You are on page 1of 14
ee Tato ‘} . Amarin Eine nae Rofo SUSPIROS POR UM ESCRAVO DE ANGOLA. DISCURSOS SOBRE A MAO-DE-OBRA AFRICANA NA @ AMAZONIA SEISCENTISTA. Rafael Chambouleyron Departamento de Histérial UFPA Entre as décadas de 1650 ¢ 1660, Joao de Ornelas da ‘Cimara, morador do Estado do Maranhio, escreveu 4 rainha regente de Portugal, _ dona Luisa de Gusmio, um papel sobre “: visias utd Jades do Maranhio”. / Nesse texto, ‘texto, Joao da Camara discotria“s 0s diversos produtos } naturais da regio que podiam gerar interesses pata'a coroa portuguesa, como 0 cacar sap. neuava de Guten €¢ anil. De outro lado, o autor apontava as vatias yara_o desenvolvimento econémico da regio, Commo & excessiva explomedo de alguns produtos ¢ a falta de cultivo ou a grave caléncia de moeda na regiio. Por iiltimo, ele enfatizava que “aes je principalmente'o actescentamento daquele Estado de haver se seguiio grandes conveniéncias, como geralmente se tem entendido”. Para o autor do texto, a importagio de escravos’ africanos Petmititia 0 crescimento das fazendas dos moradotes, ji que muitos trabalhadores indigenas nao tinham “tanto servico'como ium sé escravo de ‘Angola, pelos quais aqueles moradores suspiram”, sendo o beneficio “garantido’ com 2 mio-de-obra.africana. Além do mais, com’o trifico negreiro, evitar-se-iam os “grandes desservigos ¢ ofensas de Deus”, decortentes da injusta escravizagio feita aos Indios. Com a chegada dos afticanos, “se irio esquecendo os cativeiros dos indios” a que eram sobrigados os moradotes pela “necessidade”. Conseqtentemente, os nativos nao mais fugiriam dos portugueses, aproximando-se a “nossas Povoacdes” ¢ convertendo-se finalmente & fé catdlica (CAMARA, [166- 2], £ 236-236v). Joto de Ornelas da Camara nio era 0 tinico morador a queixar- se da falta de escravos afticanos no Estado do Maranhio e da sua imperativa necessidade para que os moradores portugueses pudessem desenvolver com beneficio suas atividades econdmicas. E que‘fo antigo Estado do Matanhio no século XVII, tegiio. que hoje corresponde aproximadamente 4 atual Amazénia brasileira/a principal fonte de mio- de-obra nio foi afticana, mas sim indigena, tanto livre como esctava. O Humanitas, v.°20, n. 1/2, 2004, p. 99-111. 100 Rafael Chambouleyson mimero de escravos africans no século: XVII de fato foi pouco significative se comparado a outras regides da América portuguesa (MBIRELES, 1983; SALLES, 1998). Tanto que, em 1679, 0 Conselho Ulteamarino sugeria que alguns africanos que viviam em Portugal enviados de Angola, se mandassem para o Maranhio. As razes para isso no podiam ser mais claras, pois no Maranhiio ¢ Pari hhavia_embarcacao_qu« la, ¢ menos Tegros com que se facumulassem], e como o gentio pela faversio] que tém faJos negros os nio admitirio (ARQUIVO HISTORICO ULTRAMARINO, 1679, £ 301). Se 20 longo do século XVIII essa situagio foi mudando de figura, principalmente na capitania do Maranhio, durante o século XVII, ou seja, desde 0s principios da conquista da regio, as atividades econdmicas dos portugueses dependeram principalmente do uso de trabalhadores indigenas. Neste texto no quero me concentrar sobre o problema da mio- de-obra africana e indigena pata o desenvolvimento econémico da Amaz6nia portuguesa, nem sobre as politicas da Coroa para implementar £ © trifico negteito para o Estado do Maranhio. Quero sim examinar Z es como, durante a segunda metade do século-XV\parte da populacio de 1690, principalmente colonos, religiosos e autotidades, viu nos escravos' afficanos uma alterna! ara_viabilizar_o progresso das atividades’ econdmicas desse territario— Esta discussio, como