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Dialética Marxista, Dialética Hegeliana O Capital e a Légica de Hegel” Ruy Fausto** Resumo: Este ensaio visa elucidar as relages entre Marx e Hegel a partir da andlise de questes que diferenctam a “dialética limitada” do primeiro frente a dialética e 4 especulagio do segundo. Essa diferenga € destacada no estudo do problenta do “entendimento”, da “imaginagao”, do “tempo, da “matéria" ¢ da “negagdo” Palavras-chave: matéria. iialética = hegelianismo = marxismo — entendimento — imaginagao — tempo — Num texto anterior, tentei definir a diferenga entre a dialética marxista ea dialética hegeliana a partir da relagdo que cada uma delas tem com 0 entendimento, Contra a imputagao usual de dogmatismo dirigida contra a dialética hegeliana, insistiram bons intérpretes de Hegel sobre o fato de que a ética hegeliana deixa intacto o discurso da ciéncia positiva (que é o discurso do entendimento). A ciéncia positiva, ele acrescenta um Curso dialético, que é, além do da Légica, 0 discurso de uma ciéncia filosdfica real. O discurso dialético nao questiona assim a legitimidade do discurso do entend mento, nem em geral concorre com ele. Por isso ele nao é dogmatico. Tentei Mostrar que se isto é verdade (e acrescentei de direito, porque de fato Hegel intervém e nem sempre bem — ver certos aspectos da sua relagao coma ciéncia * Este texto € parte de um outro a ser incluido num dos volumes restantes de Marx: Légica e Politica: investigagdes para uma reconstituigdo do sentido da dialética (Fausto 6). “* Professor da Universidade Paris VIII. 42 Fausto, R., discurso (20), 1993: 41-77 newtoniana), esse antidogmatismo tem um prego. Se separar (relativamente) a razao dialética do discurso do entendimente protege este Ultimo de eventuais usurpagées da primeira, a separaciio implica ao mesmo tempo a idéia de uma dialética que, a rigor, nao presta contas ao entendimento. E isto, por positiva que seja em geral a atitude de Hegel em relagio ao entendimento. E mesmo se é verdade que ele supde uma relagao de descontinuidade-continuidade entre razdo dialética e entendimento. Por outras palavras, o antidogmatismo de Hegel corre o risco de se inverter em dogmatismo. Inversamente, a dialética de Marx se apresenta como dogmiatica, no sentido de que ela transgride de fato © terreno do entendimento. Na realidade, a critica da economia politica nao é um discurso exterior ou paralelo ao de Smith ou ao de Ricardo, & maneira dos textos sobre a economia politica da Filosofia do Direito de Hegel, que estes sim deixam intacto o campo da economia politica como ciéncia positiva. A critica marxiana da economia politica compere com Smith e Ricardo; ela invade © seu terreno. O Capital pretende substituir a Riqueza das Nagdes e os Principios..., pelo menos nos seus capitulos fundamentais. Mas esse dogmatis- mo tem as suas vantagens. Se o antidogmatismo hegeliano se inverte em dogmatismo, o degmatismo marxista se inverte em antidogmatismo. De fato, se dessa postura pode resultar uma dogmatizagio pseudodialética da ciéncia positiva, dela pode resultar também uma abertura efetiva da dialética ao entendimento. Isto significa que o entendimento — ou se se quiser, 0 objeto enquanto objeto do entendimento — tem a palavra no préprio texto do discurso dialético, e se for a caso contra a dialética, Por outras palayras, a transgressao do campo do entendimento pela dialética pode ter como resultado nao uma dogmatizagao da ciéncia posi mas uma limitagdo da dialética pelo entendi- mento), O que significa: é apenas a@ dialética que transgride 0 dominio do entendimento, é também o entendimento que invade © terreno que seria o da dialética. Marx nao deve menos a Ricardo e a Smith do que a Hegel, embora isto ndo seja imediatamente visivel... para os filésofos, A minha andlise terminava comparando a atitude de Marx em relagao 4 economia politica com a de Hegel em relagio a légica. E a posigao de Hegel em relagao A economia ca com a de Kant em relagdo a légica, No que se refere & economia ica, Marx estaria para Hegel, como Hegel para Kant no que se refere 4 Fausto, R., discurso (20), 1993: 41-77 43 Iégica. Kant acrescenta uma légica transcendental a uma légica formal que ele deixa essencialmente intacta. Hegel acrescenta uma ciéncia filoséfica real a economia politica de Ricardo e Smith que ela deixa intacta. Mas Hegel recons- troi (A sua maneira) a Iégica, como Marx reconstréi a economia politica. Eu considero essa andlise uma resposta nova para o problema, apesar de ela ter a aparéncia de uma resposta tradicional. Entretanto, nio se pode ficar af. A tese estabelece uma relagdo de certo modo externa — mas nisto estd a sua originalidade — entre entendimento e razdo. (A relagdo acaba sendo interna, mas a partir de uma relagdo externa.) Mas ha também relagdes propria- mente internas, que é preciso desenvolver. Por outro lado, o problema nao se esgota com a questao da dualidade entendimentofrazao, A originalidade da relagao interna que a dialética de Marx estabelece entre entendimento ¢ razdo é visivel, em primeiro lugar, no ponto de chegada do que chamei de dialética interiorizante“’. Na interversdo das relagdes de apro- priagio, a qual revela o Hintergrund do sistema. Na realidade, este momento nado representa apenas o desenvolvimento e a critica da economia Aufkldrer: ele parece representar também, e num mesmo movimento, wm desenvolvimento que vai além da ldgica de Hegel. A primeira vista, isto nado parece verdade. O tema da interversdo se encontra evidentemente em Hegel, e também a nogio de Hintergrund®. Mas & preciso ver em que contexto essas nogdes se retinem em Marx. Em primeiro lugar, se trata de um movimento posterior a légica do Conceito (sendo 0 conceito o capital), uma metaldgica do conceit a légica do conceito ¢ o limite da légica de Hegel. Além disso, a interversao poe as classes enquanto totalidades em inércia: 0 movimento do capital aparece como absorgfio, por parte de uma classe, da riqueza criada por outra. A posigao dos agentes — ja vimos — nao € excepcional mas é um momento recorrente da dialética d’O Capital. Entretanto, é preciso atentar para 0 que representa aqui 4 posic&o dos agentes: o movimento do capital se resolve pura e simplesmente em exploragio de uma classe por outra. Que significa logicamente isso tudo? Significa que existe em Marx um além-conceito, que © conceito vem a ser resolvido numa ldgica que néo é mais ado cenceito. Sem diivida, essa “légica” €em parte do registro da légica do ser em parte do da légica da esséncia. Mas a diferenga & fundamental. Vejamos isto mais de perto. O capital, que era 44 Fausto, R., discurso (20), 1993: 41-77 sujeito, e que continha os momentos da mercadoria e do dinheiro, passa agora a ser momento de um movimento que é 0 da alternancia trabalho-capital. Em analogia com a passagem da mercadoria ao dinheiro (ou vice-versa), essa alternancia pode ser considerada como um devir. O trabalho cria o capital do qual se desprende uma parte que se resolve em trabalho, ¢ assim por diante. Assim, mesmo se — ou porque — se exprime a exploragdo, logicamente o sujeito capital 6 de certo modo fraturado, e passa a ser atravessado por um devir. Ele se quebra em dois extremos, ele mesmo ¢€ o trabalho), os quais entretanto nao sio mais pélos como