos dias, Bem antes desse periodo, us ctiangas abandonadas recebiam a protegio de instituigées, associagées, individuos — todos figis aos principios cris ios da ajuda mritua, das obras de miserioérdia, da missio, da eatidade, $6 depois da “Declaragdo Universal dos Dircitos di Crianga”, pro- ‘mulgada pelas Nagdes Unidas, em 1959, a inffincia obteve o reconhe- cimento de ser considerada sujeita de dirvito. Antes disso, o ato de aban donar 0s préprios filhos foi rolerado, aceito e, por vezes, até mesmo estimulado, Pensava-se nos supostos interesses dos adultos € da so- ciedade — nunea nos da erianga. Conhecer essa trajetéria toda, pelo menos em suas linhas essen. ciais, ajuda a compreender ¢ a tentar encaminhar solugdes mais abran= gentes — 0 impasse a que chegamos hoje, no Brasil, unte a lesiio de Criangas desvalidas vagando pelas ruas, aprisionsdas nas Pebem’s ou similares, exploradas por um pornoturismo infame ou, ainda, tendo seu desenvolvimento massacrado por trabalhos pesados, scm protegio, cercadas, em muitos casos, de toda sorte de violéncia, em casa, na so. ciedade, nas ruas ou praticada pelo proprio Estado, que deveria set seu ‘guardiao ou protetor. © ato de expor os filhos toi introduzido no Brasil pelos brancos eu- fopeus — 0 indio no abandonava os préprios filhos. Ai esti outro dos lados perversos da colonizagio. Como eonseqiiéncia, o port troduziu leis, instituigdes © comportamentos de assisténcia e de pro- tegio 2 inffincia abandonada, nos moldes do que havia adotado desde tempos medievais. Tanto as leis como us modelos de instituigdes de abrigo € de protegio a infincia sem-fuilia, foram forjados na longs duragio da Histéria da Europa. Di cil pesquisa sobr 'o por que comecei pela di as origens mesmas — européias, ¢ particularmente portuyuesas —, ao procurar recompor, sinteticamente, as raizes a tht jet6ria do fendmeno do abandono de criangas no Brasil A historiogratia brasilcira, até fins da década de 1980, pouco se ocu- ou da crianga © mesmo da familia. Foi a utilizagio dos recursos da Demografia Hist6rica, no Brasil, e da chamada “Histéria Nova”, ambas valorizando as pesquisas sobre os exeluidos sociais, que possibilitou a descoberta de realidades novas, inusitadas, na nossa paisagem social histética, Foi assim que resgatei, pela primeira vez em termos quanti- tativos, a presenga de altos indices de eriancas ilegitimas ¢ de crian. ‘¢as abandonadas em nosso passado. O estudo pioneiro nese setor, 0 APRESENTACAO 13 nosso livro La Ville de So Paulo. Peuplement et Population, 1750-1850 (1968, © em portugues, 1973), mostrou a presenga de 13% de expostos © de 25% de ileyitimos, dentre os naseidos livres, no entio pequeno burgo paulista, do infeio do século XIX. Porcentagens enormes, im- pressionantes, inesperadas. Flas exigiam explicagdes que, na época, tendo cm vista o estado da histosiografia social, nfo puderam ser mui- to aprofundadas. Quando pude criar, em 1984, na Universidade de $0 Paulo, o Cen= to de Estudos de Demogratia Historiea da América Latina (Cedhal, introduzi, incontinenti, um Projeto de pesquisas, interdisciplinar & coletivo, ligado a hist6ria da infincia brasileira: Familia ¢ a Crian- (2 na Histéria Social da Popular Brasilira, Nele procutei privile- iar a hist6ria da crianga mais desvalida: a eserava, a ilegitima, a ex- posts ou abandonads, inter-relacionada com sua familia ou, mesmo sem ela, © com as eventusis politieas piiblicas eriadas para sua pro- Este trabalho, um dos frutos daquele Projeto mais amplo, nasceu \da vontade de mostrar @ face marginal, discriminada ¢ estigmatizada, de