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BOWET IM INFORMACOES NOTICIAS BIBLIOGRAFIA LEGISLACAO CONSELHO NACIONAL DE GEOGRAFIA INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATISTICA ANO XIX Setembro - Outubro de 1961 No 164 CONSELHO NACIONAL DE GEOGRAFIA SECRETARIA-GERAL (ORcKo Execurivo Centra DE FINALIDADE ADMINISTRATIVA E CULTURAL) Secretério-Gerat Fapio pz Maczpo Soares Gummanies Secretdrio-Assistente Lucio pe Castro SOARES Consultor Juridico ALBERTO Raga GABAGLIA DIVISAO DE ADMINISTRACAO Diretor — Wrison TavorA Mara DIVISAO DE CARTOGRAFIA Diretor — Ropotro Pinto Bargosa DIVISAO DE GEODESIA E TOPOGRAFIA ‘Auto H. pe Matos DIVISAO DE GEOGRAFIA Diretor — Nito BERNARDES DIVISAO CULTURAL | Diretor ORLANDO VALVERDE ar BOLETIM GEOGRAFICO Responsdvel Faso DE MAcEDo Soares GuIMARAES: Diretor ORLANDO VALVERDE Secretdrio ANTONIO LIBERALINO DE MORAES. Encarregado da Redagéo Ivan PEpROsA O “BOLETIM” ndo insere matéria remunerada, nem aceita qualquer espécie de publicidade comercial, ndo se responsabilizando também pelos conceitos emitidos em artigos assinados. ASSINATURA Cr$ 360,00 REDACAO CONSELHO NACIONAL DE GEOGRAFIA Avenida Beira-Mar, 436, telefones 42-5704 — 42-4466 * Edificio Iguacu Rio de Janeiro ESTADO DA.GUANABARA* (Enderéco telegrfico) — SECONGEO. Pede-se_permuta Pidese canje We ask for exchange On démande Péchange Oni petas interéangan Man bittet um Austausch Si richiede lo scambio BOLETIM GEOGRAFICO ANO XIX SETEMBRO-OUTUBRO DE 1961 | Neo 164 Sumario TRANSCRICOES: 0 Mundo: De Onde Vem? Para onde Vai? — RAYMUNDO CARTIER (p. 569) — Originalidade da Natureza Tropical — EMMANUEL DE MARTONNE (p. $79) — Caracte- risticas Psico-Socials do Povo Brasiletro — JOS HONGRIO RODRIGUES (p. 589). CARTOGRAFIA: O Problema da Natureza da Cartografia — MILOS SEBOR (p. 606) . RESENHA E OPINIOES: Determinismo Geogratico e Geopolitiea — PROF, LEO WAIBEL (p. 612) — Resultados da Pesquisa Petrolifera no Brasil — ENG.° GEON{SIO BARROSO (p. 618) — Geogratia da Réde — LUIS DA CAMARA CASCUDO (p. 622) — Fotogrametria —,KURT SCHMIDEFSKY (p. 628) — A Importdncia dos Mapas (p. 630). CONTRIBUIGAO AO ENSINO: Extensio, Volume, Profundidades Médias e Profundidades MA- ximas dos Oceanos e Mares do Globo — PROF. JOAQUIM L, SILVEIRA DA MOTA (p. 632) — Energia no Brasil — HENRIQUE CAPPER ALVES DE SOUSA (p. 644). NOTICIARIO: Presidéncia da Reptblica (p. 682) — Ministérlo da Educagio e Cultura (p. 691) — Ministérlo de Minas e Energia (p. 692) — INSTITUIGOES PARTICULARES — Associagio os Geégrafos Brasileiros (p. 692) — CERTAMES — Simpésio Internacional sdbre Vuleanolo- gin (p. 693) — UNIDADES FEDERADAS — Guanabara (p. 694) — Golds (p. 694) — Minas Gerais (p. 694) — Pernambuco (p. 694) — Rlo Grande do Sul (p. 695) — Sio Paulo (p. 695) — EXTERIOR — URSS (p. 697). BIBLIOGRAFIA: Reeistros e Comentarios Bibliograticos — Periédicos (p. 698). LEIS E RESOLUGOES: LEGISLACAO FEDERAL — integra da legislagio de interésse geogrético — Atos do Poder Executive (p. 100) — Resolugées do Instituto Brasileiro de Geografia ¢ Estatfstica — Conselho Nacional de Geografia (p. 706), 131017 Transcrigées O Mundo: De Onde Vem? Para Onde Vai?* Fonte: Paris Match RaYMonp CARTIER Ne 357, de 11-2-956. Dois homens vigiam constantemente o céu. Um no alto, na grande brecha da ctipula, protegido com um macacao de aviador, contra o frio cortante da noite. O outro, no solo, diante de um quadro de comando que Ihe permite dar, ao telescépio de 500 toneladas, deslocamentos infinitesimais. Além disso, um motor de 12 cavalos imprime 4 cipula do observatério uma lenta rotagdo:con- tinua, que compensa a da Terra e que mantém 0 objetivo no mesmo ponto do espaco. Escuridao rigorosa é obrigatéria. Um fésforo aceso num raio de dez metros anula uma observacio. A lembranca do tempo em que o black-out de guerra apagava toda a Califérnia, provoca a nostalgia nos antigos. Monte Wilson, sobretudo, queixa-se das luzes ‘préximas demais, cada- vez mais brilhantes, de Pasadena. Monte Palomar, na sua solidao silvestre, é menos desfavorecido. Mas assim mesmo, tem em demasia fardis de automoveis percorrendo as estradas, muitos reflexos de aglomeracées longinquas, muitos avides que atravessam o céu. & preciso, desde logo, habituar-se ao inacreditavel. O telescépio de Monte Wilson, com seu espelho de 2m 50 de didmetro vé a chama dé. uma vela a 18800 quilémetros, 0 que corresponde ao brilho de uma estréla de 22.8 grandeza, O telescopio de Palomar, se pudesse ser projetado sébre a Terra (e nenhuma ae fonte luminosa se intercalasse) veria os vermes luzidios dos Carnnos Elisios. Os nossos leitores que nao estao dispostos a admitir estas inverdssimilhancas so respeitosamente solicitados a nao continuarem a série de artigos que inicia- mos, pois coisas espantosas vao aparecer. Existem observatérios no mundo inteiro, Novas técnicas para exploracéo do céu aparecem sem cessar. O telescépio eletrénico cujo modélo imponente esta em fase de instalagéo em Saint-Michel-de-Provence, promete um poder de: pe- netracéo que tornaré sem divida arcaicos os dois gigantes de Monte Wilson: e de Palomar. Por enquanto, séo os dois olhos mais poderosos abertos para’ 0 cosmo. © primeiro afasta o horizonte até 500 milhées de anos-luz e o segundo, com seu prodigioso ‘espelho de cinco metros de didmetro, aumenta a capacidade de sondagem do céu até um bilhdo de anos-luz. ANOS-LUZ: Unidade de medida corrente da cosmografia. A velocidade da luz séndo de 300 000 kmn/segundo, um ano-luz equivale a 9460 bilh6es, de quilémetros. A titulo. de-com- paragho, a distancia da Terra ao Sol (menos de oito minutos-luz) 6 de 150 milhdes do quildmetros, mais ou menos ESTRELA: Astro que produz luz e calor. Véem-se a Olho;nu mais ou menos. 3000 estréias. A mais préxima esté aituada a mais de quatro anos-luz ou soja 300000 vézes mals distante que o Sol. A GALAXIA: O Sol é uma pequena ostréla que faz parte do sistema estelar chamado galéxia, E um disco volumoso no centro, cujo didmetro € avaliado em 80000 anos-luz. Numero aproximado de estrélas da galaxia: 200 000 000 000. AS GALAXIAS: Chamam-se também “galéxias exterlores” para distingul-las da nossa préprié galéxla, Sfo também, sistemas de estrélas, Os telescdpjos conseguem percebé-las & distancia de cérca de um bilhio de anos-luz. ARADOR ARA-HT SEH RA ‘Tradugko de Maria Cecilia de Queiroz Lacerda. 