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VERTIGENS POS-MODERNAS (GIDDENS, TOURAINE, BAUMAN) LUIS CARLOS FRIDMAN ‘A superagdo do mal-estar ndo constou das faganhas da mo- dernidade. O capitalismo vitorioso no proporcionou patamares de vida digna para a maior parcela da humanidade e do lado do socialismo buro- crdtico-autoritério 0 que se viu foram pequenos ¢ grandes desastres (ou loucuras cometidas em nome da “certeza do fim iltimo”, como dizia Antonio Gramsci) nas tentativas de construgaio de sociedades que se qui- seram igualitdrias e justas. O universalismo e a razo associados & emanci- pacdo foram préprios desse tempo, capturaram coragdes e mentes ¢ des- pertaram aspiragdes poderosas, mas vive-se, segundo as palavras de Anthony Giddens, em um mundo “instdvel e perigoso”. ritmo veloz das transformagées do capitalismo nos éltimos trinta anos colocou ainda outros problemas. Decisivas alteragdes nas relagdes sociais influfram sobre as formas de vida e na maneira como homens ¢ mulheres experimentam a ordem vigente. Vertentes da teoria social contemporanea interpretam tais processos através de conceités como “capitalismo tardio”, “modernidade avancada”, “pés-modernidade” etc. Uma répida pincelada histérica ajuda a situar a discussio. A Europa da segunda metade do século XIX foi sacudida por profundas transformacGes na indtistria, na tecnologia e no mundo do trabalho, com amplas repercussdes sobre 0 conjunto das relagdes sociais. O Capital foi um dos grandes livros sobre esse perfodo. A industrializagio e a urbaniza- do langaram grandes contingentes humanos em um ambiente que em nada se assemelhava & repeticao, & preservagdo dos costumes, As relagdes pes- soalizadas, a preponderancia dos lagos morais e assistiu-se ao transtorno de toda a vida coletiva entdo existente. O “progresso” — essa palavra mégica 158 LUA NOVA N°47 — 99 que serviu para justificar as extraordindrias conquistas do periodo, os novos poderes em ascensao ¢ as formas draméticas de domin: exclusiio — abalou estruturas sociais cristalizadas e varreu rotinas e refe- réncias estabelecidas. Mais tarde, com menos apologia, as mudangas econémicas, sociais, politicas, culturais e subjetivas que criaram esse cenério de faganhas imensas e insegurangas assustadoras ganharam a de- signagdio de modernidade. As vertigens, pois, nao sio recentes. Guardadas as devidas pro- porgdes, as mudangas ocorridas nas iiltimas és décadas equiparam-se Aquelas da segunda metade do século passado na Europa. Na investigacdo das atuais configuragdes institucionais, os autores dividem-se inclusive entre aqueles que vinculam os processos em curso s forgas surgidas com a industrializagao e a urbanizagao (desta vez em feigdes mais pujantes e ameagadoras) e os que preferem prefigurar uma ordem diversa daquela observada no capitalismo industrial. O marxista americano Fredric Jameson, por exemplo, elaborador incans4vel do conceito de pés-mo- dernismo, chega a defini-lo como uma revolugdo cultural no ambito do proprio modo de produgao capitalista nesse tempo de “especializaco flexivel” na producdo das mercadorias, da fragmentago das narrativas e do estilhagamento do sujeito. Jiirgen Habermas segue em diregao diversa, salientando o “déficit” da racionalidade expandida na modernidade. Tais divergéncias aparecem nos esforgos de elucidagao dos meios e modos em que se processa a vida atual com a globalizagio, a comunicagao instan- tnea, a volatilidade do capital, a ago a distincia e a predomindincia da mfdia na constituigdo do universo simbélico das grandes massas. A inves- tigagdo da nova ordem ainda est em seu inicio. E certo que as idéias do fim da hist6ria ou de uma ordem pés- moderna ~ que operam, na expressiio de Habermas, uma despedida da modernidade — combatem o sentido de unidade da hist6ria, com evidentes conseqiiéncias sobre a caracterizacio da sociedade atual. Mas isso nio tudo. Pode-se acentuar ou diluir a continuidade de forcas despertadas no capitalismo cldssico e na segunda revolugao industrial com as circunstén- cias presentes mas resta ainda por esclarecer os mecanismos ¢ instituig&es que presidem as sociedades contempordneas. Renova-se o esforgo de situar 0s individuos que habitam esse mundo para além da atordoante imagem de Zygmunt Bauman do “invélido crénico que acompanha a vida da janela de um hospital” (Bauman, 1998:194), espectro que continua a incomodar. Estas questées solicitam vdos altos na diregao de uma tcoria geral mas vérias frentes da discusso foram desbravadas por