anteriormente””’. Porém, ao mesmo tempo se restabelece uma légica que é do registro da esséncia, porque se vai a um Hintergrund, um fundamento primeiro, a um fundamento do fundamento do sistema. Se 0 além-conceito é assim em parte do registro do ser, ele é também e ainda mais do dominio da esséncia. Em terceiro lugar, percebe-se que a ruptura do conceito, na medida em que ela pée as classes e o fendmeno puro e simples da exploragao (trata-se de uma espécie de “fendmeno fundamental”), ele realiza uma espécie de desmistificagio do conceito, mas desmistificagio que no tem cardter antropolégico. Sabe-se que Marx tentou, na sua juventude, uma critica do conceito hegeliano, mas essa critica se revelou iluséria, na medida em que o “misticismo” que se imputava ao conceito e ao discurso hegeliano em geral era adequado ao “misticismo real” do objeto no capitalis- mo, e enquanto tal era verdadeiro. Foi preciso por assim o objeto “mistico” — © conceito, enquanto capital. Mas uma vez posto, se vé que 0 objeto “mistico” € entretanto objeto de uma légica “abissal” — retorno do ser e da esséncia — que o “desmistifica”, pela reposicao do fundamento substancial negado. O sujeito auténomo é assim posto mas ao mesmo tempo resolvido numa ilumi- nagio abissal da exploragio que corresponde 4 posicio do sistema no grau maximo da sua intensidade. Sem essa iluminagdo, o sujeito-movimento teria mesmo alguma coisa de mistificante. Ou, se se quiser, a posi¢io do capital no grau maximo de sua intensidade o dissipa como puro sujeito-movimento. O tealismo de Marx (no sentido medieval do termo), realismo que As vezes pode parecer chocante, termina assim por uma critica do realismo. Se a légica do conceito em Hegel termina pela Idéia, aqui se tem também (em Marx) a Idéia do sistema — mas a idéia erftica do sistema, ¢ no contexto de uma volta ao Fausto, R., discurso (20), 1993: 41-77 45 ser ¢ 4 esséncia. Ha af de resto um eco da nogio kantiana de i como observei em outro lugar, o Hintergrund, pelo préprio fato de representar o nivel mais profundo do objeto, nos leva para fora dele: com ele se ultrapassam os limites do objeto, — Assim, 0 movimento de interversiio das relagées de apropriacdo nao constitui apenas em si mesmo uma critica da Aufkldrung, ele representa também em ato uma critica da ldgica de Hegel, porque altera a ordem dos momentos (e com isto o seu contetido). Se a Légica de Hegel tem como momentos o ser, a esséncia e o conceito, a légica de Marx — a dialética marxiana — tem como mamentes a esséncia, 0 conceit, e a esséncia (mas também o ser) outra vez. Vai ai umacdiferenga essencial entre as duas dialéti- cas, embora os termos paregam ser os mesmos. Mas se o extremo da dialética interiorizante marca uma distancia em relagao & Logica de Hegel, os limites tiltimos da dialética exteriorizante’ também vao na diregdo de uma transgressao do hegelianismo. Distingui dois limites tiltimos dessa dialética. O que representam as segdes quatro e seis do livro III (capital a juro e capital bancdrio, e renda da terra) por um lado, € a segao sete do livro III (os rendimentos ¢ as suas fontes) por outro. No primeiro caso, se tem a exteriorizagdo das formas. O fundamento sujeito e com ele o fundamento substancial passam na exterioridade. Marx fala a respeito de “forma exteriorizada” (dusserliche) ¢ de exteriorizagio (Verdusserlichung)" A que isto poderia corresponder na Légica de Hegel e na filosofia hegeliana em geral? Limitemo-nos por ora & Légica. Nao se trata evidentemente do Movimento que da esséncia vai ao fendmeno e A efetividade; ja vimos o que isto representa n’O Capital (o desenvolvimento do inicio do livro III). Ha