370 BOLETIM GEOGRAFICO Seria puerll, fastidioso e sobretudo indtil querer exprimir estas cifras em quilémetros. Elas esto acima de téda comparacéo concreta. Sao apenas des- tinadas a impor respeito vertiginoso pela imensidade tragica do universo. ‘Um mesmo’ grupo composto de quinze astronomos, serve aos dois observa~ térios. ‘les revezam as turmas de servigo de trés ou de quatro em quatro noites, mas 0 Verdadeiro local de trabalho de cada um é 0 escritério que Ihes é destinado numa, pequena casa branca de Pasadena, no meio das 4rvores de Santa Barbara Street. O principal instrumento cientifico destas células de astrénomos é um microscépio. Muitos tém nomes ilustres na ciéncia — Baade, Humason, Minkovsky, Bowen etc, — mas sua caracteristica mais comumi é a ignorancla trangiiilamente con- fessada das constelagdes do céu vulgar. Poucos dentre éles fizeram estudos classicos de astronomia e talvez nao exista um sé que um bom escoteiro naio possa corrigir sobre a Grande Ursa ou 0 Escudo de Orion. Seu dominio é além destas figuras tio perto de ns e tao familiares. raro que os astrénomos de Palomar e de Monte Wilson olhem diretamente as profundezas que éles exploram, Os telescépios cessaram de ser lunetas gi- gantes, para se tornarem cAmaras registradoras aperfeigoadas. A imagem que elas registram, 0 fraco feixe de luz que elas recolhem, é fornecido @ ciéncia cada vex mais minuclosa que é a espectrografia. Nada é mais decepcionante para fm élho profano que o espectro produzido pela decomposi¢éo da luz vinda dos corpos siderais, mas ampliagGes e processos apropriados fazem aparecer nas teanchas cambjantes até cem mil linhas e faixas que dizem aos sdbios a com- posiedo quimica das estrélas, sua temperatura,.a natureza do mejo que as separa Ho sistema solar e até a velocidade e a direcdo do seu deslocamento. A maioria Gos conhecimentos acumulados pela astronomia vem déste prodigioso instru- mento de investigagao. A VIA LACTEA £ UMA PARTE INSIGNIFICANTE DO UNIVERSO % também do espectrograma que sairam as teorias mais recentes sobre a origem e a natureza do universo — as tentativas de respostas mais audaciosas $s interrogagées desesperadas que a inteligéncia humana nao cessou de fazer ao Cosmo: De onde vens? Como féste criado? Para onde vais? ‘Um vazio nunea foi preenchido entre os astronomos de Pasadena: o lugar de Edwin Hubble. No dia 23 de setembro de 1953, éle estava sentado ao lado da senhora Hubble estacionando seu carro numa rua de Los Angeles, Morreu instantaneamente - de uma trombose cerebral. Mas seus colegas falam déle como se éle devesse, no dia seguinte, entrar de plantao no alto da luneta gigante de Palomar. Cha- mavam-no “Major”, por causa da promogao que éle obteve, na Franca, na infan- faria, na primeira guerra mundial. Ble contava, fumando seu cachimbo, que tinha sido campeao de péso-pesado de Oxford e que tinha lutado com Georges Carpentier, De acdrdo com a regra, ndo era a astronomia que éle estudava na velha universidade inglésa, mas direito, e, que tinha chegado aos astros, porque a tribuna o aborreceu mortalmente. O construtor do Monte Wilson, George Hale, tinha-o admitido na sua turma e ihe tinha dado oportunidade de tornar-se explorador das galaxias. A ciéncia se difunde rapidamente. As criancas das escolas sabem hoje que a Via Lactea e seus 200 bilhdes de estrélas (entre elas 0 nosso Sol) nao é a tiica galdxia e que outros agrupamentos de astros povoam o universo. Mas os astranomos mais célebres estavam longe de se convencerem disso ha somente uns trinta anos. fles viam fracas luminosidades como as duas nuvens siderais assiflaladas por Magellan no céu austral ou a bruma brilhante de Andromeda, observada pelo velho astrénomo francés Messier. Mas pensavam, geralmente, que_se tratava de actimulo de poeira cdsmica, de nebulosas que flutuam entre as estrélas da Via-Lactea. O conservantismo da cléncia se opunha as Imagina- Goes’ audaciosas de alguns que anunciavam outros universos entrevistos pelas brechas do nosso, a imensas distancias. TRANSCRIQOES sm Hubble e 0 telescépio de Monte Wilson desfizeram a dtivida. As nebulosas eram realmente fragmentos de estrélas distintas, cujo fraco brilho se explicava por um afastamento que ultrapassava tédas as distancias com que a astronomia ousava sonhar. Quando descobriu nestas distancias estrélas de brilho varidvel (Cefeidas), Hubble pode dedicar-se a cAlculos andlogos Aqueles, de que uma cientista de Harvard, miss Henriette Leavitt, tinha estabelecido o principio alguns anos antes. Bles provaram de maneira decisiva que as dimenses do universo ultrapassavam imensamente os da Via-Lactea. Hubble fixa a distancia de Andromeda, a mais préxima das galaxias exte- riores, em 680000 anos-luz. A titulo. inico de comparagdo, existem perto de 8 minutos-luz da Terra a0 Sol, & velocidade de 300000 quilémetros por segundo. F A histéria da astronomia é a de uma cortina que se entreabre. Os grandes espiritos da antiguidade, como Aristarco de Samos ou Eratéstenes conseguiram © primeiro esbégo, quando ousaram emitir a hipdtese de que o Sol era possi- velmente maior que a Grécia. 10000 BILHOES DE SOIS SOBRE UMA UNICA PLACA Os grandes espiritos do Renascimento, como Copérnico e Galileu, desven- daram um universo, cuja imensidao escandalizou seus contemporaneos. No século XIX, 0 homem, valendo-se dos anos-luz, acreditou ter dominado as dimensées do espago. Mas a descoberta das galaxias exteriores teve muito maior repercussio que tédas as descobertas anteriores, Tinha-se acostumado aos anos-luz.e aos milhées de estrélas. Foi preciso habituar-se aos séculos-luz e aos milhdes de bilhdes de estrélas. © telescépio de Morite Wilson desvenda cem milhées de galaxias; o de Pa- Jomar revela um bilhdo. Cada uma contém centenas de milhdes de estrélas de diametro as vézes superior ao do sistema solar inteiro. Algumas dessas galaxias so informes. Outras constituem rodopios de chamas que arrancam exclamagoes de admiracao por sua beleza. Outras ainda se tornam globulosas e sugerem a ve- Thice. Algumas regides do espaco sao relativamente vazias e outras tao povoadas que se pode captar até 10000 galaxias — dez mil bilhdes de séis — sobre uma tnica placa fotogréfica. Mas a impressio de