contribuigdes teéricas \VERTIGENS POS-MODERNAS (GIDDENS, TOURAINE, BAUMAN) 159 que se alimentam mutuamente na tentativa de compreensio das novas dinamicas. E 0 caso das teorias da oposigio entre subjetividade e racionali- zagao de Alain Touraine, da reflexividade prépria da modernidade avanga- da de Anthony Giddens e das tensées entre a ordem e a liberdade quando a constituigdo da identidade navega na fluidez de lagos, segundo o pensa- mento de Zygmunt Bauman. Sao autores que descartam princfpios tota- lizadores para a compreensdo da sociedade ¢, na critica as supostas leis fundamentais de seu desenvolvimento, buscam situar 0 mal-estar contem- porfineo. Avancam no terreno das possibilidades e vertigens que afetam os individuos quando esbarram em instituigdes de tal forma modificadas e fornecem indicagées analiticas para a desorientacdo atualmente sentida. TOURAINE E O PROCESSO DE SUBJETIVACAO Para Alain Touraine, 0 objeto atual da Sociologia € a tensao entre a Razio e 0 Sujeito, que assume também a forma do conflito entre 0 sujeito ¢ os sistemas ou mesmo da oposigao entre a liberdade e 0 poder. Face ao processo de racionalizago, a subjetivagdo diz respeito ao proces- so de reconhecimento e de identidade dos individuos que, no limite, pode transformé-los em atores habilitados & contestagdo ¢ & luta pela emanci- pagdo. Nesta visio, racionalizagdo e subjetivacdo so partes comple- mentares e contradit6rias da modernidade. A nocio de sujeito para Touraine nao se confunde com a de indi- viduo ou de agente racional. A subjetivacao, segundo Touraine, é a “pene- tragdio do Sujeito no individuo e, portanto, a transformagiio — parcial — do individuo em Sujeito” (Touraine, 1994:222). O sujeito € confluéncia e adig&o de contetidos a partir da busca de realizaciio do desejo e, portanto, mais do que contorno individual e perseguigao de objetivos; diz respeito a0 alargamento de limites que pode se traduzir tanto pela hiper-sensibilidade e pela loucura quanto por agdes concatenadas e de sentido estratégico. O sujeito ambienta-se na criagdo, na produgao de si e na atuagio em diregdo & liberdade enquanto o individuo em si-mesmo ou o agente racional ndo tém necessariamente esse horizonte. A constituigo do sujeito no se iguala aos padrdes do individualismo, pois é vontade do individuo de ser produtor ¢ ndo somente consumidor de sua experiéncia individual e de seu meio-ambiente social (Touraine, 1994:245). Nao h4 qualquer li- nearidade nesse processo sem centro, que abarca desde grandes lances histéricos a desconfortos ¢ urgéncias que se acumulam no cotidiano. Por 160 LWA NOVA N°47 — 99 isso Touraine acentua que a subjetivagdo carrega a exigéncia ou 0 apelo da liberdade. Na tentativa de ultrapassar a l6gica da racionalidade — que em nome da eficiéncia, da técnica, da ciéncia e do saciamento das neces dades dev origem as mutilagées atuais—, incorpora a obra de Freud e estu- da o sujeito associando-o as dimensées da afetividade, dos sentimentos, da criago e da liberdade. O individuo, visto como si-mesmo, consome a sociedade ao invés de produzi-la. No jogo de forgas que impera na modernidade avangada, a tensdo entre racionalizagdo e subjetivagdo traduz-se também pela oposi¢ao entre o individuo consumidor e 0 individuo produtor. O individuo consumi- dor responde ou assimila as demandas suscitadas pelos centros de poder no processo de racionalizagdo, ao passo que o sujeito cria a prdpria vida, ultra- ‘passa as barreiras do consumo e multiplica desejos no-programados, Em vista disso, Touraine considera que “o sujeito é a vontade de um individuo de agir e de ser reconhecido como ator”, algo que néo obedece a nenhum programa politico especifico. A reflexao do individuo sobre sua prépria iden- tidade estabelece um novo horizonte de demandas sociais, que nao se limi- tam & maximizacdo do interesse ou & racionalidade instrumental. A transfor- magdo do si-mesmo em sujeito implica 0 curso da légica da liberdade, da livre produgdo de si e da dimensao ética, que se opdem & dominacdo social. O sujeito é sempre um ou mais individuos, individuos nem sem- pre so sujeitos. A liberdade de ser e desejar nao se resume as liberdades politicas nem as apostas historicas de grandes agregados como as classes sociais. Nao se trata, portanto, do sujeitos no sentido classico das filosofias da histéria, mas da adi¢Ao ininterrupta de contetidos e do rompimento, muitas vezes silencioso, de limites estabelecidos. Nas atuais condigdes institucionais nascem demandas e partilham-se