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O FUTURO ANTERIOR: GIORGIO AGAMBEN E O METODO PARADIGMATICO Caio Mendonca Ribeiro Favaretto* Resumo: Um dos aspectos mais polémicos do projeto Homo Sacer, que marcas a fase mais recente do pensamento do filésofo italiano Giorgio Agamben, foi a estabelecimento do campo de concentragio como o paradigma politico fundamental do Ocidente. Nesse contexto, o presente artigo busea apontar a centralidade do uso bastante especifico que Agamben fari do método paradi fundamentalmente elaborado & partir das reflexdes de Michel Foucault. Sua compreensio parece mi 10, mas também langar luz sob wma 86 tocar uma das linhas de forga do projeto do pensador ital perspectiva pouco abordada na obra do autor. Palavras-chave: Giorgio Agamben, Mé:odo, Paradigma, Exemplo. It is possible that to seem — itis to be, As the sun is something seciming and itis. ‘The sun is an example, What is seems Ie is and in such sceming, all thing are. Description without place, Wallace Stevens.? Poderiamos afirmar que o projeto Homo Sacet, que matcara o pensamento de Giorgio Agamben em sua fase mais recente, busca colocar em operacio uma critica do aparato politico ocidental, sustentada por uma leitura da modernidade que aponta a persisténcia em seu niicleo de dispositivos ligados a uma metafisica negativa de origem juridico-teolégica. Tal critica sera construida fundamentalmente a partir de uma leitura dos estudos elaborados por Michel Foucault em torno de um fenémeno préprio 4 dindmica do Estado Modetno: a insergio da vida humana na esfera da administragio dos corpos e da gestio calculista da vida através de uma série de intervengdes e controles reguladores: uma biopolitica da populagio. Através de uma genealogia do poder, Foucault buscar demonstrar uma mudanga fundamental entre os séculos XVII e XVIII na passagem de um modelo de poder soberano ao poder disciplinar. No entanto, 0 filésofo italiano busca acrescentar 20 trabalho foulcaultiano um segundo debate, realizado entre Carl Schmitt € Walter Benjamin em torno da relagio entre soberania ¢ estado ' Mestrando do Departamento de Filosofia. FFLCH — USP. Bolssta FAPESP. F-mail favarett.caio@ gmail.com 2 STEVENS, W, Description without Place [Poem]. The Sesanee Review, p. 559. CoferonseticaeFhsstaPelica | Nimo 2 | Papa 08 de excegio, Para o filésofo italiano, a modemidade estaria marcada pela coincidéncia progressiva entre espaco politico, gestio da vida e a generalizagio de disposit Estado de Bxcegio, afirmando nfo a polis, mas o campo de concentragio, como o paradigma politico fundamental do Ocidente. "Se a politica parece hoje atravessar um duradouro eclipse, (¢ provvel que) isto se dé precisamente porque ela eximiu-se de um confronto com este evento fundador da modernidade. Os 'enigmas’ (Furet, 1985 p.7) que nosso século (século XX) props 2 razio ivos proprios ao historica € que permanecem como atuais (0 nazismo € s6 0 mais inquietante entre cles), poderio ser solvidos somente no terreno — a biopolitica — sobre o qual foram intrincados. Somente em um horizonte biopolitico, de fato, sera possivel decidir se as categorias sobre cujas oposigdes fundou-se a politica moderna (direita/esquerda; _privado/piblico; absolutismo/democracia, etc.) ¢ que se foram progressivamente esfumando a ponto de entrarem hoje numa verdadcira ¢ propria zona de indiscernibilidade, deverio ser definitivamente abandonadas ou poderio eventualmente reencontrar o significado naquele prOprio horizonte que haviam perdido, E somente uma reflexio que, acolhendo a sugestio de Foucault ¢ Benjamin, interrogue tematicamente a relagio entre vida nua e politica que governa secrctamente as ideologias da modernidade