nossa inffincia, constitufda pelas crianeas abandonadas ¢ sem-fami- lia, 08 6rfios de pais vivos. Achei que seria importante conhecer a mag, nitude do problema ao longo da Historia, os tragos caracteristicos des- ses desafortinnados, seus destinos e as atitudes © os comportamentos do Estado, da Tgreja e da sociedade ance os pequeninos desampara- dos. Quais teriam sido as formas que a soeiedade e o Estado encontra- ram para assisticlos? Na origem, o Projeto previa dar conta da histéria da infancia aban- donada brasileira. Mas como escrevé-la, sem mostrar, ainda que de maneira suméria, superficial, que os comportamentos, as atitudes, as instituigdes, as leis, as experiéncias, as politicas piblicas de assist cia © de protegio a infincia abandonada no foram invenghes nacio- nas? Tudo esteve sempre atrelado a modelos de fora, de Portugal ini cialmente, que, por sua vez, adotou modelos aperfeigoados de outras partes da Europa, sobretudo da Itilia e da Franga, patses provétipos de assisténcia a infincia sem-familia, no Antigo Regime curopeu ¢ no séeulo XIX, Para mostrar essa dependéncia dos modelos externos, jul guei necessério enveredar pela propria hist6ria da infincia abandon. da e dos sistemas e politics desenvolvidos para sua protegio no Ve- Iho Mundo, a0 longo dos séculos. Na época em que o projeto foi montado, estabeleci, como linha limite de minhas andlises, o ano de 1930, Essa marca justificava-se, nat 14 Avreseracio Epoca, por duas razdes principais: em primeiro lugar, porque os est dos historicos sobre a infincia erum extremamente raros € pontuais para os periodos anteriores a essa data, Queria privilegiar, pois, as fa ses menos estuchidas de nossa infincia desvalida, Em segundo lugar, no inicio das pesquisas, muito pouco se conhecia sobre a existéncia las fontes de dados e sua localizagao, para a Coldnia, 0 Império © 0 inicio da Repiiblica, Julguei nm trabalho descomunal, jf de si, proc rar, deseobrir, levantar, reunir dados dacumentais — espalhados por arquivos nacionais, regionais, locais, ptiblicos, privados, eclesiisticos, institucionais — sobre o longo periodo que antecede 0 século atual. Hoje, com toda a experiéneia que acumnlei com o estudo da infin- cia na Histéria © da trigica situagio da crianga de hoje, sinta que essas pesquisas precisariam cobrir a século XX todo, Por isso, decidi que, uma vez terminado este livro, comegaria os crabalhos de rastreamento e de colera de fontes para a nova obra que abordari a infincia desvali da brasileira no nosso século. Para facilitar 0 trabalho do leitor deste livro, decici padronizar todas a8 citagdes e ortografia para o portugues contemporineo do Brasil Do grande Projeto de Pesquisas que dirigi no Cedhal ao longo de de anos, participaram quase uma cenvena de pesquisadores € assessores, sairam dezenas de reses ¢ dissertagies, livros ¢ capituilos de livros, at gos, comunicagies a congressos nacionais intemacionais. O tema da Infancia entiou para a Historia social ¢ demogrifica do Brasil. esforgo entusiasta, multidisciplinar ¢ coletivo em tomo do estudo a infncia em nossa Historia, da equipe de pesquisudores que passou pelo Gedhal contou com o apoio, a comperéneia € 0 interesse de intime: ros organismos € especialistas do Brasil ¢ do exterior. Enumeri-los aqui seria temerdrio, dado 0 risco de omitir, involuntariamente, alguns no: mes, Mas a todos, sott constantemente grata Para manter essa valorosa equipe de alunos € de pesquisadores tra- hathando no projeto, recebi apoio financeiro essencial de axéncias di- versa € sob formas variadas: da Finep, da Fapesp, do