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José Roberto do Carmo Junior Mestrando USP:FFLCH Renata Ciampone Mancini Doutoranda USP:FFLCH Roseli Novak Mestranda USP:FFLCH Analise Ritmica de uma Cangao Popular InTRODUGAO, Asemidtica de linha francesa, fundada por Algirdas Julien Greimas no final dos anos 1960, sempre se caracterizou como uma metodologia de analise com a qual se procura entender e explicitar os mecanismos de formacao de sentido em um texto. Nos seus primérdios, e gragas a sua heranga proppiana, as discussées semidticas concentraram-se na formagao de uma sintaxe narrativa, ou seja, na caracterizagao de elementos comuns presentes nas relacdes estabelecidas entre os actantes de uma narrativa. Essa sintaxe narrativa reinterpretava em termos mais rigorosos um extenso conjunto de fungées utilizadas por Propp para a descri¢do do conto popular. A idéia central ou © elemento nuclear dessa sintaxe narrativa é o enunciado narrativo — a unidade minima da descricao semidtica do texto. Através do enunciado narrativo, formulado abstratamente em termos de relagées juntivas entre sujeito e objeto, Greimas logrou uma descrigdo estrutural aplicavel, a principio, a qualquer texto. O ganho na descri¢ao, comparado ao modelo proppiano, estava na consisténcia metodolégica conquistada gragas 4 filiagao da 183 greimasiana as bases hjelmsievianas. Portanto, neste semidtica ee A primeiro momento da semidtica de Greimas, questées conceituais ligadas a descontinuidade foram 0 foco dag discussdes. Numa conseqiiéncia natural da propria metodologia de construgdo do modelo semidtico, Greimas descobre que ha em todo fazer do sujeito um elemento pressuposto. A investigacao dos pressupostos do fazer do sujeito conduziu a modalizagao da sintaxe narrativa, isto 6, tanto o ser quanto 0 fazer do sujeito poderiam ser sobredeterminados 0 que, de imediato, mostrou a capacidade de expansao do modelo para a descricao de etapas narrativas que até entao nao tinham uma explicagao adequada, 0 que possibilitou o equacionamento das etapas que antecediam e sucediam a agao do sujeito propriamente dita. As pesquisas de Greimas sobre a modalizagao do ser acabaram por conduzi- lo diretamente ao universo passional. Se a abordagem das paixdes sempre foi vista com reservas devido aos riscos do psicologismo, no momento em que a modalidade surgiu como um instrumento viavel para uma analise mais rigorosa do universo passional, essas passaram a ser vistas como um arranjo de configuragdes modais. O conceito de modalizagdo trouxe ganhos inegaveis ao modelo, porém ele passou um tanto ao largo de uma série de quest6es que nao somente nao tinham resposta, mas que de fato eram ainda formuladas de forma precaria. Talvez esse seja © mérito mais fundamental de Semidtica das Paixdes: nessa obra Greimas formula pela primeira vez o problema da Continuidade e, apesar da inegavel pertinéncia dos conceitos apontados e propriedade no modo de apresenta-los, as quest6es Sao tratadas de forma ainda bastante intuitiva por, naquele momento, nao existirem ferramentas tedricas que dessem conta de formaliza-las. Meee ee da chamada Semidtica Ritmica nas Mae Gucciseg re 6, de fato, uma tentativa de formalizaga0 ‘acionadas aos elementos continuos que Se ee eee ete cia 184 participam da construgao do sentido, permitindo assim, dar continuidade as discuss6es colocadas, em um primeiro momento, em Semidtica das Paixdes através do refinamento do instrumental tedrico relacionado ao nivel das pré-condicées de forma¢ao do sentido. Esse breve histérico da semidtica visa a ilustrar que a abordagem semidtica, por poder contar com a coesdo de uma metodologia apoiada no rigor de sua coeréncia interna, 6 um projeto cientifico inerentemente aberto a evolugdo das discuss6es que se propée a tratar. Em outras palavras, o rigor metodoldgico permite e convida continuamente a revisitacao das quest6es que discute. Assim sendo, uma discussdo que se pretenda semidtica pressuporé sempre o desafio de revisitar o que ja foi construido, visando a incorporagdo do que se propée como novo, contribuindo assim tanto para a renovacao e também evolugao das questGes que propde, como para a coesao e, portanto, fortalecimento da propria metodologia. O presente trabalho apresentara uma sucinta discussao teérica