aparentemente mais distantes entre si podes sair © politico de sua ocultagio, € a0 mesmo tempo, restituir 0 pensamento A sua vocagko pritica"3 Voltando as primeiras paginas de Homo Sacer - O poder soberano ¢ a vida nua I, ‘vemos que o pensador italiano busca desenvolver em scu livro trés ideias centrais, das quais, no presente artigo, nos ocuparemos somente da tiltima, Primeiramente, Agamben apresenta a tese segundo a qual a relacio politica original setia 0 bando, € no © contrat social, Em seguida, de que a fungio do poder soberano é a produgio da vida nua. B por fim, a idcia de que seria o campo de concentrasio, € no a polis, o paradigma biopolitico fundamental do Ocidente. Essa iltima afirmagio ocupa largamente as criticas ao trabalho mais recente de Agamben c parece merecer uma anilise bastante detida. © filésofo italiano declara que: (© nascimento do campo em nosso tempo surge (...) como um evento que marca de modo decisivo 0 préptio espaco politico da moderidade. Ele se produz no ponto em que o sistema politico do Estado-Nag2o moderno, que se fundava sobre 0 nexo funcional entre uma determinada localizagio (0 territério) © um determinado ordenamento (0 Estado), mediado por regras automaticas de inscrigio da vida (0 nascimento ou nagio), entra em crise AGAMBEN, Homo Sacer p. 12 Coteros se ticae FssfaPelica | Nimo 2 | Papa 10 duradoura, € © Estado decide assumir diretamente entre as proprias fungoes ‘0s cuidados da vida biolégica da nagio* Assim, o campo seria o espaco que se abre quando o estado de excegio comega a se tornar a regra’, como o mais absoluto espaco biolitico ja criado, uma vez que nele se defrontam sem qualquer mediagio o poder e a pura vida biolégica, configurando assim 0 paradigma do espaco politico, sua matriz escondida, 0 novo nomos biopolitico do planeta.® Se isto é verdadciro, se a esséncia do campo consiste na materializagio do estado de excegiio e na consequente ctiago de um espago em que a vida nua e norma entram em um limiar de indistinglo, deveremos admitir, entio, que nos encontramos virtualmente na presenca de um campo toda vez que é crlada uma tal estrutura, independentemente da naturcza dos crimes que ai sio ccometidos e qualquer que seja a sua denominagio ou topografia especifica.” Diante de afirmacdes desse calibre, compreende-se as profundas controvérsias que surgiram em torno da obra. De fato, a ideia de que, mesmo cinquenta anos apés a derrota do nazismo, 0 fantasma de Auschwitz se faria presente na trama mais profunda de nossas vidas politicas, ou antes, setia sua tealizagio mais verdadeira, supera de longe as previsoes mais pessimistas da esquerda. Como afirma Durantaye, comparada a proposta de que 0 campo de concentragio seria 0 paradigma biopolitico de nosso tempo, a diivida adorniana a respeito da possibilidade da poesia apés Auschwitz talvez parecesse timida, Num comentitio menos conhecido presente em ensaio escrito entre 1939 ¢ 1940 sobre a politica de deportagdes na Alemanha, Adorno chega a afirmar: “vivemos na cra dos campos de concentracio”, algo bastante razoavel para quem testemunhava a inédita barbaric da Segunda Guerra. No entanto, Agamben busca apontar um cenatio de natureza diversa. Pata ele, 0 campo nfo seria um terrivel exemplo excepcional da civilizagio, mas ao contritio, a regra para a qual nos encaminhamos perigosamente. Lim dos ataques mais contundentes a tese agambeniana classificou-a como uma “provocacio inaudita” (sngercure Provokation). Uma série de outras eriticas seguitam 0 caminho tracado por Dominick LeCapra, que veré a tarefa de Agamben como “a realizagio de uma critica obstinada e radical do presente diante do passado, delegando um papel central 4 aporia, “AGAMBEN, Homo