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NA PONTA DA LINGUA 1 Bseen b. 1s i6 " 18 ‘Branpirims — guerra em toms da ingua Caries Aero Fareo [or], 4" ed Lingua materna ~ Team, vrigioeensina Mares Bao, Michel Stubbs & Giles Gagné, 3° ed Hist conc da linguic,Babara Weedwond, 5*e ‘Stilngistica ~ wna introduc erica, Lens Jean Cave, ed Hira concise da ria, Cates Higoare, 3 Pra entender alingustica — epiemolga ementar de wna diiphna Robert Marti, 3° Inve a sada etre, Armand Matelat, fei Neve, 2 ed A pragmatice,Prongise Armengaud, 2 iwi conc de smidca, Anne Heénalt, 2 ed A semdntic, Irene Tambs, 2 Linguistic comptaconal — ora & prin (Gabriel de Avil Otero e Seri de Moura Menuze Linguistica Marca — Una introduc a xtadn da histria as inguas, Caos ABerto Frac, 2 Lar com palavras — coo eee, lrandé Antunes, Se Anais de disse — Hise priias, Francine Maire, 2 ed Mas gue & mesmo “radia”, Carls Franchi, 2 ed ‘Anais da covers, principe metas Catherine Kerbat Orion 4s politics Unguistins, Loue-Jean Cavet Pras de lerameto no esi lure, crt dicars, 2 ed Carlos Alberto Fasc, Maria do Raivio Groin, ivan Maller de Olvera, Tél Gimene, Lis Carlos Travia eleva sail da lingua guage eri nna ais Pecval Leme Brito, Marcos Brg, Neiva Mars Jung, Exnéria de Lourdes Sav, Maria Mara Frianeto Tado mundo devia exreve, Georges Par A argumenaco, Chis Plata lrandé Antunes lutar com PALAVRAS coesaéo e coeréncia oro Marcos Marcionlo Gara ¢ mover eadnco: Andria Custédio Contnno twat Ana Sah les (seo) Cores alberto Faroe (UF Epon de Omer Rangel PUCSEL Gian Maller de Our USC pt enague Morteogudo Unw Santapo de Comports ‘anova Rojgopeten Tear) ‘Maros Bago (on). ‘Mana MrtaPerero Scere [FR, Un Rachel Got de Anarade UC SP Saima annus Mucho (PIC?) Stoo Mars Baton card in ‘pane. ccc wa foe Swe ICON 5 ORES tS ee sono 297 ‘uatampeens aoe ce ne Cains ora ba e105. ‘aiyoucninn na nga Sanmstacens npgen nn 2 ini. ne ayia ga Peis te ee als Ne coy cnan wi Deets sree 3 PARABOLA EDFTORIAL Resumen 36 Ip betel a70 Slo Paso $e abe 1 50519269 5061-1522 f(y 061-8075 ome pee: wi paabolaestoracom br ‘erat parboaaparaoliedtoralcombr eae bees gy voname po tga fame ee ISBN 7a a5 5640.6 Sect: a e208 © oto: Ma hand Antunes desta chr Prabal Fao SS Paul, seembro de 005 Para Sara ¢ Daniela, os melhores frutos de todas as coesses € coeréncias de minha vida. A lingua é uma das realidades mais fantésticas da nossa vida. Ela esté presente em todas as nossas atividades; nés vivemos entrelagados (as vezes soterra- dos!) pelas palavras; elas estabelecem todas as nossas relagbes e nossos limites, dizem ou tentam dizer quem somos, quem so os outros, onde estamos, o que vamos fazer, o que fizemos. Nossos sonhos so povoados de palavras; 05 outros se definem por palavras; todas as nossas emogoes € sentimentos se revestem de pala- ‘vras. © mundo inteiro é um magnifico e gigantesco bate-papo, dos chefes de Estado negociando a paz e a guerra as primeias silabas de uma crianga (..). E pela linguagem, afinal, que somos individuos tinicos: somos 0 que somos depois de um proceso de con- quista da nossa palavra, afirmada no meio de milhares de outras palavras ¢ com elas compostas (Parao & Teaea, Prins de texto para alos universities, Feels: Yous, 2002, p 8). SUMARIO Apresentagdo: Tudo o que voce queria saber sobre ‘como construir um bom texto sem se estressar Latis A. Marcusthisennnnnoe PRA COMECO DE CONVERSA. Capitulo 1 — 0 ESTUDO DA LINGUA... 1.1, Em busca de mais qualidade. 1.2. Velhos rumos 13. Gaue 60 proceso de exrever? Capitulo 2 — A COESAO DO TEXTO.... 2.1, O que é a coesio? Capitulo 3 — COMO SE FAZ A COESAO?.... ‘3.1. Relagdes textuais responséveis pela coesio.. 52 Capitulo 4 — PROCEDIMENTOS E RECURSOS 4.2. Recursos da coesao. Capitulo $—~ RECURSOS DA REPETIGAO 62 5.1. A panifrase. 5.2. 