desconfortos que podem, sabe-se ld a que tempo, virar politica. Touraine ressalta a dissociagao profunda entre sistema e atores, entre o mundo técnico e econdmico e o mundo da subjetividade. E concebe uma separagio entre a corrente civilizatoria da racionalizagio e a busca da liberdade e€ da realizagao no horizonte do individuo que se auto-produz. Assim, frente & tensdo entre os processos de racionalizacao e de subjeti- vagio, a conciliagdo possfvel se dé através de movimentos sociais de defe- sa'pessoal e cultural do sujeito contra a dominagao. Sao novas demandas, como a livre escolha de um estilo e de uma histéria de vida pessoais, que nao so constitufdas pelo consumo e pelo poder. A partir da tensio entre racionalizagaio e subjetivagao, Touraine utiliza a psicandlise para o tratamento das contra-forgas 4 racionalizagao do VERTIGENS POS-MODERNAS (GIDDENS, TOURAINE, BAUMAN) 161 mundo (“o drama da nossa modernidade € que ela se desenvolveu lutando contra a metade dela mesma”). A modernidade radicalizou-se ¢ apresenta novas formas de oposigao entre desejo e repressio. A derivacio sociolégica deste modelo associa o funcionamento do inconsciente & busca da identidade que da curso as forgas que desiguam na liberdade, sfntese da longa luta entre a subjetivagio e a racionalizagio, que para Touraine constituiu 0 projeto da modernidade. Mas a idéia do processo de subjetivagao como fonte dos movi- mentos sociais néo explica suficientemente as interagdes ¢ a producdo da cordem. A conciliacdo entre o apelo universalista da razo e a defesa das iden- tidades nao chega a encaminhar satisfatoriamente o problema. Touraine desenvolve uma abordagem que 6, por vezes, quase con- clamativa. A sua teoria do sujeito é uma critica & idéia de “amanhas radiosos” (Touraine, 1994:341), que supée a realizacdo das leis da hist6ria, com suas necessidades ¢ regularidades. A passagem do individuo em si-mesmo para 0 sujeito contém a auto-realizacdo, a invencao da liberdade e o descentramen- to da emancipagdo. Mas nfo serd a idéia de sujeito, assim formulada, mais um “amanha radioso”? O resgate ampliado e emancipador da libido nao esclarece devidamente seus antecedentes, isto é, como se delineia a identi- dade na modernidade avangada (concentragao intima das flutuagdes entre a razo e a emogao, potenciadas por estimulos exteriores do processo cultural geral?) e como o desejo se derrama nas relagdes € nas coisas. A oposi¢ao entre desejo ¢ repressio tomando a forma de movimentos sociais é uma for- mulago que carrega mais entusiasmo do que explicagao. GIDDENS E A REFLEXIVIDADE CONTEMPORANEA A reflexividade dos individuos na sociedade atual diz respeito & cognoscitividade dos atores na produgo dos resultados da ago ou mesmo “o uso de informagées sobre as condigdes de atividade como um meio de reordenar ¢ redefinir regularmente 0 que essa atividade é” (Giddens, 1996: 101). Essa condigo ou qualidade se estende aos mais amplos limites da agdo humana. A reflexividade pode estar presente na maneira de uma comu- nidade beneficiar 0 seu lixo, no boicote a produtos denunciados como pre- judiciais & satide, nas escolhas sexuais ou em planos alternativos de uti- lizagio de uma usina atémica. Suas caracteristicas podem ser assim arro- ladas: 1) rejeigo & cancepgao de que o comportamento humano é resulta- do de forgas que os atores nao controlam nem compreendem (0 que faz 162 LUA NOVA N° 47-99 lembrar os “rematados idiotas”, irdnica expresso de E.P. Thompson uti- lizada em A miséria da teoria na sua polémica dos anos 70 com Louis Althusser); 2) exame e reforma das priticas sociais por forca de infor- magio renovada; 3) reconhecimento do uso da linguagem na constituigao das atividades concretas da vida; 4) papel central das capacidades reflexi- vas do ator no fluxo da conduta cotidiana com implicagdes sobre a institu- cionalidade e a mudanga social e 5) 0 entendimento que os seres humanos tém de sua pr6pria “histéria” é, em parte, constitutivo dessa propria histéria e das influéncias para mudé-la. A capacidade de intervengio atribuida ao “sujeito reflexivo”, que busca informaco e conhecimento atualizado, & muito maior do que aquela reservada ao order addict ou ao heréi solitério weberiano no império burocrético. Em todos os planos da vida humana incorpora-se co- nhecimento como parte integrante da rotina e do “seguir em frente”. O desacordo permanente e a critica é, segundo Giddens, a “condigao cxisten- cial da sociedade atual”, e nesse “mundo de pessoas inteligentes” (Giddens, 