destaca José. Maia Bezerra Neto, aponta yi para uma questo mais ampla, a das “especificidades do mundo colonial 3 portugués existente na Regiio Amazénica, por si mesmo distante, distinto ¢ diferenciado do restante da América portuguesa” (BEZERRA 3 NETO, 2001, p. 18). De fato, no se pode pensar 0 espago amazénico “J durante o periodo colonial apenas como “Area periférica”, onde nao se 2 desenvolveram ou se deseavolveram parcialmene> as experiéncias escravistas ¢ priticas econdmicas presentes em outtas regibes dos dominios portugueses na América, principalmente 35 plantations da seo agucareira. Humanitas, v. 20,8. 1/2, 2004, p. 99-111. Suspicos por um escravo de Angola. Discursos sobre a ~ 101 ECONOMIA E MAO-DE-OBRA INDIGENA Diferentemente de outras regides da América portuguesa, como apontei, nas capitanias do Maranhio ¢ Para, as atividades econdmicas dos portugueses dependemm do “uso sistemitico do trabalho ne (ALENCASTRO, 2000, p. 140). Segundo John Monteito, = escravidio indigena, apesar de pouco estudada pela historiografia brasileiza, teve um impacto significativo nfo s6 sobre as povoagbes nativas, como também na “constituigio da sociedade e economia coloniais”. (MONTEIRO, 1992, p- 105° ~ Justamente, nos extremos sul ¢ sorte da América pormguess, desenvolveu-se esse tipo de exploragio do trabalho indigena. No caso do sul, principalmente na capitania de Sig Vicente, 0 incremento de uma cconomi baseada na mio-de-obra indigena, adquitida por meio do “apresamento”, entrou em crise em finais do século XVII, pelas proprias difculdades de obtengio da forga de trabalho. Esta situagio se vit agravada pelo descobrimento das minas aa década de 469, quando se nicia um lento processo_de-transformasio. da atividade: ‘economica, 0 al, ex spectos, culminaré com_a_ampla_utilizagio de ONTEIRO, 1994, p. 209-26). ‘Na Regio Norte, 20 contritio, o papel dos indios a economia, como explica Dauril Alden, foi importante “desde os principios da colonizacio até 2 década de 1750” (ALDEN, 1985, p. 431). Essa situagao gerava uma forte dependéncia da mio-de-obra indigena, dada, entre Sutras razdes, pela impossibilidade para a maioria dos moradores de cbter mio-de-obra africana, amplamente utilizada na costa norte-sul do | Brasil, visto que, segundo Charles Boxer, “os colonos eram em geral demasiado pobres para comprar afticanos, ¢ dependiam totalmente do trabalho amerindio” (BOXER, 1995, p. 277). Nao sem razio Arthur Cezar Ferreira Reis considerou 0 “eterno problema dé mio-de-obra” como wm “grave problema de natureza econdmica” (REIS, 1950,:p- 28). Significativamente, um dos cidadios de Belém, Manuel da Vide Soutomaior definin a relagio entre portugueses ¢ indios como © cospo politico neste Estado; ambos entre si yivem com o meésmo espitito por unio. € corsespondéncia; ¢ os males dos indios arrainam os moradores, que os hio de evitar como ptéptios; como também os males dos Humanitas, v. 20,n.1/2, 2004, p. 99-111. 102 Rafacl Chambouleyron moradofes” sio sem’ diivida destruicio dos indios e ainda da missio (SOUTOMAIOR, 1658, £1). SUSPIROS POR UM ESCRAVO DE ANGOLA ‘A importincia fundamental dos indios para o desenvolvimento da economia da regiio nao significava que os moradores portugueses nfio pensassem alternativas para essa situaco que tantos problemas gerava, dadas as dificuldades de apresamento, a sesisténcia dos préprios grupos indigenas e a oposi¢io de religiosos a determinadas formas de uso e aquisi¢ao da forca de trabalho indigena, entre outros fatores. De fato; em vitios textos escritos pelos moradores, como o de Jodo de Omelas da Camara, encontram-se diversas referéncias & mio-de- ‘obra