sobre o ritmo, especialmente no tocante ao plano de expressdo, embora 0 conceito pudesse ser explorado com igual 6nfase no plano do contetido. Por conta disso, e para contemplar © principio de isomorfismo, uma breve discussao de sua aplicagdo no plano do contetdo sera também feita. A exemplificagaio das idéias propostas na discussdo tedrica sera apresentada a partir da andlise da melodia e letra da can¢ao “Na batucada da vida”. Uma ambigao adicional, decorrente dessa anélise, é ilustrar a maneira pela qual a incorporagao dos conceitos da semidtica ritmica contribui para enriquecimento das analises semiéticas, ndo negligenciando porém o fato de que diferentes textos exigem énfases diferentes em cada um dos niveis do percurso gerativo, sem que, no entanto, se possa abrir mao da visdo global do percurso para o sucesso das analises. 185 TEORIAS SOBRE O RITMO E PLANO DE EXPRESSAO, Ritmoe temposao elementos essenciais na Organizacao interna de qualquer discurso, seja ele, verbal, musical, plastica incrético. No plano de expressao, 0 ritmo manifesta-se como ae wiemancia entre proeminéncia e nao-proeminéncia, entre og Siementl ténicos e atonos e, assim, é gerador de sent do na linguagem musical, na fala e na linguagem visual e, a principio, em qualquer linguagem onde o plano de express4o tome suas caracteristicas do tempo. Fagamos uma breve retomada dos enfoques dados ao ritmona historia da lingUistica e da semistica, Segundo a teria da silabagao de Saussure, tal como se apresenta no Curso de Linguistica Geral, a cadeia da fala esta submetida a uma espécie de /e/ r/tmica, cujos termos altemantes seriam a abertura (maior sonoridade) e 0 fechamento (menor sonoridade). Lei ritmica da cadeia da fala Abertura Fechamento +sonoridade -sonoridade Ponto Vocdlico Fronteira Silébica (<>) ed ee "FSAUSSURE, Curso de Linguistica Geral, S40 Paulo, Cultrix, 1970. Ct especialmente 0 capitulo O fonema na cadeia falada. eee 186 Ao elemento de maximo fechamento Saussure denominou de fronteira silabica e ao elemento de maxima abertura, ponto vocalico. A época, o interesse maior de Saussure era o de mostrar a precariedade das teorias fonoldgicas (leia-se, dos foneticistas ingleses) que insistiam em ignorar o carater relacional dos elementos presentes na cadeia falada ao tratar os fonemas isoladamente. Seguindo a diregdo inaugurada por Saussure, Hjelmslev? elaborou na década de 40 uma teoria da linguagem em que propunha uma sintaxe do plano de expressao fundada nas leis do ritmo: para Hjelmslev o ritmo deve ser visto como uma regéncia entre elementos do plano de expressao. Igualmente, Brondal propde uma espécie de isomorfismo entre prosddia e sintaxe, tratando-as como as ciéncias do ritmo da linguagem, uma vez que “A sintaxe estuda o ritmo interior da linguagem..." @ “A prosédia 6 0 estudo do ritmo exterior da linguagem onde a totalidade 6 a silaba...”*. Mais recentemente, na década de 70, os estudos dos elementos ritmicos da cadeia da fala ganharam consisténcia e formalizagdo, a ponto de constituirem-se em um novo ramo na linguistica, a Fonologia Nao-Linear. Contorme Selkirk’, toda silaba configura-se a partir de uma “escala de sonoridade”> que governaria a altemancia entre elementos mais sonoros (nucleo) @ menos sonoros (ataque e coda) presentes na cadeia da fala de toda e qualquer lingua. Essa escala de sonoridade estaria fundada na Generalizagao da Sequéncia de Sonoridade que afirma: 2C1.L. HJELMSLEY, La sy/labe en tant qu’unité structurale, in: Nouveaux essais, Paris, PUF, 1985, pag. 25-66. L. HJELMSLEV, Accent, intonation, quantité, in: ‘Studi Baltici, V\, pag. 1-57, 1937. 2, BRONDAL, Délimitation et subdivision de la grammaire in: Essais de finguistique générale, p.138. “E,SELKIRK, The syllable. H. HULST, & N. SMITH, The structure of phonological representations (part ll). Foris, Dordrecht, p.337-383, 1982. 