1996:15) alargam-se os pavores. Processo que tem a sua face perversa na clevaco a patamares nao imaginados anteriormente 0 poten- cial destrutivo envolvido na relagao dos homens com a natureza e dos homens entre si, 0 que diferencia 0 mundo atual das sociedades pré-mo- dernas, Aumentou explosivamente o grau de perigo vivenciado na vida coletiva pela capacidade de destruigao resultante da aplicagdo do saber e da ciéncia. Na guerra e na paz, nas bombas nucleates ou no aquecimento da Terra, ndo hd agéncia ou Estado-nagao capaz de reverter tais perigos. Em vez da emergéncia da modernidade levar a uma ordem social mais feliz e mais segura, a sociedade da descoberta e da invengdo permanentes é um mundo carregado e perigoso. Nas palavras de Ulrich Beck, quando “...s riscos sociais, poiticos, econdmicos ¢ individuais tendem cada vez mais a escapar das instituigdes para o controle ¢ a protegdo da sociedade indus- trial” (Beck, 1997:15). A teoria da reflexividade se contrapée a certas vertentes da so- ciologia estrutural que tratam os agentes como muito menos cognoscitivos do que realmente so. Para Giddens, a reprodugo das estruturas depende da cognostividade dos agentes no tempo e no espaco, processo muito mais dinamico do que aquele suposto pela regéncia de leis universais e regu- lares. A reflexividade institucional permite 0 manejo de iniciativas que oferecem beneficios, referéncias ¢ terrfveis ameagas (ndo faltam grandes catéstrofes na “administragdo” da vida de sociedades inteiras). Por seu lado, a reflexividade individual reserva uma parcela de liberdade para 0 \VERTIGENS POS-MODERNAS (GIDDENS, TOURAINE, BAUMAN) 163 sujeito que alcanga a possibilidade de alteragSes institucionais (ou, se se quiser, estruturais) que nao devem ser desprezadas perante a imponéncia dominio das grandes agéncias. Condutas humanas so inst4veis em vista do conhecimento que os atores tém das circunstancias que cercam a sua ago, 0 que pode redundar na imobilidade ou na alteragdo da ordem. A modernidade trouxe a tensio entre a tradigao e a especialidade. A “radicalizagao da modernidade”, pela dindmica do desacordo permanente e da critica, gera tanto uma vida de autoridades miltiplas como desencanto em relagao a todos os especialistas. Giddens considera um equivoco carac- terizar essa “crise da razao” como pés-modernidade. Para ele, esse € um mundo muito mais aberto e contingente pela difusdo democratizante da per cia, com profundas conseqtiéncias sobre as rotinas ¢ instituigdes. Ele prefere nomear esse processo de “difusdo extensiva das instituigdes modernas” (Giddens, 1997:74) e adicionar, pela observacdo das novas circunstancias, que a compresstio do’ espago e do tempo provocou uma intensificagao ou reorganizagao das relagdes sociais. Em vista da globalizacao, acontecimen- tos locais so modelados por eventos ocorrendo a muitas milhas de distncia e vice-versa (Giddens, 1990:69), motivando a construcdo de conceitos como desencaixe ou desincorporagéo, em que a reflexividade institucional ¢ a especializagao sdo errdticas ou descentralizadas: Os mecanismos de desincorporagao dependem de duas condigées: 0 abandono do contetido tradicional, ou costumeiro dos contex- tos locais de aco, e a reorganizagao das relagdes sociais através de faixas de tempo e espago. Os processos causais pelos quais ocorre a desincorporacio so muitos, mas nao é dificil entender por que a formagao e a evolugao dos sistemas de especializagao s4o tao fundamentais para cla. Os sistemas de especializagao descontextualizam-se como conseqiiéncia intrinseca do caréter impessoal e contingente de suas regras de aquisigdo de conhecimen- to; como sistemas descentrados, “abrem-se” a qualquer pessoa que tenha tempo, recursos ¢ talento para capté-los; eles podem, dessa forma, estar alo- cados em qualquer lugar. O local nao é, de maneira alguma, uma qualidade relevante para a sua validade; e os préprios locais (...) assumem uma signifi- cagdo diferente dos locais tradicionais. (Giddens, 1997:106) As relagées sociais ultrapassam, assim, os contextos locais de interagdo e so reorganizadas em outras magnitudes do tempo e do espago. Desfazem-se as referéncias tradicionais e os individuos precisam aco- modar a existéncia em bases novas e em incessante mudanga. Véem-se, assim, desincorporados das referéncias seguras e duradouras das relagées de parentesco, da vizinhanga, da comunidade, da religido e mesmo do local 164 LUA NOVA N°47 — 99 de trabalho, O mundo deixa de ser “familiar”, com todas as conseqiiéncias