Sacer, p. 181 5 AGAMBEN, Homo Sacer, p. 175. “ AGAMBEN, Means Without Find. p. 41 AGAMBEN, Means Without End. p. 181 § ADORNO, Gesammekte Schrifien, Coteros se icee FhssfaPelea | Nimo 23 | Papa tt 20 paradoxo, as hipérboles ¢ estratégias provocativas”, Allison Ross afirma ainda que “Agamben inverte a metodologia ascendente de Foucault ¢ nos deixa a pergunta sobre qual o papel teria uma reflexdio acerca de circunstincias extremas € 0 que ela diria a respeito dos fendmenos que busca decodificar.”" © compatriota Antonio Negri apontari ainda a impossibilidade de generalizagio de Auschwitz: “Vida ¢ morte nos campos representam no mais que vida € morte nos campos — um epis6dio de uma guerra civil no século XX, um espeticulo horrivel do destino do capitalismo e da ideotogia desmascarando sua vontade”™. Ja © questionamento de Ernesto Laclau bascia-se numa critica de sua metodologia etimologica ou genealogica. Segundo o pensador argentino, “lendo seus textos, comumente temos impressio de que ele pula muito rapidamente do estabelecimento da genealogia de um termo, um conceito € uma instituigio, para determinar seu fancionamento no contexto contemporineo, que de certa forma a origem detém uma prioridade secreta determinante sobre o se segue dele.”"*Assim, como saldo da gencalogia operada por Agamben terfamos no somente um estruturalismo engessado, mas também 0 aparecimento de um viés teleol6gico, ironicamente dois adversitios do proprio projeto agambeniano, A partir dal, Laclau sugere que © niilismo das conclusdes do pensador italiano, negando a potencialidade da diversidade estrutural na atual espera politica c, por conseguinte, de toda forma de ago politica, Tal cenirio de aporia estaria resumido justamente na imagem do campo de concentragio como paradigma da politica ocidental, “unificando a totalidade do processo de construgio da politica ocidental em torno do extremo ¢ absurdo paradigma do campo de concentragio, Agamben faz mais do que apresentar uma histéria distorcida: ele bloqueia qualquer investigacio das possibilidades emancipat6rias abertas pela nossa heranca moderna’”®* De fato, talvez possamos estabelecer um horizonte comum das eriticas ao primeiro volume da série Homo Sacer, 20 localizar um ponto fundamental que percorre transversalmente as quest®es apontadas e que, paradoxalmente, encontra-se ausente na maioria dos comentirios acerca da obra do autor. O alcance de sua tese parece residit no uso bastante especifico que Agamben fari do métado paradigmético, apropriado a partir das reflexdes de Michel Foucault. Assim, sua compreensio parece no s6 tocar uma das linhas de forga do projeto do pensador italiano, mas também lancar luz sob uma perspectiva pouco abordada na obra do autor. ° Gf LACAPRA, Approuching Limit Events: Siting Agamben. p.l6l, e TERNES, “Die komumende Gemeinsehafft und exzentrisehe Paradonie.” p. 116 1 ROSS, “The Agamben Effect" p. 6 3 NEGRI, Antonio and Hardt, Michael. Empire. 1% LACLAU, Bare Life o Social Indeterminacy? p. 12 PLACLAU. Bare Life or Social Indeterminacy?, p. 22 Coferon ce ticaeFhsstaPelica | Nimo 2 | Papa 12 ‘A exemplatidade do campo de concentragio © conceito de paradigma surge pela primeira vez na obra de Giorgio Agamben em A Comunidade que vem, publicado em 1990 € coincide com seus escritos de preocupacio mais estritamente politica, tematizando nao s6 a queda da Unio Soviética, mas também o massacre da Praga da Paz Celestial. © texto parece buscar uma dupla contribuiggo. De um lado, fazer um balango de dois eventos que matcaram a histétia politica do século XX, ¢ de outro, responder a um debate central no cenério da esquerda francesa, que envolvia a possibilidade de imaginarmos uma