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66 m x ARODADEEXPOSTOS. 0 OBVIO E 0 CONTRADITORIO DA INSTITUICAO Miriam Lifchitz Moreira Leite Pesquisadora da Centro de Apoio # Pesquisa em tistéria, Departamento de Histiria, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciéncias Humanas da USP. Um rapido levantamento entre pessoas que eram eriancas de quatro a seis anos na década de- 1830 foi o suficiente para revelar como a Roda estimulava a imaginacdo das criangas de familias estruturadas. Era usada como ameaga, fonte de mistérios nunca revelados por inteiro, provocando nelas uma curiosidade temerosa que os adultos se recu- savam, temiam ou nao tinham condigées de salisfazer. As criangas que moraram perta das Rodas de Salvador, de $30 Paulo e do Rio de Janeiro lembram-se de recomenda- g0es para que nao passassem por perta delas, nem olhassem muito para quem estivesse nas proximidades. As empregadas domésticas se afligiam com as perguntas alvoroga- das, sentinds-se atingidas e ameagadas por aquela curiosidade malsa. Os pais desviavam enfaticamente a conversa, em respeito aos tabus vigentes em questées de sexualidade. Por que aqueles bebés eram deixados na Roda? Nao é simples, também, comunicar a idéia de abandono de filhos pelos pais, ainda que seja uma situac3o muito presente em contos infantis tradicionais (de pai que deixa os filhos perdides na floresta, por nao ter como thes dar de comer), Entre si, as criancas trocavam suposi¢es desencontradas sobre tudo isso. A propria rotagao de mecanisme estimulava em sua imaginagao @ apare- cimento de uma gigantesca maquina de moer carne. Com o pensamento metaforico incen- diado, afirmavam para os irmaos menores qué 03. bebSs colocados no vad do muro erarh moidos pelo movimento giratério. Os que comunicaram suas lembrangas conservam viva uma sensacao de estranheza e temor desencadeada pelo som da sineta no siléncio da noite e pelo ranger do mecanismo que abocanhava hebés na rua, para empurré-los para detras dos muros A Roda dos Expostos foi uma institui¢do que existiu @ foi extinta na Franga, que existiu em Portugal ¢ foi trazida para o Brasil no século XVIII. Os governantes a criavam com 0 objetivo de salvar a vida de recém-nascidos abandonados, para encaminhd-los depois para trabalhos produtivos & forgades. Foi uma das ini¢iativas sociais para orien- tar a populagao: pobre no sentida de transtorma-la em classe trabalhadora e afasta-la da perigosa camada envolvida na prostituigao e na vadiagem. Em todos os locais em que existiu, a Roda de Expostos foi sempre muito discutida. Acreditava-se que 0 anonimato dos pais do enjeitado propiciava a licenciosidade e a irres- ponsabilidade pelo fruto de seus prazeres, © abandono da crianga acabava sendo consi- derado como resultante da existéncia da Roda, quando esta procurou, muitas vezes sem exito, salvar a vida de recém-nascides cujo abandone era feite nos adros das igrejas ou no beiral das portas, muito antes de as Rodas terem sido criadas. = o © abandono, a alta mortalidade e a doagao de criangas (na medida em que é pessi- vel avaliar comportamentos e sentimentos de outros tempos) ndo eram sempre vistes come um trafico de exploragao da infancia, mesmo nos. paises desenvolvidos. Além de originades pelas dificuldades do aleitamento, pela alimentagao artificial ou pelas mas condicées de sade das amas, eram resultantes de fatores econémicos, sociais e até culturais. entre os quais se destacam aspectos da implantagao da urbanizagao. A pratica ilegal © quase aberta do abandono ¢ o fatalismo com que era aceita a mortalidade infan- til revelavam certa indiferenca ao valor da crianga até 9 inicio do século XIX, quando as escolas comecaram a descobrila ¢ a classe médica passou a insistir na necessidade da criaco des filhes pela maes, pois cada crianga achada (depois de abandonada) era uma crianga perdida. Evidentemente, no Brasil, a situagao era agravada pela existéncia da