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Eric Laurent Campo FREUDIANO NO BRASIL ologao dirigida por Jacques Aan ¢ Judith alter Assessoria brasileira: Angelina Harari | A batalha do autismo Da clinica politica “Tradugo: Claudia Berliner QZAHAR ‘Tito origina Labia usione (Delacinque dl poicgue “Teadueosutorinada da primeira edo frances, pbliada ‘emsaera por Navacin, de Pass Fangs Copyright © 20m, Navrin/Le Champ feudien Paris Copyright d edgio em lingua portuguesa © 2004 Jonge Zaha Baio Lid, ‘a Margués 28. Vicente 99— | aagseoet Rlo de fair 35 el sass | fix aDanS-087 edtora@eahatcom br [ warwzaharcom be “Todos os dteitoe revervados A reprodogio no autorizada desta pblisago, no odo ‘ouem parte, constcu volaio de direitos sutras (Leto 698) Cras arualizaderespetznde o nove Acarde Ortogréfco da on Portugues Revisto: io Pali, Milena Vargas (Capa: Carolina Vie a Bras, Caalogago na publicato “Sindicato Nacional doe Reitore de Livt05 9) Lise seo ren, Brie _Abataha do asim nica police Laren ado Cla ia Besine. ed. Rode Jnr: Zahara (Campo Fevdiano no Bal) “Tadeo de: La baal de Pai Dela clinique la politique os 98 B31890-9 + Aumo. Tha. See Sumario Nota ao leitor brasileiro 9 por Marcus André Vieira ¢ Romulo Ferreira da Silva Prologo Por que a “batalha” do autismo? parts 1 A causa do autismo 3. Autismo e psicandlise 27 Paixdes 29 © sofsimento e a reclusio dos pais 20 Biol6gico ou psiquico, um falso debate 35, 2. Autismo e real: balizas para a pritica 36 Acstrutura autista 37 Nomeagdes 40 Guardar-se dos sortilégios do imaginario 43 ‘Oautismo, um nome do real 45 GozodoUm 49 Acoplamentos com 0 objeto autistico 51 Cireuitos do objeto 54 Subtrairo excesso 57 3. Os espectros do autismo 60 Uma presenga insistente 60 Causalidade biologica e difragio clinica 63 © autismo se tornou nome de qué? 65 Passes de magica 67 ‘A metafora quimica como “doenca da lingua” 70 Um espectro de testemunbos de autistas 72 O retorno do particular 76 Os sujeitos autistas, seus objetos e seu corpo 78 Borda de gozo 75 Foraclusio do furo 79 Clinica dos circuitos ¢ extragio do objeto 82 Do objeto sem forma a em-forma do objeto a 9 ‘Topologia do espaco pulsional 89 ‘O espaco autistae suas costuras 93 © furo sem borda e a presenga do duplo 08 - O trauma da lingua 202 Reiteragéo do Um 102 Fazer calar a balbiindia da lingua 106 O grito realizado [Reels] 130 Falat; um acontecimento de corpo uz Redugao dos equivocos e célculo da lingua 114 Aletra ea pratica entre varios uy Atalhos para aprendizagens singulares 18 Espagos de jogo paraabordaealetra 20 Os registros da letra 133 Instinciatronco e desespecalizaso 125 Osnésdotrauma 28 Que combate e por qual cause? 129 PARTE Crdnica de uma disfuncionalidade democratica 1. Educacdo ¢ aprendizagem 15 Os autistas contra a indiistria ABA-autismo 136 (Os autistas contra a educagéo comportamental 13 Aprender ndo & saber 146 2. Abusca desenfreada de provas up Antisma: epidemia ou estado “ordinatio” do sujeito? 50 Erréncias estatisticas 57 A incerteza e seus deménios autoritérios 59 3. Actise da zona DSM 162 Os sobtessaltos da clinica Os impasses do neurormulticulturalisma 66 “Todos doentes”, de quem a culpa? 168 Manipulagdes das massas categoriais 71 Conclusio Os lugares do saber 76 Notas 180 Referencias bibliogrificas 204 Agradecimentos 222 Nota ao leitor brasileiro Marcus Anpré Vieira Romuzo Feranina Da SiLva A batalha do autism, como o leitor descobritd, nao apenas 0 enfrentamento de atores do cendrio social francés. Brie Lau- ‘rent, com seu talento em destacar a um s6 tempo a pertinéncia clinica e a relevancia politica dos temas de que trata, acaba de demonstrar como a psicanilise esta em questo toda vez. que a singularidade estiver em vias de ser colocada debaixo do tapete da cultura, ‘© que temos de mais humano é a necessidade de fazer a vida excessiva que trazemos sempre conosco, muitas vezes perigosa, conviver e funcionar com a necesséria regulacao social dos de- sejos e dos gozos. Cada um sustenta a seu modo a arte de viver esse desafio. Nossa singularidade reside na maneira como se define a juncao entre esse gozo que nos habita ¢ as vias coleti- vvas de seu escoamento. Para cada um, esse cruzamento é tinico € distinto e mantém-se as custas de um trabalho continuo. (© autista realiza esse trabalho com pedra lascada e barro fofo. Esté em exterioridade com relacdo ao coletivo e lida com ele na estranheza de um marciano. Por isso, corre sempre 0 risco de ser destruido pela propria violencia do gozo que nao consegue escoar pelas vias comuns oferecidas pela cultura a rnés ~ esses modos convencionados de viver que chamamos humanidade. Como se de fora estivesse, mas ainda assim expe- rimentando, cria mecanismos de isolamento ¢ de defesa, mas também de cones © A batalha do autisme Facil cegar-se para a delicadeza desse trabalho, Basta acredi- tar que jé nasceriamos com um kit pronto para essa tarefa. Ele seria feito por nossos genes, por exemplo, que se incumbiriam de definir a direcdo correta estabelecida pela criagao. Sem- pre que as ages dessa concepcio de homem sobem na bolsa da cultura, 0 autista tende a ser tomado unicamente como portador de um déficit social, irreparvel. Poderia apenas ser treinado a adquirir capacidades, no importando que sentido las teriam para ele. Da mesma forma, quando a crenga na regulacio genética de nossas paixdes esté em destague, a psicanilise ¢ afastada do primeiro plano em proveito de protocolos de conduta. Pior, quando esses protocolos sio aparelhados por dados estatiticos, feitos para indicar e promover a todo instante a média, jamais © tinico, ela tenderé a ser considerada como uma falsa terapia De fato, ela jamais ter como fornecer as evidéncias quanti- tativas de seus efeitos sobre o trabalho de cada sujeito com relagio a singularidade — 0 que nao significa que no produza sblidos efeitos. Acescolha é simples: ou os aspectos iinicos de uma hist6- tia, ou seus dados universais. De fato, algumas apresentacoes, desse Outro so especificamente incompativeis com a singu- laridade. E 0 caso do tratamento estatistico das informagées, que, por pautar-se exclusivamente pelo universal, s6 aceitard tratamentos nele baseados. Nao é de estranhar a imposi¢ao da abordagem tinica, como ocorrido no Brasil, conforme veremos mais abaixo. Sabemos que a psicandlise nfo tem lugar em espagos tota- litarios. Assim foi desde 0 seu surgimento; a histéria do mo- vimento psicanalitico 0 demonstra. No mundo globalizado, [Nota ao leitor brasileiro o onde o capitalismo ¢ as falsas ciéncias imperam, vivemos algo diferente do que se pode notar no nazismo, no comunismo € mesmo nas atuais ditaduras religiosas. A atual sociedade, global e pretensamente calcada na liberdade de escolha, nos coloca a mereé do mercado, das pseudoverdades cientificas € do poder da midia. Quem mantém as revistas e congressos médicos? Quem esté or tris das pesquuisas médicas? Por que, cada vex mais, surge a necessidacle de que os médicos declarem “conilitos de interesse” quando divulgam seus trabalhos cientificos? © Estado, que po- deria ser 0 mediador nesse process, deixando, por exemplo, as Uuniversidades livres de tais investidas, ao contrario, submeze-se as falsas cigncias por usuftuirem dos beneficios do discurso de operatividade e objetividade em suas propagandas politicas. Como vemos, a batalha do autismo é, assim, igualmente a batatha pela diversidade de abordagens, Apenas nessa va- riedade o trabalho do sujeito pode ter lugar efetivo. Essa é a uta da psicandlise. A batalha do autismo € uma proposi¢ao de respeito a forma de ser de cada um, ‘A segunda parte do livro destaca os meandros desse embate no contexto francés. A fim de otimizar essa descrigao para o leitor brasileiro, somaram-se forgas. O talento editorial de Angelina Haratiidealizou uma montagem especifica do livro para o Brasil, ¢ 0 trabalho preciso de Pascale Fari nos deu a possibilidade de nada perder do estilo firme ¢ agradavel de Eric Laurent. Além disso, esta nota oferece um vislumbre da configuracéo propria que as coisas ganharam no Brasil. No dia 4 de setembro de 2012, foi publicado no Diério Oficial do Estado de Séo Paulo, a partir da Coordenadoria de Regides de Satide ~ Departamento Regional de Satide da 2 A batalha do autism Grande Sio Paulo, um Edital de Convocagao Péblica, cha- mando para credenciamento de “Instituigées Especializadas em Atendimento a Pacientes com Transtorno do Espectro Autista (TEA)”, para eventual celebracao de contrato ou con: vénio. O entéo secretério de Satide, Giovanni Guido Cerri, convocava instituigGes que estivessem aptas a receber pacien- tes com os seguintes diagnésticos, como especificados pelo Cédigo Internacional de Doengas ~ CID X: F84.0; F845 F84.4; F845; F848; F849. Os pacientes a serem atendidos necessitavam apresentar “laudo médico de especialista em neurologia ou psiquiatria, com titulo de especialista emitido por Associacéo de Especia- lidade e Associaco Médica Brasileira ou residéncia médica reconhecida pelo MEC, devidamente registrado no Conselho Regional de Medicina, atestando o diagnéstico de Transtorno do Espectro Autista (TEA)". (O detalhamento do atendimento aos pacientes demonstrava rigor em sua avaliagio inicial ¢ inclufa atendimentos individuais. Porém, na