5R. HOGG, C.B. McCULLY, Metrical Phonology: a coursebook, Cambridge, Cambridge University Press, 1987, p.33 187 “Em qualquer silaba, © elemento mais sonoro constitu o Nucleo, eé precedido/seguido por elementos de sonoridade crescente/ decrescente”® Nucleo _ ae 5 - Alaque Coda Assim, a sequéncia prsomente poderia constituir 0 Ataque (inicio) silabico e nunca sua Coda (final), enquanto que a seqiiéncia nt, de sonoridade decrescente, somente constituiria a Codae nunca o Alaque. Na Fonologia Métrica, Liberman e Prince’ mostraram que, se toda a silaba esta submetida 4s leis ritmicas, o mesmo vale para as palavras, as frases, as frases entoacionais e os periodos. Ou seja, da mesma maneira que toda s//aba tem um elemento de maior proeminéncia que contrasta com um ou mais elementos de menor proeminéncia, uma pa/avratambém esta submetida a mesma determinagaéo. Também a palavra deve ter um Unico elemento tdnico que contrasta com os outros elementos atonos. Ou seja, a Generalizagao da Sequiéncia de Sonoridadeé também valida para a palavra. Evidentemente, nao podemos, nos limites deste trabalho, entrar em detalhes quanto a estrutura hierarquica de todos os elementos que vao da silaba ao periodo (e que compoem o dominio da linguistica). Limitamo-nos, portanto, a uma breve ilustragao. Por exemplo, segundo os Principios estabelecidos Pela fonologia nao-linear, o enunciado “Pedro estuda na Universidade de Araraquara” pode ser titmicamente decomposto da seguinte forma: *G. COLLISCHONN, 4 silaba inst . 20s otudos do onion ae om Porgués, in. BISOL, (rg), Intedueso om 'a do portugués brasifeiro, Porto Alegre, EDIPUCRS. "M. LIBERMAN, A. PRIN! Cambridge, Mass., v8, n, a Sos neta ryt. Lingus nai 2, p.249-336, 1977, Se mm 188 Gostariamos de salientar um Unico ponto da hierarquia mostrada acima: 0 ponto de maior proeminéncia da frase é determinado pela unido dos nés fortes que compéem a estrutura. Assim, embora tanto Universidade quanto Araraquara sejam ambas paroxitonas e, tomadas fora do contexto da frase, sejam idénticas do ponto de vista acentual, a silaba ténica de Araraquara (qua) 6 mais proeminente que a silaba ténica de Universidade (da) porque, no conjunto Universidade de Araraquara, a primeira palavra é “Atona” enquanto a segunda é “ténica”. Essa tonicidade extensa se comprova quando transformamos a afirmagao em questao. Em “Pedro estuda na Universidade de Araraquara?’, a entonagao tipica da interrogagdo recai exatamente sobre esse ‘qua’extenso. Esta maneira de analisar os periodos nos revela as causas do fracasso da fonologia classica na tentativa de segmentar a cadeia da fala, ou seja, podemos segmentar um enunciado em fonemas porque estes nao atuam sobre fonemas vizinhos, mas no podemos segmentar um enunciado em prosodemas porque estes atuam ou dependem dos prosodemas de todo o enunciado. Em outras palavras, os elementos prosédicos tem a propriedade singular de determinar (por termo a) outros elementos a distancia. Essa propriedade 6 eminentemente sinfatica, isto 6, ritmica. Assim, um periodo nao é uma simples soma de silabas acentuadas e ndo-acentuadas mas, ao contrario, estas exibem uma organizagao interna, uma hierarquia, um ritmo que da sentido, diregdéo @ intencionalidade a esse periodo. 189 Sabemos que o periodo é o limiar da extensao lingiiistica, A partir dai, entramos no discurso e cabe a semistica determinar se estas estruturas ritmicas podem nos Orientar e de que maneira, no equacionamento da dinamica discursiva. Todas as evidéncias levam a crer que um discurso “bem formado’, qualquer que seja sua extensdo, tem que possuir um e apenas um ponto de proeminéncia ou tonicidade. De fato, quando se trata do plano do contetido, essa ¢ uma lig&o que ja conhecemos desde a Poética de Aristételes', A semidtica greimasiana aprimora essa idéia equacionando ritmicamente a narrativa ao fazer da performance o nucleo do esquema narrativo, sendo esse nucleo antecedido por programas de competéncia e sucedido por programas de sangdo. Além disso, a dinamica das relagées juntivas, isto 6, 0 desenvolvimento sintagmatico da narrativa, se da pela alternancia entre conjungao e disjungao, ou seja, estabelece-se um ritmo que assegura esse desenvolvimento. O prdéprio quadrado semidtico 6 uma representacao espacial do ritmo entre as relagGes juntivas. Posteriormente, as investigagées referentes ao equacionamento das pré-condigdes de geragao de sentido fizeram com que o ritmo extenso do plano do contetido da narrativa pudesse ser explicitado. Essa foi uma decorréncia direta da temporalizagdo das relagdes juntivas no seu nivel mais abstrato, a partir do estabelecimento de uma alterancia de paradas @ continuagées (parada da continuagao, continuacéo a parada, parada da