superpovoamento do céu dada por tais “clichés”, é iluséria. Pois as distancias siderais sio de tal ordem de imen- sidade que ultrapassam a das galaxias. Cérea de dois milhées de anos-luz interpdem-se entre elas, e algumas distancias apresentam cifras impossiveis de qualificar. Uma das galaéxias, na constelagéo de Bouvier, encontra-se a 228 milhées de anos-luz. Palomar e Monte Wilson véem além, distinguem, enumeram outros agru- pamentos de mundos — mas 0 caleulo, por sua vez, malogra em vista do seu afastamento. Alguns anos escoaram. O espirito de Hubble trabalhava com novos dados. Em 1925, conta seu amigo Milton Humason, féz uma viagem profissional & Ho- Janda; encontrou 0, doutor Willem de Sitter, diretor do observatério de Leyde, e voltou com uma espécie de exaltacéo precursora. Humason, cujo tinico titulo universitario 6 de doutor honoris causa, cuja ficha individual é escrita por sua mo: Educacéo — High School only (umicamente secundaria) e que comecou na astronomia varrendo os escritérios dos astronomos — torna-se o espectrélogo mais habil de Pasadena. Quando Hubble The confessou as dificuldades que encontrava nesta técnica, éle colocou-se imediatamente a sua disposicao. A turma estava organizada. O trabalho sdbre o red shift (deslocamento para o vermelho) das galaxias comecgou. ‘Um trem chega. Apita. Um désses apitos prolongados de que os maquinistas dos trens rapidos se servem quando atravessam uma estacio de subtrbio, En- quanto a locomotiva se aproxima, 0 registro do som, que vem ao encontro dos ouvidos, é mais elevado; quando se afasta, é mais grave. 512 BOLETIM GEOGRAFICO Fig. 1 — Estas trés imagens explicam 0 que € 0 fenémeno das galézias fugidias: trata-se de wm ‘Simiples baldo sdbre 0 qual se colocaram pontos pretos € que depois se enche. Quanto mais sc @nche, mais os pontos se ajastam uns dos outros. Cada ponto (cada galdzia) dd a impressdo Ge se achar no centro dos outros, pots estas afastam-se déle. Estas galdzias afastam-se, alids, com. velocidade Jantastica, ao mesmo tempo do seu centro comum, o centro do baldo, é também cada uma em relagdo as outras. ‘um simples aparelho registrador mostraria que nao se trata de uma ilusio actistica, mas sim de uma modificagdo na freqiiéncia da onda sonora, corres-. pondente a duas notas sucessivas e diferentes. Isto se chama efeito Doppler. E a simetria da natureza quer que éste efeito Doppler se aplique 4 luz tanto quanto ao som. Uma luz que se aproxima emite ondas de freqiiéncia maior e uma luz que se afasta ondas de freqiéncia mais fraca que uma luz fixa em relacdo ao observador. O espectro, éste magnifico instrumento, de. andlise, registra. As faixas e os raios que 0 compodem sao im- pelidos para uma de suas extremidades — violeta ou vermelho — conforme a fonte luminosa se aproxime ou se afaste. Quanto mais rapido é o deslocamento maior é a confusio. Hubble pensou que havia ai um melo de calcular os movimentos das galéxias. ‘Trés anos se passaram ainda, consagrados ao aperfeicoamento dos métodos e dos instrumentos. O primeiro resultado foi registrado em 1928 para uma galaxia da constelacdo de Pégaso. Depois, as observagdes se multiplicaram, Contavam-se 24 em 1929, 60 em 1932, 106 em 1937, mais de 800 no ano passado. ‘Todas concordam. O movimento das galaxias é proporcional ao seu afasta- mento. NGC 221 a 700000 anos-luz, desloca-se a 190 quilémetros por segundo; NGC 4473 a seis milhdes de anos-luz desloca~se a 2250 quilémetros por segundo; NGC 379 a vinte e trés milhées de anos-luz, desloca-se a 5500 quilémetros por segundo; e assim por-diante, até 228 milhées de anos-luz e 40000 quilémetros por segundo, limites das observacées. Hubble péde deduzir dai que a tabela de aumento das velocidades cdsmicas atingia 530 quilémetros por segundo, para trés milhdes mais ou menos de anos- Tug. Mas nao previa as dificuldades que preparava com éste calculo. © ABADE LEMAITRE: A CRIACAO FOI UMA EXPLOSAO DE 30" Outra, verificagio ainda mais espetacular: todos os espectros examinados por Hubble, Humason e seus émulos eram sem excecdo, transportados para_o vermelho. Em outros térmos, tédas as galaxias se afastavam. Uma impressio superficial, agradével & vaidade humana, fazia crer que elas se afastavam do sistema solar, como se éste e as criaturas, que 0 adornam fdssem o centro amea- cador do universo. Uma reflexao mais atenta, ajudada por uma imagem simples (ver a figura) convenceu que tédas as galaxias, incluindo a Via Lactea, se afas- tavam na realidade, umas das outras, ou, em outros térmos, que o universo es- tava em expansio. a Hubble e a luneta gigante da Califérnia tinham fornecido os dados. A in- terpretacio e a sistematizacia foram obra de um jovem padre belga, o abade TRANSORIQOES 373 Georges Lemaitre. Tendo passado ao sacerdécio sem ter renunciado & ciéncia, brilhante matematico, familiar da relatividade e do clculo einsteiniano, teve a sorte insigne de se achar em Washington no dia em que Hubble expés diante de uma sociedade cientifica sua descoberta das Cefeidas de Andromeda. © universo estatico (?) de Einstein causava j4 graves diividas diante das presungoes mais e mais numerosas do movimento das galaxias e as observacées de Hubble criaram no espirito do abade uma poderosa corrente dedutiva. perfeitamente notdvel que sua teoria se tenha edificado simulténeamente com a coleta dos fatos que a cofroboraram. De Pasadena a Louvain, uma verdadeira cooperacao espontanea estabeleceu-se entre a ciéncia munida dos gigantes da éptica ea ciéncia que por arma tem apenas um pedago de giz. As galaxias nfo podem estar iméyeis -no espago. Ou elas se apro- ximam, em virtude da gravidade ou, entdo, se afastam.umas das outras, em virtude de uma forea superior & gravidade. A constante red shift demonstra a segunda hipétese, isto é, que as galéxias foram projetadas no. espago por uma explosio e que continuam a mover-se como estilhagos de uma granada. Conclusgo extraordinaria: 0 universo nasceu de um grande.