0 paralelismo.. 5.3. A repetigdo propriamente dita. Lan com PHLARAS: COESKO E coenENcIA Capitulo 6 — RECURSOS DA SUBSTITUICAO...... 86 6.1. A substituigéo gramatical.. . 86 6.2. A substituido lexical.. 96 6.3. A retomada por elipse.. vane 117 Capitulo 7 — A COESAO PELA ASSOCIAGAO SEMANTICA ENTRE AS PALAVRAS. ce 125 Capitulo 8 — A COESAO PELA CONEXAO. an. 140 8.1. A.conexio : : 140 8.2,As relagoes semanticas sinalizadas pela ‘conexao . 145 Capitulo 9 — A COESAO, O LEXICO E A GRAMATICA .. 164 ‘Capitulo 10 — A COESAO E A COERENCIA. 174 Capitulo 11 ~ QUE A LUTA NAO SEJA VA. 187 FONTES DOS EXEMPLOS APRESENTADOS...... 194 BIBLIOGRAFIA 195 APRESENTAGAO TUDO O QUE VOCE QUERIA SABER SOBRE COMO CONSTRUIR UM BOM TEXTO SEM SE ESTRESSAR E, sobretudo, um exercicio de tradugao, em palavras simples ¢ compreensiveis ao leigo, daqueles conceitos tedricos e técnicos que aparecem nos sisudos manuais de linguistica textual. E que muitas vezes passam, sem qualquer mediagao explicativa, para os livros didaticos, e a professora ou professor sequer conseguem saber do que se trata. A eapacidade de dizer de mancira simples o complexo é uma das tantas virtudes da obra que vocé esta comegando a ler. De fato, é comum que as professoras € os fessores, no ensino fundamental € i ssinalem nas margens de ‘edagées ou de trabalhos de curso expressées como 9 ram COM PALAVRAS:COESKO € COERENCIA CHETEB 0: CARTED Mas 0 que esti mesmo faltando neste caso? O que deveria ser feito Para suprir a tal lacuna de coesio e coeréncia? E disso que esta breve e substantiva andlise trata com naturalidade ¢ muita intimidade, como se estivesse ensinando a fazer uma comida gostosa. E tudo isso sem dar receitas simples ou superficiais, além de mos- ‘rar a seguranga de quem tem uma longa experiéncia neste tipo de assunto. Digo isto porque conhego Irandé Antunes e seu trabalho sério de ha muito tempo, desde que se ocu- ava dessas questées no comego da década de 1980, quando escreveu sua dissertagao de mestrado sob minha orientacio, tendo em seguida desenvolvido tese de dou- torado sobre a coesao textual na Universidade Clissica de Lisboa, que acabou se transformando no primeiro livro dedicado exclusivamente a0 assunto no Brasil Esta familiaridade com o tema, aliada a uma enorme experiéncia com professores da rede publica no ensino fundamental ¢ médio, bem como em universidades pliblicas ¢ particulares, dew & autora uma sensibilidade incomum para 0 tom adequado a exposicéo que atinge © leigo e nao enerva o técnico e tedrico exigente, pois ndo € superficial. Essas virtudes vém aqui aliadas a ‘um texto muito bem humorado e escrito com paixdo € carinho, pensando se = ponesentacho E claro que, nessa visio, o que mais conta néo vai ser a ortografia nem a simples regra de concordancia e sim o desenvolvimento das ideias ¢ a distribuicéo dos tépicos, a selegdo lexical, a contextualizacéo, 0 estilo que vio produzindo a adequacao da escrita. Para a autora, “isso equivale a admitir que a coerén- cia do texto é: linguistica, mas é também contextual, extralinguistica, pragmética, enfim, no sentido de que depende também de outros fatores que néo aqueles puramente internos & lingua”. A lingua enquanto sistema de formas ndo comanda tudo. Baseada nessas premissas, Irandé Antunes, co- mhecida por seus trabalhos sobre lingua portuguesa ‘numa linha inovadora e ligada a linguistica textual ¢ andlise da sociointeraglo, desenvolve uma série de argumentos mostrando como 0s textos séo muito mais do que simples formas. Como apontado, 0 micleo das observagées recai nos processos de coesdo e coerén- cia. Mas 0 que & coesdo? Como observé-la? Que faz 6 aluno quando a professora escreve que seu texto no tem coesio ou Ihe falta coeréncia? Certamente, ndo se trata de trocar uma palavra, acrescentar ou mudar