africana como alternativa para o uso de indigenas, fossem eles livres ou escravos. Basicamente, eram dois os argumentos a favor do uso de afticanos. na Amaz6nia seiscentista, Em primeiro lugar, como jé apontava Joio da CAméra em sua carta, a chegada de afticanos permitisia resolver 6 eterno problema da esctavizagio ¢ uso da forga de trabalho indigena. Nao sem tazdo, em’finais da década de 1660, um dos mais famosos jesuftas que estiveram no Matanhio, o padre Antdnio Vieira, 20 discutir os meios para‘a “conservagio, aumerito ¢ defesa” do Maranhio, atacava um dos principais argumentos dos moradores para © desenvolvimento do Estado: as entradas ao sertio pata buscar indios. Segundo o padre Vicira, os motadores argumentavam acerca da necessidade dos chamados regetes de indios, por meio-dos quais se “Tesgatavam escravos das prOprias mages indigenas, decozrentes de guerras intectribais. Para o jesuita, esse argumento era enganoso, uma vez que apesar da imensa quantidade de resgates feitos, nunca se pdde aumentar © Estado, “que sempre foi em diminuigio ¢ tuina”. Para ele, todas as entradas ao sertio deveriam ser proibidas. A “nica solugao possivel eta descer indios livres e importar escravos africanos, “aplicando-se uns € outros ao trabalho e servigo de que, segundo seu natural, sio mais capazes” (VIEIRA, 1951a, p. 316-318). Na realidade, essa opsio configurava uma formula mais ampla para o padre Vieira, seguado ‘Anténio José Saraiva, a dos “negros para os colonos, os indios para os pegios pasa os colonos, of facies pane RTA 49 jesuitas® (SARAIVA, 1967, p- 1290). Humanitas, v. 20,1. 1/2, 2004, p. 99-111. ' 3, 3 § # : : & ‘Suspiros por um escravo de Angola. Discursos sobre a. 103 Poucos anos depois, a Camara de.Sio Luis argumentava que, se os portugueses nao podiam viver sem escravos e a Coroa nao autorizava os resgates de escravos no sertio, convinha entio que se touxessem escravos de “Angola, Guiné e Cacheu” (ARQUIVO HISTORICO ULTRAMARINO, 1673, £280). Para outros, como o ,v«dre Bartolomeu Galvio, os cativeiros dos indios arruinavam 0 Estado. A solugio desse grive problema passe pela mio-de-obra africans. ‘Também é certo que se no pode conservar € aumentar eS) aquele Estado sem teem aqueles moradores negios que thes fabriquem as suas lavouras, ¢ por falta destes se ediam daquele gentio, cativando muitos sem 0 serem, ¢ acudir a isto, mandando meter naquele Estado Jos de Angola ou da costa da Mina, que estes sfio para ~ 0 trabalho os mais duriveis (GALVAO, 1679, £ 388v). 3 © outzo grande argumento_defendido principalmente pelos moradores era ern africantos 0. Estado do Maranhao nunca prosperaria. mpossivel “fazerein-se aq uistas como convém” (SOUSA, 1679, f. 401). .A mesma opinifo tinha Joio de Moura, para o qual de nada servia a fertilidade ¢ abundincia do Estado, j4 que os mozadores nio tinhamh escravos para cultivar, para o qual propunha um assento de esctavos de Cabo Vetde (MOURA, [ea 1684], £ 322). Em 1685, este mesmo autor apontava que pata o aumento do Maranbio eram necessirios cultivos, engenhos ¢ droges, para os quais os moradotes precisavamn de éscravos ferramentas, “o que em vistude do contrato thes devem dar os interessados nele”, referindo-se claramente 2 um assento de negtos para o Estado do Maranhio. (MOURA, 1684, p. 20). Na década de 1690, o govemado: Anténio de Albuquerque Coelho de Carvalho sugetia 4 Cotoa que mais do que “generos”, enviasse 20 Makanhao, a custa da Fazenda real, escravos afticanos, uma vez que exum eles “o total Sele ae 1692). experts do Brasil_agucaseisd constituia aqui uma das formas de legitimar as pretensbes dos que defendiamn a imporagio.de africanos ao Maranhio. Em 1661, 0 padre Vieira defendia que s¢ n° Manbio clam molds os indigenas que se escravizavam, muitos mais efam 08 que morriam Humanites, v. 20,0. 