“bum!” De um big bang! Sao as conseqiiéncias déste grande “bum” que o homem observa no véo vertiginoso das galaxias! : A magia da ciéncia moderna é o caréter concreto, de qualquer maneira ne- cessario, que ela dé as suas teorias mais audaciosas. O big bang, nascimento de todo o universo!... parece-me quase possivel fazer-lhe a reportagem. Téda a matéria, téda a energia se achavam aglomeradas num volume mi- nasculo, uma espécie de grande Atomo original, menor — quem sabe? — que uma estréla média. As densidades, em consegiiéncia, tomaram valores fantas- ticos a0 ponto de um centimetro citbico, o térgo de um dedal, pesar centenas de milhées de toneladas. A temperatura resultante desta compresséo atingia bilhdes de graus. Impossivel, nestas condigées, um s6 corpo existir. © universo supercomprimido se compunha de uma maioria de fotons, gra- nulados de energia, e de um pequeno numero de protons, de neutrons, de eletrons, mas animados de uma vibragdo tao répida que eram incapazes de se associarem para formar o menor atomo. O caos nao resultava, como se acreditava, de uma disperséio excessiva dos elementos da natureza, mas, ao contrario, de um amon- toamento, de uma opressio insuportavel: big bang foi a revolta de uma sociedade na qual o excesso de tirania havia sido ultrapassado, o precursor de tédas as revolugdes, das quais a histéria das coisas e dos homens devia povoar-se ulteriormente. Os historiadores do big bang — Gamow, Dirac, ete. continuam: Os acontecimentos desenrolaram-se com rapidez espantosa. Cinco minutos depois da exploséio, a temperatura j4 tinha caido a um bilhdo de graus centi- grados, 0 universo tinha-se dilatado das proporcées de uma ervilha as de um baldo e as associacdes das particulas nucleares podiam comecar. Doze minutos depois, os neutrons livres nfo existiam mais, os corpusculos materiais, tomaram a frente; o hidrogénio e o hélio nasciam de tédas as partes. ‘Treze minutos depois, todos os elementos, o oxigénio, 0 fdsforo, 0 calcio, o ferro, 0 uranio, etc., apareceram. No total, a criacao durou meia-hora. ‘A nuvem produzida pela explosdo espalhou-se e esfriou-Se. Devia, num es- pago de algumas centenas de milhées de anos, fracionar-se em pré-galaxias e depois, em galaxias. Estas, em virtude do impulso inicial, continuam a fastar- se do centro da explosio. ‘As mais préximas da periferia sio mais rapidas: as mais préximas do centro s4o mais lentas; de maneira que, o afastamento que as separa, aumenta cons- _ tantemente. 54 BOLETIM GEOGRAFICO O FIM DO MUNDO NAO SERA ANTES DE QUINZE BILHGES DE ANOS Georges Gamow e outros completaram e aperfelcoaram o sistema do abade Lamaitre. O universo é um organismo que respira. ‘Uma fase 6 a da expansao; outra, é a da contracio. Se a luneta de Palomar tiver a paciéncia de esperar, ela veré, numa noite, o shift das galaxias inverter-se, passar do vermelho ao’ violeta, Isto quer dizer que os milhées de Vias Lacteas comegam a aproximar-se umas das outras. Para o homem, isto significaré a realizacdo do seu temor t&o falado nos velhos textos sagrados: o céu caindo sobre sua cabeca, as estrélas desprendendo- se do firmamento para esmaga-lo, o mundo apertando-se contra éle para abra- c4-lo e sufocd-lo. ‘Mas, a probabilidade do fenémeno nao aconteceré antes de uns quinze bilhdes de anos. “O_universo em expansio, disse o astrofisico inglés Arthur Eddington, é uma idéia tio absurda que fico indignado se alguém nela acreditar — salvo eu”. Esta idéia teve um momento dificil quando os cleulos de Hubble baseados na velocidade que éle atribuia as galaxias, fixaram em um bilhdo e 800 milhées de anos a data do grande “bum”. ‘As diversas maneiras de avaliar a idade do planéta Terra concordam com a cifra aproximada de cinco bilhdes de anos; tanto assim que Hubble perguntou a si mesmo se devia considerar que o grdo de poeira que é o homem era 0 primeiro de todo o cosmo, © grande telescopio de Palomar entrou em acéo no momento exato para mostrar que os cAlculos de Hubble estavam errados na proporcado de 1:2,8. A velocidade média da expansdo do universo ndo é de 530 quilémetros por se- gundo como éle tinha anunciado, mas sbmente de 180 quilémetros por segundo. Como conseqiiéncia, o tempo que decorreu desde o big bang & aproximada~ mente trés vézes mais longo. Os gedlogos estavam vingados, o universo em ex- pansio tornou-se a hipétese cosmolégica mais correntemente admitida: o mundo nasceu em meia hora, h4 cinco bilhdes de anos, de um tiro de canhao colossal. ‘Mas a ignorancia possui um direito impreseritivel: o de fazer perguntas. Que restaria do universo em expansio se o deslocamento do espectro das galaxias, o red shift, fdsse atribuido a outra causa que nio a rapidez do seu afastamento? : A luz captada por Palomar e Monte Wilson chega de distancias gigantescas atravessando um meio que, segundo todos os astrénomos modernos, é tio pouco vazio que contém em suspensio mais matéria do que a que existe em todos os outros astros reunidos. # inconcebivel que esta luz, de natureza corpuscular, se canse nesta grande travessia? ‘As ondas preguicosas, as ondas vermelhas, levariam vantagem, neste caso, sObre as ondas dinfmicas — e 0 espectro seria tanto mais deslocado quanto mais afastada estivesse a galaxia considerada; o que esta de acérdo com as com- provagdes dos astronomos de Pasadena. A regposta a esta objecéo é um dogma cientifico: a intangibilidade da luz. Todo 0 corpo de doutrina de Einstein repousa na idéia, espantosa e mesmo poética de que a velocidade da luz é a medida-padrao do universo. Nenhuma outra velocidade pode superd-la em caso algum e nenhuma causa, seja qual f6r, pode alterd-la. A idéia de que a luz pode chegar “fatigada” como uma avé depois de uma longa viagem de 6nibus de turismo, é uma heresia que alguns sdbios reeusam mesmo admitir. “TRANSORIQOES 315 Fig. 2 VIOLETA VERMELHO Espectro de galézia na constelagto da Virgem. Distancia: 10 milhoes de anos-luz. Velocidade de afastamento: 1 000 km/segundo. Espectro da galdzia na “Corona borealis”. Sua distancia € de 150 milhoes de anos-iuz é sua velocidade de 20000 km/segundo. Espectro da galdzia na “Hidra”. Ela esté afastada de 350000 milhdes de anos-lue da Terra, Sua velocidade é de 60000 km/segundo. Ficha espectfica das galdzias: seu espectro Aprendemos no colégio que a luz, gue nos parece branca, 6 composta, na realldade, de cOres variadas, Através de um prisma ela se decomp6e em felxes luminosos: o espectro. © 6lhd humano pode apenas pereeber a parte situada entre o infravermetho e 0 ultravio- leta: por exemplo o arco-irls. Numerosas fal- xas negras verticals atravessam o espectro. Blas varlam segundo a orlgem quimica da luz, £ “endo” estas fatxas através do espec- trograma fixado na extremidade do telescépio que se desoobre a constituicio das estrélas: ferro, aluminio, hidrogénio ou outros corpos. 