entretanto uma determinagdo hegeliana que estd ligada 4 idéia de exterior’ tagao, precisamente a nocio de reflexdo exterior (dussere Reflexion), Ea Tespeito dela Hegel emprega mesmo ds vezes 0 termo Entéusserung®, A reflexdo exterior, que sucede 4 reflexdo posicionante (setzende Reflexion), é Um momento em que se opera uma espécie de queda da reflexdo na finitude: ele Corresponde precisamente As filosofias da reflexao finita, O entendimento Como que emerge entdo na razao dialética, o que, no plano da apresentagado Pura das trés reflexdes, exige um terceiro momento, de negacio da nega¢io, a Teflexdo determinante (bestimmende Reflexion). Na apresentacao geral da 46 Fausto, R., discurso (20), 1993: 41-77 esséncia como reflexiio, primeira segiio da Iégica da esséncia, a reflexo exterior corresponde a diversidade (Verschiedenheit), que é precisamente uma determinagio da reflexao de cardter exteriorizante. A diversidade se apresenta na dualidade igualdade/desigualdade, forma exteriorizada da dualidade identi- dade/diferenga (Unterschiedenheit)"», Mas esse momento de exterioridade é reabservido primeiro pela oposigéo (unidade da diferenga e da diversidade), que se desenvolve em contradigo, e depois pelo fundamento que, sob um aspecto pelo menos, é uma reinteriorizagdo da esséncia. As “exteriorizagoes” que se sucedem ao fundamento (existéncia, fenémeno...) representam o ca- minho da efetividade, e se elas remetem em certos momentos a reflexdo exterior, esta é também cada vez reabsorvida'™’. A reflexdo exterior nunca se autonomiza. N’O Capital, a “reflexdo exterior” (exteriorizagio) vem depois da efetividade. E ela se radicalizaré com um segundo momento de exterioridade. O retorno i esséncia e ao ser, que caracteriza a dialética de Marx, tem assim como contrapartida o nio-retorno a interioridade (a nao ser como “corrupgao” do sistema: interioridade nao do fundamento mas do “abismo”). — O melhor simile hegeliano da exteriorizagdo das cate gorias n’O Capital é provavelmente a exteriorizagao da Idéia‘), Af se tem um sujeito objetivo que se coisifica & perde alguma coisa da sua (plena) racionalidade. $6 que em Hegel — diferenga que pode parecer secunddria — a exteriorizacio se faz para além da Légica, isto é, para além da dialética mais alta, enquanto que em Marx ela é interior ao Capital, isto é, ao sistema de formas em sentido estrito"®). Sem mudanga de registro, isto é, no interior da dialética mais alta, as formas se coisificam. O segundo movimento de exteriorizagao tem um cardter diferente. A propésito dele, Marx falar antes em alienagdo (Enifremdung) e¢ em formas alienadas, do que em exteriorizagiio (Ver iusserlichung)'”. O movimento de exteriorizagdo poderia ser considerado, como vimos, como uma queda no entendimento, dai a possibilidade de compard-lo com a reflexdo externa, que é emergéncia da finitude. Mas se ha ai entendimento e portanto representacao, trata-se de representagio de ordem intelectual. Com a segunda exterioriza a representagio emerge com um cardter imaginativo. Nesse sentido, se disse anteriormente“* que o limite da dialética exteriorizante representava um en- tendimento externo (oposto a um entendimento interno), isto &, vélido para 0 Fausto, R., diseurso (20), 1993: 41-77 47 primeiro limite tiltimo. Para o segundo limite tltimo, é necessdrio precisar e corrigir. O que chamei de entendimento externo é aqui antes a imaginagdo, ou se sé quiser, ele nao se separa da imaginacdo''”), De fato, o que caracteriza a sétima se¢ao do livro III nao € a simples exteriorizagao das formas. Aqui o sistema de formas se confunde de um modo “anfibolégico” com os contetidos materiais. Ha “brouillage” da forma e do contetido material, mas “brouillage” inscrita no real°), Q que se tem aqui nao é assim andlogo 4 exteriorizagio da Idéia na realidade, porque no caso da Idéia, se hd investimento da forma numa matéria, ndo hd mistura entre forma e contetido. Enquanto sistema de determi- nagSes puras, a Légica nao oferece um equivalente disto. E na Fenomenologia do Espirito que se poderia pensar nesse caso"). Mesmo se na Fenomenologia se encontra uma dialética da consciéncia ¢ nao uma dialética do conceito enquanto tal, a referencia importa para a Entfremdung, porque a alienagiio do conceito é por exceléncia fonte de ilusdo. Ora, a situagao da consciéncia comum (ou natural) diante da consciéncia filoséfica na Fenomenologia & precisamente a de uma experiéncia ilusdria (em que o lado imaginativo nfo est ausente) diante de uma experiéncia cientffica do objeto. Nesse sentido nao silo apenas os textos sobre a Entfremdung na Fenomenologia do Espirito que Permitem uma aproximagao, mas 0 conjunto da Fenomenologia, ou algo que ocupa o conjunto da Fenomenologia, a diferenga entre as duas consciéncias, a experiéncia iluséria da conseiéneia natural. Porém o capitulo sobre a cultura (0 espirito que se alienou a si mesmo) oferece um interesse particular, sebre- tudo a figura da fé (Glaube). Porque o que caracteriza a fé é a percepeao do Conceito como se ele fosse algo sensfvel, isto €, a percepgao do conceito como Supra-sensivel™). (Cf, a mercadoria como sensivel supra-sensivel.) A fé une imediatamente o sensivel e o inteligivel num conceito alienado, a Aufkldi- nung os separa abstratamente (“o objeto da fé é um pedago de pedra, um bloco de madeira..."°>), (Cf. a eritica antifetichista — convencionalista — da “eco- Nomia supersticiosa” pela economia classica.) Em Marx, o conceito alienado “também o objeto de uma “consciéncia natural”: a consciéncia dos agentes Plesos as malhas do sistema € a dos seus idedlogos. Deve-se observar entre- tanto de um mode até certo ponto paralelo ao do que foi dito para a Légica, ‘Ue, diferentemente d’O Capital, a Entfremdung da consciéncia na Fenome- 48 Fausto, R., diseurso (20), 1993: 41-77 nologia do Espirito se resolve no Saber Absoluto e, nesse nivel, se ha objeti- vacio do sujeito e subjetivagao do objeto, n@o hd confusdo entre as duas consciéncias nem entre representagéo € conceito. Ea subjetivagio do objeto que poderia sugerir uma convergéncia. De fato, tanto no Saber Absoluto como na férmula trinitdria, hd subjetivagio do objeto. Sé que no Saber Absoluto o objeto se subjetiva como auto-atividade, ¢ na formula trinitaria ele se subjetiva pela interferéncia da imaginagdo e da representagado “intelectual”. Ou seja, a subjetivagao do objeto nesse tiltimo caso nao é emergéncia do objeto-Sujeito, O objeto se subjetiva porque se torna objeto representado e imaginado. Em resumo, no final do livro ITI d’O Capital nao é a “boa” subjetividade que se objetiva, é o sujeito enquanto sujeito finito que interfere num objeto a sua maneira infinito. Por isso mesmo nao ha fusio (que é de resto uma dupla fusdo e por isso nao elimina a dualidade) mas ha “brouillage” entre sujeito ¢ objeto, E como se na versio marxiana do final da Fenomenologia, a consciéncia filosdfica se misturasse com a consciéncia natural. — A ilusdo a que remete a formula trinitaria deve ser pensada nao 86 a partir dos seus antecedentes hegelianos, mas também a partir dos antecedentes kantianos. A ilusé cessdria da dialética transcendental de Kant nao se torna aqui tao ilusdria’ porque objetiva como ocorre na passagem de Kant a Hegel, mas ilusdria e objetiva no que constituiria assim © movimento que