comunidade politica cujo pertencimento nfo se submetesse a determinados ctitérios normativos vinculados a cileulo utilitirios. Assim, por algum tempo, autores como George Bataille, Maurice Blanchot, Jean-Luc Nancy dedicaram-se a pensar uma comunidade que nfo fosse determinada por um modelo funcionamento da vida social funcionalista. A questio gira em tomo do problema da redugio da comunidade, seja a uma colegio de individuos separados, seja a hipéstase de uma substincia comum tal como encontramos em operacio no fascismo" Agamben adentraré o debate buscando compreender a relacio entre o individual ¢ a comunidade como uma relagio entre o todo € a parte. Seri nesse contexto onde apareceri a nogio do paradigma. Exemplo, titulo do terceiro capitulo de 4 comunidade que vem, inicia-se apresentando a discussio entre o geral ¢ o particular que, segundo Agamben, “tem suas origens na linguagem”®, Aqui, vemos a antinomia cléssica segundo a qual, 20 chamarmos algo de frvore, atado ou amargo, o singular concreto dessa coisa seri transformado em um membro de um classe geral definida pela propriedade possuida em comum. A palavra “grvore”, afirma Agamben, ‘“designa toda as arvores indiferentemente, na medida em que postula 0 proprio significado universal no lugar de arvores particulares ¢ inefévcis?, transformando assim singularidades em membros de uma classe — procedimento este que nos lembraria a form jo de comunidades politicas cuja comunhiio é dada por caracteristicas compartilhadas. Dessa forma, a linguagem, assim como a politica, permaneceria sempre entre a universalidade de suas expressdes generalizadlas ¢ a singularidade das entidades denominadas que, 20 fundamentarem esta mesma _generalizagio, restariam —inadequadamente teptesentadas", Agamben argumenta que existiia, entretanto, uma nogio que escaparia a essa A esse respeito: BATAILLE, La souveraineté; NANCY, La communauté désoeuvsée S AGAMBEN, The Comming Community, p.9 AGAMBEN, The Comming Community, p. 9 © Podemos verificar ressonincias desta mesma preocupacio nas piginas finals de Homo Sacer, quando Agamben, a0 recomar a tese do bando como relasio politica origindria, afirma: "A primeira destas teses (acerca do bando), a0 ser reevocads, pe em questo toda a teoria da origem contratual do poder estatal¢, juntamente, Coteron de ficae FbsstaPelia | Nimo 2 | Papa 18 antinomia, a saber, conceito de exemplo: “Nem particular, nem universal, o exemplo é um objeto singular que se apresenta enquanto tal", ou seja, o exemplo é simaltaneamente membro de um conjunto e seu critério definidor. Ao prover seu proprio crtério de incluso, 0 exemplo permaneceria ambiguamente posicionado na classe a qual melhor representa, nem totalmente incluido nela, nem dela totalmente exclufdo. Essa afitmacio aparamente simples tera extrema importincia nas obras posteriores do filosofo. Nos anos que seguem a publicagio, Agamben emprega 0 conceito de paradigma com frequéncia crescente. Encontramos, assim, a fonte de amor ou 0 espelho de Narciso, em Estincias, como 0 “paradigma exemplar” do “fantasma convertido em auténtico objeto de amor”, Em Meios Sem Fin, dedicado de modo geral a “encontrar paradigmas politicas genuinos”” encontramos Agamben destaca 2 figura do refigiads de Hannah Arendt, “o paradigma de uma nova consciéncia histérica”. Em Homo Sacer, 0 conceito ocupari fungio central no apenas por operar adequadamente as nogdes de inclusio / exclusio ao descrever a natureza paradoxal da soberania, mas também como base metodolégica para os escritos seguintes. No entanto, apés sua publicacio e as polémicas subsequentes, Agamben buscar, em uma sétie de cursos € entrevistas, elucidar 0 tema: “Eu procurei aplicar 0 mesmo método