1/2, 2004, p. 99-111. & 104 Rafael Chambouleyron *, como mostra a expeniéncia de cada din neste Estado [do Maran}, ¢ 0 mostzou no do Brasil, onde os moradores nunca tiveram remédio senfio depois que se serviram com 4 Gravos de Angola) por serem os indios da terra menos ‘capazes do tabalho ¢ de menos sesistincia contra as oengas, ¢ que, por estarem perto das suas terras, mais facilmente ou fogem ou os matam as saudades delas (VIEIRA, 1997a [1661] 8). Mesma opinifio tinha 6 vigisio-geral do Maranhio, padre Domingos Antunes Tomis, segundo o-qual, para o “aumento daquele Fetado sio necessarios negros de Angola e de Guiné’. Havia assim que trazer muitos esctavos, “pois se sabe que o Brasil no teve aumento sendo depois que nele entiaram os negros.de Angola € Guiné,e deixaram os escravos.do gentio da terra, e o mesmo as Indias de Castela” (TOMAS, 1679b, £397). Do mesmo modo, a Cimara de Séo Lufs argumentava que, como no se podia resgatar_esctavos—indigenas,ao_menos que. se trouxessem escravos da Africa, “como se usa no Brasil” (ARQUIVO HISTORICO ULTRAMARINO, 1673, £. 280). Como escreve Collin MachLachlan, nfo ha divida que 2 {mula “brasileisg” das plantations, cultivadas~e Deneficias por escravos afticanos se projetou para a ‘Amazénia portuguesa (MACHLACHLAN, 1974, p. 114). ‘Assim, muitos viam na esctavidio africana uma excelente alternativa para a mio-de-obra indigena. Nao sem razio, Manuel Nunes Pereira apontou que a coroa portuguesa “relacionava a prosperidade das, capitanias & importacio do braco escravo” (PEREIRA, 1949, 509). Eeneuateciabora ‘essa altemnativa Tosse considerada um. éxito no Estado do Brasil, solucionando ainda os problemas decorrentes do cativeiro dos indios, a impostagio-de-africanos para a_Amaz6nia foi VEL. minima ao longo do séci —"X esse tespeito, varias autotidades apontavam para a pobreza dos_moradotes_co inde empecilho para a-vinthde afzicanos. Gomes Bee de Andrade; povernador na décadd(de 1680; ao explicar o» zt i Comércio, destacava a dificuldade que tinham os moradores para pagar os afticanos & vista. A sua conclusio, difetentemente de outros autores, era que, se os escravos eram fundamentals ¢ tantas as dificuldades dos moradores, havia que se Humanitas, v. 20, 2.1/2, 2004, p. 99111. _Plauno- SImrLiclo que poder qnuwerpol/ Cy Worfies Suspicos por um escravo de Angola. Discursos sobre a ~ 105 regular, de uma vez por todas, as formas de escravizagio dos indios (ANDRADE, 1685). Um dos grandes da terra, 0 capitio Manuel Guedes “Asana, queixava-se de que os habitantes da regio do rio Itapecura ~ “o jardim do Maranhio” — haviam abandonado seus engenbos pela dificuldade de conseguir africanos (ARANHA, 1883 [1685], p- 4.0 mesmo escrevia Jodo de Sousa Ferreira, em finais do século XVII, 20 afirmar que 0 ‘Maranhio 140 era como O Brasil, “onde todos os meses entravam quantidade de negros, 0 que nao tinha o Estado do ‘Maranhiio por suas dificuldades” (FERREIRA, 1894, p- 55). Por outro lado, é muito patente nos textos © fato de que 1 mio~ de-obra africana, mesmo que fosse considerada uma solugao para os problemas da regiio, nfo era pensada de forma exclusiva. A mio-de-obra indigena, neste sentido, continuava_sendo fundamental’ para _o— i ee aR econbmies oh reo. ED TOTS, © governador Pedro César de Meneses informava 20 Tei que Jorge Gomes _—dg_Alemo que, por seus procuradores, estiva consttuindo ti engenho cay suas tetras no Pari e, para ld, jé havia levado