especificagéo da qualificagao técnica, exigia 0 compromisso do responsavel legal pela instituigdo de que o tratamento seguisse uma orientag3o sectéria — inadmissivel ~para a abordagem de tais pacientes, lancando mio de profis- sionais em fonoaudiologia com conhecimentos em linguagem pragmiatica e psicblogos com especialidade em terapia cogni- tivo-comportamental. Exigia um plano terapéutico que enfa- tizasse 0 desenvolvimento das “atividades de vida diéria, tais como: higiene, alimentacio, exercicios fisicos e lazer, de forma @ aumentar a interagdo social, comunicago e comportamento, visando a melhoria em sua socializacio, seu desenvolvimento psicossocial, autocuidado e autonomia’. Nota ao litor brasileiro B Mais constrangedora ainda era a exigéncia de que houvesse uma “declaraggo do responsivel legal de que utilizar méto- dos cognitivos-comportamentais validados na literatura cien- tifica, tais como PECS (Picture Exchange Communication System) - Sistema de Comunicagdo por Figures; ABA (Applied. Behavior Analysis) - Andlise do Comportamento Aplicada; TEACCH (Treatment and Education of Autistic and (Rela- ted} Communication Handicapped Children) - Tratamento € Educacao de Criancas Autistas {¢ Afins] com Desvantagem na Comunicagio.” Tal edital mobilizou toda uma comunidade de profissionais, da rea “psi” que se sentiu responsavel por fazer oposicéo a essa abordagem que tenta confinar os sujeitos com diagnéstico de TEA a.um problema meramente organico, ou carente de métodos pedagogicos para fins de adaptacao psicossocial (© Movimento Psicandlise, Autismo e Satide Publica (MPASP) deflagrou um trabalho epistémico, clinico e politico em torno do tema, envolvendo diversas instituiedes de psicandlise por todo o Brasil. Sao mais de cem delas ¢ centenas de profissionats inscritos nesse movimento. ‘A primeira conquista do MPASP foi a derrubada do famige- jo pablica que reuniu quantidade rado edital, a partir de peti suficiente de assinaturas a fim de promover o recuo da Secre- taria de Estado de Satide. Jornadas, artigos, revistas ¢ livros foram e esto sendo reali- zados a partir desse movimento, Audiéncias com autoridades responsaveis pelos rumos politicos do tratamento do autismo também esto ocorrendo, ¢ 0s frutos esto sendo colhidos. A Escola Brasileira de Psicandlise (EBP) vem participando arivamente do Movimento, sem medir esforcos para que os 4 A batatha do autismo sujeitos ditos portadores de TEA nao sejam negligenciados em suas subjetividades, No momento em que escrevemos, nada esté definido. Na Franca, um decreto tenta dar cunho nacional a imposigéo das, TCC (terapias cognitivo-comportamentais) como abordagem, oficial, assim como em Sao Paulo, mas toda a comunidade “psi” mobiliza-se contra isso. Estaremos sempre buscando fazer com que fendmenos complexos como o autismo sejam tratados como 0 que efetivamente sio: fendmenos humanos, € ndo de cérebros sem vida. Por isso mesmo, altamente delicados, sutis, € refinados. Estamos certos de que 0 leitor brasileiro poderé tanto apreciar 0 essencial do contexto francés quanto ter os subsidios necessérios para formar sua concepgo ¢ tomar po- siges proprias nesse momento crucial em que a luta contra um modo precioso de viver o humano esta em jogo, no Brasil eno mundo, Janeiro de 2014 Bxiste saber no real, Ainda que, este, nio seja 0 analista que tem de alojé-lo, mas o cientista. (© analista aloja um outro saber, num outro lugar, mas que deve levar em conta o saber no real Jacques Lacan, Nota italiana Prélogo Por que a “batalha” do autismo? ‘Twpo sz pRECIPrTOU quando o autismo recebeu, na Franca, 0 rétulo de “Grande Causa Nacional”, em janeiro de 20:2. Em vez de reunir os espiritos em torno de uma causa justa, uma ‘campanha midiética virulenta desencadeou fortes enfrenta- mentos na esfera piiblica, Lembremos também que os termos “batalha” ¢ luta ressur- gem com insisténcia nos depoimentos que pais de criancas ‘ow adolescentes autistas do sobre seu cotidiano. “De manha, sabemos que o dia seré uma luta, com peripécias previsiveis",? escrevem os pais da joven Garance. Nao estéo sozinhos. Ter acesso aos direitos associados ao reconhecimento do handicap do filho deles é uma pista de combate, com muiltiplos obsticu los, visiveis e invisiveis. Os pais precisam, ademais, “aprender a “haver-se com isso’ [savoir y faite] para que as diferentes institui «Ses administrativas, educativas e terapéuticas, .. colaborem com os cuidados da crianca”? A identificacio ¢ 0 “diagnéstico” do autismo tampouco ces- sam de gerar polémicas. E resta s mpre a questo das cau: sas, que alimenta discussdes apaixonadas entre teses muito distantes umas das outras. As discérdias nao dizem respeito apenas ao peso relativo dos fatores inatos e ambientais no de- sencadeamento do autismo; o que esté em jogo é localizar 0 fator-chave. Trata-se de uma causa genética ou de uma causa ” 8 A batalha do autiome epigenética que surge durante a gravidez? De uma anomalia imunologica? De uma alteracZo no desenvolvimento dos genes da linguagem, ou mesmo do cérebro em geral? De uma reacio a produtos utilizados em vacinas? Estara ligado 4 obesidade das mics, & idade dos pais, ou ento ao uso de antidepressivos? Todas essas sio hipéteses sucessivamente evocadas, avaliadas, mensuradas em estudos estatisticos e que no obtém o assen- timento geral. Fazemos parte de uma geracao de psicanalistas que ja se livrou hé um bom tempo da absurda hipétese de que 0 autismo seria culpa dos pais e, especialmente, das mies. Alid quando Leo Kanner (que nao era psicanalista, mas psiquiatra) isolou, em 1943, a sintomatologia autista, ele logo distinguiu o registro da causa biolégica, por descobrir, ¢ 0 das dificuldades ‘que a crianga coloca para os pais. Nao punha esses dois regis- tr0s no mesmo plano. Os psicanalistas, que se interessaram, pelos sujeitos autistas a partir dos anos 1950, tampouco. Desde enti, varios niveis de causalidade foram especificados. Con- tudo, trata-se de fato de uma batalha para definir ¢ acolher a perturbagio da relacio com o Outro que se impée no autismo, diferente em cada sujeito, embora apresente homologias de estrutura, Posto isso, é preciso uma mesma resposta para to- dos ou, a0 contrério, respostas diferenciadas, adaptadas a cada ‘caso? Que fazer com os objetos de que esses sujeitos se cercam sem paras? Considera-se que sejam tracos que fogem a norma, fendmenos nocivos a erradicar, ou um apoio para o sujeito € uma forma de invencao? Como explicar seu uso estranho, suficientemente tipico para que se possa falar de objeto “autis- tico"? E como conciliar essa regularidade, clinicamente obser- vavel, com o fato de que esse objeto constitui-se, ao mesmo Prélego 9 ‘tempo, a partir das contingéncias da historia de cada um? Nao hé nenhum desses pontos que no desencadeie uma batalha de interprecacées. Last but not least; falar da batalha do autismo remete a0 modo como os partidarios de uma linha cientificista querem instrumentalizar os resultados obtidos pela biologia, pela genética ~ ¢ as hipéteses que neles se inspiram no tocante as causas do autismo — para invalicar qualquer abordagem relacional inspirada na psicanslise. Esse grupo de pressio, reunido em torno de associagSes com uma ideologia radi- cal, prega uma ruptura completa nfo s6 com a abordagem relacional, mas também com a dimensao dos cuidados. Em nome da crenca de que o autismo seria um “transtorno” pu: ramente cognitivo, somente os métodos educativos centrados na aprendizagem de funcionamentos elementares seriam ace taveis. Veremos as consequéncias desastrosas que esse estra- no conluio entre as posigdes cientificas e os partidatios da exclusividade do condicionamento comportamental pode ter ata 0s sujeitos autistas, submetidos a um método coercitivo por vezes cruel. ‘Tanto para as pessoas autistas quanto para seus pais, é cru- cial manter uma pluralidade de abordagens, bem como in- terlocutores oriundos de varios horizontes. A pedra angular dessa batalha consiste em permitir que cada crianca elabore, com seus pais, um caminho proprio, ¢ prossiga nele na idade adulta. B isso levando em consideragao a incrivel variedade de sintomas que o denominado “espectro do autismo” abarca. ‘Trata-se, pois, de uma batalha pelo respeito a diversidade. 