parada, continuagao da continuagao). Quando se trata de plano de expressao, 0 maior ponto de a ha ie com o ritmo 6 a teoria semidtica da cangao - Segundo essa teoria, & possivel estabelecer um CEE "Di Lugar onde na, 08 8 toda a parte da tragécia desde o principio até aquole ° 8880 para a boa ou mé fortuna; @ o desenlace, a parte que ai do inicio da muda il Cultural, 1973, ¢, ap. mt Wn 'ARISTOTELES, Poética, So Paulo, Abri ee 190 paralelo entre o plano do conteudo da letra de uma cancao ea expressao musical. Continuidade, valores emissivos, percursos narrativos conjuntivos, correspondem no plano da expressao a tematizacdo; parada, valores remissivos, percursos narrativos disjuntivos correspondem no plano da expressdo a passionalizagao. Ainda ha um outro elemento no plano da expressdo que é a figurativizagao, relativa a inclusdo do ruido da fala na melodia. No aspecto do andamento, a passionalizagao corresponde a desaceleragao, a tematizagao a aceleracéo e a figurativizacao a instabilidade. As principais caracteristicas musicais da passionalizagao Ao: alongamentos vocalicos, saltos intervalares ascendentes e descendentes e uma ampla tessitura. As principais caracteristicas musicais da tematizagdo sao: repeticao de motivos ritmicos ou melddicos e gradagées. As principais caracteristicas musicais da figurativizagao sao: a instabilidade da melodia, que tanto pode se dar entre um intervalo de duas notas muito préximas (por exemplo, em um intervalo de 2a maior ou 2a menor), como em uma melodia em que nao podemos inferir uma forma previsivel. Quando temos uma letra de valores disjuntivos, combinada a expressdo musical de caracteristicas tematicas de andamento acelerado, notamos que a interpretagao reforca os aspectos positivos ou euféricos da letra. Contudo, a mesma cango interpretada em um andamento lento ou desacelerado enfatiza os valores disforicos. Assim sendo, a configuracdo de uma melodia se baseia na altemancia entre seus elementos constitutivos, quais sejam, passionalizagao, tematizacao e figurativizagao. Vejamos agora, a partir desse quadro tedrico, como poderiamos pensar as questées ritmicas e seus efeitos de sentido, tomando como base de andlise uma cangao popular. °L.TATIT, Semidtica da cangao: melodia e letra, S80 Paulo, Ana Blume, 1994. Se 191 ancAo “NA BATUCA DA VIDA” éacangao “Na batucada da vida”, com e letra de Luis Peixoto. Composto em ano por Carmen Miranda, 0 samba- lico um interesse maior, até que, fa interpretagdo na voz de Elis icio da parceria da cantora com Mariano. Nossa analise ANALISE RITMICA DA CI Otexto escolhido melodia de Ary Barroso 1934e gravado no mesmo ai cangéo nao despertou no publi em 1972, ganha uma segund Regina, no LP que marcava 0 in! oarranjador e pianista César Camargo focalizara estas duas interpretagdes. No dia em que apareci no mundo Juntou uma por¢ao de vagabundo, da orgia atucada De noite teve samba e b Que acabou de madrugada em grossa pancadaria Depois do meu batismo de fumaga Mamei um litro e meio de cachaga, bem puxado E fui adormecer como um despacho Deitadinha no capacho, na porta dos enjeitados Cresci olhando a vida sem malicia Quando um Cabo de Policia despertou meu coragao E, como eu fui pra ele muito boa Me soltou na rua, a toa, desprezada como um céa E hoje, que eu sou mesmo da virada bay lor tenho nada nada que por Deus fui esquecida ada vez mais me esmolambando Seguirei sempre sambando na batucada da vida Letra Em primeit i texto tendo apne bene vejamos como se constr6i o sentido do Ary Barroso. Obse se de andlise apenas a letra da cangao de rvamos nas trés primeiras estrofes uma gee eee Cece 192 debreagem temporal enunciva (cuja marca, no dia, estender- se-a pelas trés estrofes ) em que um narrador discorre objetivamente sobre fatos passados da vida de um eu que, nesse caso, passa a ser o objeto da narrativa, ou seja, deixa de ser uma pessoa e passa a ser um assunto. Os fatos narrados estao vinculados a trés importantes ritos de passagem. quer dizer. eventos de grande importancia do ponto de vista das relacoes intersubjetivas, na medida em que determinam a inclusao do individuo no seio da vida social: 1a estrofe: o nascimento - “no dia em que eu apareci no mundo” 2a estrofe: o batizado - “depois do meu batismo de fumaga” 8a estrofe: o casamento (0 