muitos escravos de raphy res di Urgia primero & he Guing, solicitava que Ihe fossem concedidos casais de indios para que ali se instalassem (MENESES, 1673). O padre Vieira em duas ocasides havia. sugerido que se importassem africanos ¢ que também se instalasse aos indios préximos as povoasdes portuguesas, para que, como escrevia cm 1678, todos “segundo as suas orcas, txabalhem para o bem temporal piblico ¢ aumento do Estado e rendas reais” (VIEIRA, 1951b, p. 338- 39). Para alguns, como o padre Domingos Antunes Toms, qve defendia a importacéo de afticanos, nfo ex possivel “poderem viver agueles moradores nem habitas-se aquelas terras sem haver indios para a fabrica dels” (TOMAS, 1679a, £. 387). Significativamente, em 1697, depois de uma grave epidemia de Inxigdv Hefatava-se 20 sei a grande mortandade de indios, que havia tido como conseqiiéncia que os moradores nio tivessem como “acudir 4 cultura de seus frutos ¢ trabalho dos engenhos”. Justamente, a solugio sugetida era 2 importagio de afticanos, que tinba agora uma causa “urgentissima” (ARQUIVO HISTORICO ULTRAMARINO, 1697, £. 114v). Como se pode ver, nto havia uma pecessatia exclusio entre trabalhadores afticanos ¢ indigenas para aqueles que defendiam a escravidio africana, O capitio Manuel Guedes Aranha, inclusive, chamava a atengio para o fato de que Humanitas, v. 20, a. 1/2, 2004, p. goat? 106 Rafael Chaonbouleyron determinados trabalhos no podiam ser executados pelos africanos, “porque, além de pela maior parte no saberem nadas, se entram no mato, nfo sabem sair, porém sempre alguns negros entre os indios sto de muita utilidade” (ARANHA, 1883 [1685], p. 12). Finalmente, Joio de Sousa Ferreira, escrevendo pot meio de um diilogo entre um hortelio um pastor, comentava que os escravos indigenas no Pari e Maranhio, enquanto no hi outros para o trabalho, ainda que para’ cacadores € pescidores, como quem nfo aptendeu outra coisa, si melhores que todos, © sempre de muita utilidade & haver alguns tapuios entre os pretos, ainda quando no fosse mais que para priticos dos seus rios e matos, por filhos deles (FERREIRA, 1897, p. 148). CONSIDERAGOES FINAIS Como afirma Masia Regina Celestino de Almeida, no hi divide de que a organizacio da fossa de trabalho na Amazénia constituiu “um dos problemas’ mais sérios que a colonizagio teve que enfientac” (ALMEIDA, 1988, p. 102). Deste modo, as diversas formas de trabalho compulsétio no Matanhio € Paré coloniais nio podem ser examinadas isoladamente, Durante 0 século XVI, indios ¢ africanos — embora estes em menor niimero — foram igualmente explorados por moradores & autotidades, Tanto pata os habitantes portugueses, como para capities ¢ governadores e a Coroa, o ptoblema mais grave era desenvolver 0 Estado € as atividades econémicas levadas a cabo pelos moradores. Neste sentido, as solugdes buscadas ¢ discutidas foram diversas. Sem divida por essa razi0, como explica Vicente Salles, a politica escravista da metrépole, que amplos sucessos vinha obtendo no Estado do Brasil, procurou estender-se também ao Estado do Maranhio ¢ Grio-Para, onde a posse de vastos territérios jf se achava assegurada ¢ once se tentava orgenizar a economin de base agréria para gatantir sua efetiva ocupagio (SALES, 1998, p. 13). © problema da mio-de-obra afticana, portanto, tem que ser insetido na questio mais ampla da organizagio da forca de trabalho como -um todo na Amaz6nia colonial. Como se pode ver dos documentos examinados, escravos afticanos ¢ trabalhadores indigenas Humanitas, v. 20, n.1/2, 2004, p.99-111. 