20 A atalha do autismo Essa Uma BATALHA que transcorre em muitas temporalida. des. Em seu famoso preficio a primeira edigo de sua grande obra sobre O Mediternineo..., Fernand Braudel distinguia par- ticularmente a “hist6ria lentamente ritmada”? da “historia factual”, de ritmo curto. Cada uma das duas partes do pre- sente livro obedece a uma temporalidade propria. Assim, a da primeira parte, relativa A clinica psicanalitica do autismo, percorre mais de seis décadas. Tomando como referéncia 0 ‘momento em que a categoria ¢ isolada nos anos 1940, situa-se numa temporalidade longa, em contraste com a da segunda arte, que incide sobre um periodo curto de cinco meses, no qual debates virulentos se cristalizaram em torno de re comendacdes emitidas pela burocracia sanitdria. Embora as, duas partes ndo se insctevam numa relagio de aplicagio re- ciproca, articulam-se mediante um vinculo légico: da clinica 4 politica e retorno, Escounier “A causa po atrriswo” como titulo da primeira parte € colocar a énfase no autismo como causa digna de ser defen- dida no espaco pablico, inclusive na justiga, tal como a causa publica ou a causa popular, a da liberdade ou a da religiao. Nio se trataré, portanto, de procurar a causa primeira, a ori gem ~ por esses lados, contam-se muitos causos.. mas de entender, antes, o que pode orientar a abordagem psicanalitica dos autistas. Work in progress, essa pesquisa clinica se apoia em ditos ¢ escritos: os dos préprios sujeitos autistas, que hoje ja articipam do debate, e os dos psicanalistas, que expéem os resultados de seu trabalho. A causa do autismo é, portanto, tudo 0 que possa ser enunciado nesse campo clinico. Thastra- Prélogo a remos a conveniéncia da abordagem psicanalitica do autismo Datalhando contra os que a recusam. ‘Ainda que, evidentemente, essa clfnica néo tenha cessado de ‘evoluir desde os trabalhos pioneiros dos anos 1950 € 1960, nfo adotei uma abordagem histérica linear, optando antes por um dilogo de varias vozes, uma conversa com analistas que expu- seram a evolugao de sua abordagem, O exemplo de Rosine € Robert Lefort € paradigmitico nesse sentido, pois, desde o final dos anos 1950 até o comeco do século XXI, eles foram cercando cada vez mais 0 que seria uma “estrutura autista’. Em torno de que pontos nodais se articula a abordagem psicanalitica do autismo 4 luz dos ensinamentos de Lacan? isso que permitiré detectar pontos de referéncia essenciais para a pratica fazendo uso da categoria do “real”. ‘A abordagem psicanalitica nunca € a de uma “teoria” que se desenvolve independentemente de uma pratica. Tampouco ‘uma "especialidade” a margem ou isolada das outras discipli- nas clinicas. Hoje, o autismo mobiliza praticamente todos os ramos da biologia, da medicina, da psicologia, da educagéo, das teorias da aprendizagem, bem como a psicanilise em suas diferentes orientagées. Uma vez inclufda entre os “transtomos invasivos do desenvolvimento” (TID), a categoria “autismo”, inicialmente delimitada por um pequeno mimeo de tacos bastante restritos, foi abarcando um nitmero cada vez maior ¢ diverso de casos. Sem considerar as dificuldades inerentes & ta refa classificat6ria, as abordagens clinicas viramse abaladas por ssa extensio aparentemente ilimitada. O paradoxo das hipéte- ses estritamente bioldgicas que Fandamentavam a categoria dos "TID, baseada na vontade de promover uma causalidade tinica, & que a variedade de casos acaba abrigando 4 reintrodncao da 22 A bacatha do aucismo irredutivel particularidade dos sujeitos. Teremos, portanto, ba- ses firmes para participar desses debates interdisciplinares. Uma LonGa ExPERTaNGIA cuinica ¢ trabalhos regularmente publicados nos tiltimos trinta anos me autorizam a fazer deste livro uma pontuacio, um ponto de basta nessas elaboracdes. Nele poderio ser encontradas pistas e proposigdes novas, apoia- das em casos clinicos ¢ seu ensinamento sempre vivificante. Suas coordenadas, detalhadas de modo muito concreto, res- saltam a intricacéo tedrica ¢ clinica desses desenvolvimentos, Descobriremos a topologia particular do espaco proprio do sujeito autista a partir das especificidades do objeto ao qual est apegado. O objeto deve ser entendido aqui como o que resta do ser vivo quando ele nao esté articulado 4 linguagem, No autismo, os trajetos pulsionais parecem estar ausentes. Ao me intetrogar sobre o que aparece no lugar deles, propus uma hipétese relativa aos circuitos do objeto articulados 20 corpo por bordas de gozo. No correr desses anos, a elucidagao do Ultimo ensino de Lacan por Jacques-Alain Miller me permit precisar o que é um corpo quando os furos que o constituem funcionam num espaco subjetivo que, por sua vez, é “sem furo’: Invadido por uma excitagao, 0 sujeito nao consegue, por esse motivo, esvazié-la em um lugar: ele mesmo “se” esvazia. ‘Tanto pode ndo sentir uma sensago quanto ser transbordado por ela. Nao poder dispor de um corpo articulado a furos exige ccosturas particulares do espago, bem como adesdes a duplos re- alizados, que fazem supléncia & auséncia de imagem do corpo. 86 depois de situada essa relaedo singular com o corpo é que se pode retomar a questo do siléncio do autista, as Prologo cy vezes entrecortado de vocalizacies e de frases isoladas, ou gritadas de forma repetitiva. Essas duas vertentes nos convi dam a conceber que, para os sujeitos autistas, falar tem a ver com um acontecimento do corpo: de seu corpo eles extraem linguagem, & maneira de outros objetos de que no podem se separar. Falar no é um ato cognitivo, ¢ um arrancamento real. 0 ‘grito real-lizado (réelisé] do sujeito autista € um esforco para fa zer calar 0s equivocos infernais da lingua, em que uma palavra remete sempre a outra. A partir daf € que ressituo a exigén- cia de “mesmidade”, de sameness, principal trago da estrurura antista desde sua identificagéo por Kanner. Esse mesmo no remete estrutura articulada da linguagem, ele indexa a perda sofrida pelo vivente ao funcionamento do que para ele faz «as vezes de corpo. Veremos também como, segundo formas institucionais diversas, a variedade das dimensées da letra, em sua articulacio com 0 corpo, abre perspectivas para tratar a repetigao insuportavel das estereotipias. A SEGUNDA PARTE, por sua Vez, estd inserida num tempo curto, ritmado pela sucesso dos acontecimentos atuais. Terd 0 au- tismo se tornado o revelador das tendéncias disfuncionais de ‘uma democracia sobrecarregada pelo excesso de impasses bu- roctaticos e técnicos, bem como pela pressio de certos grupos de usuarios do sistema de satide piblica? Que forma adota o marketing politico no nosso campo? Que papel desempenha nas decisdes dos poderes puiblicos, confron- tados com a grande defasagem entre os recursos financeiros atualmente disponiveis ¢ aqueles que seriam necessarios? 24 A batatha do auticoo [Nese contexto critico, a busca de uma solugo tnica é uma tentagao forte, Os métodos comportamentais, bascados na aprendizagem repetitiva de condutas predefinidas, encarnam especialmente bem o engodo que o model constitui. O canéter autoritario e reducionista dessa aborda- gem educativa é denunciado, em particular, pelos “autistas de alto nivel”, que manifestam sua hostilidade contra a “indistria ABA-autismo” Suas preocupacdes legitimas levantam questées fundamentais: 0 que é aprender? O que é saber? A abordagem psicanalitica do autismo restitui toda a complexidade a essas erguntas que os autistas nos fazem. Elas contém, com efeito, uma demanda, a de que enfrentemos a anguistia da incerteza para néo cair nas tentagbes autoritérias do modelo tinico. Além do impasse do omnicomportamentalismo, “a epide- mia de autismo” revela a crise atual da ferramenta globalizada da clinica psiquiétrica e neurolégica, o DSM? As manipulacées bbrutais que regem a definicio dos “transtornos” ¢ das categorias ‘no Manual diagndstico¢ estatistico globalizado tornam evidentes artificios demais para que nao nos interroguemos sobre o que exatamente essa ferramenta mede. A progressio epidémica do diagnéstico de autismo foi um dos catalisadores do mal-estar nas classificagBes da clinica empirica e biologica do DSM. A moeda epidemiologica sai desvalorizada e seu uso torna-se mais dificil do que previsto. £ no cerne desse embaraco da psiquiatria que a abordagem psicanalitica, centrada na clinica do caso, tem chances de se fazer ouvir. Trata-se, certamente, de abrir caminho para novas batalhas. 8 de setembro de 2012 ‘problema solucio” PARTE I A causa do autismo 4, Autismo e psicandlise Nos xrimos Quinze awos, o autismo nao cessou de afirmar sua presenca, a ponto de suplantar as “psicoses infantis” no campo dos “transtornos invasives” da crianga. Aut entio, essa sindrome clinica era um diagnéstico raro, depois de ter sido isolada de maneica concomitante nos anos 1940 por Leo Kan- ner! e Hans Asperger. O primeiro, judeu da Galicia como Sigmund Freud, formou-se médico em Berlim ¢ emigrou nos anos 1920 para os Estados Unidos, onde se tornou psiquiatra € diretor da clinica infantil da Universidade Johns Hopkins, em Baltimore. O segundo, descrito como uma crianca soli- taria,* permaneceu na Austria, onde se tornou pediatra nos anos 1930 e depois professor emérito em 1977; chamava seus Jovens pacientes de “seus pequenos professores" -talvez tenha minimizado a “deficiéncia” deles para proteg@-Jos dos nazistas? “No comeco”, como destaca Ian Hacking, “o autismo es- tava associado 4 esquizofrenia infantil. Esses dois conceitos Journal of Autism and Childhood Schi- zophrenia, fundado em 1971, tornou-se o Journal of Autism and Developmental Disorders.* No entanto, desde o final dos anos 1960, “os pais pressionaram a favor do diagnéstico de autismo, ois era a tnica forma de distirbio de aprendizagem que nao estava classificada como ‘ineducével’ na Gra-Bretanha’”? O estatuto de deficiéncia, distinto do de doenca, permitiu aos pais reivindicar alguns direitos, entre os quais 0 de ter acesso ‘a instituigdes de educacio especializada, Nos Estados Unidos, se separaram em 1979; a 28 A causa do autism o retardo mental da irma de John Kennedy também favore- ceu a sensibilizacao dos poderes piblicos no tocante a esses direitos. Na Franca, nessa mesma perspectiva “social”, alguns psiquiatras desejam promover uma clinica do autismo e dos “transtornos invasivos do desenvolvimento” (TID) radical- mente separada da psicose infantil ‘Tendo se tornado o diagnéstico preferencial em detrimento das psicoses infantis,” 0 autismo se espalhou feito epidemia “$6 na California, a quantidade de criancas que recebem cuida- dos assistenciais especiais em razao de seu autismo triplicou de 1987 a 1998 e dobrou nos quatro anos seguintes. ... ssa onda deixou clara a urgéncia das reivindicagées por mais pesquisas e mais créditos federais para educar as criancas autistas.”