vai de Kant a Marx. A ilusdo é necessdria como em Kant e objetiva como em Hegel: como em Kant, ela se conserva como ilusio*). O que significa também introduzir um tipo de absurdo que lembra o absurdo husserliano, e cujo modelo é o do “logaritmo amarelo"®5), Porque também aqui se transgridem os limites de regides diferen- tes, confundindo-as. O amarelo é antes de mais nada um dado sensivel, 0 logaritmo é um conceite: “Em primeiro lugar, as pretensas fontes de riqueza anualmente disponiveis pertencem a esferas totalmente dispares (disparaten) 0 tém a menor analogia entre si. Elas se relacionam entre si algo assim como honoririos de notdrio, beter- raba e misica”@®, © iltimo problema seria o do tempo. Mas antes dele é preciso se referir 4 questio da matéria. Este é talvez, junto com o do tempo, 0 aspecto mais comentado € por isso menos conhecido da relagao Marx-Hegel. Marx insiste ne- eer aia tes a amos SS ean em ee Fausto, R., discurse (20), 1993: 41-77 49 expressamente contra Hegel que as formas nao podem se separar da matéria em termos absolutos (ou, dirfamos, s6 deixando no “horizonte” uma matéria “suprimida”). “O conceito que é inicialmente apenas subjetivo — escreve Hegel (citado por Marx na primeira edigdo d’ O Capital) — vem (schreitet dazu fort) ase objetivar conforme a sua prépria atividade e sem necessitar para isto de um material exterior (dusserer Materials) nem de matéria (Stoff)"°), E Marx comenta: “sé 0 conceito hegeliano consegue (brings es fertig) se exterio- rizar (dussern) sem matéria exterior”@®), Se anteriormente vimos uma de- pendéncia da forma dialética em relagdo ds exigéncias do contetdo, aqui a dependéncia é da forma em relagio matéria. Se no caso anterior poder-se-ia dizer que a forma aparecia como um momento subjetivo (da qual o objeto s6 conservava o que era inerente ao contetido, o que se provasse forma objetiva) — aqui tudo se passa imediatamente no plano do objeto: é a forma objetiva que depende da matéria. Nesse caso hd menos um limite da inteligibilidade do que un limite do inteligivel). Também aqui a dialética aparece como limitada, mas em sentido diferente do que se viu para a relagdo forma/contetido. A matéria permanece pressuposta, Porém niio apenas enquanto horizonte longinquo retrospective como se poderia dizer para Hegel; em Marx, ha sempre uma pressuposi¢ao material dltima Imediata, que subjaz ao movimento da pressuposigdo ¢ da oposigdo, inclusive 40 movimento da pressuposigdo e da posigdo da matéria. O sistema de formas Permanece sempre inserife na matéria. Assim, a matéria é em Marx o lugar da Inscrig¢ao das formas, ndo mais mas nado menos do que isto. E se a matéria — Pelo menos na medida em que, precisamente, ela é fixada como pressuposto — €mais da ordem do entendimento do que da razao, também aqui o entendimento Imita, Porém, como anteriormente, nao se pode dizer que a razio fique nos limites do entendimento: a matéria € pressuposto. ___Nesse ponto se pode ver em que medida a expressio “materialismo dialé- lico” — que niio se encontra em Marx — é excessiva, e em que medida ela Fecobre uma verdade. Na realidade, se a matéria esta pressuposta, na expressdo. unaterialismo dialético”, “dialético” deveria ser entendido como negando Materialismo”, Mas se é assim nao se pode falar em materialismo, assim ©Omo nao se pode falar em humanismo ld onde o homem é suprimido ete, Por 50 Fausto, R., discurso (20), 1993: 41-77 outro lado, a referéncia a matéria é correta, porque coma vimos € a matéria que falta no idealismo hegeliano (no seu momento mais alto) e no o objeto. Mary) retoma a tese do idealismo objetivo, a tese de um objeto constituido por formas (em tltima andlise por idéias objetivas). Isto ja mostra em que sentido q expressio “materialismo” € excessiva. Mas as idéias se inscrevem sempre na matéria, por onde se vé que nao se trata de idealismo. O chamado “materia lismo” de Marx é assim, de certo modo, “supressdo do materialismo”, isto & afirmagdo negada do materialismo. Nesse sentido, no que se refere A teori em sentido estrito, a primeira tese sobre Feuerbach deveria ser reescrita: diferenga entre o velho e o novo materialismo nao esté na passagem da matéri: como objeto 4 matéria como pratica, mas sim pela passagem da materialidad posta @ materialidade pressuposta, Q idealismo representa por sua vez negacao abstrata da mater’ lade©®), — Comparem-se essas observagée! sobre o “materialismo dialético” com o que escrevi em outro lugar sobre materialismo histérico!). Insisti sobre o fato de que as determinagées dita: superestruturais (direito, ideologia, Estado etc) “jd” estao na chamada infra: estrutura, mas estiio em forma pressuposta. Como mostram os textos do cap. 2 do livro I d’O Capital, a relagéo juridica j4 esté na relagio econémica, ma: nao como relagdo posta (pelo Estado). A passagem da chamada infra-estrutur A chamada superestrutura (denominagdes que nao so dialéticas porque supde! niveis € ndo momentos) nao é assim a do econémico ao juridico fous court, mi a do econémico posto e juridico pressuposto, ao econdmico pressuposto (ne gado) ¢ ao juridico posto. O problema da validade e justificagiio da expressit “materialismo histérico” é assim semelhante ao do “materialismo dialético” Ha uma diferenga: para o caso do materialismo dialético, a matéria es! Pressuposta, para o do “materialismo histérico”, a matéria (que & entiio economia — 0 econdmico na base sécio-econdmica) esté posta, O erro Mm leitura do “materialismo” de Marx nao esta neste tiltimo caso em supor que matéria estd posta quando ela esté pressuposta, mas em nao ver que a posiga da “matéria” coexiste com a pressuposic¢ao da forma. Entretanto, na medida e que a matéria posta coexiste assim com a forma pressuposta, a diferenga ent os dois casos nao é tao grande: se a “base econdmica” nao € imediatament negada, como a matéria no caso do “materialismo dialético”, ela é entretant Fausto, R., discurso (20), 1993: 41-77 51 “negante”. Ora, como o “negado”, embora de outro modo, o “negante” esta também afetado pelo seu contrario, Nesse sentido, também a expressio “mate- rialismo hist6rico” é excessiva. Finalmente, 0 problema do tempo. Num primeiro plano, ha paralelismo entre a relagdo com a matéria e a relagao com o tempo, ¢ 0 que foi dito de uma pode ser dito de outro”), Mas a questao do tempo tem de ser examinada na sua especificidade*, Para Hegel, 0 tempo € 0 ser-ai do conceito e exprime na exterioridade a negatividade deste“), Em Marx, se tem alguma coisa muito proxima disto. O problema do tempo passa também pela questao da nega- tividade, — Nem em Hegel nem em Marx h historicismo apesar de uma lenda tenaz que vem do althusserismo entre outros para o primeiro, ¢ da leitura historicista do marxismo para o tiltimo. De fato, em nenhum dos dois hd propriamente uma constituigdo temporal do conceito™). Mas nem Hegel nem Marx sao propriamente anti-historicistas\*®, As duas respostas se situam numa zona intermedidria, ou antes clas suprimem os dois extremos (mas entre outras taz6es porque isto vale para os dois autores, essa indicacao é insuficiente). A diferenga esta em alguma medida num certo privilégio que ganha em Marx a primeira negagdo. Esta afirmagdo contradiz aparentemente o que foi visto mais acima; insistimos sobre o papel da segunda negagao na construgao d’ O