08 espectalistes destas cartas de identidade do céu, os astroquimicos, descobriram que quanto mats a galéxia esté afastada de nés, maté 0s ralos de seu espectro sko deslocados para o vermelho e mator é a velocidade déste afastamento. As setas nestes trés espec- tros indicam 0 “deslocamento em direcso 20 vermelho” de trés galixias. Além da teoria do universo em expansio, muitas outras desmoronariam na ciéncia, se alguém conseguisse demonstrar que a andlise einsteineana é falsa porque a luz nao é um absoluto num mundo que Einstein dedica & relatividade. ‘Mas tédas as afirmacées cientificas recentes afastam esta interpretagao, consolidando em conseqiiéncia a histéria maravilhosa do big bang da criagio em trinta minutos e do universo dilatando-se como um balao. FRED HOYLE E CAMBRIDGE DISCORDAM DE PALOMAR Existe, entretanto, sério foco de dissidéncia: Cambridge é sob muitos pontos de vista o antipoda cientifico de Palomar. O observatério é uma velha e querida coisa e o céu cinzento das planicies inglésas no permite as investigagoes As quais se presta o céu da Califérnia do Sul. Lesados pelo clima e pelos créditos, os astrénomos cambridgeanos concentrara) man um grupo impressionante — Gold, Bondi, m-se na meditaco e no calculo. For- Lyttleton, Sciuta, etc... domi- nado pela crianga terrivel da cosmologia moderna: Fred Hoyle. Hoyle é feio: pequeno, gordo, de cabelo crespo, maltratado, maos vermelhas, fisionomia alterada por tiques nervosos, um pesado sotaque de camponés do Yorkshire. _ Hoyle € presungoso; criticado pelos outros astrénomos, responde que éles nao tém conhecimentos’ matematicos suficientes para compreender o que fala. 576 BOLETIM GEOGRAFICO O pior é que Hoyle esta provavelmente com a razio. Suas teorias, publicadas pelo boletim da Sociedade Real Astronémica, fazem tal apélo & relatividade ge- neralizada, que existem efetivamente poucos observadores de estrélas capazes de seguir o seu desenvolvimento. Por outro lado, e como para desafiar, Fred Hoyle 6, sem contestagéo um vulgarizador de primeira ordem. Seu livro de 1950, Natureza do Universo, 6 es- ctito em estilo envolvente e, quando a BBC Ihe pediu cinco conferéncias sobre a nova Cosmologia, éle soube fornecer, & Inglaterra inteira, um tema para con- versa apaixonante. © LIMITE DO MUNDO: DOIS BILHOES DE ANOS-LUZ As fronteiras da astronomia (junho de 1955) tiveram éxito menor e, ao mesmo tempo, um livro sdbre os problemas mundiais A Decade of Decision, pegou Hoyle em flagrante delito de graves erros estatisticos e histéricos. Mas 0 homem é de fato um poderoso cérebro. Aprendeu matematica sdzinho e pagou seus estudos em Cambridge, ensinando, Depois, aos vinte e dois anos, juntamente com seu amigo Lyttleton, declarou friamente que ninguém compreendia nada sobre astronomia e que éle se encarregaria de prova-lo. © cosmo de Hoyle nao é menos dramético que do abade Lemaitre e de Gamow. : A incandescéncia dos sdis, por exemplo, é uma histéria fantdstica: uma nuvem fria de matéria césmica contrai-se, esquenta-se por isso mesmo, até o instante em que a temperatura sé torna bastante elevada para iniciar a reacéo termonuclear (a bomba H) e a transformagao do hidrogénio em hélio, com emis- so de uma quantidade colossal de energia. As estrélas de Hoyle tém personalidades humanas; algumas, prodigas, queimam todo o seu hidrogénio em 500 milhdes de anos, enquanto outras (como 0 Sol, Deus seja louvado!) seguem regras de economia que lhes asseguram cin- quenta bilhées de anos de existéncia. Mas a estrutura das teorias de Hoyle consiste em duas idéias: a primeira — banal — que o universo é infinito no espaco como no tempo; a segunda — re- volucionéria — que a matéria esta em estado de criacdo continua. A$ galaxias! E verdade que elas voam em velocidades prodigioses afastando-se sempre mais umas das outras e que seu red shift nao mente. Para onde vao? Hoyle responde: elas saem do universo, ou, para falar com mais clareza, do que o homem tem 0 direito de chamar universo. Quer dizer da parte do espago que éle tem oportu- nidade de poder observar um dia. : Isto nao depende dos construtores de telescépios, dos polidores de espelhos, dos fabricantes de peliculas fotogréficas. Existe um| limite definido e intrans- ponivel que Fred Hoyle conhece porque 0 calculou: dois bilhdes de anos-luz A esta distancia — 0 dobro do raio visual de Palomar — a velocidade acele- rada das galaxias atinge a da luz. Entao o homem nao pode mais, nem podera + jamais as contemplar. Elas teréo tombado do outro lado do horizonte cosmico, como um navio desaparece no horizonte marinho. Para que destino? Questao desprovida de interésse: No que concerne ao homem, as galaxias cessam de existir, Nao sémente Porque se tornam invisiveis, como também porque sua existéncia se torna absurda. Tao velozes quanto a luz, elas atingem, segundo as leis einsteineanas, uma massa infinita. % 0 mesmo que dizer que elas entram no nada. A teoria de Fred Hoyle esvazia o universo. . Cada dia, ou cada século — é a mesma coisa — uma galaxia, um bilhdo de estrélas, atinge-a linha fatal, a velocidade da luz, e desaparece. Entretanto, nada muda'e nada mudaré jamais, no desenrolar eterno do tempo césmico sem coméco e sem fim. Para cada galaxia perdida, uma galaxia é reencontrada. A criacao continua repara os vazios da evasio ininterrupta. E nao é o big bang — idéia irrisdria, pensa o impertinente Fred Hoyle — que constitui o motor déste movimento eterno. £ 4 fecundidade da natureza que reconstitui os Ato- mos, como reconstitui os rebentos e os ninhos. CL 878, BOLETIM GEOGRAFICO As matematicas mais abstratas, quer dizer, a poesia sob sua forma mais sublime, conduziram Hoyle a estas conclusées. : Sendo estavel, o mundo contém em cada instante uma quantidade rigorosa- mente idéntica de matéria-energia. A que desaparece deve ser imediatamente substituida. Como? Pelo aparecimento, pela “criagio” de dtomos novos. De onde vém? De nenhum lugar? Bles aparecem. & tudo. Quando uma teoria cientifica nasce, a ambico dos sdbios é a de submeté-la & verificacéo dos fatos. O dia triunfante