* As dificuldades para isolar os assim denominados “fortes compo- nentes" poligenéticos do autismo ou para precisar o papel das vacinas na difustio da epidemia no detém os partidérios do ‘modelo estritamente cientifico. A ineficécia dos medicamentos, © especialmente dos neurolépticos, sobre a patologia autista torna, sem diivida, mais necessério o aniincio de progressos decisivos nas pesquisas genéticas ou ambientais ~ ainda que apenas para diminuir a angiistia dos pais e dos familiares de sujeitos autistas. Sao estas, com efeito, as vias atualmente privilegiadas nessa clinica do autismo reduzida ao contexto dos TID; sao desen- volvidas no DSM? e na abordagem contemporanea, que nio quer considerar, no autismo, outras causas sendo as biolégicas, _genéticas ou ambientais. Contudo, limitar 0 registro da causa- lidade & oposigao “causalidade genética/causalidade ambiental” revela-se to dificil no que concerne ao autismo quanto o foi para a psicose ‘Autismo epsicandlise 29 Paixées De fato, nao é simples eliminar da questo do autismo o que diz respeito a seus elementos comuns com a paranoia —como dizem Rosine e Robert Lefort° A historia da fundacio pri vada Autism Speaks nos Estados Unidos, bem como a da fa- milia Wright, mostram isso e fazem aparecer 0 que esté em jogo de uma maneira estranha, A fundacio foi criada em 2005 por Bob Wright, presidente da cadeia de televiséo NBC e dos estiidios Universal, apds 0 nascimento de seu neto diagnos- ticado como autista, Rapi viram para financiar, entre 2005 € 2007, pesquisas testando diferentes hipéteses: a hipétese genética, a do envenenamento lamente recolhew fundos que ser por um merciirio sintético presente nas vacinas, e outra, de duplo mecanismo, segundo a qual um gene poderia ser ati vado por merctirio ou por outras neurotoxinas. Os fundos sio consideraveis: 11,5 milhdes de délares em bolsas para as pesquisas genéticas e 4,5 milhdes de délares para as pesquisas ligadas aos ditos fatores ambientais. A verificacao das diferentes hipéteses provoca uma cisfo na familia, Como o neto de Bob e Suzanne Wright nao responde aos métodos comportamentais, Katie, a mae, busca uma tera- pia eficaz para o filho e acredita firmemente nas virtudes de uma purificagdo pela dieta ¢ pela eliminagao dos metais do corpo da crianca, Apoiando as pesquisas atipicas do autor de tum livro intitulado Evidence of Harm. Mercury in Vaccines and the Autism Epidemic Katie Wright acusa os pais de s6 confiarem em estratégias que fracassaram e pede que se retirem em prol de uma nova geracfo, a tinica que poderia ter “chances de fazer algo diferente com todo esse dinheiro” Em junho de 2007, 0s x0 A causa do autism avés tomam distincia em relagdo &s posigGes virulentas da filha. Esta os acusa de atacé-la pessoalmente. Como se vé, a busca da causa nao é tarefa simples, desperta paixes e, entéo, nao é impensavel que tragos persecutérios se revelem. Antes da recente campanha para que 0 autismo obtenha na Franca o réculo de “Grande Causa Nacional”, Michel Grollier"* ressaltava que, desde a “Circular de 8 de marco de 2005 rela- tiva & politica de atencZo a pessoas afetadas de autismo ¢ de transtornos invasivos do desenvolvimento”, as autoridades de satide, submetidas As presses contraditérias das associa- Ges de pais, eram menos prudentes que os especialistas das neurociéneias sobre as causas da chamada “deficiéncia autis- tica” {handicap autistique]. Com efeito, essa circular afirma 0 seguinte: "Suas causas provavelmente decorrem de processos complexos, em que se comprovou a intervengao de miltiplos fatores genéticos em que diversos fatores ambientais pode- iam estar implicados. As antigas teses sobre uma psicogénese exclusiva do autismo, que tiveram 0 mérito de chamar a aten- do para as pessoas autistas, mas que aumentaram gravemente 0 softimento dos pais, tém de ser ¢ hoje sdo amplamente des- cartadas.” A partir daf, a prioridade € educar, acompanhar a insergdo ¢ “limitar consideravelmente as consequéncias [do sautismo e dos outros TID] para a pessoa e para seus préximos' softimento e a reclusio dos pais (Os pais fica frequentemente s6s diante da deficiéncia do filho. Podem As vezes experimentar um sentiment de abandono, que os leva a fazer do filho “a causa” de sua vida ea militar a favor Autism e psicandlise a de seus direitos. O terceiro tomna-se, ento, puramente externo, reduzindo-se a ser aquele junto a quem cabe reivindicar mais direitos e mais cuidados. Nesses tempos de pentiria, essa é uma situagdo dificil de suportar. Marcel Hérault, presidente da fe- deracio Sésame Autisme, primeira associacio francesa de pais de criancas ¢ adultos autistas, que refine um néimero muito grande de familias, destaca: “A situago é mais dramética do que hé alguns anos, pois os recursos destinados & psiquiatria infantil diminuiram, embora ela se ocupe de uma quantidade cada vez maior de patologias. Dez anos atris, a maioria das criangas autistas chegava a receber aten¢o em tempo integral; hoje, a atencio é, no melhor dos casos, de tempo parcial.” E not6rio que as instituigGes abertas para as criangas autistas na Bélgica suportam uma parte da carga ~ quase 3 mil franceses sio atendidos ali, Nossos colegas belgas de orientacao laca- niana sabem bem disso, pois acolhem algumas dessas criangas, sejana Antenne 110, seja nos diversos dispositivos do Courtil.'® Nos Estados Unidos e na Inglaterra, os partidirios das te- rapias comportamentais ¢ educativas propéem mobilizar os ais € as criancas num esforgo intensivo e sem descanso, exi- _gindo o investimento maximo de cada um tanto financeiro quanto relacional, ¢ em todos os momentos do dia. Apesar da delegacio parcial aos “profissionais’, educadores comporta- ‘mentais, essa tensio chega a levar os pais 4 exaustio, Prova disso é uma série de dramas recentes, como aquele ocorrido em 22 de abril de 2006, em Hull, Inglaterra: “Alison Davies ¢ seu filho de doze anos, Ryan, mataram-se atirando-se de uma Ponte no rio Humber, no que foi um aparente homicidio- suicidio.""7 Em 14 de maio do mesmo ano, em Albany, no ‘Oregon, “Christophe DeGroot, dezenove anos, ficou preso R A causa do autismo dentro de sew apartamento em chamas. Morreu num hos- pital de Portland cinco dias depois e seus pais so acusados de homicidio por terem-no deixado sozinho trancado. No mesmo domingo de maio, em Morton, Illinoi Karen McCarron reconheceu perante a policia ter, no dia anterior, asfixiado sua filha de trés anos, Katherine, com um, saco plastico de lixo.”* Esses casos chamaram a atencao de Cammie McGovern, ela mesma mie de uma crianga autista, pois esses pais, ¢ so- bretudo as mies, foram defendidos pelos vizinhos, que ressal- tavam seu amor heroico pelos filos doentes. Se a autora Thes de destaque foi para que outros pais nio tivessem esperancas tao grandes que, em seguida, pudessem levé-los a esses ex- a doutora tremos. f efetivamente 0 caso de dizer que, nesses casos, a ctianga realiza 0 objeto fantasistico, como indicava Jacques "A crianga aliena em si ‘qualquer acesso possivel da mie a sua propria verdade, dando- Ihe corpo, existéncia e até a exigéncia de ser protegida.”” A pristo domiciliar na identidade “mae de crianca autista” ndio é apenas uma oportunidade de empowerment, de assumir a responsabilidade e o poder sobre 0 proprio destino; também pode levar a uma reclusio deletéria.? Nas sociedades em que reina 0 individualismo democrético, essa é uma identificacao poderosa, geradora de populagées definidas como portadoras de reivindicagdes que os poderes piblicos tém de levar em conta em seu conjunto, Estes tiimos poderdo, entéo, arbitrar melhor a alocagdo de recursos escassos. Nesse sentido, essas novas identificag6es centradas nas “deficiéncias” prolongam Lacan em sua “Nota sobre a crianga’: as modalidades de gestio das populacdes descritas por Michel Foncanir em relagio ao século XX | Autismo e psicandlise 2 Ao contrério do que afirma a Circular de 2005, a psicandlise nao “culpabilizou os pats”. Pois, para isso, ela nfo seria neces- séria. A psicanlise permite, antes, desculpabilizar 0s sujeitos. O aforismo de Freud™ segundo o qual educar é impossivel ja ia nessa direcdo, Esbravejar contra 0 erro que supostamente € tratar autismo pela psicandlise ~€ isso, em nome dos supos- tos determinantes genéticos ~ nfo é menos errénco. Biologico ou psiquico, um falso debate Um sujeito nao cessa de ser um sujeito, mesmo que seu corpo seja “deficiente”. Convém adaptar a psicandlise a seu caso - 0 que nfo consiste em proclamar a psicogénese contra a soma- togénese. A gravidez e/ou o parto dificeis, uma doenca gené- tica, um traumatismo somético podem produzit num sujeito sequelas clinicas quanto & assungao de seu corpo e/ou ao seu “dominio