107 Suspiros por um escravo de Angola. Discursos sobre (livzes ou escravos) nido eram pensados de forma incompativel. Isto nos permite retomar o problema da, Amazénia como zona perfériea da ‘América portuguesa. A iddia de que a relagio plantations/escravidio africana ¢ a experiéncia do nordeste agucareizo representam um modelo ideal, dificulta a compreensio da experiéncia do Estado do Maranhao no século XVI. Como apontaram Anaiza Vergolino-Henry ¢ Napoleio Figueiredo, 20 entender-se 2 Amazénia a pattir do modelo da plantation, na qual o Estado do Maranho definitivamente no se enquadrava, © africano “se torou um elemento ausente na construgio da sociedade amazénica” (VERGOLINO-HENRY; FIGUEIREDO, 1990, p. 27). Efetivamente, nesta tegiio, onde conviveram o cultivo ¢ as drogas do sertio, trabalhadotes indigenss ¢ africanos nio se excluiam B verdade, como vimos, que 0 modelo “brasileiro” foi insistentemente reivindicado por moradores, clérigos ¢ autoridades como uma experiéncia exitosa, que devia set implementada também no Maranhiio ¢ Pari. Isso significa que a experiéncia amazénica de maneita alguma pode get pensada de forma isolada. Entretanto, a adogio da mio-de-obra africana no representava a automitica exclusio de outras formas de atividades econdmicas e formas de trabalho. O problema de considerar @ ‘Amazonia como regiio periférica é pensé-la como “incompleta” ou como “fracassada”, quando era apenas diferente. Esse fato se torna claro quando se analisn a politica da Coroa para o Estado do Marnahio, principalmente durante a segunda metade do século XVII. © progressivo descobrimento das drogas do sertao representou uma ccorientacio das atividades econémicas, 0 que ao necessariamente significou 0 abandono dos cultivos de agécar ¢ tabaco, por exemplo. Por outro lado, 0 fato de que a Coroa dependia das Informagdes ¢ experiéncia dos portugueses do Maranhio para poder tomar decises sobre este tipo de questdes revela que, apesar da importincia da experiéncia brasileira, nfo se tratou de transformar © Maranhio e Para em novos Pernambuco ¢ Bahia. O territério era outro ¢ a ocupacio portuguesa também o fora, o que foi clarsmente compreendido na Corte, Nada mais natural, entio, que as solugoes pensadas para desenvolver a economia da regiio fossem diferentes. Se io fosse assim, seria impossivel entender que, a0 mesmo tempo em que se falava de importagio de afticanos, muitos moradores ¢ também diversas autoridades na segiio e em Lisboa pensassem a Regiio ‘Amazénica como uma nova India, gracas as drogas do sextio. Humanitas, v, 20,0. 1/2, 2004, p. 99-111. 108 Rafael Chambouleyron [As diversas experiéncias coloniais dos portugueses (¢ também dos castelhanos) sem diivida exerceram uma poderosa influéncia na forma de colonizar e ocupar 2 Amaz6nia. Mas o Maranhio ¢ Pari nio exam apenas o recepticulo de politicas implementadas com sucesso nos centres do impétio. Aficmar isto significa deixar de lado a experiéncia colonial dos diversos grupos que ocuparam essa regiio em nome da monarquia portuguesa, algo gue a prdptia coroa de Portugal nunca deixou de considerar ao longo de todo o século XVII. NOTAS * Para Flivio de Campos, 0 problema da escravidio africana nos textos do padre Vieira tem que ser “a partir do sentido providencial que Vicira confere a0 mundo e, em particular, 20 Estado portugués”, Segundo 0 autor, para o jesuita, tanto “os escravos, como o$ senhores, etm tidos como instrumentos de um plano salvifico pata os homens, hierarquicamente concebido” (CAMPOS, 1993, p- 112 153). REFERENCIAS ALDEN, D. El indio desechable en el Estado de Maranhio durante los siglos XVII y XVII. Azsérica Indigena, v. 45, n. 2, p. 427-46, 1985. ALENCASTRO, L. F. de. O trato dos