um conectivo, nem de melhorar o parégrafo fou adequar os tempos verbais ¢ as concordancias " lumaR com paLaveas: coESHO E CoERENCIA verbo-nominais. Lendo 0 livro, ficard claro do que se trata, efetivamente, Esta clareza é dada também por outra caracteristica singular da autora: a farta exem- plificagdo com trechos da literatura, do jornalismo de obras cientificas, Em suma, aqui o leitor encontra uma introdugéo a produgio textual escrita em linguagem acessivel. Se gundo as préprias palavras da autora, ela pretende trazer algumas nogbesbisicas, acerca da propriedade textual da coesio e de sua relacdo com a oerénci, com o objetivo de Se compreender misainda esas nogGes assim, dseavolver nossa competéncia para falar, ouvir, lr e escrever textos, com mais relevancis, consisténca e adequaci. Parece pouco, mas é muito, ¢ talvez seja quase tudo o de que necessitamos para tratar questo tio dificil e a0 mesmo tempo tio decisiva. Neste aff, Trandé trata de “trocar em mitidos” os termos técni- os € as teorias, oferecendo aos leitores comuns uma ferramenta como nao se tinha até agora. Esta é uma obra que sai do pedestal das teorias para chegar a rea- lidade do usudrio que mais necessita, isto é, o aluno, a aluna do ensino fundamental e médio, mas também 0 universitério, bem como o homem e a mulher que J sairam da escola ¢ da universidade e entraram na vida ¢ precisam continuar escrevendo, No se trata de dominar a lingua enquanto uma forma e sim de saber como usé-la de maneira adequada nas mais diversas situagdes da vida didria e nos mais diversos graus de formalidade ou informalidade que se oferecem e nos quais devemos produzir géneros textuais variados. “Escrever é sempre escrever textos”, Jembra com razao a autora, ¢ por isso nao ¢ possivel 2 i ResenTaghO ‘escapar dessa atividade no uso da lingua. Escrever nao 6 fazer frases isoladas ou combinar formas apenas, ‘mas produzir textos que sejam compreensiveis. Isto significa que escrever também é inaliendvel da leitura: escrever € oferecer algo para ler. Assim, a coesio © a ‘coeréncia tém aspectos voltados tanto para o linguistico ‘quanto para decisGes relativas ao contexto social, cultural € cognitivo, levando em conta o interlocutor visado. Para tanto, ao longo do livro, A rigor, todos, ns text sm produzir ele deve € permitir a compreensao. Constitui, ainda, ‘uma visio distorcida imaginar que a repetigio seja coisa da lingua falada; basta ver a quantidade de re- petigdes encontradas em textos jornalisticos, romances trabalhos de teses, entre outros. A repeti¢do, como mostra Irandé Antunes, € um recurso expressivo de enorme importancia € até necessério em alguns gé- neros textuais. Além desses, muitos outros mitos em relagdo a escrita vdo sendo derrubados com enorme clareza e sedugdo argumentativa. Nao creio que seja minha missdo dizer, numa breve apresentagio, tudo o que a autora trata em obra de tanta densidade e com enorme transparéncia. Numa apresentacio, tal como o géneto exige, deve- se criar o gostinho da leitura no leitor. Espero ter atingido este objetivo nestas breves observagées. E assim, para saber mais, remeto vocé, leitora, leitor, 4 leitura atenta. Mas néo poderia finalizar sem citar 18 Lutan Com paLavRAS:COESHO € COERENCIA aqui o poema que serve de epigrafe ao capitulo 10, “A coesdo e coeréncia”, Eis a magnifica passage Subi a porta ¢ fechei a escada. Tirei minhas oragées ¢ recitei meus sapatos. Desliguei a cama ¢ deitei-me na luz Tudo porque Ele me deu um beijo de boa noite (dvro8 awe) ‘Ap6s introduzir esse poema, a autora se indaga, logo no inicio do capitulo: Seria esse texto incoerente? Epossivel descobrir nele alg 1a ponta de sentido? Melhor dizendo, épossvelrecuperar alguma unidade de sentido ou de intengio? Serve para “dizer alguma coisa? Se serve, como