motor” e provocar um deixar largado, uma impos- sibilidade de apelo efetivo ao Outro, levando-o as vezes a re- jeisio do Outro, Esses dados, inchuindo os eventuais dados Diol6gicos, fazem parte do contexto da aplicacao da psicandlise, no caso a caso. O fato de haver algo de biologico em jogo nao exclui a particularidade do espaco de constituigao do sujeito como ser falante, Nesse sentido, como nota Lacan, a psicané- lise nao supde uma psicogénese*? das doencas mentais. Ela firma, em contrapartida, a importincia do corpo para todo ser falante, para todo falasser parasitado pela linguagem, o que é bem diferente. A psicandlise, na sua aplicacdo ao autismo, nao depende das hipéteses etioldgicas sobre o seu fandamento onginico. O mesmo vale para as técnicas comportamentais Ma Acausa do autismo como nota Chloe Silverman em sua historia do autismo: ela destaca que a forga dos programas educativos inspirados nos métodos comportamentais foi permitir a seus autores, a des- peito da variedade de suas proposigées, “nao evitar mencio: nar, deliberadamente, hipéteses neurolégicas ou psicolégicas do autismo, sem contudo depender delas diretamente” Nos tampouco evitaremos evocar os debates etiolégicos na biolo- gia do autismo. Mas nfo dependemos dos resultados dessas controvérsias para expor nossas proposicées. Instituigées terapéuticas, orientadas pela psicandlise, espe- cialmente pela psicanélise lacaniana, acolhem criancas autistas na Europa, Jé mencionamos a Antenne 110 e 0 Courtil na Bél- gica. Entre as instituig6es de orientacdo lacaniana que recebem nna Franga crian: citemos o Centre Thérapeutique et de Recherche de Nonette, em Auvergne, os hospitais-dia de Podensac, Vile Verte e La Demi-Lune, na regio de Bordeaux, eo hospital-dia de Auber- villiers, em Seine-Saint-Denis. Essas instituigGes francesas € s ¢ adolescentes, e particularmente autistas, belgas esto filiadas ao Réseau International des Institutions Infantiles (RI) [Rede Internacional das Instituicées Infantis} do Campo Freudiano+ Blas prestam conta de seu trabalho regularmente, tanto de um ponto de vista clinico teérico quanto administrative e financeiro. ‘Também & preciso dizer 0 quanto pais de criangas autistas, em particular as mies, puderam encontrar apoio nurna anélise para nao se verem sozinhos num combate exaustivo por hipo- téticos direitos futures. Esses pats nao so apenas “acompanha- dos" a titulo de pais: a anélise deles é sobretudo o lugar onde podem elaborar sua propria verdade subjetiva, para além da infelicidade que os aflige. Hé outras formas de desculpabilizar Autismo epsicandlise além do universal da ciéncia. B possivel reconhecer a particu: laridade de um softimento sem fazer dele uma identificagio comunitaria ou anulé-lo em fungio de uma causa “natural” sem referéncia ao falasser. Este livro tratard do lugar da psicandlise na “epidemia” con- tempor.inea de autismo. 2. Autismo e real: balizas para a pratica A quustio quz “a epidemia de autismo” contemporiinea co- loca para a psicandlise ndo parou de ser reformulada a medida que 0 contexto do discurso clinico sobre o autismo evoluia. O presente capitulo delineia os fundamentos de nossa abordagem psicanalitica do autismo e postula seus referenciais clinicos € conceituais, As miltiplas facetas abordadas nessa visio pa- nordimica sero retomadas ¢ examinadas detalhadamente nos, pre: Comecaremos acompanhando os passos dados na aborda gem dessa clinica por Rosine ¢ Robert Lefort, pioneiros na aplicacdo da psicandlise aos casos de autismo e de psicose grave na crianga depois da Segunda Guerra Mundial Enquanto prosseguia sua andlise com Jacques Lacan, Rosine Lefort empenhou-se em inventar uma abordagem terapéutica inovadora das criangas acolhidas no orfanato Parent-de-Rosan. Aquele pequeno dispositivo, que levava o nome de seu mecenas fundador, dependia na época do Servigo Social piblico. Acolhia todo tipo de casos de criangas drfis, traumatizadas, abando- cimos capitulos, nadas propria sorte ¢ a patologias mal diferenciadas, que a guerra deixara no seu rastro. Quase trinta anos depois de ter realizado esses tratamen- tos, e num didlogo constante com aquele que se tornara seu marido, Robert Lefort, Rosine publicou suas anotagées reco- Ibidas no dia a dia, Juntos, eles foram diferenciando, pouco a pouco € numa abordagem sempre nova, o que, nessa clinica, 36 A.isma e rea: balizas para a prética u concerne A psicose € o que concerne ao autismo, Para exporem seu verdadeiro work in progress, guiaram-se pela consideragio cada vez mais estrita da categoria do real no ensino de Lacan, das consequéncias que ela implica na prética Aestrutura autista Robert Lefort, psiquiatra infantil e psicanalista apaixonado, sempre quis aplicar os ensinamentos da psicandlise &s crian as psicéticas em contextos institucionais adaptados. Para ele, a crianga, e sobretudo a crianga psicética, nfo devia ser abor- dada somente a partir do imaginario, ao que convidavam as técnicas ltidicas, muito difundidas. Propunha-se a abordé-la pelo enodamento particular do simbélico e do real. © final dos anos 1960 é propicio para as experiéncias institu- cionais. Robert Lefort cria, em setembro de 1969, com Maud Mannoni, a ficole Expérimentale de Bonneuil-sur-Marne, con cebida segundo o modelo da “instituicdo estilhacada’”, Ini de- senvolver ali os ensinamentos que o trabalho clinico de Rosine Ihe deu a partir dos anos 1950. Com o nome de instituigo est: thagada, o projeto deles era criar uma institui¢io que acolhesse ctiangas em dificuldade, modificando os principios da psicote rapia institucional. Em vez de colocar a énfase na instituigio como garantia do enxerto de uma ordem simbélica por meio de suas regras, suas regularidades, sua “evocacio da lei”, tra: tava-se de confiar no acontecimento imprevisto, contingente, o fora da norma, “Em vez de oferecer permanéncia, 0 disposi- tivo da instituicdo oferece, tendo a permanéncia como fundo, aberturas para o exterior.”! Aquilo para que a instituicio tem 8 Accausa do autisme de estar atenta é para o encontro com o novo. E ¢ justamente Porque esse encontro pode ser perigoso ou doloroso para um sujeito que a instituigao deve ser concebida, sobretudo, como um “lugar de retiro” Nao havia epidemia de autismo quando Rosine Lefort e seu marido comecaram a centrar seu interesse no que Ihes pareceu, ‘num primeiro momento, uma posi¢ao subjetiva no quadro das Psicoses infantis.? que mais me impressionou nos Lefort foi © passo adiante que eles deram e mantiveram até o fim de sua transmissdo, gracas a sua orientaco para o real. Essa orien- tacio ficou evidente desde a publicagdo de seu primeiro livro, intitulado Naissance de UAutve,? que marcou época. A audacia do livro foi fazer entender de uma maneira nova as conse. quéncias da presenga do simbélico no mundo do sujeito, 0 simbélico “sempre jé ai”. O Outro pode “estar at” e, 20 mesmo tempo, nio ter existéncia para um sujeito. £ designado, entio, como “o Outro que nfo existe”. As criancas de que os Lefort falavam em sua obra ~ Nadia e Marie Francoise ~ demonstra- vam de mancira propria os paradoxos do Outro a que estavam submetidas. Cada um desses sujeitos “ensina aos autores ¢ a seus leitores o que acontece ‘quando nfio hi Outro’ e quais so nossos fundamentos por estarmos submetidos a linguagem'"* (Os Lefort mantiveram o paseo que deram & medida que a lei tura nova {de novo}, por J-A. Miller, do tltimo ensino de Lacan, renovava a abordagem das modalidades de enodamento entre real, simbélico e imaginério, Mantiveram-no em sua concep- sao da psicanilise em geral, na variagio de seus comentérios clinicos, sempre surpreendentes, que desmontava qualquer forma de classificagio rigida. Mantiveram-no ao captar o que, no discurso contemporaneo, viria a se tomar o significante sob Autism e reals balizas para a pritica 39 gual um outro real da psicose viria a ser abordado: o autism. Anteciparam, assim, o sucesso desse significante, que hoje de- senha, de forma epidémica, um novo paradigma do sofrimento siquico ~ chegando-se até a fazer dele um estatuto “outro” do sujeito, que, como a escolha do "géneto”, j4 ndo pertence 20 ‘campo da psicopatologia. Serd que 0 desejo de se antecipar ao acontecimento € de manter essa posicdo de enunciagio foi transmitide a Ro- sine por sua mae, a incrivel jornalista Genevieve Tabouis (1892-1985), que iniciava cada uma de suas crénicas com “Amanha vocés ficarao sabendo...”? Seja como for, essa forga da enunciacdo materna foi paradoxalmente transformada no final da andlise de Rosine, Esta lhe deixou a sensacao de que, de todo modo, estaria sempre atrasada em relagdo a si mesma, de que nao conseguiria alcancar em seu comentario dlinico o ponto de certeza que atingira naquele momento de sua anilise que coincidiu com o principio de sua pritica. J-A, Miller destacou essa coordenada, dando-lhe todo 0 seu peso, nas palavras de Lacan dirigidas a Rosine: “Naquele tempo, vocé nao podia se enganar.”* Tocava, ento, no real sem os emaranhados do verdadeito. Foia partir desse ponto, alcancado no que podemos chamar deo passe* de Rosine, que ela, como analista, se autorizou para fazer uso de uma interpretagio fora-do-sentid [hors sens}? Seu préprio tratamento analitico foi, portanto, o que permitiu a Rosine inventar sua pratica com criancas érfiis, em situagio de grande caréncia de cuidados particularizados. O momento de inauguracdo de sua pratica correspondia, na sua anilise, a um momento de passe.