escravidao, da exploragao sexual das escravas e da exploragao da crianca escrava. As amas-deleite a quem cram entregues os recem-nascides eram quase sempre escravas ou negras livres que amamentavam os enjeitados com a leite recusado a seus filhos. Apesar das discus- s6es sobre a imoralidade da Instituigao ¢ alta mortalidade dos internados, que se prolon- garam até 0 século XX, a Instituigo sabreviveu, com alteragdes internas @ maior controle estatistico € sanitario de seu funcionamento até 1948, no caso de Sao Paulo. Atualmento, esto sendo elaboradas duas teses sobre as Radas de Sao Paulo e do Rio de Janeiro com pesquisas na documentacao interna da Instituigdo. A documenta- e40 que apresento tem outro carater: so os muitos olhares de estrangeiros, agucados elas diferencas e pelo estranhamento; olhares que se alteraram através de todoo século XIX. A andlise de viajantes estrangeiros que estiveram no Rio de Janeiro, fez-me recupe- rar imagens perdidas da Roda da Bahia, que pevoaram a minha infancia, Nao um s0, mas varios vidjantes (MOREIRA LEITE, ML. 1982) detiveram-se diante da Roda no Rio de Janeiro e a descreveram fisicamente, procurando compreender @ esclarecer os seus objetivos. Nao ficaram, porém, apenas na descricao. Esta roda occupa o lugar de uma janela dando face para a rua e gira num eixo vertical, E dividida em quatro partes por compartimentos trianguiares, um dos quaes abre sempre para fora, convidando assim a que dela se aproxime toda mae que tem tao pouce coragdo que 6 capaz de separar-se de seu filho recém- nascide. Tem apenas que depositar 0 exposto na caixa, © por uma volta da roda fazé-lo passar para dentro, ¢ ir-se embara sem que ninguém a observe. (KIDDER € FLETCHER, 1851, p. 128) Acrescentavam & descricfio e a dades numéricos seus valores. culturais diante do observado. (Os fundes do Hospital dos Expastos, que foi instituide em 1738 provém, atual- mente, de Rendas, Caridade e Dividas a serem cobradas, nas proporcdes de 29, 48 e 27. Em seus regisiros, recebeu 8.509 crianeas, das quais 98 morreram, 5 foram devolvidas a Seus pais €, em 1818 havia, no estabelecimento 134, (LUC GOCk, 1818 p. 374) Diante da morte e do abandone das criangas, os viajantes revelaram atitudes muito diferentes. Robert Walsh e a Conde de Suzannet registraram a pratica de abortes ¢ infan- ticidios de escraves que desejavam livrar os filhos da escravidao. Os missionaries protes- 67 68 tantes Kidder e Fletcher condenaram as maes que abandonavam os filhos na Roda. Para eles, a Roda era um estimuio a licenciosidade e & desumanidade. Ja ¢ diplomata norte-americano Andrews apresentou-a como uma instituigdo humana, que pretendia pre- server a vida das criancas. Jean Baptiste Debret, pintor oficial do Primeiro Reinado, fez uma apresentacio visual do que chama de asilo para criancas abandonadas. ‘O piblico ¢ também admitido a visitar, na mesma época, 0 pequeno asilo para as criangas abandonadas, situado na mesma praca em frente a igroja da Mlise- rigérdia. Esse pequeno cdificio de um pavimento é de arquitetura regular. A torre acha-se no meio da fachada, num corpo um pouco afastado que se asse- melha 4 uma porta falsa. Uma escada estreita, de cada lado do edificio, leva. 80 primeiro andar composto de trés salas. unicamente destinadas. ao aleita- mento das criancas. Ai se encontram trés filas de bercos quarnecidos de balda- quins brancos uniformes, enfeitados com fildo, e cujas cortinas abertas & levantadas permitem que se vejam os recém-nascidos enfaixados com a ele- gancia brasileira e expostos sobre a coicha. Quando muito pequenos ou gémeos, s&0 colocados & razSo de dois par leito. A ama senta-se no ch4o, com: a8 pernas cruzadas, ao lado do berco. A vestimenta dessas mulheres, sempre muite limpa, varia entretanto quanto @ elegancia @ a riqueza, pois s4o em geral negras alugadas pela administracdo, que entrega os salarios aos senhores. Por isso, pela elegancia das negras se pode ajuizar