CNPq, da Capes, da IUSSP. Sem essa ajuda, nunca teria tido condicdes de desenvolver essas complexas e dispendiosas pesquisas, a coleta de material em arquivos em bibliotecas do Pais e de Portugal e de promover teses € dissertagdes, forums, semindrios e simpsios, cursos de difusio, etc. além de muiltiplas publicagdes. A todas esas agéncias € associagdes ‘expresso, aquii, metis melhores agradecimentos. Este livro represen- 1a, pois, tm dos frutos —o tiltimo — desse Projeto que coordenei na USP até fins de 1994, ApausiN tango 15 Fsse trabalho teve uma fase iniciil, fundamental, de rastreumento de toda a bibliografia © a documentagio — em bibliotecas (publi particulares) © em arquivos (nacionais, estaduais, municipais, puibli- cos € eclesidsticos, além de outros muitos arquivos biblioreeas por tugueses) — que exigiu um trabalho de quateo anos da equipe que naseew com © Cedhal. O trabalho foi coletivo ¢ os pesquisadores que dele participaram foram a ama mater do Centro: Mary del Priore, Fernando Torres Londofio, Renato Pinto Venincio, Ana Silvia Volpi Seott, Dario Scott. A cles se agregaram: Maria de Fitima Rodrigues das Neves © Maria Laicia Mott, na primeima fase. Foi um perfodo gra- tificante, de intensos trabalhos, discussdes, amizade e formagio de pesquisadores de exeeléneia. Esse acervo todo foi informatizado por Dario Scott, por meio do software que cle eriow © que denominow Biblidec, disponivel no Cedhal. Comegou, depois, a fase de coleta dos dados selecionados, na qual trabalharam intimeros estudantes. ‘A lista dos bolsistas de “dentro” do Gedhal que trabalharam em arquivos € bibliotecas da cidade de Sto Paulo € que foram adquisindo treinamento na pesquisa histérica, € longa. Escolho a querida, pres- timosa, competence, entusiasta € saudosa Alice de Camargo Bom Meihy — in memoriam — para, em seu nome, agradecer 0 esforco, a alegria © o entusiasmo de todas os estudantes ¢ recém-formados que trabalharam comigo no Cedhal, 20s quais chamsvamos carinhosamen: te de “juniotes”. Os nomes deles estio no relatério final de meus dee anos de gestio do Centro, guardados em seus arquuivos, ¢ todos tém a minha gratidio, Tenho a certeza que todos guardaram, de seus anos no Cedhal, uma boa lembranga © uma semente fecunda em sua formagio como pesquisadores. Mas houve, também, os bolsistus de “fora”, O érduo trabalho de copista dos milhares de registros © de informagdes (manuseritos) de criangas deixadas na “Roda da Bahia”, conservados no Arquivo da Santa Casa de Miseriedrdia de Salvador, e, também, no Arquivo Municipal, no Arquivo da Ciiria € no Arquivo da Faculdade de Medicina baianos foi realizado, primorosamente, por Ruth da Silva Cruz € Ariadne Femandes da Fonseca, cujo convivio foi prazeroso, Esses dados da Roda de Salvador, talvex os mais ricos no género do Pais, servem de esteio a muitas das refle base ao doutorado € as publicagdes de Renato Pinto Venineio. Sou reconhecida a8 duas queridas historiadoras baianas. Nos arquivos de Mariana e de Ouro Preto trabalharam, com dediew eo, Solange Regina Cardinale e Rosana Rasera. No Rio de Janeiro, Ges e das anilises deste livro, e serviram de 16 AreiseNrscto quem carreyou as maiores pedras na Bibioteea Nacional, no Arquivo Nacional ¢ em outros acervos menores foi Monica Ferreira da Costa As “bolsistas de fora”, meu methor agradecimento; ¢ também ao CNPq, mais uma vez, por té-las mantido, com balsas de aperteigoamento. Na fase de levantamento dos riquissimos dados da Roda de Expos tos da Buhia, da Santa Casa de Miseriedrdia, guardados com cigneia e com amor, pela muita cara, dedig