siventes:formapiio do Brasil no Atlintico sul, Si Paulo: Companhia das Letras, 2000. ALMEIDA, M. R. C. de. Trabalho compuls6rio na Amaz6nia: séculos XVIL-XVIIL. Revista Arrabaldes, v.1, n. 2, p. 101-17, 1988. ANDRADE, G. F. Carta para Dom Pedro II. Sio Luis, 15 out. 1685. Arquivo Histérico Ultramarino, Maranhio (Avulsos), caixa 6, documento 726. ARANHA, M. G. Papel politico sobre 0 Estado do Maranhio [1685]. Revista do Institute Histérico ¢ Geognifico Brasibive, t. 46, 1* parte, p. 1-60, 1883. . Satisface ao g. Sua Mag ordena na cons! das missdes sobre os pontos 4. ‘conthers a carta do governador do Maranham Antonio Coelbo de Carvalbo. Lisboa, 9 fev. 1697. Arquivo Histérico Ultramarino. Cédice 274, £. 114v-115v. Humanitas, v. 20,n.1/2, 2004, p. 99-111. Suspisos por um escravo de Angola. Discussos sobre a. 109 ARQUIVO HISTORICO ULTRAMARINO, Lisboa, Conulta do Conselbo Uliramarino para Dons Pedro II. 13 out. 1671. Pari (Avulsos), Caixa 2, documento 145. ARQUIVO HISTORICO ULTRAMARINO, Lisboa. Sobre o que pedem os moradores e ofgiaes da Camara do Maranhai en resab de nab pagarem direitos reservados q. s¢ ledrams aguelle Estado, ¢ vay a const que se acusa. \7 jul. 1673. Cédice 47, £. 280-280v. ARQUIVO HISTORICO ULTRAMARINO, Lisboa. Sobre se mandaremt 5 pra que estal no Penicke para o Estado do Maranbad. 18 jul. 1679. Cédice 17, £301. BEZERRA NETO, J. M. Bsaraviddo negra no Grito-Pand (Sées. XVI-XIX). Belém: Paka-Tatu, 2001. BOXER, C. R. The golden age of Brasil: growing pains ofa colonial soceg, 1695- 1750. 2. ed. Manchester: Carcanet, 1995. “CAMARA, J. de O. da. Papel gre se dew a Rainba D, Latiga sobre varias utilis do Maranhio, Lisboa: Institato de Arquivos Nacionais/Torte do Tombo, [166-}, vol. 23, £. 232-237. (Colegio Sio Vicente). CAMPOS, F. de Os trabalbos ¢ 0s dias elernos: a escravidao africana nas obras de Anlinin Vieira, 1993. Dissertagio (Mestrado em Histéria Social) ~ Universidade de Sio Paulo, Sao Paulo, 1993. CARVALHO, A. A. C. de. Carta para Dom Pedro II. Belém, 12 jul. 1692. “Arquivo Histérico Ultramarino, Pard (Avulsos), caixa 3, documento 306. FERREIRA, J. de S. America abreviada. Suas noticias ¢ de seus naturaes, e em particular do Maranhio, titalos, contendas ¢ instrucgées a sua conserva¢io € augmento mui uteis. Revista do Instituto Histirico ¢ Gengpifico Brasiliro, t. 57, 1° parte, p. 5-153, 1894. GALVAO, B. Sobre 0 mesmo [Maranbito ¢ Paré]. Lisboa, 24 de outubro de 1679, Lisboa: Biblioteca da Ajuda, 1679, cédice 50-V-37, £ 388-389v. MACLACHLAN, C. African slave trade and economic development in “Amazonia, 1700-1800. In: TOPLIN, R. B. (Ed). Stevery ated race relations in Latin America. Westport: Greenwood Press, 1974. p. 112-45. MEIRELES, M. M. Os negros xo Maranbio. Sio Luis: UFMA, 1983. MENESES, P. C. Carta para Dom Pedro Il. Belém, 20 jul. 1673. Arquivo Histérico Ultramarino, Para (Avulsos), caixa 2, documento 152. Humanitas, v. 20,0.1/2, 2004, p. 99-121. 110 Rafacl Chambouleyron MONTEIRO, J. M. O° escravo indio, esse desconhecido. In: GRUPIONI, L. D. B. (Org), Indios no Brasil. Sio Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1992. p. 105-20. . Negros da terra: indios ¢ bandeirantes nas origens de Séo Pale. Sko Paulo: Companhia das Letras, 1994. MOURA, J. de. Parecer sobre se augmentar 0 Estado do Maranham farendo-se aassento para negros de Cabo Verde. Feyto por Joam de Moura (ea. 1684). Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal. 1684. Cédice 1570, £ 319-326. . Collonia portugueza que conthem tres tratados: no primeyro se descreve-o estado do Maranbiio e forma de seu aygmento... Por Joko de Moura, cavalleiro professo da Ordem de Christo. Anno 1684. Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal, 1684. Cédice 585. PEREIRA, M. N. A introdugio do negro na Amazénia. Boletin Geagrifice, v.1,n.77, p. 509-515, 1949. REIS, A.C. F. O Bslado do Maranhiio — categuese do gentio — rebuliies — pacificagao, Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1950. SALLES, V: O negro no Pard: sob o regime da escraviddio. 2. ed. Brasilia: MinC; Belém; Secult, 1998. SARAIVA, A. J. Le pére Antonio Vieira S.J. et la question de Pesclavage des noirs au XVIUle sigcle, Annales. Economies, socittés, civilisations, v. 22,0. 6, p. 1289-1309, 1967. SOUSA, S: da C. e. Sobre o Maranhaé ¢ Pari e decord® dos ministros, e offciais, 4g. la ha Lishoa, 24 de outubro de 1679. Lisboa: Biblioteca da Ajuda, 1679. Cédice 50-V-37, £. 398-405. SQUTOMAIOR, M. da V. Papel q. fox Manoel da Vide Soutomayor. Belém, 30 de abril de 1658. Lisboa: Biblioteca da Ajuda, 1658, Cédice 54-XIIL-4, 42, TOMAS, D. A. Sobre 0 Maranbaé e Pant. Lisboa, 3 de novembro de 1679. Lisboa: Biblioteca da Ajuda, 16792. Cédice 50-V-37, f. 384-387v. Sobre 0 Maranbad e Para e catie” dos Indias e forma de os haver cb augnento do Estado, Lisboa, 3 de novembro de 1679. Lisboa: Biblioteca da Ajuda, 1679b. Cédice 50-V-37, £ 394-397. VERGOLINO-HENRY, A; FIGUEIREDO, A. N. A presenga afticana na Amarénia colonial uma noticia bistirica. Belém: Arquivo Piiblico do Estado do Para, 1990. Humanitas, v. 20,n.1/2, 2004, p. 99-111 110 Rafael Chambouleyron MONTEIRO, J. M. O escravo indio, esse desconhecido. In: GRUPIONI, L. D. B. (Osg), Indios no Brasil. Sio Paulo: Secretaria ‘Municipal de Cultura, 1992. p. 105-20. . Negros da terra: indios ¢ bandeivantes nas. origens de Séo Paulo. Sio Paulo: Companhia das Letras, 1994, MOURA, J. de. Parecer sobre se angmentar 0 Estado do Maranham fazendo-se cassento para negras de Cabo Verde. Feyto por Joam de Moura (oa. 1684]. Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal. 1684. Cédice 1570, £. 319-326. . Collonia portuguera que conthem tres iratados: no primeyro se descrese 0 estado do Maranbiio e forma de sew angnento... Por Joo de Moura, cavalleiro professo da Ordem de Christo. Anno 1684. Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal, 1684. Cédice 585. PEREIRA, M, N. A introdugio do negro na Amaz6nin. Boletim Geogrdfio, v.7, 0.77, p. 509-515, 1949. REIS, A. C.F. O Estado do Maranhito — categuese do gentio ~ rebelies — (pacificago. Rio de Jancizo: Departamento de Imprensa Nacional, 1950. SALLES, V- O negro no Pard: sob 0 regime da escravidao. 2. ed. Brasilia: MinC; Belém; Secult, 1998. SARAIVA, A. J. Le pére Antonio Vieira SJ. et la question de Vesclavage des noirs au XVIIe siécle. Annales. Economies, soviétés, civilisations, v. 22, 0. 6, p. 1289-1309, 1967. SOUSA, S. da C. e. Sobre o Maranhaé e Pari e dexordé dos ministras, ¢ officiais, 4. la ba, Lisboa, 21 de outubro de 1679. Lisboa: Biblioteca da Ajuda, 1679. Cédice 50-V-37, £. 398-405. SQUTOMAIOR, M. da V. Papel g. fog Manoel da Vide Sontomayor. Belém, 30 de abril de 1658, Lisboa: Biblioteca da Ajuda, 1658. Cédice 54-XIII-4, n. 42, TOMAS, D. A. Sobre 0 Maranhai e Pani. Lisboa, 3 de novembro de 1679. Lisboa: Biblioteca da Ajuda, 1679. Cédice 50-V-37, f. 384-387v. . Sobrio Maranbaé e Para e cativ” dos Indios ¢ forma de os haver 0 augmento do Estado. Lisboa, 3 de novembro de 1679. Lisboa: Biblioteca da Ajuda, 1679b. Cédice 50-V-37, £. 394-397. VERGOLINO-HENRY, A.; FIGUEIREDO, A. N. A presenga africana na Amaxénia colonial: uma noticia histérica, Beléen: Arquivo Piiblico do Estado do Pari, 1990. Humanitas, v. 20, 0.1/2, 2004, p. 99-111.

You might also like