da fortuna des senhores. a que pertencom. Muites orfaos, ao sair da adolescéncia séo entregues a artifices reputados, aos quais pagam com sua atividade a alimentacdo e os cuidades recebides. Mais. ‘ou menos no fim da oitava desta festa, um dia é reservado aos dotes anuais criados em favor das orfs em idade de casar . (OEBRET, J.B., 1816, tll (v, Ill] pp.45-49) Nesta passagem esto reunidas duas instituiges que talvez por volta de 1818 esti- vessem juntas — a Rada do Expastos 0 Asilo de Orfaos — destinadas ao recolhimente de recém-nascides, no primeiro caso e de desvalidos “de pé”, de 2 ou 3 anos e mais, nO Segundo. Ao apresentar as condi¢des espaciais da instituicao, Debret revela a aglo- meracao das criancas nos bercos e a condi¢éo social das amas-de-leile — escravas alugadas para 0 aleitamento, que ficavam na instituicao alimentande os internas, em pre- juizo dos filhos que eram, por sua vez, abandonades. Mal conhecido, mas no menos Tenebroso, 6 esse aspecto da escraviddo — a alta mortalidade infantil da populagao negra provocada, entre outros fatores, pelo desvio do leite das escravas. Muitos dos ‘exposios eram também filhos ilegitimos de escravas, que os pais nado queriam ou nao podiam sustentar e que, recalhidos na Roda, seriam vitimas de novas lutas contra a morte. Em 1821, a escritora e desenhista inglesa Maria Graham, que foi governanta dos filhos de D. Pedro e da princesa D. Leopoidina, analisou a rede de relagdes sociais que se desdobrava nessa instituic3o fechada: ...A primeira vez que {ui & Roda dos Expostos (parece impossivel) achei sete criangas com duas amas; nem bergos, nem vestudrio. Pedi o mapa e vi que em treze ans tinham entrado perto de 12.000 e apenas tinham vingado 1.000, nao sabendo a Misericérdia verdadeiramente onde eles se achavam. Agora, com a concessae da loteria, edificou-se uma casa propria para tal estabeleci- o oO mento, aonde ha trinta ¢ tantos bergos, quase tantas amas quanto expostos @ tudo em muito melhor administracao. «»» 29 de setembro. Fui ao Asilo de Orlaos, que também hospital dos expos- tos. Os rapazes recebem instruedo profissional em idade adequada. As mogas recebem um dote de 200 mil réis que, apesar de pequeno, as ajuda a estabele- ‘cerom-se ¢ é multas vezes acrescide por outros fundos. A casa é extremamente limpa, Como também 0 S80 45 camas para as criangas expostas, das quais somente trés esto agora sendo criadas por amas-de-leite dentro da casa. As demais est4o colocadas fora, no campo. Até ultimamente t&m morride numa proporedo apavorante em relacSo ao seu numero. Dentro de pouco mais de nove anos foram recebidas 10.000 criancas; estas eram dadas a criar fora, @ de muitas nunca mais houve noticia. Nao talvez porque toda tenham morrido, mas porque a tentacae de conservar uma mulata como escrava deve, ao que parece. garantit 0 cuidado com sua vida, mas as brancas nem ao menos tém esta possibilidade de salvacdo. Além disso, as pensoes pagas para a alimenta- cao de cada uma eram, a principio, 1&0 pequenas qué as pessoas pabres que as recebiam, dificilmente podiam proporcionar-ihes meios de subsisténcia. Um methoramento parcial ja foi feita e ainda maiores ampliages deverao ser realizadas. HA grande falta de tratamento médico. Muitos des expostos sao colocadas na Roda, cheios de doencas, com febre ou, mais frequentemente, com uma espécie de comichio chamada sarna, que Ihes é freaiientemente fatal. Por outro lade aparecem também criangas mortas, a fim de que sejam decentemente enterradas. (MOREIRA LEITE, M.L. 1984) Nenhum outro viajante apresentou um quadro tio completo das condigdes sociais ¢ higiénicas dos abandonados ¢ de suas nutrizes. Maria Graham e também Kidder e Fiet- cher revelaram uma institui¢ao em constante ampliagdo e¢ submetida a inumeras mudancas, conforme 0s recursos-6btidos pelos érgdos mantenedores € a disponibilidade de escravas para 0 aleitamento adequado, dependente, entre outros fatores, das