de Einstein foi o famoso eclipse de maio de 1919, que provou sua tese — repelida pela ciéncia oficial — do espago curvo. Mas Hoyle ri mostrando seus grandes dentes desiguais quando Ihe sugerem contemplar 0 nascimento dos atomos. Segundo seus irrefutaveis calculos, nasce um dtomo (de hidrogénio, parte eomum da criacdo) por segundo por milha cibica. Seja um 4tomo de hidrogé- nio cada 500000 anos com o volume de um litro mais ou menos. Basta saber-se que existe 50 000 000 000000 000 de Atomos numa colher de eafé para se convencer de que a tenuidade do fenémeno no deixa nenhuma possibilidade aos instrumentos de medidas humanas. A PRIMEIRA DAS CIENCIAS & TAMBEM A MAIS VA © senso comum se insurge: como esta criagio tao lenta de atomos infinite- simais poderia compensar a perda de miriades e miriades de sdis? Mas a primeira coisa a fazer é abandonar o senso comum se se quer com- preender alguma, coisa do universo. O espago é tao gigantesco que a criagéo de 4tomos na proporcao de um por quatro quilémetros cubicos equivale, diz Hoyle, a milhées de mulhoes de milhoes de milhoes de mikes de toneladas por se- gundo”. © Bles se integram no gas interestelar que compée 0 espaco. “ Mantém, pela energia de que sio munidos, 0 movimento continuo do universo. ‘ Suportam uns “acldentes gravitacionais” que os condensam em nuvens, em hebulosas, em astros, em galdxias. Reconstituem o mundo & medida em que o destroem e o lancam na velocidade suicida, que é ade um raio de sol. “aca projetar o filme invertido da criagdo” propde Fred Hoyle. “Vocé vera as galaxias surgir do horizonte cdsmico, aproximar-se e depois dissolver-se gra~ dualmente, os astros tornarem-se um gas mais e mais denso, que acabara eva- porando-se completamente”. Inversamente, as galaxias que Palomar entrevé no fundo do céu néo mais estardo ai daqui a alguns bilhoes de anos. ‘Mas outras, entre as quais a propria Via Léctea, terfio tomado o seu lugar e se aproximardo por sua vez da saida do universo. ‘Todos os personagens serao diferentes, mas 0 quadro permanecera idéntico — e assim por diante, sempre, sempre, Sempre... Que quer isto dizer? Nada. A cosmologia, a primeira das ciéncias, é ao mesmo tempo, a mais va de tédas as cléncias, Nada nos ensina sobre a razio de ser do universo e sua explicacio € a dos. conhecimentos, nfo das causas. Che- ga-se a perguntar se ela nao é vitima de uma grande ilusdo de Optica, se as dis- tAncias incalculavels que ela propala, existem realmente e se a propagagio de uma luz num espaco curvo nao faz aparecer em miultiplas repetigoes as mesmas paisagens siderais. Nao se deve esperar da cosmologia nenhuma certeza e a astronomia provavelmente esgotou sua utilidade pratica desde que, distinguindo as constelagées, forneceu a0s navegadores um meio de orientar-se. Mas 0 es- foreo desesperado do espirito humano para explorar o inexploravel e para com- preender 0 incompreensivel é o testemunho mais comovente de sua eminente dignidade. Talvez fésse preciso dizer que a cosmologia é mais que uma ciéncia; 6 um beau geste — com a mesma utilidade profunda do heroismo: prodigali- zado em vao. . Originalidade da Natureza Tropical” Fonte: Estudios Geogrdficos Prof. EMMANUEL Dr MaRTONNE ne 10 ano, ¥ neon Diretor do Instituto Geogrifico de Paris A originalidade das regides tropicais é um tema que pode parecer trivial em um pais que tanto féz para a descoberta delas e sua colonizacao. ‘Mas as recordagées, as imagens que desperta a palavra “tropico” no séo talvez, para o grande publico, aquelas que desejaria hoje evocar e comentar. Vem-nos a mente principalmente uma humanidade profundamente dife- rente daquela que povoa a nossa velha Europa e cujo primeiro contacto mais estranho ainda nos torna. Sera tudo? A cena que se desenrola ndo fara esquecer um pouco o cenério, elemento essencial do exotismo? fo préprio cenario, é a natureza tropical que eu desejaria analisar em sua originalidade, comparando-a & da zona temperada em que vivemos. Anélise esta eminentemente geografica e, por isto mesmo, apropriada a esclarecer 0 jégo complexo de relagées entre os fatos de variada natureza. Tais fatos podem, para simplificar, ser clasificados em dois grupos: os fenémenos do clima, da vegetac&o e da hidrografia, de um lado; os fenémenos do relévo e da estrutura de outro. Nao é contestavel que o primeiro grupo pareca o mais importante, o que atraia desde logo a atencéo. Espero, contudo, poder mostrar que o segundo grupo merece consideragao muito mais do que se imagina; e sera éste, talvez, um dos pontos mais novos desta exposicao. Mas, para comecar, que entendemos nés pela expressio “regio” ou “zona tropical”? Em principio, todos os paises compreendidos entre os tropicos. Na realidade nao se trata de uma zona regular, Teremos de encarar as regises de baixaPlatitude nas quais os fenémenos geograficos apresentam ca- racteres fundamentalmente diferentes daqueles observados em latitudes mais elevadas. O limite apareceré quando tivermos precisado tais diferengas. Notemos contudo que, se, provisériamente temos que ficar adstritos aos dois trépicos, teremos de cuidar de mais de dois tergos da superficie de nosso planéta, E 6 nesta zona que os continentes so mais extensos. Nao se dé bastante atengao a esta extensio dos paises tropicais. Nao con- sagrar a seu estudo téda a atengdo que merece é expor-se a ficar ignorando uma fase inteira da vida de nosso planéta. 