* Foi ali que se decidiu seu desejo de analista, Tendo permanecido fie! ao acontecimento inaugural, ° A causa do autism spunca mais pararia de tentar ir ao seu encontro no seu comen. ‘trio posterior e em suas constantes retomadas. Como Aquiles correndo atrés da tartaruga em Lewis Carroll? decidiu no ceder ante o real em jogo naquele momento de travessia em ‘que passe ¢ invengao clinica se enodavam em sua anilise, a Ponto de se autorizar em sua pritica radicalmente nova com 08 sujeitos autistas A dianteira mantida por Rosine € Robert, coma sensacio de estarem sempre atrasados em relacio a si proprios, comegou desde “o instante de ver” decisivo, que foi a abordagem por Rosine Lefort do caso “Robert”, abordagem orientada pelas indicagdes de Lacan. Esse caso foi apresentado no primeiro Seminario de Jacques Lacan (1953-1954), em contraponto ao tra- tamento realizado por Melanie Klein do caso Dick, com énfase nas fantasias imaginarias que invadiam o sujeito, Lacan fazia a supervisio do tratamento de Robert, ¢ pedia para Rosine Lefort apresenté-lo, pois esse caso ilumina, de mancira exem- plar, 0 que ocorre no tratamento quando ele esté orientado elas dimensbes do simbélico, a que o sujeito tem acesso num registro mais ou menos “alucinado” Nomeacées Bm 1954, 0 estatuto de uma palavra quase alucinatéria urrada Por aquela criancinha ~ “0 obo! O lobo!” -, que escapava das leis do simabélico, era dificil de situar. Era uma lei insensata, igualmente o “resumo de uma lei”, nos diz Lacan, que, na época, qualifica de “supereu” esse “carogo””* da palavra — esse “pedago de real”." para retomara expres: que ele empregasd Autismo e veal balizas para a pritica a vvinte anos depois, Essa palavra ndo atesta sobre um sujeito falante, assim como tampouco o designa como tal. “Nao & nem ele nem algum outro. ... Ele é evidentemente 0 lobo! na medida em que diz esta palavra. Mas 0 lobo! & qualquer coisa ‘enquanto possa ser nomeada. Vocés veem ai 0 estado nodal da palavra, © eu € aqui completamente ca6tico, a palavra in- terrompida. Mas é a partir de O lobo! que ele poder encontrar seu lugar e se construir."* ‘Ao dizer “qualquer coisa enquanto possa ser nomeada’, La- can contrapde duas teorias da nomeagio. Uma, cujo modelo é aquele retomado por Willard van Or- man Quine, consiste em reduzir a nomeagio a uma designa- fo: "Gavagai: o coelho”. la ficara em seguida aberta a uma in certeza fundamental sobre o que foi nomeado nesse ato." Bo que Quine chama de principio de indeterminagdo da traducéo, ‘A outra abordagem da nomeacio torna evidente que o sujeito se nomeia, se batiza, se autobatiza,"* sublinha Lacan, para destacar a dimensao reflexiva do que, entio, faz acon- tecimento, ato. Ble opera por sua propria jaculacdo: O lobo! Nesse sentido, pode-se falar de uma oposicio radical entre 0 Tobe como ato € 0 coetho como mostragio. 0 lobe!, como ato de fala, nfo esta articulado troca. efeito da jaculacao pri- meira sobre o corpo do sujeito. fa primeira versio do que se tornara S,, 0 significante-sozinho (signifiant-tout-seul), destacado da articulacdo com outro significante, S,. Esse destacamento, «essa consideragio do significante isolado, vai de encontro com 0s principios da linguistica saussuriana, que parte da relaco entre dois significantes para definir seu valor. O uso do signi ficante-sozinho é 0 fio concutor que percorte os trabalhos de Robert ¢ Rosine Lefort. ae Acausa do autismo “Omenino-lobo" dispe também de uma outra palavra, que ele igualmente “6” o significante “Madame”. Por isso Rosine dira sobre ele: “Ele é ‘Madame’ como demonstra por seu com- portamento na minha frente, quando brinca de polfcia com as outeas criancas ou lhes dé os doces sem guardar algum para si"* B, portanto, 0 lobo e Madame. Tem duas palavras para nomear seu estar-af, Portanto, “o menino-lobo” é também “o menino- Madame”, O lobo! e Madame tinham inicialmente o estatuto de significantes alucinados, real-lizados.” O tratamento permite operar uma inversio de rumo. Permite a passagem para 0 avesso do real, para o lado da nomeagio. Lacan diz, assim, que o sujeito “se nomeia”. Num “batismo” de que 0 Outro se faz: 0 lestinatario, a crianga se nomeia, com efeito, por seu grito. Uma vez que O lobo!, essa primeira expresso de que a ctianga dispde, adquire valor de nomeacao no tratamento, segue-se certo niimero de efeitos. Primeito, a ctianga procura se livrar dessa palavra gritando-a diante das privadas, Depois, notase a construgdo de uma cadeia metonimica, de agregados de pala ‘vras-objeto (como se fala de palavras-valise), que permitem que Robert saia de sua angustia fascinada ante os vasos sanitérios. Nesse lugar do vaso, trata-se — como indica J-A. Miller - de produzir uma negatividade,"* um furo, dado que ao real néo falta nada.” E 86 a partir da produgao desse Faro que o sujeito poder emitir outras palavras além dos dois significantes de partida, ampliando assim seu mundo. A negatividade esté em cexcesso com relagio a cadeia das palavras. Nés, que falamos, esquecemos facilmente esse vazio que separa as diferentes pa- lavras como entidades discretas. Contudo, 0 vazio que corte sob a cadeta das palavras e as liga entre si condiciona a possibi- lidade e a légica da constitui¢do dessa cadeia. Os Lefort nunca Autism e real baizas para a pritica 8 Pararam de explorar as modalidades dessa articulago, sob todos os seus aspectos. Guardar-se dos sortilégios do imaginério Fizemos parte da geracéo que acompanhou 0 esforgo de deci- framento dos Lefort e sus formulagio do que puderia ser uma Psicandlise de erianca precavida contra os sortilégios do ima- ginério. Tratava-se de corrigir um viés dos avangos da propria ritica, viés que Lacan situara com preciso: “Fungo do ima- gindrio, digamos, ou, mais diretamente, das fantasias na té nica da experiéncia e na constituicio do objeto nas diferentes etapas do desenvolvimento psiquico. O impulso proveio, aqui, da psicandlise de criancas, e do terreno favordvel oferecido as tentativas ¢ as tentagSes dos investigadores pela abordagem das estruturagées pré-verbais,”2” Por isso & que Rosine ¢ Robert Lefort tomaram distancia das aderéncias kleinianas na orientagéo lacaniana da psicandlise com as criancas; nesse departamento, citemos, por exemplo, a Enfase colocada no continente imaginario da projecio, o que impede de apreender a complexidade de uma topologia de bordas com ou sem furos, ou, entdo, a importincia dada as imagens do corpo por Francoise Dolto. Os Lefort insistiram ‘em sua recusa de se orientar pela chamada “relacao de objeto” € Nos termos do Seminério IV, irdo se orientar sobtetudo pela “falta de objeto”! Nesse seminario, Lacan criticava a abor- dagem da psicandlise inglesa, que, ao colocar a énfase numa ‘roca reciproca entre o sujeito e seu parceiro por intermédio de Jum objeto, fazia esquecer a correlacio, central na abordagem { “4 A causa do autisomo freudiana, entre o objeto e sua perda. O objeto é sempre, fun: damentalmente, objeto perdido. Introduz o sujeito nfo na ‘roca, mas num nada, Ao real, em contrapartida, néo falta nada, Somente a “falta de objeto” articula esses dois niveis do sujeito edo real, Com essa orientagio, os Lefort evitaram os impasses, que a orientagdo kleiniana viria a conhecer— de que Donald Meltzer ¢ Frances Tustin tentaram sair a seu modo - ou a pré- tica de F. Dolto, que outros procurardo reconciliar com o real Nisso, seguiam uma indi Lacan, segundo a qual, na posico autistica entendida em sen- tido amplo ~ como o autismo do caso Dick de M. Klein, ou iso dada desde muito cedo por ©-caso de Sami-Ali## apresentado nas Jornadas sobre a Inftncia alienada, ou ainda o do menino-lobo de Rosine Lefort -, a crianga autista ¢ alucinada. Dizer que hé alucinagio é falar de imersio, de “mergulho” do simbiélico no real: “essa crianca so vive o real, Se a palavra ‘alucinacao’ significa alguma coisa, é esse sentimento de realidade”2* Para se desfazer dos prestigios id6latras do corpo ede suas imagens, era preciso uma verdadeira ascese da orientagto para o real. “Seria uma grande contradi¢ao manter a psicandlise de criangas reduzida a uma técnica de jogo e de desenho, consi- derando-se a capacidade que a crianca demonstra, sobretudo quanto menor ela for ~ antes mesmo de falar ~, quando se trata de nos esclarecer sobre um ponto tio essencial como a constitui¢ao do sujeito no discurso analitico retomar a psicanslise de criancas nesse nivel minimo, ali onde © corpo aparece de maneira privilegiada como um corpo de significante. Significante, certamente, mas onde o real ocupa Era preciso co lugar que Ihe cabe a partir do objeto a, e se o sujeito aparece como nim efeite cle real, isse é justamente na erianga.”