altera- Ges por que passou 0 sistema escravocrata durante o século XIX. ‘0 relatério do Ministro do Império para 0 ano de 1859 dé-nos a seguinte alar- mante estatistica, com os comentarios do Ministro: Em 1854, 583 criancas foram recebidas, somadas a 68, j4 no estabeleci- mento. Total 656: — Mortas 435; Restantes, 221 Em 1853, 0 nimero de expostos recebidos foi de 630 & mortos 515. Foi portanto menor a mortalidade, no pasado do que nos ultimos anos. Toda- via @ ndmero de mortos ainda ¢ aterrador. Até © presente no foi possivel verificar as causas exalas dessa lamenta- vel mortandade, que com mais ou menos intensidade sempre se verifica entre os expostos. nao obstante os maiores esforgos empregados para combater mal Bem pode um dos médicos do estabelecimento, em cuja companhia um cavalheiro de minhas relagées visitou varies departamentos da instrugao excla- mar: “Messieurs, c'est une boucherie!" 69 70 o Qual seria a candi¢zo moral ou os sentimentos humanos dessas numero- sas pessoas que deliberadamente contribuem para expor a vida das criangas? Uma circunstancia peculiar ligada a esse estado do coisas é 0 facto alegado de que muitos dos expostos sao productos das mulheres escravas, cujos senho- res, néo desejando 0s aborrecimentos ¢ as despesas da manutencdo das criangas ou desejando os servicos das maes, como amas-de-leite, exigem que as criangas sejam enviadas & Enjeitaria onde, se conseguem sobreviver, serao livres. Um grande edificio para a acomodacaio dos expostes esta sendo cons- truido no Largo da Lapa (KIODER e FLETCHER, pp. 129 ss.) Contudo, foi o diario do escritor norte-americano Thomas Ewbank (1846, p. 288) que me forneceu 0 desenho de uma mulher branca, depositando furtivamente um recem- nascido na Roda de Expostos. Um dos fundadores da American Ethaolegical Society, Ewbank deixou um riquissimo diario, ilustrado com bicos de pena de sua lavra, revelando © colidiano urbano do Rio de Janeiro de meados do século passado. Tendo ouvide falar muito sobre a exposiedo diaria de criancas, @ as facilidades que se dao a fim de que 0s que queiram livrar-se delas possam fazé- lo discretamente, decidi-me ir observar o lugar de recepeao. E isto, até hd pouco, dava-se no Hospi- tal, mas agora é numa rua quase deserta, para escéndalo da Mae Sagrada das Monjas, cujo nome leva. O engenho para receber as eriancas consta de um cilindro oco @ vertical, girando em toro de um eixe. Um tergo dele é aberto para dar -acesso ao interior, ¢ 0 fundo ¢ coberto com uma almotada. © aparelho ¢ constituido de tal modo que é impossivel aos de dentro verem os do lado de fora. Caminhei por toda a extensao da Rua Santa Teresa som perceber nada, mas voltando, uma placa, de apenas algumas polegadas sobre uma porta fechada de um edificio normal, chamou a minha atencao. A inscricao era clara: ExPOSTOS Da MISenicondw~ N2 30. Enquanto a lia, veio de dentro um rumor de confirmagdo. A unica janela da fachada era proxima da porta e era, de fata, 0 receptaculo. O que eu tomara quando passei pela primeira vez, por um postigo verde, vi agora que ‘era ligeiramente encurvado. Toquei-o; a sua aber- tura girou rapidamente. Hesitel por um momento, mas quando os moradores de uma casa do lado ‘oposto abriram suas janelas para ver quem estava abandonando ali um enjeitado, a plena luz do dia, bati rapidamente em relirada. © depoimento do diplomata Christofer Columbus Andrews é de 1887. Passaram-se 36 anos desde as condenagées taxalivas dos missionarios e do escritor, revelando come estes viam a escravidao no momento em que o trafico estava sendo proibido. O diplomata, cuja carreira profissional também no 0 envolvia 180 diretamente com a populagao, tanto quanto a dos divulgadores da palavra divina, fez 0 seu depoimento as vésperas da Abolicdo. Agora, entrara em cena , que passara a parti. cipar dos hospitais e asilos brasileires, trazende novos comportamentes no tratamento de doentes @ crfaos. Contudo, se o tratamento