4%, pois, um assunto de considerdvel amplitude o de que teremos de tratar. Comecemos por considerar os fendmenos de clima mais importantes e mais conhecidos: temperaturas, precipitagdes, movimentos da atmosfera. No que concerne as temperaturas, todos sabem que ela tém os mais ele- ‘vados valores na zona tropical, mas também menores varlagdes anuais. A superioridade da variacdo diurna em relacio & da zona temperada é menos conhecida; e no entanto é uma das caracteristicas essenciais: a frescura das noites tropicais é para o europeu uma surprésa, e as vézes um reconforto! ‘As precipitagoes oferecem um mAximo de contrastes seja no tempo, seja no espaco. A existéncia de uma estacdo séca que é uma excecdo na zona tem- perada, onde sé aparece & margem do Mediterraneo, é, pelo contrdrio, a regra * ‘Tradugio de Vilma Ribeiro, 580 BOLETIM GEOGRAFICO nas baixas latitudes; sua auséncia é excecdo, e, mesmo no equador, acontece que um dos dois valéres minimos mensais, se abaixa até que o indice de aridez* atinja o valor eritico de 20. Se, por outro lado, considerarmos a reparticio das médias de precipitacio anuais, aparece, 4 primeira vista, de um planisfério_pluviométrico, que a zona tropical possui concomitantemente as maiores extensdes de desertos.e as regides mais Irrigadas, que recebem de 4 a 10 metros de chuvas. ¥ inttil relembrar a causa désses fatos; é necessirio buscd-las nos movi- mentos de nosso planéta no sistema solar, e no escoamento de massas de ar, sobre, as quais vamos insistir um pouco mai ( Ultimo ponto de vista é essenclal, dom efeito, para definif a zona tropical. Fazendo-se abstencéo de pormenores e de variacdes locais desconcertantes, & possivel dizer que 0 movimento geral das camadas inferiores da atmosfera se faz em sentido inverso nas baixas latitudes e nas latitudes superiores a 30 ou 35°. No primeiro caso, temos um movimento para ‘oeste com componente em di- reg&io do equador, movimento de uma regularidade desconhecida em nossa zona temperada: sao os alisios. No segundo caso, é uma corrente para leste com componente polar, movi- mento irregular, turbulento, agitado por turbilhdes ascendentes ou descendentes que dao a nossos climas um cardter de instabilidade muito acentuado: séo os Westerlies dos navegantes, os grandes ventos frescos do oeste. ‘As duas correntes so separadas por uma zona de altas pressdes particular- mente bem marcadas no hemisfério austral nas latitudes de 25 a 35° cuja varia- Go do inverno ao verao segue as das baixas pressoes equatoriais. Este é 0 verdadeiro limite da zona tropical, espécie de anteparo mével que regula toda a economia da atmosfera (figs. 1 e 2). ‘O movimento inverso do ar na zona tropical e na zona temperada tem mil- tiplas conseqiiéncias sdbre a reparticio do calor e da umidade. A dissemetria térmica das duas margens do oceano é bem conhecida na zona temperada, onde se manifesta no tracado das isotermas que sobem ao atravessar © Atlantico de New-York ao Cabo Norte. Inversamente, na zona tropical, é a margem: otiental que tem as temperaturas mais baixas, (fig. 3). Fendmeno éste cuja importancia nao é para ser subestimada. Ele é duplicado, com efeito, por uma dessimetria inversa na repartigao da umidade. ,Efetivamente, os mesmos ventos ocednicos que amornecem 0 clima das costas ocidentais da Eurasia ou da América do Norte, Ihes trazem as nuyens e as chuvas. © cohitraste inverso na zona tropical é muito mais nitido: é 0 bordo ocidental da Eurdsia que é arido (Saara) ao passo que o bordo oriental se encharca com. as mais fortes precipitagdes conhecidas (india, Indochina, China meridional), contraste que se reencontra no Novo Mundo, da Califérnia meridional ao litoral imido-da Florida e estados vizinhos (fig. 4) . Estd-se vendo até que ponto a zona tropical se distingue por um regime original de seus climas. A economia e os aspectos de seu tapéte vegetal nfo sio menos ‘particulares. Ainda ai se registra o maximo de contrastes no tempo e no espaco.. Em nenhum lugar, o tapéte desaparece quase completamente sobre imensas exten- Sdes dridas; em nenhum lugar éle atinge tal densidade, exuberancia que se com- Pare com a da floresta equatorial. A periodicidade da vegetacao nao é mais sensi- Vel‘neste iiltimo caso, porque nem a temperatura; nem as precipitagdes se abai- xam sificientemente, no curso de um ano, para impor um repouso geral, e isto é uma, originalidade sem outro exemplo. Contudo, a condigio mais comum é de uma éstagao de repouso vegetativo, devido a insuficiéncia de umidade, particularidade de importancia excepcional para a geografia humana. Se, com efeito, o homem nada pode contra as baixas temperaturas invernais da zona temperada, a irri- XB ‘gabldo que o indice de arldez ¢ wma tuncéo” dé temperaturd ‘e das prectpliagées: V. Em. do Martonne: “Une nouvelle fonction climatologique, Vindice d’arldite”- (La Météoro- fogie, 1936, pp. 449-458) et “Nouvelle Carte mondiale de i'indice d'aridité”. 7bidem; 1941). ssonuyzuoosep sons 50; “sonusquocsap sodasg Jod sopporpus ops ouxepus oP sozuaa 80 “oyInt we Sosu0d 2 spinagey — Z ‘SI ogi oct owt 9 9 06 ov ol ‘saquanb syou soosioa sD vorpUy sonuszuoosap sodmis me OpDueZUIDY ‘uUDH OpUnsos synuv souuoz0st — “ML 2— 91017 BOLETIM GEOGRAFICO 584 “RVdDg opunsas ‘sazuauizuoD sop aioyfsadns DU se0dDId}e1d op SyonUD spmMOS svP OSA — ‘BIT eee Ee ee ee ee OM F 005 i) TRANSORICGOES - = > 585 gac&o, dando ao solo a 4gua-que falta na zona tropical, permite varias colheitas no cutso de um ano; dai a possibilidade de desenvolvimento de formigueiros humanos na Asia meridional. Se nos voltarmos para a hidrografia, podemos ainda notar caracterés origi- nais proprios da zona tropical. Ai ainda encontraremos a maior riqueza dé par com a maior indigéncia; as maiores bacias fluviais com os mais formidaveis débitos. O Amazonas e 0 Congo que levam ao.mar milhdes de quilometros cibi- cos, mas hé também imensas extensdes incapazes de lancar nos oceanos uma gota d’agua. O areismo' é um fenémeno especifico dos trépicos, realizado nos grandes desertos, em uma extensao equivalente a cérca de um quarto da super= ficie dos continentes e 4 metade da zona tropical" : # preciso ainda notar-se que se os grandes rios dessa zona langam aos ocea- fos volumes impressionantes de agua, esta riqueza hidrogréfica esta longe de ser tao grande quanto era de se esperar, consideradas as chuvas que tecebem. O coeficiente de fluxo! nao atinge, com efeito, em qualquer lugar da.zona, tropical, valores compardveis aos-da zona temperada, o que nao é de surpreender sendo dadas as altas temperaturas que reinam todo o ano. Em vez de 30.a 40%, tal coeficiente mantém-se, freqiientemente abaixo de 20. O Nilo, o Congo, e mesmo 0 Amazonas nao chegam a lancar no oceano mais que a quinta ou quarta parte das Aguas que caem em suas bacias. 