encarar 0 fato de as palavas estarem numa arrumagio linear que resulta sem sentido? A porta sobe? A gente fecha a escada? A gente tira as oraées ¢ recta os saptos? A gente desliga a cama se deta na luz? Nao ¢ dificil concordar com Irandé Antunes: 0 texto tem tudo para ndo dizer nada. Tem tudo para no funcionar, mas, flizmente, como constata a auto- ra, vivemos num mundo em que nossas experiéncias € condigées sociais, culturais e cognitivas permitem saber como se sentem os amantes beijando-se com ardor... Tudo se inverte, e entio é possivel até mesmo recitar sapatos, desligar a cama ou fechar a escada, A. andnima poetisa (creio que ‘o autor’ é uma mulher), foi mais do que coerente: deixou-nos plenamente cientes de como se sentira apés 0 beijo. Como acer- tadamente lembrado por Irandé a este propésito, “ >= pvnesenragno esse texto € coerente no porgue, simplesmente, & um texto poético. Ele € coerente porque se pode, por uma via qualquer, recuperar uma unidade de sentido, uma unidade de intengio. Pois bem, & mais ou menos assim — como a amante de que trata 0 poema acima — que voce, Teitora, leitor, vai se sentir em relagio a coesio & coeréncia depois de estudar este livro. produgio oral. Enfim, na vida hé muito mais do que formas linguisticas quando lidamos com a lingua em funcionamento. E é deste algo mais que vem a maior parte dos efeitos de sentido que 0s textos provocam em nés, Neste livro voce vai aprender como organizar (© aspecto linguistico em consonancia com este algo mais. 5 PRA COMEGO DE CONVERSA.. ‘A questo da coeséo tem sido, em geral, pouco ou quase nada tratada pelas graméticas e, 86 muito ecentemente, um ou outro livro didatico traz.observa- Ges acerca dessa propriedade textual. Em geral, essas observagies so apresentadas de forma superficial, incompletas e, por vezes, com algumas inconsistencies Assim, pode-se admitir que as questdes da coesio ¢ da coeréncia nao séo exploradas de forma satisfat6ria, nem mesmo nas aulas de Kingua, E comum ouvir-se referéncias muito vagas & coesio © & coeréncia. Essas propriedades do texto Parecem ser, assim, um terreno meio indefinido, vago, impreciso, para onde vamos jogando tudo 0 que nio sabemos explicar bem; sobretudo quando se trata de dificuldades menos superficiais. Diante daquele texto meio ruim, que nio estd muito bem formulado, que nao esté muito claro, cuja dificuldade nao sabemos exa- tamente identificar, recorremos a uma érea geral, sem contornos, onde cabe tudo e tudo se acomoda. B, af, dizemos: falta coesdo; ou 0 texto ndo tem coeréncia. Mas... falta coesio exatamente onde? Falta que tipo de recurso? Se um texto nao tem coeséo é porque Ihe esté feltando 0 qué? 16 RA COMEGD DE CONVERSA A indefinigao é pior ainda quando se trata de ‘coeréncia. Um texto, incoerente? Onde? Por qué? ‘Como disse, joga-se genericamente para o campo da coesio e da coeréncia a razdo de toda dificuldade que nio se consegue definir ou explicar. Na verdade, 0 que nao tem sido muito comum € que saibamos, todos nés, professores, alunos e demais, ‘como € um texto coeso e, paralelamente, como € um texto sem coesio; que recursos concorrem para que um texto seja coeso; o que falta em um texto sem coeséo. Minha pretensio com este trabalho é contribuir para que qualquer leitor interessado na questao possa ter acesso a essas nocdes basicas e possa compreender ‘um pouco mais acerca do que fazer para deixar o texto articulado, encadeado; enfim, coeso ¢ coerente. Para isso, depois de apresentar as fungdes textuais da coesio, fago uma descri¢ao de cada um dos dife- entes recursos que concorrem para esse resultado. ‘Uso de propésito uma linguagem nao demasiada- ‘mente téenica ou académica, evitando, por isso, 0 act- rmulo das nomenclaturas especializadas. Iso nao significa ‘que, alguma ver, teriha