se alterou em alguns pontos, as condi- uma nova presenga feminina — a IrmA de Caridade estrangeira @6es fisicas dos internados nao parecem ter melhorado. Passando uma tarde com um amigo pela Rua Evarista da Veiga, a rua da Igreja Anglicana e que esta no sopé do Morra de Santo Anténio, paralelo a frente do Jardim Publica, chegamos, a vista dos Arcos, ao Hospital de Enjeitados (Casa de Expostos), onde fomos recebidos por uma Irma de Caridade. Anualmente cerea de 400 eriangas de pais desconhecides sao entregues secretamente a essa instituigo humana, conhecida popularmente como “‘a roda”. Desde a sua fundagdo recebou 40.000 dessas criancas. Toma conta delas por 8 dias € depois as coloca como pensionistas de familias particulares, por cerca de 5 délares por més, até um ano e meio, depois do que se pagam 2 délares por més. Cerca de 6.000 délares so pages pelo asilo pela pensao externa das crian- gas. Quando tem idade suficiente para freqdentar a escola voltam a instituicdo, onde recebem instrucéo até os 12 anos € entdo sao enviados para aprender oficios. Recebem um pequeno date quando casam. Existem agora 40 criancas que recebem instrugao. O edificio di para a calcada e nada indica em sua fachada para que serve a nao ser, talvez, o lugar onde as criangas so deposi- tadas; ¢ isto nao chama a atencSo do transeunte que no conhece o edificio. porque 0 vo na parede mal aparece. O que parece ser um vo estreito e ligei- ramente oval na parede numa moldura de pedra, € @ parte exterior da “roda”, uma espécie de mecanisme giratério com trés lads abertos na parte interior. O lado externa fecha firmemente & & preciso um puxao firme para gité-lo @ abrir as prateleiras para a tua. Quando se faz isso, um recém-nascido pode ser colacado numa das prateleiras; € quanda a roda gira de novo, a crianca é introduzida no interior do asilo, no que se poderia chamar de recepeao € a0. mesmo tempo soa um sino bem alto. Uma Irma de Caridade ou uma criada imediatamente aparece e pega o recém-nascido; ¢ a fim de preservar sua iden- tidade para alguma finalidade futura, registra imediatamente a hora exata do recebimento, 0 Sexo, condigées fisicas © a roupa. As vezes, a mae pregou na roupa 0 nome que queria Ihe dar, ¢ esse desejo 6 em geral obedecide. Nin- guém sabe, nem se importa com quem deixou a crianga. A propria construgao da roda foi feita para manter o segredo. Muitos dos recém-nascidos este doentes quando chegam e 30 a 32% morre; menor poreentagem que nos anos anteriores. O numero recebido anteriormente também era maior que agora, sendo de 500 a 600 por ano, mostrande que com © progresso houve Uma reducao de nascimentas ilegitimos, apesar do cresci- mento da cidade. Muitas das criangas S40 mulatas e as que vi, num dormitério de trinta e duas camas eram bem pequenas. Mal parecia haver uma crianga saudével entre elas. O quarto em que estavam era tranqiiilo, com duas janelas e, embora grande, a atmosfera era abafada. As camas eram bercos de ferro arrumados com mosquiteiros em cada um. Escravas s80 empregadas invaria- velmente come amas-de-leite, sendo a politica do asilo no empregar para o a 72 servico maes de enjeitados. Um médico visita diariamente o asilo. Acontece, as vezes, que os pais desejam rotirar os fithos e, em determinadas circunsta cias © fornecendo provas de identidade podem fazé-lo. Fui informado pela Superiora que dolicadamente nos acompanhou durante a visita que existem agora 16 Inmés de Caridade da Ordem de Sao Vicente de Paula que vivern ai e ai prestam servicos. (ANDREWS, C.C., 1887 pp.43-46) A.essa altura, a imagem infantil da tenebrosa instituigao tinha-se ampliado ¢ ganhado contrastes através das informagoes de visilantes que tinham refletido sobre cla, com os recursos de sua formacao cultural e profissional e urna perspectiva basicamente burguesa. Foi quando a historiadora Maria Lucia Mott, pioneira em estudos sobre a crianca escrava, me sugeriu a leitura de dois volumes