genealégico ¢ paradigmatico que Foucault implementou”."Para seguirmos nossa reflex portanto, compreender de que modo operava 0 paradigma no pensamento foucaultiano, Assim como o pensador italiano, Michel Foucault nfo nos oferece uma defini¢io do que entende precisamente por paradigma nos trabalhos em que inicialmente empregava seu uso, de modo que ele precisa ser, de certa forma, deduzido de seu método, De fato, com 0 ria sentido que Agamben atribui ao termo, Foucault o utilizaré em apenas um texto, Ein His da loucura na idade cléssca, Foucault menciona O Sobrinbo de Rameau, de Diderot, segundo ele “un paradigne raccourc de Pbistore?”™. Poderiamos afirmar que para o pensador francés, assim como para Agamben, 0 significado do termo nio estaré distante do que eta para Platio, ou seja, um exemplo, 0 equivalente latino do grego paradigma, ow “para-deigma”™®. O paradigma mais not6rio elaborado por Foucault, do qual Agamben far uso claro, sera 0 paniptico de Vigiar ¢ Pamir, uma figura toda possibilidade de colocar 4 base das comunidades potticas algo como um pertencimento (seja cle fundamentado em uma identidade popula, nacional, religiosa ou de qualquer outto tipo). 1 AGAMBEN, The Comming Community, p. 10. MAGAMBEN, Estincias: a palavza eo fantasma na cultura ocidental, p. 99 ™AGAMBEN, Means Without End, p. 9-10 2 AGAMBEN, G. Entrevista com Giorgio Agamben por Gianlucs Sacco, p. 3 ® FOUCAULT, M. Histoire de la foe &Tige classique, p. 432 ® Verifica-se uma origem cortelata do termo Beil, no alemio. Ver: AGAMBP3 14, |, The Comming Comunity p, Coteros se ticaeFhssfaPelica | Nimo 2 | Papa 14 emblemitica de uma nova era do poder disciplinar ¢ do controle governamental. A ideia origina-se a partir da obra do utilitarista Jeremy Bentham, publicada em 1787, que pensava uma prisio circular em torno de um fosso comum onde os prisioneiros pudessem ser observados ininterruptamente: © dificio € circular. Os apartamentos dos prisioneitos ocupam a cireunferénciaVocé —_ pode chamétos, se quiser, de celas. Essas celas sfio sepatadas ntre si e os prisionciros, dessa forma, impedidos de qualquer comunicacéo entre eles, por partiges, na forma de raios que saem da circunferéncia em diregio a0 centro, estendendo-se por tantos pésquantos forem —_necessfitios para se obter uma cela maior. O apartamento do inspetor ocupa o centro; vocé pode chamé-lo, se quiser, de alojamento do inspetor. (..) Cada cela tem, na circunferéncia que di para o exterior, um janela, suficientemente larga nfo apenas para iluminar a cela, mas para, através dela permitir luz suficiente para a parte correspondente do alojamento. A circunferéncia interior da cela é formada por uma grade de ferro suficientemente fina para no subtrair ‘qualquer parte da cela da visio do inspetor* Embora 0 Parlamento inglés tenha de fato levado a cabo a ideia de Bentham © em 1794 construido em Londres uma prisio a partir do projeto, do ponto de vista da causalidade histérica, no podemos afirmat modelo exerceu uma influéncia determinante. No entanto, parece ser justamente © ponto do método foucautiano, Para o pensador francés, o patadigma do panéptico exemplificava muito mais do que Bentham jamais imaginaria. No pandptico, Foucault parece haver encontrado o que considerava as coordenadas politicas escondidas da época de Bentham, profundas estruturas historicas subjacentes as fachadas de edificios individuais. Assim, as demonstragdes piblicas do poder sobetano préprias aos eventos de tortura ¢ imolagio descritos longamente por Foucault, estariam dando lugar a formas mais sutis de exercicio do poder, buscando nao intimidar seu stiditos pelo espetaculo da violéncia, mas observi-los continuamente, Como afirma Durantaye, “entre as linhas dos desenhos de Bentham, Foucault vislumbrou 0 sonho do controle institucional que estava sendo realizado cem sua totalidade pela primeira ver na sua contemporancidade.”