abdicado do rigor teérioo das questées, bem como da fidelidade as fontes citadas. Quanto aos exemplos apresentados, decidi tam- bém suprimir parte dos créditos relativos as fontes referidas, Esses exemplos foram, em sua grande maioria, colhidos em livros, jornais e revistas, com 0 ‘cuidado de ser fel ao contetido ¢ a forma das citacoes tomadas, No entanto, alguns poucos foram criados ‘ad hoc, para servirem de ilustragao, embora sejam inteiramente previsiveis nas situagées corriqueiras da interagdo cotidiana, "7 LUTAR CoM PALAVRAS: COESHO € coERENCIA No conjunto do trabalho, posso parecer reite- rativa, ou posso até, num ponto ou noutro, deixar a impressio de redundancia. Preferi correr esse risco, contanto que meu texto cumprisse sua fungdo Principal: a de ser explicativo, a de possibilitar uma exposicéo mais acessivel do fendmeno da coesio, sobretudo para aqueles leitores apenas iniciados nas questées textuais. Quis, afinal, tornar mais clares € mais acessiveis questées, por vezes, complexas e nem sempre bem compreendidas. Esse propésito remonta ao desejo de trazer para © debate priblico questées linguisticas que ultrapas- sem as determinagdes pontuais do certo e do errado, geralmente vistas em frases ¢ sem referéncia a um contexto de uso. De fato, o debate que se tem realizado no Brasil sobre questées linguisticas em diferentes programas de televisio, de radio, ou da imprensa escrita, tem tido uma tinica diregéo: a de reforgar a importancia da gramética normativa, a de reafirmar as nogées de uma suposta norma culta e, consequentemente, a de fixar-se “nas coisas erradas que dizemos”, com as quais “deixamos a lingua portuguesa em franco perigo”” Como pano de fundo desse debate prescritivo, hé o pressuposto geral de que “nés, brasileiros, nao sabemos falar bem a lingua portuguesa”, de que nés a “bagungamos com nossa indisciplina e nosso es- pirito irreverente”: Aliés, corre solto o boato de que “a lingua portuguesa é uma lingua muito dificil” Algo assim imposs{vel de ser aprendida; sé uns poucos superdotados é que conseguem, depois de muita luta. Ou, ainda, 0 outro boato, meio terrorista, de que a 8 i. PRA.COMEGO O€ CONVERSA, tuguesa corre o risco de desaparecer e, para asoobreivenie, pede-se socorro. Em linhas gerais, vai por esses termos a tOnica do debate publico no Brasil em torno das questdes linguisticas. ‘Nao por acaso, em todos esses meios de comuni- ‘cago, qualquer intervencao relacionada a lingua por- tuguesa 86 se ocupa de tirar divides pontuais quanto 40 que € certo € ao que é errado. Normalmente, essas jntervengées giram em torno de questées como, por exemple: O que é certo — entregar em domicitio ou entregar a domicilio? e similares. Questdes pontuais, quer dizer, localizadas, na verdade, em um determi- nado ponto do texto (as vezes, em um pontinho do texto). . Questées que néo requerem uma compreensio mais global de como as pessoas interagem por meio dos mais diferentes géneros de texto. Questdes que nao requerem um conhecimento mais relevante de como fazemos, por exemplo, para organizar um texto em fungéo de: a © defender um ponto de vista, um principio tedrico; orientar uma argumentagao; fazer uma ressalva; apresentar uma justificativa; dar uma explicagao; emitir um parecer; = vender um produto (ou uma ideia) et Coisas que supdem, de fato, uma competéncia flobal, para perceber semelhangas e diferencas, para ordenar, para estabelecer hierarquias, para decidir sobre 0 que € nuclear e o que € periférico, para dis- 19 LUTAR COM PALAMRAS: COESHO E COERENCIA cernir sobre 0 melhor jeito de abordar o outro — se de forma cautelosa, se de forma taxativa; se de vez, se 0s poucos etc. Essas muitissimas outras coisas é que sdo habilidades relevantes que qualquer pessoa deve pode dominar. Com certeza, seriam