dos Annales de démographie historique. O de 1978, sobre “A mortalidade de passado’’ e o de 1983 sobre “Maes ¢ recém-nasci dos”, Alguns artigos desses ricos anuarios reterom-se situacdo de criangas abando- nadas na Franga, na Italia, na Bélgica ¢ na Inglaterra, durante o século XIX. E, para grande surpresa minha, as condi¢oes sanitérias e sociais apresentadas ndo muito das apontadas por Roberto Machado e seus colaboradores (1978) no Brasil do sécule XIX, Nao que lenhamos quantidades comparaveis de nascimentos ¢ dbitos. Mas a alta mortalidade e 0 tratamento dos recém-nascidos anteriormente a divuigacdo das descobertas em microbiologia feitas por Pasteur ¢ a vulgarizacao da puericultura nao dife- ram tanto quanta seria de se supor da situacao brasileira, a nao ser, é claro, pelo agrava- mento através da escravidao Até mesmo as dificuldades metodolégieas para conhecer a situagdo aparecem la como aqui. Existem afirmacées de que anies de 1850 as registros de obites e de nasci- menios eram pouco confidvels. A falta de clareza entre os dados sobre natimortos 6 semimortos & @ rarefacdo de informagbes tornam falhas todas as contagens. E tanto aqui como la, durante mais de trés quartos da século XIX, as condigdes sanitarias faziam ‘com que homens de 30 anos fossem velhos e estivessem alquebrados e decrépitos aos 40 ou 50. Além disso, coma em muitos casos as criancas eram mandadas para aleita- mento em outras cidades, a contagem dos mortos acabava sendo alterada. Assim, os autores europous verificaram também a necessidade de ultrapassar os dados numéricos ¢ lratar dos problemas demografices em termes de comportamento. Algumas condigées gerais de salubridade davam origem alta mortalidade que aqui ¢ apontada na Roda de Expostos. De um lado, a mobilidade da populacdo de baixa ‘eu nenhuma renda para locais sujeitos a epidemias ou endemias, que quando se tratava de gifteria, desinteria bacilar ou variola atetava profundamente a populacdo dos recém- nascidos até dois anos. Ligada a estas condigdes havia a qualidade da aqua de abaste- cimente da populaséio, as vezes proveniente de pages rasos facilmente contaminaveis @ que sc tornavam insalubres durante o verao. AS Aguas paradas nas vielas, ao redor das Casas eram aqui 0S focos de transmissores da febre amarela, que tantas vitimas fez em toda a populacao antes das medidas saneadoras de Oswaldo Cruz. Outra condicSo apontada nos estudos europeus dao conta também da ma nutricao das nutrizes, provo- cada por alimentacao defeituosa e caréncia de recursos. Forneciam um aleitamento insufi- ciente, num periado em que os rebanhos de vacas @ cabras ainda eram reduzidos ¢ 0 Ieite animal precisava ser “cortade” com agua impura e@ conservado em recipientes proprias, Nae se deve também esquecer uma condicao agravante, quase universal. Além de exaustas ‘subalimentadas, as amas-de-leite dominavam as préticas populares de cuidades com criangas, des conhecendo 03 principios da puericultura que comecaram a ser divulgados no sécule XIX e tinham a maior dificuldade para adotar os preceitos de assepsia no tralamento das criancas. As condi- cies das amas-de-leite particulares, alugadas ou escravas proprias eram, naturalmente, diferentes. Dentro da escravaria doméstica tinham uma posi- cdo de destaque, eram muito bem alimentadas & bem vestidas e ganhavam uma ascendéncia comentada ¢ lamentada sabre todas os habitantes da casa — senhores ¢ escravos. A distingao entre a8 amas-de-eite nao se fazia, portanto, apenas seguiidé 0 proprietario, mas também de acorda com a ¢rianga que receberia 6 leite — se era de familia de posses ou um bastardo enjeitado A introdugaéo da mamadeira, na segunda metade do século XIX, embora fosse um progresso importante na Substitui¢ao do aleitamento mateo, com as dificuldades de assepsia | citadas, trans- formou-se num elemento a mais a contribuir para a mortalidade infantil. Tanto quanto as enfermida- des € o aleitamento de varias