™ A abordagem historica realizada através de paradigmas parece colocar em questio nto somente as estruturas causais dos métodos histéricos tradicionais, mas também o proprio % BENTHAM, 0 Pandptico ou a casa de inspesio, p18 ® DURANTAYE, Giorgio Agamben: critial introduction, p. 216. Coterosseticae FssfaPelia | Nimo 2 | Papa 15 direito de Foucault denominar se um historiador. Q paradigma do pandptico apresenta-se niio somente como um exemplo de grande alcance temporal mum determinado momento histérico, mas um exemplo de longo alcance através do tempo. Ele “foi uma instincia representativa de um fendmeno maior ¢ que aspirava mais, tanto projetada no futuro como um objetivo, quanto instaurada no presente como padri.”™® Nese momento, jé podemos vislumbrar algumas questdes semelhantes que também serio enfrentadas por Giorgio Agamben e seu uso do paradigma do campo de concentragio. Bi possivel dizer que, apesar de lidar com um modelo prisional, 2 ideia de Bentham parece atemorizar no pelo projeto em si, mas pelo fato de apresentar-se como prentincio de um futuro obscuro, o esquema geral de uma estrutura social que hoje possui ainda maior relevancia € atualidade em nossas sociedades marcadas pelo medo e inseguranca. Dessa forma, afirmar como Agamben que o patadigma de nosso tempo seria o campo de concentragio seria no apenas atingir 0 passado recente, mas também 0 presente ¢ um faruro potencialmente tenebroso. De modo a esclarecer as crescentes diividas a respeito do uso do conceito de paradigma, Agamben publica em 2008, Signatura Rerum, obra em que dedicaré atengio especial a questio do método. A discussio acerca do paradigma inicia.se justamente por uma comparacio entre 0 uso do conceito por Michel Foucault e Thomas Kuhn. Assim, como Kuhn deixa de lado a individuagio © 0 exame das regras que constituem uma ciéncia normal, para concentrar-se nos paradigmas que determninam 0 comportamento dos cient © primado tradicional dos modelos juridicos da teotia do poder, pata fazer ‘emergir em primeiros planos as miiltiplas disciplinas ¢ as técnicas politicas por meio das quais o Estado integra dentro de si o cuidado da vida dos individuos. Eassim como Kuhn separa a ciéncia normal do sistema de regras que a define, do mesmo modo Foucault distingue frequentemente a “normaliza¢io”, que ccaracteriza o poder disciplinar, do sistema juridico dos procedimentos legais®” -0s, assim Foucault poe em questio Segundo Agamben, haveria uma diferenca de interesse por parte dos dois pensadores. De fato, o interesse maior de Foucault nfo estaria em questées estritamente epistemolégicas, mas sim politicas - mais precisamente, no modo como os enunciados (cientificos) estabeleceriam entre si regimes de poder por meio de discursos de legitimagio, como ®DURANTAYE, Giorgio Agamben, p. 217. AGAMBEN, G. Signatura Retum, p. 14 Coteron settee FhssfaPelia | Nimo 2 | Papa 16 governariam uns aos outros. Além disso, o pensador francés no buscaria tratar dos sujeitos indlividuais das comunidades cientificas, mas sim da “existéncias andnima de enunciados”™ Foucault desloca a atengio dos critérios que permitem a constituicio da ciéncia normal em rela¢ao os sujeitos (os membros de uma comunidade cientifica) até © puro dar-se de 'conjuntos de enunciados' e de “figuras” independentemente de qualquer referéncia aos sujeitos (‘um conjunto de enunciados adquire importincia”, “a figura..assim desenhada.” Tal comparacio parece permitit a Agamben desenvolver um conceito que € pouco trabalhado textualmente