muito mais titeis socialmente, na vida de cada cidadio, do que saber, por exemplo, se a entrega € a domicitio ou em domiciio, E apoiada na percepedo de que saber atuar ver- balmente é uma condigio de sucesso para o exercicio de nossas atividades sociais que me sinto motivada a trazer aqui uma explicagio um pouco mais acessivel acerca de questées textuais; questées verdadeiramente dlobais, capazes de nos apoiar em nossas tentativas de desenvolver competéncias relevantes para uma atuacdo verbal bem-sucedida. Questdes, enfim, capazes de nos ajudar a, na luta com as palavras, conseguir a coesio e a coeréncia que tornam significativas as coisas ‘que fazemos, quando dizemas. Se aceitarmos a ideia de que existem, “por debai- x0 do pano”, muitas formas de boicotar, de retardar, de impedit 0 acesso de todos as oportunidades do desenvolvimento pleno da pessoa, temos que admitir, também, que a privagdo de uma competéncia textual ¢ comunicativa constitui uma dessas formas de deixar de fora ou de exeluir as pessoas. Em geral, mesmo dentro das escolas, ainda falta chegar a hora de as pessoas acordarem para 0 que significa, socialmente, 0 nao de- senvolvimento de competéncias textuais. No total, os que se privam dessas competéncias nao dao por isso, E 8 responséveis também nao, E quem sai perdendo? Vejo, portanto, como da maior pertinéncia que se instigue 0 piblico em geral para perceber a amplitude 2 PRA COMEGO OE COWERSA das questdes linguisticas; para perceber que uma lin- gua néo é uma coisa que se restringe apenas a um manual de gramdtica, a regras de certo e errado; para ‘perceber que usar a linguagem é uma atividade social, é um ato hist6rico, politico, cultural, que envolve tum complexo conjunto de habilidades (cognitivas, textuais e interativas) e de fatores situacionais. E, além disso, uma prerrogativa do ser humano, que Ihe dé imensos poderes e que retrata os intimeros Jagos que as pessoas criam entre si e com 0 mundo fem que vivem. Vejo, assim, com grande simpatia, ‘qualquer iniciativa de estender 0 debate das questoes Jinguisticas a todas as pessoas que no, apenas, os professores e, mais especificamente, os professores e (08 alunos de lingua portuguesa. ; ‘A lingua é universal. Ter competéncia para saber usé-la adequadamente em textos bem organiza- dos e relevantes é um direito de todos. Direito que, parece, ainda nao chegou “a tados os domicilios” ou, brasileiramente, “emt todos os domiciios”, Pelo menos, naqueles verde-amarelos. s Ferreira Gullar compos um poema que intitulou de Muitas voces. Nele, aparecem os versos: ‘Meu poema um tumulte, a fala que nele fala ‘outras voces arrasta em alarido, Pois é: neste trabalho também se pode ouvir a fala de muita gente. Gente com quem conversei, .a LUTAR Com PALAURAS: COESKO € cOERENCIA com quem troquei ideias, com quem dividi minhas preocupagtes. Por isso, gostaria de agradecer 0 incentivo, 0 apoio que, por muitas conversas e sugestdes, me foram dados néo s6 pelos professores Eduardo Calil € Marcos Bagno, mas também pelas professoras Ana Lima, Beth Marcuschi, Auxiliadora Lustosa, Gléucia Nascimento, Isabel Pinheiro. Me foram muito valiosas também as reflexdes feitas, na UECE, com os alunos do mestrado de linguistica aplicada ¢ com minhas orientandas de iniciagdo cientifica. As professoras Francineide Costa, Alair Geanne, Aparecida Santos e Nara Janaina, de Belém de Sao Francisco, gente que vive “com a mao na massa”, foram o “termémetro” com que pude avaliar o grau de transparéncia de ‘minha linguagem neste trabalho. A elas, agradeco a inestimavel escuta, Agradego, de forma muito especial, & professora Adair Pimentel Palicio e ao professor Luis Antonio Mareuschi, que, por dominios diferentes, me abriram as portas da linguistica. Cada um a seu tempo Parece razodvel admitir