criancas pela mesma ama-de-leite, a mamadeira matou muitas criancas por disenteria ‘A maioria dos textos dos viajantes que visitou a Roda de Expostos faz referéncia & limpeza do local ¢ des bercos. Dada a agiomeracao de criangas 2 0 ar pesado e quente que apontaram nos quartos, é um pouco surpreendente a limpeza e elegancia descrita pelos visitantes. Sd compreendemos essa questao depais da leitura dos rechos de Ol ver Twist de Charles Dickens, que apresento para engerrar este trabalho. Acentue agora a questo talvez mais abrangente da mortalidade dos recém-nasci- dos, apontada no Brasil pelos historiadores eurepeus. Trata-se da aglomeragao no que foi a instituiedo antepassada das creches atuais. A aglomeragao urbana sempre provo- cou surtos epidémicas de maior ou menor gravidade. A agiomeracio de recém-nas € criancas nas mesmas salas, freqlentemente sem 0 arejamento adequago, propiciava © agravamento de todas as demais condigdes de intensificacdo da mortalidade infantil. Mas nem os relatos dos viajantes, nem os estudos demograficos europeus conse- guiram exprimir outro aspecto da instituicao: a exploragéio e a crueldade dos adultos, dos pequenos funcionarios do Estado, com essa infancia indefesa. Esse aspecto vem apresentado com grande ironia por Charles: Dickens, o celebrado escritor inglés em seu romance de 1839, cujos primeiros capitules se chamam: |. Caracteristicas do lugar onde Oliver Twist nasceu e das circunstancias em que: ocorreu 0 seu nascimento € 13 74 =o) ca a = Il, Caracteristicas da criagao, crescimento e edueagao de Oliver Twist. Nasceu num asilo ao som das palavras de uma ama: “Quando ela tiver vivido tanto quanto eu, senher, com treze filhos todos mortos, a excecao de dois, e estes no asilo, agui comigo, entao ela sabera melhor o que fazer.”... ‘“Trouxe- ram-na aqui a noite passada. Encontraram-na caida na rua. Devia ter vindo de Jonge, porque os seus sapatos estavam em tiras’’... “A velha historia”, “sem anel de casamenta”.., A triste situacao em que estava, desprovido de leite materno, foi devidamente comunicada pelas autoridades do asilo as autoridades do municipio. Essas auto- ridades. inquiriram, com arrogancia, das autoridades do asilo se nao havia uma mulher domiciliada na ‘casa’, que estivesse em condicées de prestar a Oliver Twist a consolacdo e 0 alimento de que cle carecia. As autoridades do asilo responderam com humildade que nao havia. Apos o que, as autoridades muni- cipais resalveram magnanima e humanamente que Oliver Twist fosse internado numa “quinta” ou, por outras palavras, que fasse despachado para uma sucur- sal do asilo, a umas trés milhas, onde outros vinte ou trinta transgressores juvenis das leis dos pobres rolavam pelo chao dia inteiro sem o inconveniente de exigirem muito alimento ou muito vestudrio, sob a superintendéncia mater- nal de uma mulher idosa, que recebia os delingiientes pelo danativa de sete pence e meio por cabeca, semanalmente. . Na mamento preciso em que uma crianga havia conseguide sabreviver com @ menor porgao possivel do mais fraco alimento, sucedia, perversamente, em ite casos © meio em dez que, ou ela adoocia de fome ou de fra, ou caia no fogo por negligéncia, ou ficava meio sufecada com um ataque. .. Além disso, 0 conselho fazia visitas periédicas, mandande sempre o bedel um dia antes, para avisar que ia. As criangas apresentavam-se bem arrumadas ¢ limpas aos olhos, quando eles iam. Que mais poderia desejar o mundo? BIBLIOGRAFIA ACHARD, Amédée. La nourrice sur place, in Les Francais peints par eux-mémes. Paris, Fume et Cie, 1853 (resenha dos Annales de démographie historique) BIDEAU, A., BRUNET, G. © DESBOS, A. Variations locales de ta mortalité des enfants: example de la Chatelanie de Saint-Treviere-en-Dombes (1730-1869), in Etudes sur fa mortalité. La mortalité du passé. Paris, Annales de démographie historique, 1978, pp.7-30. BLUNDEN, Katherine. 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