liberadoras e perturbadoras desse fato. O emprego ¢ as habilidades podem desaparecer ou tornarem-se obsoletas de uma hora para outra, mas nao é apenas o sustento que est4 em jogo. Um conjunto de referéncias sociais, que dio o sentido de continuidade da existéncia, esto permanentemente ameagadas. O desmonte da tradigao também traz a ativagtio dos fundamen- talismos como reagdo desesperada. A publicizagdo da indagaco racional permanente sacode as orientagGes referidas ao passado, as verdades oracu- lares, os mecanismos de controle da ansiedade pelos modos tradicionais de ago e de crenga e as bases ps{quicas da insergio dos individuos numa dada ordem social. As tragicas faganhas do conhecimento humano aplicado & natureza e & sociedade e a consciéncia disseminada do risco geraram novas situagdes subjetivas. Nesse terreno movedico cresce a inseguranga ontoldgica, que Giddens define como a vivéncia de vertigens emocionais quando as pessoas perdem a certeza da continuidade de sua auto-identidade e da consténcia dos ambientes de ago social e material circundantes (Giddens, 1990:95). Nesse caso, sistemas peritos restituem aos grandes contingentes humanos referéncias necessdrias no atordoamento, pois, no limite, individuos que por sensibilidade e inquietacdo inconsolaveis incor- poram em sua vivéncia cotidiana a consciéncia desses riscos podem tornar- se dementes, apesar de rigorosamente racionais: Com o desenvolvimento dos sistemas abstratos, a confianga em princfpios impessoais, bem como em outros andnimos, torna-se indispensavel a existéncia social. (Giddens, 1990:122) Sistemas peritos oferecem um grau de seguranga justificada porque mulheres morrem muito menos de parto, avides encurtam distan- cias na maioria das vezes aterrissam nos acroportos, remédios e trata- mentos salvam vidas e uma série infindavel de precariedades e desconfor- tos so ultrapassados. Mas, por outro lado, ampliam-se os riscos pois chuva radioativa cai em campos distantes milhares de quilémetros de um desas- tre nuclear, acidentes de transito matam mais do que algumas guerras, cuidados com 0 corpo e lipoaspiragdo podem causar danos irrepardveis ou certo tipo de psicandlise levar ao suicidio. Na sociologia de Giddens, fené- menos globais e eventos localizados mantém vinculos diretos pois os gases expelidos pelos automéveis podem contribuir para a diminuiggo da cama- da de oz6nio ou mesmo a amamentagio de uma crianga sofre:as conse- VERTIGENS POS-MODERNAS (GIDDENS, TOURAINE, BAUMAN) 165 qiiéncias da catdstrofe de Chernobyl. A manutengdo da confianga nos espe- cialistas e nos sistemas daf derivados esta entre as condigGes essenciais & sensagio de continuidade da vida. Assim, confianga ¢ seguranga ontolégi- ca so a mesma coisa. O que é proprio da modernidade avangada, em con- traste com as sociedades tradicionais, € que a confianga (com a sombra sempre presente da inseguranga ontolégica) ultrapassa © nivel local, pes- soal e de parentesco para se estabelecer entre individuos e sistemas abstratos (em especial os sistemas peritos). Nesse diagnéstico a democratizagao da pericia est4 acompanha- da da democratizagéio do medo, com profundas repercussées sobre a sub- jetividade contemporanea. Essa “transformagao da intimidade” acolhe, de maneira intrinseca, linhas de forga globalizantes e eventos localizados na vida cotidiana e favorece, para além do vale de lagrimas da vida em familia, tendéncias 4 mudanga nas relagGes entre pais e filhos, na sexuali- dade ¢ nas relagdes de amizade pautadas pelos padrdes da autonomia e da solidariedade. Os individuos passam a se interessar pelo bom entendimen- to de sua constituigao emocional e pela comunicagio no plano dos afetos dirigida ao outro. Observa-se o desmonte de papéis baseados na autoridade familiar ou sexual, que multiplica iniciativas liberadoras em tarefas e responsabilidades mais amplas de uma cidadania que nao se restringe & democracia formal. Giddens nomeia tais tendéncias como a busca da iden- tidade ¢ do auto-exame (“‘projeto reflexivo de construgao do eu”), a “aber- tura” do eu para o outro na medida da superaco das relagées locais, um novo tipo de afetividade baseada nos “relacionamentos” que compreendem a “mutualidade da auto-revelacdo” e a busca da auto-satisfagao pela apro- priag&o positiva de circunstancias nas quais as influéncias globalizadas invadem a vida cotidiana. Em sentido estratégico, essa nova subjetividade permite a politizagao de outras esferas da vida. A “cidadania reflexiva em um mundo