ctora, Neusa Esteves, recebi dela uma tengo particular, um interesse © um esti- mulo constantes, para que reenperasse logo a hist6ria dos expostos nnaquela instituigao, A medida que, durante quatro anos, com as bolsis tas Ruth ¢ Ariadne, fomos coletando os dadas no Arquivo da Miseri- c6rdia, recebi orientagio dle sua diretora, travamos ricas discussdes, fizemos descobertas de series ¢ livros sobre a crianga exposta na pri meira Roda instalada no Pais. \ Neusa Esteves mew agradecimento especial e carinhoso. Fator de force estimulo, para mim, foi o prémio internacional John Simon Guggenheim, que tive 0 privilégio de receber, em 1994, por este piojetd. Cumpre também registrar que, gragas, em grande parte, as minhas publicagdes e 2 atuagio no campo da Historia da infine desvalida brasileint € da defesa dayconstqugio dos dircitos da erianga em nosso puis, tive 0 privilégio de ver o meus nome inscrito no Who Who in the World, de 1997 e de 1998. Foi ainda ragas essa agio que cm fips de 1997, fui convidada a integrar a Comissio de Direitos Hu manos, do Estado de Sio Paulo € a presidir a recém-criada Comisst0 de Direitos Humanos, da Universidade de Sao Pauto. No final do Projeto, tive a honra de ser convidada para assessorar a Secretaria de Estado da Familia, Crianga ¢ Bem-Estar, do Governo Mirio Covas. Pela primeira vez, sai da Academia, para conviver atuar com a realidade concreta da inflincia desvalida e infratora © com os centros dgcisérios do Governo. Foi uma rica e oportunissima liga ver, por.dentro, a engrenagem, as formas de ago © os comportamen- tos politico-administratives dos responsaveis pelas politicas sociais pablicas dirigidas & infaincia. As reflexdes que pude ter, observanda, lendo as centenas de documentos produzides pelos érgios governs. mentais, visitando as unidades da Feber, na capital paulista, conver sundo com as criangas € 08 adolescentes, e assessorando esta Secret fia de Estado, ajudarum-me a dar novo dimensionamento 3s andlises sobre a crianga brasileiry na perspectiva histérica. No sentido inverso, a visio diserOnica da infincia desvalida propiciou-me uma atuagio mais profunda © conseqtiente, nessa pasta. Toda essa experigncia foi res- ae competente di Anresewrigio 17 ponsivel pela decisio de trzer mintias pesquisas até a atualidade. Por todas essus razdes, no posso deixar de registrar aqui meu testemu nho do melhor e do mais sincero agradecimento a titular da Secretaria de Estado da Crianga, Familia e Bem-Estar Social, D." Marta Terezi Godinho, por essa oportunidade fmpar Ao chegar ao fim deste livro, tenho grandes duividas se cons responder As expectativas que se foram criando em torno dele. No entanto, espero vivamente que essa drdua, apaixonante © trabalhosa missio que me propus realizar possa, pelo menos, avangar modests: mente no entendimento da grave questo da infineia abandonada do Brasil e, quem sabe, possa ajudar, de alguma forma, no eneaminh: s mais sistemiticas e continuadas em favor das criancas sem-farilia Meu desejo mais profundo foi o de escrever um livro, ealeado em sélidos dados empiricos e na melhor metodologia da pescjuisa hiseér cea, que fosse 9 um tempo informative (de um tema pouco estudado), nico (na intengdo de servir & causa da construgio dos direitos da 1 n0 Brasil) € reflexivo (sobre o processo de abandono e de am paro a erianga mais desvalida, dentre as desvalidas, que sempre foi a crianga abandonada. Se esta esperanga péde aqui ser eealizad mo com todos os defeitos, todas as limitagées © todas as impert deste livro, estarei plenamente Parte I EUROPA 1 O ABANDONO DE