amor) - “quando um Cabo de Policia despertou meu coragao” Esses ritos sao temas que ganham desdobramentos polémicos em cada um dos percursos presentes nessas estrofes. Ainclusao ou exclusdo do sujeito na vida socialfamiliar 6 a forma pela qual se manifestam nesse texto as relagdes juntivas sujeito/ objeto. Assim, na primeira estrofe o tema do nascimento é polemizado pela oposi¢ao entre a isotopia da vadiagem (exclusdo) e a isotopia do bem nascer (inclus4o). De fato essa idéia do acolhimento do recém nascido no seio da familia é pressuposta por contraposi¢ao, pois toda a primeira estrofe desenvolve a linha isotépica da vadiagem (vagabundo, orgia, samba, batucada, madrugada e pancadaria) e a tensao advem da inclusdo do nascimento da crianga (no dia em que apareci no mundo) em meio a essas figuras. A segunda estrofe desenvolve ou amplia essa linha polémica, somente que agora manifestando-a figurativamente pelo rito do batizado. A crianga que nascera em meio aos excluidos vive 0 rito do batismo: nado mama leite mas cachaca, no deita num bergo mas num capacho, nao vive num lar mas na porta dos enjeitados, ou seja, dos excluidos. EE 193 Na terceira estrofe a cangao trata de um aspecto Particular Jusdio: a exclusao na vida afetiva e sexual, que, por sua a sentaria a possibilidade de constituir uma familia, a aia te do tecido social. O sujeito, j adulto, vive o amor e asia esperangas no sujeito do fazer (Cabo de Policia). Este, no entanto, nao faz jus as suas expectativas @ o desenlace resulta numa outra forma de exclus4o, a prostituicao (...me soltou na vida a toa, desprezada como um c&o...). Portanto, 0 tema do sujeito que 6 excluido da vida social digna (por extensao, do valor da felicidade) 6 reiterado ¢ recoberto com diversas figuras até 0 ponto em que, na quarta estrofe, passamos para uma debreagem enunciativa. A debreagem enunciva nas trés estrofes iniciais (a primeira parte) havia afastado 0 que o narrador vivera para o plano dos fatos, transformando seu discurso em histéria, transformando sua propria pessoa em assunto. A partir da quarta estrofe presenciamos uma mudanga no quadro da enuncia¢ao, com o narrador em primeira pessoa (eu), vivendo o momento presente (hoje) e criando um efeito de aproximagao e subjetividade Propicio a exploragao dos elementos passionais. A partir desse momento constrdi-se o tema da resignacao em que o narrador, carente de valores (topo qualquer parada) e decepcionado com © destinador (que por Deus fui esquecida) nao desenvolve nenhum programa de liqiiidacao de falta mas estabelece um Novo percurso desencadeado por uma nova relagao destinador- destinatario (seguirei sempre cantando na batucada da vida). Vejamos agora os elementos narrativos presentes no ee a primeira parte da letra desenvolve trés No nivel Spa ee esis ee eaaies aie Naa lemos uma sucessao de rompimentos de (simulacros) 3 7 NOs Construidos pelo sujeito da enunciagao Sujeito de est ave estrofe 0 contrato (imaginario) do Como sujeito do fame ° Sujeito do fazer familia; na segunda fazer Cabo de Policia. ene Na terceira com o sujeito do . lodos os casos temos rupturas dos 194 contratos, 0 que alimenta a frustragao do sujeito, quer dizer, sua insatisfagao pela auséncia do valor (a felicidade) concomitantemente com a decep¢ao com os sujeitos do fazer (a familia, a comunidade, o amante). Finalmente, na quarta estrofe (que, como vimos, apresenta uma debreagem enunciativa), temos um sujeito que para momentaneamente para interpretar os fatos. Este sujeito sabe que seus simulacros foram quebrados porque os sujeitos do fazer nao cumpriram suas partes nos contratos. Mais que isso, 0 simulacro existente com o destinador (Deus) também foi quebrado pois E hoje...que eu por Deus fui esquecida. Esta parada momentanea, instante de avaliagao do sujeito apaixonado nao da lugar a nenhum programa de liquidagao da falta, seja pela vinganca, seja pela revolta, mas antes parece aspectualizar-se durativamente, 0 que configuraria a paixao da resigna¢ao. Assim, a organizacao geral do plano do contetido dessa letra se estabelece a partir dos ritos de passagem, que representam trés pontos de inflexao potenciais no enunciado, isto 6, Momentos que apontam para a possibilidade de uma reversdo da condi¢éo de exclusdo social que caracteriza a narrativa do sujeito. A