globalizador” (Giddens, 1995:18) solicita mais do que um sis- tema partidério-eleitoral e, para além da politica emancipatéria que quer suplantar as privagdes materiais e as desigualdades de poder, expande uma “politica da vida”, com foco nao mais nas “oportunidades de vida” mas nos “estilos de vida”. Para Giddens estes sao tempos que favorecem a emergéncia de uma consciéncia planetdria em oposigao & idéia de fragmentagao cultural, de dissolugdo do sujeito num “mundo de signos”, sem centro, que é 0 diag- néstico dos autores empenhados na investigagao da “hiper-realidade” cria- da pelo predominio da mfdia na cultura contemporanea. Giddens acredita que a modernidade avangada impele a universalizacao, apesar das moti- 166 LUA NOVA N? 47 — 99 vagies plurais (¢ muitas vezes contraditérias) que regem essa multipli- cago de demandas. E um panorama institucional que favorece 0 ativismo, em contraste com a interpretagao da apatia e da passividade das massas que 0 autores que aderem & postura metodolégica da escolha racional preten- dem explicar através da teoria dos jogos. Nas condigées dos sistemas poliérquicos dos estados-nagdo modernos, Giddens concebe um “realismo utépico” (que ele traduziu ideo- logicamente em entrevistas como “centro radical") que abre campo para a constituigo de projetos para o futuro que visamn a emancipacio e a autono- mia, Estabelece a conexdo “politica da emancipagao” + “politica da vida”, em que a politica emancipatoria refere-se a “engajamentos radicais volta- dos para a liberagao das desigualdades ¢ da servidao (envolvendo “mode- los da sociedade boa”)" (Giddens, 1991:155) ¢ a politica da vida como “engajamentos radicais que procuram incrementar as possibilidades de uma vida realizada e satisfatéria para todos e para qual nao existem ‘ou- tros’ (envolvendo decisivamente uma “ética do pessoal” e a politica referi- da a estilos de vida)” (Giddens, 1991:155 e 156). No espaco infinitamente aberto da modernidade avangada, juntam-se consideragdes “realistas” da medida da desigualdade com antecipagdes “utépicas”, que repdem a questo aristotélica, ética, “que vida quero viver?” (Giddens, 1993:292), tevisitada por Amartya Sen em “Comportamento econdmico e sentimentos morais” (1992). Um passo além, Giddens parece querer dizer que mesmo com medo os homens podem mais nessa era de incertezas através da “politica da vida", o que suplanta os diagnésticos pessimistas da fragmen- tagGo ou de gente afogada em um mundo de signos autonomizado, ator- doante e irrefredvel. Giddens atribui a inseguranga ontoldgica A dissolugio da tradigao ou aos efeitos das forgas que através da razdo tornam o mundo fora de controle. Mas mesmo que sistemas peritos facam a sua parte, duyidoso que indivfduos adotem sistemas impessoais como referéncia para lagos interiores duramente danificados. Persegue-se renitentemente a vida, com suas precariedades e vertigens, com recursos que parecem menos téc- nicos. Isso no desmente a reflexividade contemporanea, apenas a redi- mensiona. Efetivamente, a tradigGo, a religio e os fundamentalismos podem servir como contextos de confianga e inclinam os homens a aceitarem uma ordem regressiva, mas muita gente ao Iéu resgata pedagos de vida segundo disponibilidades menos abrangentes. Muitos nao resistem mas a maioria permanece de pé, no anonimato da miserabilidade afetiva e material. A desintegrago do eu é sempre uma possibilidade, mas muita \VERTIGENS POS-MODERNAS (GIDDENS, TOURAINE, BAUMAN) 167 coisa fica de fora no diagnéstico dessa espécie de matadouro existencial por falta de “inoculagao reflexiva”. Nesse sentido, a contribuigao de Zygmunt Bauman fornece elementos que fazem avangar a interpretagdo desse mal-estar. BAUMAN: ORDEM E LIBERDADE NA POS-MODERNIDADE Zygmunt Bauman faz uma sociologia que se inspira em O mal-es- tar na civilizagdo de Freud para demonstrat que “os homens e mulheres pés- modernos trocaram um quinhao de suas possibilidades de seguranga por um quinhao de felicidade” (Bauman, 1998:10). Para Freud, a ordem social e os beneficios da civilizagio moderna implicavam repressao, rentincia, regu- lado ou supressio do prazer e o mal-estar dai derivado consistiu no sa- ctificio da sexualidade e da agressividade, inevitavel condigio para a con- vivéncia societéria. Na pés-modernidade, o principio do prazer reina sobe- rano e, com ele, a aspiragao da liberdade individual. Enquanto Freud formu- Tou que “o homem civilizado trocou um quinhio das suas possibilidades de felicidade por um quinhdo de seguranga” (Bauman, 