pelo pensador francés. No entanto, como afitma Edgardo Castro, para Agamben “‘o panéptico em Vigiar ¢ Pamir, o grande parto na Hist6ria da Loncura, a confissio ou o cuidado de si mesmo na Histiria da Sexualidade sto paradigmas”™, conceito que definitia “o método foucautiano em seu gesto mais caracteristico”" Ao diferencié-lo da matriz kuhniana, Agamben busca definir 0 que entende pelo temo: “O paradigma é um caso singular que € isolado do contexto do qual forma parte, s6 na medida em que, exibindo sua propria singularidade, torna inteligivel um novo conjunto”™, um exemplo “cuja fungio € construir ¢ fazer inteligivel um inteiro mais amplo contexto hist6rieo-problemitico”® ‘Ainda em Signatura Rerum, Agamben faz apelo a Aristoteles, em Anaiticos primeiros (6a, 13-14) a0 distinguir 0 método paradigmatico da dedugio € da inducio. Se a dedugio opera a partir do todo em dieco 4 parte, € a inducio caminha em diregio contriria, da parte a0 todo, o paradigma funcionatia indo da parte & parte, ou seja, operatia de maneira analégica, “movendo-se da singularidade & singularidade”™. Além do Fildsofo, Agamben dialoga ainda com a tradi¢ao kantiana, apontando o juizo estético descrito na Critica do juigo como uma forma de “exemplo do qual é impossfvel dar uma regra’"®. Nesse sentido, para Agamben, “a telagio paradigmitica nfo transcorre simplesmente entre os objetos sensiveis singulares, nem entre estes © uma regra geral, mas sobretudo, entre a singularidade (que desse modo se A nogio de enunciado seré elaborada por Agamben a partir do pensamento foucautiano em AGAMBEN, O aque resta de Auschwitz, p. 128-136 20AGAMBEN, Signatura Rerum. p. 17 30CASTRO, Introduedo a Giorgio Agamben, p. 155, BIAGAMBEN, Signatura Rerum, p. 19. 32AGAMBEN, Signatura Rerum, p. 20. 33AGAMBRN, Signatura Rerum. p. 11 34AGAMBEN, Signatura Rerum, p.32 35CASTRO, F, Introdugao a Giorgio Agamben, p. 156, Coferon settee FhssfaPelia | Nimo 2 | Papa 17 converte em paradigma) ¢ sua exposigio (sto é sua inteligibilidade).”" Ainda no plano da estética, 0 filésofo indica que a nogio de Urphinomen desenvolvida pelo historiador da arte alemio Aby Warburg, em seu Bilderatlas Mnemosyne, funcionaria por meio de patadigmas, 20 estabelecer uma cadeia de transporte de imagens, identificando linhas de continuidade de caracteristicas visuais através do tempo.” Por fim, Agamben far mencio a tradigio mondstica € sua nogio de gra “Ao menos até Sio Benito, a regra no € uma norma geral, mas s6 a comunidade de vida (0 cendbio, Aoindis boi) que resulta de um exemplo no qual a vida de cada monge tende, no limite, a converter-se em paradigmitica, a constituir-se como forma vitae [forma de vidal.” Tradicionalmente, ao final de sua explanagio, Agamben oferece um resumo em seis proposigdes apresentando o que entende precisamente por paradigma: ‘Um paradigma é uma forma de conhecimento nem indutiva nem dedutiva, mas analigica, que se move da singularidade & singularidade. 2. Neutralizando a oposicio entre geral e particular, substitui a lbgica dicotémica por um modelo analégico bipolar. 3. 0 caso paradigmético torna-se o que € suspendendo €, 20 mesmo tempo, expondo sua pertingncia ao conjunto, de modo que no é possivel separar-se _nele a exemplaridade da singularidade. 4. O conjunto paradigmatic nunca é pressuposto pelos paradigmas, permanece imanente acles. 5. No paradigma niio ha origem ou uma ach: qualquer fendmeno é a origem, toda imagem é arcaica. 