que, para os de casa, nio precisa haver agradecimentos. verdade. Mas me deixem dizer aqui quanto me sinto gratificada por poder discutir com Alfredo cada uma das questées aqui tratadas. E uma forma de a gente misturar a filosofia e a linguistica. Dé tudo no mesmo IRaNDE Costa ANTUNES Recife, setembro de 2005 2 CAPITULO 1 © ESTUDO DA LINGUA 1.1. Em busca de mais qualidade Em geral, temos acompanhado o debate acerca das ‘questies ligadas ao estudo do portugués. J4 no causa nenhuma surpresa ouvir falar das imensas dificuldades dos alunos para escreverem, mesmo no final do ensino ‘médio, textos relevantes, adequados e, consequentemen- te, coerentes. Ou, para se expressarem oralmente num registro mais formal. ‘Todos nés conhecemos também as condigées gerais em que esse estudo acontece: sem ‘muito estimulo a leitura e sem tempo para um persis- tente exercicio de se esctever textos que sejam, de fato, representativos da atividade que as pessoas desenvolvem nna comunicagao social do dia a dia ‘As inquietagdes deixadas pela constatagdo de que “como esta nao pode ser” nem sempre trazem muitas pistas de como “deveria ser”. Além disso, faltam livros de orientagdo especifica para professores € alunos do ensino fundamental e médio e, até, para © piiblico que queira conhecer explicitamente certas questées da linguagem. O que se tem escrito acerca dos problemas do ensino da lingua e de suas possiveis 2 LUMAR col PALAVRAS; COESKO E coeRENCIA solugies destina-se, na grande maioria dos casos, a0 proprio publico pesquisador, numa linguagem, quase sempre — como deve ser, na verdade — altamente especializada, de dificil acesso aqueles que apenas se iniciaram numa compreensio cientifica dos fendmenos da lingua e de seu ensino. Dessa forma, faltam orien- tages mais condizentes com as reais possibilidades de apteensio dos grupos menos especializados. Também tém faltado livros que sejam acessiveis aos alunos. Os livros didaticos ainda tém concedido muito pouca aten- fo as questées mais especificamente textuais, sobretudo em relagdo a determinados pontos tedricos. Evidentemente, no esté em causa no momento tentar simplificar essas orientagdes. Nem tampouco reduzi-las a um conjunto de receitas que dispensem a consisténcia teérica e a reflexio critica. Pretendo tra- zer algumas noges bisicas — pra comeco de conversa — acerca da propriedade textual da coesio e de sua relagio com a coeréncia, com o objetivo de compreender mais ainda essas nogdes e, assim, desenvolver nossa competéncia para falar, ouvir, ler e escrever textos, com mais relevancia, consisténcia e adequagao. Minha preocupacao, portanto, neste momento, é atender a uma técita e muitas vezes explicita vontade dos professores, alunos ¢ outros interessados, de sa- bberem como “se estuda a lingua com base no texto” como eles dizem, ou como se faz o estudo das regula- ridades do texto, como digo eu. Muites vezes, tenho constatado que, como jé disse, se tem pouca clareza acerca “do que é mesmo essa histéria de coesio” e, ai, todos aqueles problemas textuais mais complexos, dificeis de definir e de explicar, sio simplesmente 2 rotulados, e de uma forma muito vaga e indefinida, ‘como problemas de coesio. Quero assumir, portanto, aqui, essa tarefa de esclarecimento, de trocar em mitidos, na intencéo de trazer um pouco de luz as salas de aula, para que professores ¢ alunos vejam a lingua numa pers- pectiva bem mais ampla e descubram a maravilhosa aventura da interagdo, da comunicagao, da troca, do intercambio, possibilitados pela atividade verbal. Lé, ‘onde s6 os humanos chegam, pelo menos do jeito ‘que chegam. 