?5 Autismo e real: balizas para a pritica ® A medida que os “paradigmas do gozo"* se deslocaram no ensino de Lacan, desnudow-se a dimenséo real do gozo.” E, com ela, a considerac3o dos efeitos de gozo do significante- sozinho sobre o corpo do sujeito. Essas mudancas de énfase io referéncias preciosas para explorar a clinica que os Lefort abriram para nés, De Naissance de VAutre (1980) a La Distinction du autisme (2008) 0s Lefort desenvolveram uma obra centrada no tratamento dos sujeitos para os quais “nao h4 Outro”. Publicada quatro anos antes da morte deles, esta iltima obra apresentava um projeto original, entremeando as consequéncias que tinham extraido de sua clinica do autismo com uma leitura dos de- poimentos dos autistas de alto nivel (como ‘Temple Grandin, Donna Williams ou Birger Sellin), mas também leituras de autores com “tragos autistas” (como Poe, Dostoievski, Lautréa mont, Pascal ou Proust). Esse conjunto Ihes permitia defender veementemente seu desejo de fazer com que a diferenca, a “distingdo” do autismo fosse aceita na clinica psicanalitica de orientagdo lacaniana, Portanto, ao longo desses anos acomp: nhamos, com eles, a evolucao de seu comentario do signifi- cante-sozinho, especialmente no caso de Marie-Frangoise, que Ihes ensinou o que acontece “quando nao ha Outro”. O autismo, um nome do real Os Lefort anteciparam a mudanca de paradigma que viria a ocorrer na abordagem das psicoses da crianga, cal como se pode ver no primeiro longa-metragem de Sandrine Bonnaire? Nesse filme comovente, 0 significante “autismo" funciona como 46 Acausa do autism ‘oponto de Arquimedes que permite que a dor das irmas Bon: naire seja nomeada ¢ encontre uma saida O documentétio comeca com uma constatagao da insufi ‘incia da “atenco” psiquidtrica cléssica. Sabine, airmi de San- drine, sofre desde pequena e foi deixada com a familia numa especie de abandono, por “falta de estruturas adaptadas”, até.o drama que exige internacio ~ ela mesma apresentada com suas consequéncias catastréficas. Mais tarde, “nm lugar de vida” em pequeno grupo permiti que Sabine atravessasse o que foi uma verdadeira morte subjeriva. Para discutir as consequéncias gerais dessa insuficiéncia es- pecifica, sao entrevistados dois interlocutores sob 0 olho da camera, Um, representante do sindicato das psiquiacras hos- pitalares, defende o discurso da psiquiatria contemporanea. Reconhece a dificuldade nesse caso particular, mas defende os beneficios da modernidade. Trataremos melhor com mais, diagnéstico, mais tratamento, mais estimulagio etc. O outro debatedor defendera “lugares de vida" com “forte implicagio pessoal” como remédio para a deteriora¢o do laco social ex: perimentado por tm sujeito psiquiatrizado. Trata-se de um dos responsiveis pelo “campo social” na regio de Poitou-Charen- tes, conhecido por sua orientacao humanista. Osignificante com que Sandrine consegue enfrentar a terrivel evolucio de sua irmé — que funciona na familia como uma espé. cie de duplo seu ~ é infimo, mas suficiente: Sabine é diagnosti- cada como “psico-infantil com comportamentos autistas”. Nisso reside toda a ambiguidade. A passagem da psicose infantil para o psico-infantil permite a introducdo do novo significance: autismo. Paradoxalmente, é uma esperanca. Esse significante nao remete a uma doenga, ja que os medicamentos nfo curam 0 Alutismo e eal: balizas para a pritiea a autismo. & uma deficiéncia, Admite a esperanga de que Sabine tenha direito a um laco social humanizado, longe do discurso cientifico que enfrentou quando ficou confinada a doenca, A propria violéncia da paciente ¢ prova, por seu sofrimento fechado em si mesmo e sua inacessibilidade a0 Outro, de uma dimensio autista. Como dizem os Lefort, “no autismo: nao hi especularidade nem divisio do sujeito, ha um duplo Que 0 autista encontra em cada outro, seu semelhante, cujo perigo mais agudo é a iminéncia de seu gozo € a necessidade de matar,nele, essa parte que a linguagem nao eliminou, para ue se funde uma relacio com 0 Outro como terraplenagem higienizada de gozo..., Essa necessidade ¢ a fonte da exaltago Pulsional do autista, ou seja, da destruicio/autodestruicao como satisfacdo-gozo da tinica pulsio, a pulsio de morte.” A telagdo de agressividade de Sabine com seu duplo é des- tacada nas sequéncias filmadas e torna ainda mais pungente a travessia efetuada por Sandrine no seu primeito filme como iretora: passa, por tris da camera, para o lugar que desde sem- pre foi o seu para essa irma que ela “filmava’”fazia tanto tempo A posicdo de duplo encarnada por Sandrine se evidencia no resto de fala em que Sabine a engancha. Seja qual for o tipo de didlogo para o qual Sandrine tenta levé-la - "Vocé lembra,.” ou “Por quem vocé esté apaixonada?” -, Sabine respond com Juma pergunta sobre o estar-af do outro: "Vocé fica comigo?”: “Quando voce vem?’; “Quanto tempo voce vai ficaz?”. A constituicdo da presenga do duplo vem junto com sua des: trnicio. Sabine, que pode destruir tudo 2o seu redor, protege de sua propria fitria os poucos objetos que lhe restam (boneca, bbrinquedos) colocando-os dentro de uma maleta de vime, Pede também para ser colocada ali dentro para dormir. Ela mesma €aboneca colocada dentro da maleta, ae A.causa do cutisme A disponibilidade dos acompanhantes de Sabine de se faze- rem de sombra de um duplo impressionante. Nao querem nem “estimular” Sabine demais, nem “acioné-la" educando-a pata certos comportamentos repetitivos, sem por isso aban: dondla a sua mortal inércia. Sem dizé-lo, mantém com ela uma “prética entre varios"® Fazem o essencial. Sera que podemos dizer que esse filme é uma travessia da imagem para Sandrine Bonnaire, como os Lefort disseram do quadro de Picasso? Segundo eles,## com efeito, para Picasso 0 acontecimento pictérico € 0 acontecimento subjetivo so in- dissociaveis >» Incontestavelmente, com Picasso ocorreu algo dessa ordem na representaco feminina enquanto tal Com sua Origem do newndo, Gustave Courbet tinha atraves: sado um plano da representacto, forrando, assim, o século XIX a ver algo da femninilidade que no podia ser visto antes que © pintor tomasse para si o propésito de ultrapassar o inter-dito da representacio. Da mesma forma, ao escolher apagar o marinheiro que olhava 0 sexo da mulher, Picasso nos forcou a ver de uma maneira nova, sem essa mediacio, a apresentacao original a feminilidade que ele propunha para o século XX. Foi obri- gado a criar, por isso, um significante novo: tratava-se, para ele, de “nomear 0 nariz”.** on 0 nariz-falo. Lacan dizia sobre Paul Claudel que ele precisara do acento circunflexo sobre 0 “U” maitisculo do nome cotrowrame ~ do qual Claudel fazia “absolutamente"” questo — para poder escrever sua trilogia’* do Pai humilhado, Podemos da mesma forma dizer que para Picasso foi preciso 0 “nariz de perfil num rosto de frente” para suportar a pura apresentacdo do sexo feminino. Esse nariz inédito viria a ser o ponto que, durante toda a sua carreira de corned Autismo e eal: battzas pava a prética ° pintor, manteria sua vontade de alcangar um aquém da divi- so fundamental da representacao entre 0 espaco ocidental (0 ponto de fuga de frente) ¢ o espaco oriental (0 perfil egipcio ou assirio). Picasso sempre disse que queria pintar um mo- mento em que essa divisio ainda nao era possivel. Recupe- rando algo de antes do espelho, fez perceber, assim, algo de “A mulher que nfo existe”. J-A. Miller evocou 0 “cinismo de Picasso” ndo acreditava em nada que ele mesmo no tivesse experimentado, em nada que fizesse referéncia a uma crenca comum, Esse cinismo se apoia num momento de certeza, em algo que ele atravessou, encontrou, inventou ¢ produziu en- quanto objeto. O testemunho de Sandrine Bonnaire sobre as provacées de Sabine Ihe permitiu separar-se de seu lugar de duplo para a rma que sofre, lugar que acompanhou sua infincia e sua ado- lescéncia, Demonstrou, para a irmd e para si mesma, uma pos- sibilidade de separacio pacifica, na medida do possivel. Algo de um objeto pesado demais para carregar pode ser depositado no filme, na passagem da atriz Sandrine Bonnaire & condicao de diretora, Também ela atravessou a tela da representacio, Gozo do Um Assim, os sujeitos autistas colocam em perigo toda identifiea- so imaginaria, Nao permitem que um didlogo prossiga se 0 outro s6 se autoriza pela identificacdo histérica, Para quem. quer ser parceiro desses sujeitos, ha um luto a fazer da identifi cago histérica, Cada um tem de ter atravessado o ponto desse ‘modo identificatério para se ater a0 pedaco de real em jogo, 50 Acausade ausismo © horizonte que os Lefort nos indicavam a respeito da estrutura do autismo consiste em poder considerar, de um mesmo ponto de vista e em série, oleque que vai “do autismo primario precoce de uma menina de trinta meses 4 estrutura autista de um Proust, passando, entre outros, por Poe, Pascal, Dostoievski".»* Trata-se de visar sempre o mesmo ponto: 0 gozo do Um. Gilles Deleuze, num belo texto sobre Proust, escreveu que o ‘que o interessava era @ loucura que circulava entre as linbas.