estruturagao do plano do conteudo da narrativa em questo a partir desses trés pontos torna-se mais clara se, para explicita-la, incorporamos a nogao de ritmo. O regime de altemdncias -0 ritmo- que se estabelece entre paradase continuagdesno nivel profundo, isto 6, na configuracao mais abstrata do percurso gerativo, possibilita 0 desenrolar da narrativa, uma vez que este depende da nogao de obstaculo. ‘Assim sendo, e tendo em mente que nao existe continuidade sem interrup¢o, a continuidade de uma vida caracterizada pela exclusdo social se constréi na sua contraposi¢ao com a possibilidade de inclusdo. Numa formulacao mais abstrata, cada rito de passagem representa uma parada na continuidade da vida de exclusao, que no caso, nao dura (pois a inclusao naose realiza), uma vez que logo em seguida ha uma parada dessa a 195, faz com que a continuagao dessa condicao seja se altemancia entre paradase continuagéesgarante narrativa. interessante notar que, no final da entre paradas e continuagées é incorporado ‘ i na sua nova narrativa, qual ‘sou mesmo da virada) L a Narr + Ql pelo sujeito ( mm novo destinador individual (vida), i inio de ul ja, a uela sob o dominio x al a om sposiggo ao destinador social Deus. Essa nova narrativa nao se construira mais a partir da contraposi¢ao da idéia de exclusao social com a de inclusao, uma vez queo sujeito nao prevé mais a possibilidade de deixar a vida a margem da sociedade. E interessante notar que a propria idéia de ritmo da narrativa é ulo da cangao “Batucada da vida”. parada que retomada. Es o desenrolar da narrativa, esse ritmo: figurativizada pelo tit t - llustrando o desenrolar da narrativa no quadrado tensivo: 4 Continuagao da continuagao Continuagao da parada oisjungao conjungéo Parada Parada da parada ndo-disjungao ndo-conjungao O ponto de partida do texto 6 uma continuagao da continuagdo, ou seja, a conjungao com a vida de exclusdo social {a da batucada, vagabundo, orgia, etc.). A essa continuagao contrapde-se uma parada (0 batismo), ou seja, um momento em que se esboca uma possibilidade de quebra dessa conjungao (nao-conjun¢ao) com a vida de exclusao social. Essa parada dura pouco (ou seja, a continuagdo da parada nao dura), 0 que faz com que a disjungao com a vida de exclusdo nao acontega. Como conseqiéncia, da-se 0 retorno & continuagao da vida margem dos valores sociais. O mesmo esquema se aplica a0 momento do segundo rito de passagem (casamento). Na ultima estrofe, no entanto, o movimento dessa narrativa cessa, isto é, 196 a narrativa configurada a partir da agao do destinador social Deus cessa, pois nado prevé a possibilidade de parada para se contrapor a situagao da conjun¢ao com a vida de exclusao social. Assim sendo, a incorporagaéo de um novo destinador (individual) inauguraria uma nova narrativa. No entanto, a narrativa cujo o destinador é Deus e cuja direcao se estabelece a partir da meta de incluso social cessa.. A partir desse quadro do plano do conteudo podemos agora examinar mais detidamente o plano de expressao, quer dizer, a linha melédica em cada uma das duas interpretagdes dessa cangao. Na versdo de Carmen Miranda, 0 samba-can¢ao de Ary Barroso ganha uma interpretagao relativamente acelerada (M.M=90, tempo total = 1,29 min.), nos moldes usuais das interpretagdes de Carmen. Uma interpretacao dessa natureza representa uma sele¢ao de valores emissivos pelo sujeito da enunciagao, ou seja, de valores de continuidade que tendem a celebrar uma conjungao entre sujeito e objeto. Assim sendo, independentemente do contetido do texto verbal (a letra), uma cangdo interpretada sob 0 regime da aceleragao tende a trazer para o primeiro plano os elementos eufdricos virtualmente instalados no texto verbal e, concomitantemente, a ofuscar seus elementos disféricos. Embora 0 texto da cangao contenha elementos em numero mais que suficiente para configurar uma tematica disférica da marginalizacao, a interpretacao acelerada de Carmen Miranda, pelo simples fato de ser acelerada, acaba por enfatizar o sentido da resignagao, que se manifesta nos versos que fecham a cangao: «_/Seguirei sempre sambando/ Na batucada da vida.... Esta selegdo dos valores de continuidade 6 efetivada, como vimos, gragas a aceleragao imprimida ao andamento e que tem como conseqiléncia a despotencializagao