2 Em suma, a hidrogratia, tropical 6, em téda parte, indigente, seja de maneira absoluta ou de maneira relativa. Tas so os caracteristicos originais da zona tropical que se manifestam 6 clima e suas conseqiiéneias imediatas sdbre a vegetacdo ou a hidrografia. Observa-las ndo deve espantar; sio de certo modo necessdrias, inevitaveis por causa da forma de nosso planéta, de sua posi¢ao no sistema solar e da dis- tribuigdéo dos continentes e dos oceanos. Se o-relévo ea estrutura’apresentain também’ ‘na zone. tropical caracteristi- cas originais nao se poderd dizer déleso mesmo. . Contudo, trata-se de fatos faceis de estabelecer, sé ndo de explicar. © relévo geral.dos .continentes n&o oferece em. geral, nas baixas latitudes, nada compardvel as altas montanhas das latitudes elevadas. A América do Sul €.0.tmico continente tropical em que aparece uma faixa de altas cadelas que ex- cedem de.3 000-a.4.000 metros: os Andes; fora desta cordilheira, ndo ha, nas trés quartas partes de sua extensio, senao planiciés, planaltos ou bacias separadas por pequenas elevacdes de planos com inclinacdes que, sé muito raramente, sdo no- taveis. Tal regime reina na quase totalidade da Africa do Norte francesa e sobre quase téda a Australia, ~ : : ‘A freqiiéncia de bacias acusa a tendéncia ao-endorreismo, o fluxo para 0 oceano nao se podendo organizar senao a preco de precipitacdes muito abun- dantes como acontece com 0 Congo, o Niger, o Nilo, 0 Zambeze, a0 passo que 0 lago Tchad permanece. uma bacia fechada. # preciso evidentemente buscar na estrutura a razio désse relévo original. Para dar conta disso,.organizamos. um planisfério estrutural, cuja explicacio e cujo comentario exigiriam uma conferéncia inteira. Néle se vé, ao primeiro lance de olhos, que as cadéias de altas montanhas pro- duzidas por dobras recentes estado estritamente localizadas. fora da zona tropical no Mundo Antigo, no lugar das zonas geolégicas, nas quais os sedimentos se acumularam nas reas de subsidéncia ou geoclinicas: podem ser seguidas da Espanha e dos Pirineus até a Indochina, pelos Pirineus € 0 Atlas,-os Alpes e 0s 2 Térmo tnventado para designar a auséncla total de fluxo liquide; 20 passo que endor- retsmo designa o fuxo (geralmente temporério) dirigido para as baclas interiores e 0 ezor- Felsmo, 0 fluxo regular até 0 oceano.(ver Em. de Martonne: “Arelsme et Indice d'arldité”. (Comptes-rendus des séances de.VAcad. des Sciences de Paris, tome 182, 1926, p. 939.) 3 Ver a carta 1:100 000 de Em. de Martonne’e L. Auréme, publicada na Meméria, nuimero 2 da Union Géogrephique Interniacionale (L’eztension des régions privés d’écoulement vers Vocéan, i 8,200 p.. Paris, 1928) @ nos Annales de Géographie (mesmo titulo, tomo XXXVI, 1928). * Razio entre as chuvas ¢ 0 débito. 586 BOLETIM GEOGRAFICO Apenimos, os Carpatos, 0s Baledis, o Céucaso, as cadeiras iranianas, o Himalaia, 0 Tiachan e outras saliéncias da Asia interior. As montanhas Rochosas e os Andes so as tinicas excecdes a esta regra. A quase totalidade dos continentes tropicais é formada de uma velha base crista~ fina ou primaria que se tornou rigida apés uma dobra extremamente antiga e um nivelamento quase perfeito produzido pela erosao. : Esta base se reencontra na América do Sul, Africa, india e Australia muitas vézes velada sob Uma capa de sedimentos tercidrios secundarios ou mesmo pri- marios, os quais ndo sofreram nenhuma prega, mas se ajustam as inclinag6es da plataforma primitiva. , Comecamos a conhecer bem o relévo e @ geologia de grande parte da Africa eda América do Sul, o bastante para reconhecer formas caracteristicas, comparé- veis Aquelas que se desenvolvem em condicées andlogas em certos pontos da zona temperada, notadamente na Europa Central e Ocidental, naquela que chamamos zona herciniana. ‘A capa sedimentéria conservada nas depressées tals como a “Bacia Parl- siense” na Franga, a bacia de Londres na Inglaterra, a hacia de Suabla e Franc6- nia na Alemanha do Sul, foi modelada pela erosio em “costelas”, relevos dessi- métricos de face abrupta com cabegos-testemunha. Ora, parece que tais fendmenos, tidos como classicos na Europa, no se reall- zaram sendo em extensio e com dimensoes verticais realmente infimas em com- paracéo com o que se observa na zona tropical. Na Africa, os Tassili do Saara so costelas entrelacadas com frente dominante de quase mil metros; a penhas- caria de Bandiagara no Médio Niger, as costas mandingas sao de 4 a 50 metros. Na América do Sul a “Costa de Botucatu” prolonga-se por mais de 1000 quil metros, com seus promontérios e suas entradas accmpanhadas de colinas-tes- temunha. Tals relevos nao séo somente de maiores dimensées, mas de idade mais an- tiga; freaiientemente se trata de sedimentos anteriores ao secundario, algumas vézes até de idade cambriana. Q Parece que a zona tropical é verdadeiramente o dominio das “costelas” com todos os acidentes caracteristicos a elas ligados, Nossa zona herciniana nfo ofe- rece mais que uma, pélida imitagao. Igualmente, os acidentes tecténicos que, muitas vézes, introduzem desnivela- mentos mais fortes no macico herciniano, encontram-se, na zona tropical, com uma amplidao, da qual a Europa nao pode dar uma idéia. ‘A base demasiado rigida para se dobrar, quebra-se na bacia do Reno para formar, entre os Vosgos e a Floresta Negra, o fésso da planfce alsaciana, ou, no Macico’ Central francés, a planice de Limanha. # ao lado do imenso campo de fraturas, falhas e fossos tetnicos que se segue no Mundo Antigo desde a Sitia até o Zambeze, fosso do Jordao e do Mar ‘Morto, série de fossos de leste e do sul da Abissinia, dos lagos Rodolfo, dos lagos do Alto Nilo, do Tanganica de onde sai o Congo, e do Niassa que se adivinha pelo Zambeze. Assim a zona tropical tem perfeitamente o seu relévo e sua estrutura pr6- pria, cujos caracteres ndo se reencontram senfo excepcionalmente na zona tem- perada. Nao sabemos ainda de onde Ihe vem esta originalidade: Mas, ao contrério, nos & possivel ter uma idéia dos caracteres da topografia, do modelado de ero- so, gue se explicam pela influéncia dos climas dos quais acabamos de notar as particularidades mais importantes. ° Estamos longe ainda de informagées suficientes a tal respeito, mas os fatos essenciais podem ser acentuados. Comecemos por notar uma conseqiiéncia importante da extenséo do areismo e do endorreismo na zona tropical: a impossibilidade de manter-se um escoa- mento das 4guas, correntes até o mar,'acarreta a impossibilidade de transporte, até o mar, de detritos da eroséo, desembaragando-se, assim, pela acao dos rios, os continentes, de tais detritos. .

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