6.2 _hiistoricidade do paradigma no esta rnem na diacronia nem na sincronia, mas no _entreeruzamento delas.” Seria de boa valia seguir ainda as observagdes de Edgardo Castro no que se refere a alguns equivocos proprios a questio tratada até aqui. Afirma o comentador argentino: “o homo sacer © 0 rongulmano, 0 estado de excerao ou © campo de concentragao nfo so “ipéteses” explicativas que buscam reduzir a modernidade “a uma causa ou a uma origem historica”, mas “paradigmas, cujo objetivo cra fazer inteligivel aqucles fenémenos cujo parentesco havia escapaclo ou podia escapar A mirada histérica’®. Dessa forma, no haveria sentido em questionarmos se a paradigmaticidade de uma determinada figura residiria nas coisas ou na 36 AGAMBEN, Signatura Rerum, p. 25 37 A esse respeito, ver: DIDILHUBERMAN, Limmage survivante: histoire de Hart et temps des fantomes selon. Aby Warburg. 39 AGAMBEN, 40 CASTRO, Introdugio a Giorgio Agamben, p. 157. Coferon se ticaeFbsstaPelea | Nimo 2 | Papa 18 mente do investigador. Para Agamben, cla tem “carter ontolégico, nio se refere a um objeto, ‘mas ao ser. Hi uma ontologia paradigmatica.”* ‘A partir daqui estamos mais aptos a esclarecer de maneita mais adequada ao que Agamben chama de “a tese de uma intima solidariedade entre democracia ¢ totalitarism.”® Primeiramente, poderiamos nos perguntar 0 que motiva 0 fil6 Litmotiv que dificilmente poderia ser mais polémico ou exposto A eriticas mais severas. Nesse sentido, talvez seja 0 caso de identificar um tema surgido ainda em Infancia a Historia, a saber, 1 etitica aqueles que acreditam no progresso inevitivel da histéria. O ceticismo perante a hegemonia da mentalidade teleolégica que orienta o modelo de progresso histérico se expressaria nfo somente pela escolha do paradigma, mas justamente ao identificar uma ligago fundamental entre estados democriticos e totalitérios. Essa “intima solidariedade” nio estaria ofo italiano a escolher um As voltas com algo com uma teotia da conspiracio global, mas sim uma ptitica comum entre ambas as formas de governo, a saber, a cahttra da vida nua pelos dicpostivos govemamentais. Outro pensador que compartilharé uma visio semelhante a respeito dessa ligagio sera alguém como Guy Debord, amigo pessoal de Agamben, para quem o pensador francés haveria confessado sua condicio de “estrategista, nao filsofo” a quem sera dedicado Meias Sem Fim, Nos aos que antecederam a publicagio de Sociedade do Espeticulo, Debord observou uma similaridade crescente entre © que chamava de “espeticulo concentrado” em operagio nos regimes totalititios © o “espeticulo difuso” das chamadas democracias ocidentais. De fato, uma das ideias fundamentais de Comentirias sobre Sociedade do Fspetdculo, cujo preficio é de autoria de Agamben, sera justamente essa: ‘A decadéncia da democracia modema ¢ seu progressivo convergit com os cstados totalititios nas sociedades pés-democriticas espetaculares (que ‘comecam a tomar-se evidentes jé com ‘Tocqueville ¢ encontram nas anilises de Debord sua sancio final) tém, talvez, sua raiz nessa aporia que marca seu inicio e que a cinge em secreta cumplicidade com o seu inimigo mais aguerrido.** 41 AGAMBEN, Signarara Rerum, p. 34 42. continua Agamben: "nio é obviamente (como, por outta, aquela de Strauss sobre a secrets convergéncia centre Uberalismo e comunisme quanto & meta final), ama tese historiogstica, que autorize a lquidagio e 0 achatamento das enormes diferencas que caracterizam sua historia © seu antagonismo; nio obstante isso, 20 plano historico-floséfico que lhe € préprio, deve ser mantida com firmeza, porque somente ela poderi permitic «ue orientemo-nos diante das novas realdades ¢ das convergencias imprevistas do fim do milénio, desobstruindo 1 campo em diresio aquela nova politica que ainda resta em grande parte inventar.” Homo Sacer, p. 18, 43 AGAMBEN, Homo Sacer, p. 18 Coferos so ticae FssfaPelica | Nimo 2 | Papa 18

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