passional dos saltos melédicos e uma neutralizagao das oposigdes dinamicas. Na medida em que, num andamento mais acelerado, as notas tem uma menor dura¢ao, oS saltos perdem uma parte consideravel de seu componente tensivo. Isto significa pees eae 197 que para que @ tensao melodica se manifeste nao basta a presen¢a do salto melodico mas & necessario também que este dure, quer dizer, que ocupe um espago no tempo. © mesmo raciocinio vale para as variacdes dinamicas, pois 0 efeito dinamico mais imediato da velocidade 6a supressao das diferencas de intensidade de modo que, no limite, os termos da categoria da intensidade (fraco/forte) tendem a se neutralizar, Quando ocorre esse fenémeno, a dinamica, na qualidade de categoria articulavel do plano de expressao, deixa de existir e, portanto, deixa de desempenhar uma fungdo na geragao de sentido. Em outras palavras, S@ tanto a fungao semidtica como a fungao semi-simbdlica S40 fungGes que se caracterizam pela gorias do plano de expresso pressuposic¢ao reciproca entre cate, e categorias do plano do contetido, entao, na falta de um desses termos, como 6 o caso presente de neutralizagao de uma categoria da expressao, deixa de existir fungdo e nao ha producaéo de significagao. Nessa leitura de Carmen Miranda, a curva dindmica e a curva entoativa da melodia sofrem a mesma determinagaéo do andamento e tendem a se “concentrar’, resultando, como vimos, numa espécie de continuidade sem grandes tensdes, de modo que 0 efeito de sentido criado por essa interpretagdo sobreponha a resignagao elementos como euforia, alegria, etc. A gravagao de Elis Regina mostra um cenario completamente oposto a este. Gravada em 1982, apresenta um grande contraste de andamento se comparada com a versao de Carmen. Esta, como vimos, gravou em M.M.= 90,¢4 interpretagao de Elis foi realizada em M.M.= 44. No entanto, parece-nos que as consideracdes sobre o andamento nao 40 suficientes, em si mesmas, para dar conta de todos 0S efeitos de sentido presentes na leitura feita por Elis Regina. Noss@ hipétese 6 a de que os elementos dindmicos participam secididamente da construgao de sentido na interpretaca0 de Gis Regina, embora estejam ausentes na interpretagao 4¢ en Miranda . Sendo vejamos. A rigor, a leitura de Carmen aT 198 despreza os recursos de pontuacao oferecidos pela dinamica de modo que sua interpretagao 6 plana, continua. Ademais, no sao simplesmente a voz da intérprete, mas todos os elementos envolvidos no arranjo vocal-instrumental que se submetem as variagdes dinamicas. Assim, em seu registro nao ha espacgo para siléncio, ou seja, nao ha interrupgdes, quebras, cesuras, mas, a0 contrario, toda a duragao da cangao é preenchida seja pela voz de Carmen, seja pelos instrumentos que a acompanham. Dificil pensar em uma interpretacao mais continua e uniforme que esta. Por outro lado, Elis Regina impée um fraseado, uma descontinuacao do texto somente possivel gragas adinamica, quer dizer, ao contraste oferecido entre o piano e 0 forte. Ao integrar em sua interpretagao os elementos dinamicos aintérprete consegue introduzir saliéncias de tal ordem no texto que elementos intensos antes dispersos (enjeitados, orgia, capacho, c&o, vagabundo, esmolambando, etc...) passam a reverberar, ou seja, passam a ocupar um maior espaco no texto nao somente porque duram mais, mas também porque sao mais intensamente enunciados. Eis 0 que nos parece ser uma das estratégias dessa leitura de Elis Regina: tomar elementos que antes estavam dispersos em meio a tantas outras figuras constituintes de isotopias e transforma-los, avulta-los, fazer com que ocupem um espago dentro do texto. Esse, no entanto, 6 um espaco forjado pela dinamica, pela forga e nado apenas pela duragao. Desse modo, a energia de emissao da visibilidade ao que antes era apenas confusamente percebido. E por essa razéo que 0 fragmento “desprezada como um cao...” soa tao diferente em Elis e Carmen, na primeira como profunda amargura e na segunda como uma resignacao proxima da indiferenca pois que 6 indiferentemente cantado em meio a outros fragmentos. Trata- se, para usar as palavras de Greimas, de uma diferenga no perfume timico que emana dos dois textos. E evidente que o mais importante aqui nao 6 a intensidade per se, mas 0 raio dinamico, 0 intervalo