Capital. A auséncia dela na economia clissica caracteriza mesmo em parte a distancia entre a economia classica e a critica marxiana da economia politica. Nesse sentido é evidente que a dialética de Marx nao é estranha a segunda negagao e Mesmo mais do que isto: esta € um momento essencial da critica, Porém ha ao mesmo tempo um privilégio da primeira negacdo. Dir-se-ia que Marx articula 4 Segunda negagiio A primeira de uma forma que ndo é hegeliana. O privilégio “a primeira negagdo poderia ser mostrado se tomarmos como modelo a filosa- fia hegeliana do espirito. O espfrito objetivo € ai a segunda negagao, 0 espirito absoluto, que culmina com a filosofia (desenvolvida em forma pura como légica) é a segunda negagiio. Ora, tudo se passa como se em Marx o espirito absoluto (em particular a filosofia, isto é, a légica mas em outro sentido também a arte e a religifio) fosse lido no nivel do espirito objetivo, e nunca o Ultrapassasse®”), Porém no interior dessa inserigéo, se tém sem dtivida duas Regagbes, negagiio e negacio da negacéo. Ora, essa inscrigio do ‘espirito 52 Fausto, R., discurso (20), 1993: 41-77 absoluto no espirito objetivo redefine uma relagio com a finitude, e € através da finitude que o tempo aparece como pressuposto"®), “O espirito objetivo — escreve Hegel na terceira parte da Enciclopédia — é a Idéia absoluta, mas que é somente em si; na medida em que, através disto, ele esté sobre o terreno da finitude (auf dem Boden der Endlichkeit), a sua racionalidade efetiva nela) conserva 0 lado do aparecer externo””), A dialéitca de Marx est literalmente! sobre o solo da finitude, 0 que nao exclui que no registro deste solo se encontrem determinagées “infinita Assim como em Hegel, as determi- nagdes do espirito objetivo podem ser infinitas (mas permanece a diferengay em Hegel 0 espirito objetivo é apenas a primeira negagio). Que a dialética de Marx desenvolva a negagdo da negagao (a segunda negaco) no registro da primeira negagio, significa que ela conserva sempre uma relagdo coma finitude. Mas a relagao com a finitude é relagdo com o devit e no plano do objeto finitude e devir remetem a poténcia do tempo. Que o capital nao escape da finitude significa que a contradigao que ele contém acab; por se “dissolver” (ou antes acaba por dissolvé-lo), o que conduz ao Grund. Mas o Grund € aqui — pelo menos acaba sendo — 0 abisme e ndo apenas @ fundamenio; isto tanto no plano do discurso como no plano do objeto. E para os dois casos se deve dizer que o capital — entretanto andlogo do conceito 4 cai no movimento do devir, determinacdo da Iégica do ser‘*"), Ele passa do sel ao nada. E se no registro do discurso isto nao significa temporalizacio d conceito — se nao no sentido de que se constituiria assim uma feoria sobre @ destino do conceito (do capital) enquando conceita cujo pédlo objetivo se situ no tempo — no plano do objeto significa sim remporalizagao. O capital com objeto, o qual vai ao abismo, é devorado pela poténcia do tempo. A estruturd nao se dissolve apenas no devir, como no conceito enquanto determinagao do lado do sujeito, mas se dissolve num devir que encontra o tempo. (O capital jé existia “no meio do tempo” mas como uma idealidade objetiva que dominavé a poténcia do tempo.) Assim, no que se refere A relagiio com o tempo, é evident? a diferenga entre o capital e a Idéia. Por nao dominar de um modo absoluto 0 seu momento de finitude (porque a Idéia como totalidade também contém finitude), © capital esté sempre ameagado pelo devir, ¢ pelo seu correlat objetivo, o devir no tempo. A Idéia nao. Se ela volta ao devir, no sentido d

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