1998:8), Bauman con- sidera que atualmente os ganhos ¢ as perdas mudaram de lugar. ‘Ao empreender uma andlise da ordem pés-moderna, Bauman poe & prova a tese de que “a repressdo cria a cultura”, desta vez no terreno escorregadio do consumo, onde a busca da identidade est4 sempre um passo além daqueles que a perseguem. As idéias do inventor da psicandlise habitam o fundo da reflexdo de Bauman mesmo quando este propde a inversdo de que “os mal-estares da p6s-modernidade provém de uma espé- cie de liberdade de procura do prazer que tolera uma seguranga individual pequena demais” (Bauman, 1998:10). As diferencas provém de dois momentos distintos da fabricacao da ordem, apresentando mudangas nas conexdes entre a liberdade e a seguranca, com evidentes conseqtiéncias sobre a subjetividade (Kumar, 1997:150 e 151). Veja-se a definigio de ordem para Bauman: “Ordem” significa um meio regular e estavel para os nossos atos; um mundo em que as probabilidades dos acontecimentos ndo estejam distribufdas ao acaso, mas arrumadas numa hie- rarquia estrita — de modo que certos acontecimentos sejam alta- mente provaveis, outros menos provaveis, alguns virtualmente impossiveis. Sé um meio como esse nés realmente entendemos. 168 LUA NOVA N° 47 — 99 S6 nessas circunstancias (segundo a definicdo de Witigenstein de compreensao) podemos realmente “saber como prosseguir”. $6 af podemos selecionar apropriadamente os nossos atos — isto 6, com uma razoavel esperanga de que os resultados que temos em mente serdo de fato atingidos. S6 ai podemos confiar nos habits e expectativas que adquirimos no decorrer da nossa existéncia no mundo. (Bauman, 1998:15 ¢ 16) Na sociedade pré-moderna as identidades eram atribufdas por forca da religifio, das relagdes de parentesco, da comunidade e da tradigao, enquanto na modernidade tornou-se uma tarefa individual ou realizago de integral responsabilidade do individuo. O desencaixe (Bauman assimila 0 conceito de Giddens) tornava o Gnus da busca da identidade muito maior mas os cendrios eram “meios regulares e estaveis” em que 0 universo das interagGes locais ainda constitufa de forma mais ou menos s6lida a vida de cada um. O capitalismo havia langado a maioria dos individuos na condigdo de produtores, com atividade ou emprego situados em algum ter- Titério € “profiss6es, ocupagées ¢ habilidades correlatas nao envelheciam mais depressa do que os seus titulares” (Bauman, 1998:31). A identidade ainda podia deter-se ou delinear-se em lagos duradouros naquele ambiente de permanente mudanga, desde que embalados pela ativagao das capaci- dades de julgamento e de escolha. Individuos desencaixados assim seguiam em frente: Em outras palavras, a modernidade é a impossibilidade de per- manecer fixo. Ser moderno significa estar em movimento. Nao se resolve necessariamente estar em movimento — como nao se resolve ser moderno. E-se colocado em movimento ao se ser langado na espécie de mundo dilacerado entre a beleza da visio ca feitira da realidade — realidade que se enfeiou pela beleza da visio. Nesse mundo, todos os habitantes sao némades, mas némades que perambulam a fim de se fixar. Além da curva existe, deve existir, tem de existir uma terra hospitaleira em que se fixar, mas depois de cada curva surgem novas curvas, com novas frustragdes e novas esperangas ainda nao destrogadas. (Bauman, 1998:92) Mas 0 cenario da vida social contemporanea ndo é mais digno de confianga. O capital ndo tem qualquer dificuldade em desarmar suas \VERTIGENS POS-MODERNAS (GIDDENS, TOURAINE, BAUMAN) 169 tendas, tal como relatado em Globalizagao — as conseqiiéncias humanas. A mobilidade do dinheiro faz desaparecer empregos ou abala economias em questo de dias e a “territorialidade” ou a “localidade” nao abrigam necessariamente a durabilidade dos vinculos. Na radicalizagao das tendén- cias da modernidade, a familia e a vizinhanga se esvaecem como retiros seguros para tormentos e embates do mundo do trabalho ou da impessoali- dade da regéncia dos contratos, habilidades profissionais tornam-se rapi- damente obsoletas, redes de seguranga so desmontadas e a privatizagio da questao social sepulta a responsabilidade da comunidade sobre o destino de seus componentes, “Realidades” se justap6em pela predomindncia da midia ¢ da inddstria da imagem, onde toda flutuacio é possivel e toda pre- cariedade sugada no espetdculo. Essa ordem, em vista dessas profundas alteragées institucionais, no se iguala aquela erigida na modernidade: Bauman prefere chamé-la de pés-moderna. A “produgiio de pessoas pés-modernas” € também diversa daquela observada na modernidade. O marxista americano Fredric Jameson lembra que a sublimagdo, a gratificagaio retardada ou o ascetismo propagado na ética protestante eram componentes subjetivos indispen- sdveis & acumulagao primitiva de capital. Os individuos que levaram essa inauguracéio adiante (com a abnegacéo e as barbaridades que foram capazes de cometer) estavam impregnados de uma mentalidade que os habilitava ao trabalho arduo e ao adiamento permanente do prazer, em uma agregacao de vidinhas que produziu uma gigantesca guinada histérica. No momento atual, uma nova Iégica cultural “coloniza” as mentes — nos hdbitos, fantasias e aspiragdes — de forma a fazé-las funcionar nas condigées diversas do modo de produgdo. O imaginério, as pulsées da intimidade, as maneiras de ser ¢ os sentimentos foram incorporadas ao uni- verso das mercadorias através de narrativas estéticas ¢ da cultura. A dilatagao da esfera das mercadorias, na qual a midia é imprescindfvel, evi- dencia uma “desdiferenciagdo” (a expressdo também é de Jameson) entre a economia e a cultura que acompanha 0 pés-modernismo, considerado a atmosfera cultural do capitalismo tardio. Para Jameson, a linguagem da televisdo e dos video-clipes é expressiva da condigo pés-moderna. As imagens af se encadeiam através da rotagao incessante dos elementos em que tudo é desalojado no momen- to seguinte, “puro jogo aleatério dos significantes” — na expressio de Ind ‘Camargo Costa — que é sintoma desse Zeitgeist (a coeréncia de um tempo) com o desmonte das grandes narrativas ¢ a suspensao da historicidade. Essa linguagem composta de uma série de puros presentes remonta & rup- 170 LUA NOVA N°47— 99 tura na cadeia dos significantes que, segundo Lacan, cerca a condigao do esquizofrénico, onde a incapacidade de unificar passado, presente e futuro da sentenga remete a incapacidade de associar passado, presente e futuro da vida psfquica. Segundo Jameson, a alienago do sujeito se desloca para a fragmentacdo: a singularidade se constitui e se parte no emaranhado das narrativas em eterno presente. A “légica cultural”, para Bauman, carrega mais contingéncia e ambivaléncia. O “comego permanente” — que se origina no periodo em que a identidade deixou de ser atribuida através dos contextos de confianga da sociedade tradicional — é anterior ao capitalismo mididtico, a especializa- io flexivel da produgdo de mercadorias e a fragmentagao das narrativas. Isso nao invalida as contribuigdes de Jameson mas permite a atribuigao de outros sentidos para os mesmos fendmenos. A vida em ambiente de simu- lacro indica para Jameson uma errancia no éter da desintegracdo, expressiio (determinada?) das linguagens fragmentadas do novo universo de pro- dugio das mereadorias. Para Bauman ainda h4 muito por qualificar na angistia da escolha (fundamento do empreendimento individual de auto- constituigg0), reservando lugar para outras forgas que nao se resumem as narrativas, digamos, de “abrangéncia sistémica”. Aescolha no se dé mais através da reptessio dos desejos, que produziu sociabilidade e ordem, como Freud defendeu em O mal-estar da civilizagdo. Agora o estimulo de novos desejos toma o lugar da coerco e as, presses da necessidade so obscurecidas nessa sedugdio. H4 mais liberdade na busca do prazer associada ao consumo mas 0 terreno continua ameacado- ramente movedigo porque no h4 pouso estavel. Tudo isso transcorre no quadro geral do “medo ambiente”, expresso cunhada por Marcus Doel e David Clarke em Street Wars, Politics and the City, que Bauman adota por abranger a nova desordem do mundo, o ataque ao Welfare State (e &s garan- tias sociais a uma vida minimamente decente) e 0 desaparecimento do cemprego, das ocupagées e de referencias durdveis. Os esforgos de constitui- do da identidade individual nao arrefecem os terrores do desencaixe nem so capazes de “deter 0 eu flutuante ¢ a deriva” (Bauman, 1998:32). Bauman aponta para uma identidade fluida de individuos coloca- dos na situagio de “colecionadores de experiéncias e sensagdes”. O consumo vido e permanente, dirigido a sensagdes no experimentadas anteriormente e sempre mais intensas do que aquelas j4 conhecidas, resulta em uma “acu- mulago” que nunca é satisfatéria. A liberdade de consumo da vida 6 perma- nentemente ativada na venda de alimentos, cosméticos, carros, éculos, pacotes de férias, aparelhos de gindstica etc e — aspecto sobremaneira impor-

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