BEB NA ANTIGUIDADE Aviron bebés & um fentmeno de todas tempos, pelo menos no Ocidente. Variaram apenas, no tempo, a8 motivagties, as circunstincias, as causas, as intensidades, as atitudes em face do fato amplamente praticado e accito [Ii varindas evidéneias da extensio do fe todas as grandes civilizagées da Antiguidade. No Gédigo babil6nico de Hamurabi, no Il snilénio a.C. apare primeira tegulamentagio escrita sobre 0 abandono lum homem tomou uma erianga pars adotar com o seu pidprio nome © 4 educou, esse filho adotivo no pode ser reclamado’ Na tradigio juclaica, dois exemplos fortes ¢ centtais de abandono de bebés sio de todos conhecidos e aparecem nas escrituras do Antigo Testamento. O primero Ismact, filo de Abraio e de sua eserava Agar. Sars, quando se casou com Abrado, exigiu que ele expulsasse Agar ¢ seu filho para 0 desesto, Sem gua e sem ter 0 que comer no deserto, Agar abandona Ismael sob um arbusto, para no ve- Jo morcer, Mas Deus salva-o ¢ promete fazer da descendéneia de Ismael umn “grande povo” (Gén. 21, 8-23 O segunclo exemplo é 0 caso de Mois de vime a beira do Nilo, sendo amamentado ¢ eriado por sua prépria mi meno em pracicamente abandonado num cestinho Moisés acabou afilha do Faraé e recolhido pela filha Wy, Jack. Adoption in Cwus-Culturl Perspective, Comparative Studies in Se ‘an History, MUSYS8-7, ja. 1969 (p58) 22 Ovmispono bre miss Ws ANICLIDAD formou-se em her6i do povo hebrew (Genz 25, 12-6, Entre os hebreus do Antigo Testament, o ato de abandonar bel cra perfeitamente accito, ¢ praticado em situagées extremas*. Na Biblia, assim como no ‘Talmude, hi numerosas alusées ao abandono de bebés, 0 que mostra ter sido um costume freqtente, até mesmo regulamentado. O pai tinha o poder de vender seus filhos, em caso de reaver seu filho, a lei assim permiia, desde que indenizasse a quem N mitologin a filosofia celacionam, na Gréc fitho de Laio e de Jocssts, O pai foi advertide pelo onic qite seu fiho o mataia,‘Temeroso, mandow abandand-to na monte Citéron, ¢ levou-0 a0 rei de Corinto, Poibio quc, nto tendo Rhos, 0 adotou Eedipo tornou-se um hers, mais a profecia do oriculo se seaizo, como se sabe. Eudipo easou-se, sem saber, com a prdpria mie, ¢ teve morte trigica Jiipiter, deus da Luz, foi igualmente abandonado por seus pais ao nascer. Zeto © Anffon, os gémcos filhos de Zeus e Antope, fram expos- tos no monte Citéron erecolhidos por pastores.Posfdon,o grande deus das ts, fora abandonado e uma ama o eriou, para defendé-lo da voracidade de seu pai, Crono, A Tista de figunis mitoldgicasabandonadas, ao nascet, por seus pais ndo termina a: Esculipio (lho de Apolo), Hefest, Ate dleusi Cibele, além de Priamo, Hércules, Licasto e Parrisio. Na maioria dos easos da mitologia, o abundonado sobe na categoria social, torna-se her6i e tem destino brane. “Também os clissicos gregos, recorréncia do tema, Platio, em A Repablica sugeria qu tivessem filhos além dos que pudessem manter,e isso era considerado clissiea, intimeros s enjeitadas sto sofos om nifio, trataram com cera os pais no. ( caso da yenda de José por seus mio € oman famoso, Mas hi muitos outros. Ver 1 obra fundamental, erudita © marcante, de Boswell, John. De Kindness of trams he Mbaadanment of Children in Western Erope from Antiquity ro the Rewabsave Lomton, Penguin Dcoks1988, que € aqui referencia pars nosses dois primeiees capitlos, complementads por Lallemand, Lon, Histoire dex enfants sbundonnés et dlaiss€s. Paris: A, Picard, 1883, p. 27, ¢ deste mesmo autor Histoire de la charité Paris: A. Picard, 1912, 4 O sBaNDONO Ne HENES Na ANTIGEIDADE 23 como