din&mico dentro do qual acontece a can¢ao. Em alguns momentos a intérprete parece apenas sussurrar, em /Annn Enns nAnRsSRAnEEESEERATES EO SEnSEESEEEEEESEEEEE SS 199 outros aproxima-se do grito; no intervalo entre uns e outros ela constréi o seu sentido da can¢ao. No caso das duas interpretagGes analisadas, a escolha de Carmen foi a de concentragao dinamica, enfatizando a continuagdo. A escolha de Elis Regina foi a da expansao dinamica enfatizando a parada. Finalmente, 6 preciso observar trés marcas distintivas do estilo de construgao da linha dinamica em cada uma das intérpretes e que representam trés dimensées do texto. Numa dimensdo mais ampla, englobando todo o texto, vemos que a interpretagaéo de Carmen 6 relativamente plana, sem a acentuagao desta ou daquela parte do texto, enquanto que a interpretacao de Elis Regina é marcada por uma ritmica dinamica entre ‘vales’ - onde a intérprete desce ao nivel da fala -e apices - onde se aproxima do grito. Seja nesses vales, seja nesses apices, cria-se um efeito de aproximagao do sujeito da enunciagao. Elis Regina consegue produzir — exclusivamente pela dinamica — um ponto de inflexdo maxima no texto, ponto esse que depende de todo o percurso desde o primeiro compasso da melodia. O efeito de sentido de climax coincide com um saber do sujeito no momento em que se desfaz seu simulacro. Numa dimensdo mais restrita, observamos novamente duas estratégias diferentes de acentuagao dinamica por parte de cada uma das intérpretes. Enquanto Carmen mantém uma dinamica constante no interior de cada frase musical (cada estrofe comporta duas frases musicais), Elis Regina constréi pequenos climax que antecedem o climax final, desenvolvendo assim uma gradagao dinamica na ordem extensa. Finalmente, dentro de cada estrofe, Carmen destaca claramente cada silaba tonica de cada palavra. Esse, de fato, é © Unico recurso dinamico utilizado por Carmen embora esse excesso de intensidade sempre seja acompanhado de um aumento na durago da vogal. Em alguns trechos, esse aumento na duragao da vogal acentuada chega a tal ponto que’ cae 200 desaparoce a silaba subsequente, como em fumag..., puxad..., malic..., otc. Esse tipo de acentuagdéo quase nunca ocorre na interpretagdo de Elis Regina, que prefere destacar palavras intelras a silabas no interior de cada palavra. E evidente que, desse modo, Elis acaba por acentuar os conteudos dessas palavras que, como ja dissemos, passam a ocupar uma maior espago no texto. Assim 6 com malicia, desprezou, cao e, principalmente, coragéo. Ou seja, enquanto Carmen Miranda destaca silabas, Elis Regina destaca palavras e frases. Mais que isso, Elis Regina também atenua frases inteiras que precedem as frases acentuadas, como na 6* estrofe, de modo que 0 desprezo que aparece na segunda frase 6 muito mais intenso do que seria caso a frase precedente nao fosse atenuada. O sujeito, na interpretacao de Elis, 6 muito mais desprezado que 0 sujeito na interpretacdo de Carmen. Essas consideracgées sobre a dindmica, temos que admitir, sao quase que intuitivas. Ainda estamos muito longe do estabelecimento de uma teoria capaz de descrever o ritmo da dinamica melédica de uma maneira mais formal e menos impressionista. De qualquer forma, este trabalho procurou mostrar que 0 ritmo 6 um elemento constante no processo de criag&o de sentido, tanto no plano do contetido como no plano da expresso. A op¢do pela énfase no plano da expressdo se deve ao fato deste ter sido menos contemplado pelas pesquisas semidticas, alm de representar um importante elemento no estudo da cangdo. Esta perspectiva de abordagem da linguagem musical poderia talvez contribuir para o desenvolvimento de uma teoria do percurso gerativo da significagaéo para o plano de expressdo, meta estabelecida por Greimas para o que chamou de “semidtica do futuro”. 201 REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS D.L.P.BARROS, Teoria do discurso: fundamentos semidticos, ‘Sao Paulo: Atual, 1988. J.L.FIORIN, Astucias da Enunciagao, Sao Paulo, Atica, 1999, J.FONTANILLE, e C. ZILBERBERG, Tensao e significagao, Sao Paulo, Discurso Editorial:Humanitas/FFLCH, 2001. AJ.GREIMAS & J. COURTES, Sémiotique. dictionnaire raisonné de la théorie du langage, Paris, Hachette, 1979. 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