* Naquilo que se apresenta como o auge do dominio da lingua “interior’, é preciso poder manter a diversidade das abordagens para ter acesso a polifonia da lingua, a raiz onde vibra esse traumatismo que a lingua é e que 0 autor vai tentar nomear 0 longo de toda a obra, até O tempo redescoberto Quer se trate de Proust ou de uma jovem autista de trinta meses, 0 cardter autista dessa estrutura reside no fato de que um sujeito possa querer interpretar a lingua de maneira to talmente redutivel a um sistema de regras. Como se tudo na lingua devesse poder ser deduzido, engendrado - da mesina maneira como uma cadeia metonimica de objetos se engendra para uma crianga ~, como se a prépria lingua pudesse pasar por uma espécie de sonho chomskiano. O jogo do simbélico realliza-se, ent, sem equivocos possiveis. Esse esforco pela pura repetic4o do Um, ne varietur, encon- tra-se na vontade de imutabitidade manifestada pelo sujeito autista, essa imperiosa necessidade de que as coisas obedegam a uma ordem absoluta, imutivel e repetitiva, que nada viria interromper. Esse mesmo esforgo encontra-se na repetigao de uma conduta isolada ou de um circuito minimo, os quais, nio se organizam como pares de oposigdes significantes, ms Ausismo e real: balicas para a pritica st como justaposigées reais, Considerar essa clinica da repeticgo pura, do S,, nos introduz na clinica do circuite;” ou dos circuitos estendidos. Isso pode se dar dentro do quarto, da instituicao, até mesmo da cidade. Quando ocorre uma mexida, sobrevém a crise. Quando alguma coisa do mundo jé nao esta em seu lu- gar, a ordem do mundo fica imediatamente abalada. O mundo acaba se confundindo com a ordem do mundo. © sujeito consegue tratar esse traumatismo que a lingua é tanto mediante momentos de produgio de um saber sobre a linguagem em seu conjunto e sobre as regras do discurso como lago social, quanto mediante momentos de estupor, de pura auséncia real. Em ambos os casos, ou nessas duas ver: tentes - um discurso que permanece totalmente exterior ao + podemos falar de produgdo do sujeito. Por isso determinado autista pode falar de um “momento de esvaziamento”. £ uma pura auséncia real que pode indexar © surgimento de uma fungio “sujeito” em meio a uma hiper- Sujeito, ou 0 estupo! agitagdo, a urros, ou entio nessas prisGes domiciliares em significantes-mestres real-lizados. Nesse sentido, 0 esforgo do sujeito autista inscreve-se na familia dos esforgos para subjetivar “que um animal, d'estabitat [stabitat] que é a linguagem, por abitalo (labiter] € também o que para seu corpo faz érgio # justamente por isso que ele fica reduzido a descobrir que seu corpo nao é sem outros érgios"#* Acoplamentos com o objeto autistico A relagZo totalmente particular que os autistas tém com certos objetos € uma das principais pistas que orientam nossa abor- 3 A causa do autismo dagem psicanalitica do autismo. Pode-se, com efeito, detectar diferentes modalidades de acoplamento do sujeito autista com ‘um objeto particulatizado, suplementar, eletivamente erotizado, © corpo do sujeito est4 muma relagdo de colagem incessante a esse objeto de gozo fora do corpo. Trata-se de uma tentativa de se situar em relacio a esse objeto ~ ao qual se cola e que também rejeita, Bola, caixa, copo, computador... esse objeto € essencial. Ele € inseparivel do sujeito. Podemos, aqui, marcar nossas distdncias com o que Bruno Bettelheim propés com “a crianga-maquina”, Renunciemos a crianga-miquina. f muito mais de crianca-dngio que se deve falar, pois o que a crianca nos demonstra nao é, como cré Bettelheim, que cla esté lidando ‘com um objeto desumanizado, A méquina se torna um 6rgao definido por uma pura exterioridade. Como érgio, essa maquina no tera outras fungGes além das que a crianca vier a inventat. Bssas invengbes Ihe permitirdo ligar esse érgo suplementar a seu corpo. As diferentes construgées produzidas pelas criangas, autistas nos indicam a funcéo de um érgio suplementar que a crianca tenta, a custa de sta vida se for preciso, extrair ou in ‘troduzir como o orgdo que conviria & linguagem no seu corpo. # 0 caso, particularmente, dos objetos que, em nossas civi- lizacdes, fazem borda com o corpo, como os calcados, as hnvas, ou aqueles que o cobrem, como o avental, a roupa, protecéo -muitas vezes necesséria para o sujeito que nfo tem a sensacéo de um corpo sob esses envoltérios, O que se toca quando se tira a roupa é sua pele, Para o sujeito autista, esses objetos so na verdade peles que tiramos de seu corpo, armaduras que podem se complexificar, mas que tém sempre a mesma estru- tura: do calgado a0 drgao destacavel do her6i-r0b6 em voga 19 videogame, Te i ‘Autismo e real balizas para a privica 3 As dificuldades experimentadas pelo sujeito em relagio a esses descolamentos de peles sao tao patentes quanto multifor- mes. Mas 0 momento em que a crianca isola um objeto na sua singularidade é de outra ordem ¢ constitui um momento de bascula. Dispomos de um exemplo de um desses momentos de isolagio, de erecao de um objeto, com a sequéncia descrita pe- los Lefort num texto publicado em Ornicar?, a saber a erecdo da ‘mamadeira no caso do menino-lobo € a consequencia que el produz.“* A mamadeira, objeto fora do corpo, vai integrando aos poucos um tracado que envolve realmente 0 corpo do su- jeito. Assim, esse objeto escolhido pelo sujeito, primeiro “fora do corpo”, termina sendo pego, sendo encerrado no interior de uma montagem do corpo. Notemos que a dimensfo de objeto que « fala pode adqui- tir estd muito presente nos depoimentos dos sujcitos eutistas apresentados por Jean-Claude Maleval. Eles explicam que ndo falavam porque o cérebro deles “se esvaziava”, Por isso é que J-Cl. Maleval organiza, de maneira decisiva, a clinica do au- tismo a partir do lugar do objeto vor.*? Dé a0 objeto vor 0 va- lorde portador da marca da singularidade que o sujeito autista nao suporta, o que ele demonstra pela recusa da interlocucio, quer nos enderecemos a ele, quer ele tenha de se enderecar a0 Outro. A marca de gozo nao é extraida da fala, a ponto de o sujeito viver a emissio da fala como uma verdadeira mutila ‘so, Falar, entéo, é “esvaziar-se”, ou “esvaziar seu cérebro”. Por isso é que J-Cl. Maleval conclui: “A dissociacio entre a vor € a linguagem est4 no principio do autismo,”* Isso nos lembra que 0 uso da linguagem supe consentir com a existéncia de uum lugar, o do Outro, “limpo do gozo", Disso decorre sua “falta de garantia”. O sujeito antista nao consegne se recuperar sa Acausa do autismo desse trauma do enderegamento, Esté aterrorizado demais para “incorporar a voz como a alteridade do que é dito” Nao tem a possibilidade de incorporar um érgio da voz, seja ele qual for, que faca borda com o corpo. Falar, para esse sujeito, nao & “gozar-se” por intermédio daquele a quem nos enderegamos: falar continua sendo para ele pura mutilagio. Nesse sentido, o sujeito autista nos apresenta uma relacio ‘com 0 corpo limpa de todos os érgios de troca possiveis. © corpo autista seria, assim, um “corpo sem Srgaos"”. A fragmen- taco do corpo por seus drgaos é superada ao prego da reclu- so numa “carapaca’, como alguns a chamaram, O sujeito “se _goza” sem o trajeto da pulsdo que poderia articular seu corpo 0 Outro. Pura superficie, o corpo-carapaca é 0 que adv de tum corpo em que todos os orificios esto ochuidos. A partic dai, mais nenhum trajeto é possivel. A vontade de castragao real do menino-lobo na primeira fase de seu tratamento indica a radicalidade da rejeicdo de um érgio cuja funcio puro enigma para o sujeito: “ndo podendo cortar o objeto oral no ‘Outro, o psicético tem de cortar seu proprio pénis. Esse aco- plamento seio-pénis € uma equivaléncia fandamental, como Robert mostrar durante meses — tendo como prolongamento ter de fazer sew xini a cada sesso ~, € que demonstra o carter inelutavel do corte, aqui, real“ Cireuitos do objeto Em que consiste, entéo, a aplicacio da psicandlise ao autismo? Trata-se de permitir 20 sujeito livrar-se de seu estado de re- traimento homeostatico no corpo encapsulado Isso supde Autismo e real: balizas para a privica 5% tornar-se o novo parceiro desse sujeito, com exclusdo de qual- quer reciprocidade imaginéria e sem a fungi da interlocugéo simbélica, Como consegui-lo sem que o sujeito sofra uma crise impos- sivel de suportar? O suporte de um objeto ~ e isso, para além de qualquer dimensao de jogo ~ & necessério para se tomar Parceiro do autista: "Sem objeto, no ha Outro.”** Vejamos como Rosine Lefort procede: “Levo-a para a sessio, esté ra: diante. Sento na cadeira baixa: Nadia verifica minha posicio em relacdo & sua com um ar inquieto. Se acalma, vai tirar os brinquedos do bats, um depois do outro, Hoje seus gestos estio menos desengoncados, mais diretos ... . Esté interessada em uma xicrinha de brinquedo em tomo da qual vai girar toda a sesso: depois de té-la jogado, pega-a de volta e a inspeciona. Digo-the que é uma xicara para beber, tal como eu tinha no: smeado cada brinquedo que ela tirava do bat. Ela leva a xicara 4 boca, chupa-a, mas seu olhar esta voltado para a mamadeira; Joga a xicara, tenta derrubar a mamadeira com a mio, nfo se atreve ¢ tenta atingi-la com um pau que pegou no batt ¢ que cla chupa antes de aproximéo da mamadeira.”” Podem instaurar-se, entdo, um vaivém de trajetos em tomo do objeto do Outro, que levam o sujeito a desprender ‘um objeto do corpo do analista; esse objeto vai entrar numa série de substituicdes, construindo assim os rudimentos de uma metonimia, de um deslizamento de um objeto a outro, acompanhado 20 mesmo tempo de uma colagem com 0 corpo do analista Em.1987, Virginio Baio apresentou caso exemplar da crianga do copo vermelho’ acompanhada na Antenne 110 durante doze anos, dos seis aos dezoito anos. Quando V. Baio a conhe-

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