uma das obrizacdes civicas, Segundo ele, os pobres nao deveriam criar nenhum filo. Platio nio pretendia uma indugio ao infanticidio, mu sugeria que os filhos das muito pobres fossem criados fora de seu lar natal. Propunha uma certa transferéneia organizada de criangas de fart lias indigentes para fares em melhor situa. Aristételes, na sua Polfiaa, prescrevia a limitagio da prole ¢ 0 aborto, além de aprovar o abandono como uma forma de controle do tamanho da familia e da populagio, Para ele, a lei deveria deverminar uais as criangas seriam votadas morte, pelo abandono, Por outro lado, era consenso na Grécia antiga que os bebés nasci- dos disformes deveriam ser expostos, sendo mais freqiiente abando- nar meninas do que meninos. Na Grécia clissiea foi estabelecido 0 institut da adogio para os casais'que ago podiam ter filhos. A concepgio da adogio era ampli: tum homem poderia adorar um rapaz que encontiou para marido de si filha; poderia adotar seus netos; 0s sobrinhos agnisticas; e, por vezes, sobrinhas para sucedé-lo. A adogio poderia ser feita intervivos ou, postumamente, por testamento. © poder do pai sobre os filhos era absohito na Grécia Era-lhe permitido marar, vender ou expor os filhos recém-nascidos. A defor midade da erianca ou a pobreza da familia bastavam para que a justiga doméstica decretasse sua morte ou seu abandono. O aborto era lepitimo, € 0 infanticidio admivido. ‘Muitas veres, ao abandonar um filho, 0s pais deixavam-lhe sinais para futuras identificagdes, no caso de terem intenglo de teaver a crianga. Pedagos de madeiras ou metades de moeda, para tanto parti das, por exemplo, eram deixados junto com o bebé na hora de abando- né-lo, Mais tarde, podiam-se junear as duas partes, comprovando lentificaglo dos pais. Essa pritica seria preservada na Europa até fins do século XIX e transposta para o Brasil teadicional Em Roma, 0 Patria Potesias iqualmente nio tinha limites. “Os recém naseidos s6 eram recebidos na sociedade em vireude de uma decisio do chete de familia; « contracepeio, o aborto, o enjeitamento de eriangas de nascimenta livre € o infanticidio do filho de uma eserava eram priticas Usuais e perfeitamente legais. Sé foram malvistus ¢ se tornaram ileguis, depois que se difundin a nova moral que, para resumir, chamamos de “estoie Cr, Veyne, P.O Império Romano, lo: Arts, P. & Duby, G. (args) Misia ce cide ‘rivada, Do Império Romana 20 Ano Mi. 4 ed. Sao Paulo: Compantia das Leteas, 1990, fp. 23 24 O.amxpono pe HERES Ny ANTIGUINADE enjeitamento de criangas entre os romanos er comum © to antigo quanto sua mitologia ¢ sua historia, Os fundadores da cidade de undo a lenda, nao foram os g&meos Romulo © Remo, filhos do deus Marte, abandonados por seu tio 4 beira do Tibre, ¢ salvos & amamentados por uma loba, até que um pastor os encontrou e os levou para casa, onde foram criados como filhos? Em Roma havia até lugares especiais onde se costumavam abando- ayo Vilabre, perto do Aventino; © local Ficus nar bebés, como o Rumminalis, na Pr Jo Comércio} ou a coluna Lactiria, no mercado de verduras, no Férum. O costume de deisar sinais de identifieagio junto aos bebi dlonaidos era praticado t pais de reeuperar os filhos, quando as circunstincias © permitisse Embora por lei as eriangas livres no pudessem ron {apenas servas), muitas das abandonadas foram reduzidas a essu con- diigio. Outeas, foram submetidas a ubusos; algumas foram estropiad: (torciam-Ihes os bragos ou as pernas, quebravam-Ihes membres, ot furavamlhes os olhos), para servirem a mendigos que, assim, pensa vam poder aleangar methor a piedade piblica No mais das vezes, esses pequenos infelizes, meninos € meni cestavam destinados pelos que os etiavam 3 prostitigZo ou A escola de gladiadores. Outeos eram transformados em servos; alguns, em Importante assinalar que, na Antiguidade, grega © romana, o infan- tividio era praticado. A legislagio da Roma Imperial tentou condenar essa pritica, e Constantino, desde 315—reconhecendo a importancia do {tor econdmico na pritica do abandono por pais extremamente pobres — procurou fazer funcionar um sistema de assist2ncia aos pais, para evitar que vendessem ou expusessem seus filhas. Depais de 318, 0 infantieidio passou a ser punido com a morce* Um vasto e variado conjunto de leis sabre o abandono foi forman- do-se. Nele no se nota nenhuma preocupagio com o lado ético da questo ou com a sorte das eriangas. Bebés nascidos defeituosos, por exemplo, podiam perfeitamente ser mottos, atirados 20 mar ou quel mados. Acreditay deformidades traziam mati agouro para a aban. dos nbém em Roma. Ele mostraya a inteng comunidade e pa Coleman, E. R Infanticide dans le Haut Moyen Age. Annales, Beowomies, Sais, Ci cilsaions, 292):315-36, mar abe, 1974 (p. 327 © anaxnono Dk MEABS Na ANTIGUIDADE 23 Essa situagio foi sofeendo algumas mudangas na Roma Imperial Um dessas alteragées declarava que um abandonado, independence- mente de sua origem, tornava-se livre ao ser exposto. Algumas medidas foram tomadas em favor dos pequeninos expos. tos durante 0 Império Romano. No segundo século de nossa era, © Imperador Antonino (137-161) declarava que a venda de criangas livres por seus pais romanos era ilicita e vergonhosa. No século seguinte, Digeleciano (294) decretava que 0s pais no poderiam ven der ow dar 0s préprios filhos, nem as criangas poderiam ser forgadas & servidio, como forma de pagamento das dividas dos pais. No entanto, 0 Patria Potestas manteve © pai como soberano para decidir sobre a sorte de um filho: se decidisse abandoné-lo e depois se arrependesse, procurando reavé-lo, a lei de Quintiliano reiterava a permissio sem que houvesse nenhuma punigio, desde que fossem reparados os custos da eriagio, (O abandono de eriangas nio foi fendmeno raro no Império Roms: no. John Boswell estimou que os romanos urbanos abandonavam en tre 20% a 40% de seus filhos, nos trés primeiros séculos da nossa era! Ricos © pobres abandonavam filhos na Roma Antiga. As cauisas erum variadas: enjeitavam-se ou afogavam-se as eriangas malforma- das; 08 pobres, por nfo terem condigdes de criar os filhos, expunham- nos, esperando que um benfeitor recothesse 0 infeliz. bebg; 03 ricos, ou porque tinham diividas sobre a fidelidade de suas esposas ou porque 6 teriam tomado decisées sobre a distribuigio de scus bens entre os herdeiros jf existentes. Certos casos de abandono eram explicados por outras causas. Alguns pais abandonavam seus filhos em sinal de protesto politico contra a vontade dos deuses, por exemplo. Virios cidadios expuseram seus Ihos em protesto contra a morte de Agripina. A morte do querido principe Germanica provocou manifestagées coletivas de protesto aos deuses, quando se depredaram templos © alguns pais enjeitaram seus filhos’. Conseguir algum peeiilio, vendendo filhos como escravos, ena outra causa de abandono presente em Roma, € que ajuda a explicar a freqiiéncia da exposigio de criangas. Raramente essas criangas enjeita- das sobreviviam, segundo o contemporineo Pseudo-Quintiliano. A adogiio foi utilizada em Roma especialmente como solu Veyne, P. Lisvortment 3 Rome: I: L'Hitoi, 1979, p. 30-2 (p30,

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