1.2. Velhos rumos ‘Ja no causa surpresa 0 fato de se constatar que 08 alunos, até mesmo na universidade, demonstram ter dificuldades significativas na expresso oral, na Teitura e na escrita de determinados géneros mais formais. Deparamo-nos, por vezes, com situagdes diante das quais nos perguntamos: 0 que ficou de, no minimo, onze anos de estudo da lingua? Por que até mesmo nogées € habilidades téo elementares néo foram assimiladas? Nao pretendo, no momento, desenvolver uma explicagdo para as muitas razdes desses resultados. sriste uma farta literatura a respeito. Contento-me ‘em fazer algumas consideracoes, & guisa de introdu- cao. Como se quisesse motivar o leitor para aceitar 0 que vem depois. ‘Tendo em conta as fungGes de ensino que a es- cola assume, comecaria por apontar algumas de suas insuficiéncias, principalmente no que toca ao ensino 25 LUTAR COM PALAVRAS: COESHO € COERENCIA das habilidades de escrever. Embora vé focalizar prin- cipalmente problemas do ensino, espero interessar também os alunos e seus responsdveis. Eles precisam entender 0 que se passa em sala de aula; precisam saber avaliar a relevincia do que esté sendo proposto como ensino e de como este ensino estd sendo feito, Ou seja, na dtica com que falo aqui, os problemas do ensino devem interessar aos professores, aos alunos ©, Por que nio?, a toda a sociedade. Cada um tem seu papel na condugéo desses problemas. ‘Uma primeira insuficiéncia do ensino diz res- Peito ao fato de que hé uma primazia quase absoluta da oralidade em sala de aula, e de uma oralidade, As vezes, quase restrita ao informal. Até mesmo as Notas, 08 resumos, os esquemas para estudo, quando escritos, passam por um trabalho de tradugéo oral do professor “para facilitar”, “para que os alunos entendam melhor’, As oportunidades de escrita sio, quase sempre, reduzidas &s (poucas) aulas de redagio © aos eventuais apontamentos de aula, normalmente copiados do quadro. As atividades de leiture também no chegam a ser significativas Uma outra insuficiéncia poderia ser vista no fato de que, além de escassas, as oportunidades de escrita limitam-se a uma escrita com finalidade escolar apenas; ou seja, uma escrita reduzida aos objetivos imediatos das disciplinas, sem perspectivas sociais ins- piradas nos diferentes usos da lingua fora do ambiente escolar. Por exemplo, a produgéo escrita, no ensino médio, é orientada especificamente para a dissertagdo, com vistas & redacao do vestibular. Dessa forma, € comum a artificialidade das condigdes de produgio 26 (0 esTuD0 OA UiNGUR desses textos, do que resulta uma falsa compreensio do que seja construir textos relevantes e ajustados a um ‘contexto de comunicagao social mais amplo. ‘A essa escrita falseada falta um processo de retorno, pois falta, igualmente, um leitor & vista ou ‘mesmo simulado. Nem mesmo o professor que vai ler (08 textos dos alunos costuma assumir esse papel de Ieitor, atropeladg que é pelo outro papel de corretor. E, dificil, nessas condigées, isto é, sem saber para quem estd escrevendo, alguém tentar ajustar-se as condicbes da interagio. Assim, & escassez. de oportunidades de uma escrita socialmente significativa se soma 0 ‘agravante de uma escrita que é mero treinamento, para nada e para ninguém. E de se ressaltar, ainda, a estreiteza na com- preensio da atividade de escrever um texto um tanto quanto formal. Quase sempre, faltam as providencias para o planejamento do que vai ser dito ¢, mais ainda, falta a revisio cuidadosa do que foi dito. Tudo se reduz a um exercicio mectnico de por no papel no importa o qué; faca ou nao sentido, tenha ou no relevancia 0 que se diz Esse aspecto é mais grave quando se constata que 4 preocupaglo com a reviséo do que foi escrito se limita a corrigir pontos de sua superficie linguis- tica, como ortografia, concordancia verbal, crases ¢ outras questdes gramaticais. [Nao se pode esquecer a situaglo de vida de muitos professores, situacio que dificulta a exigéncia de ele ser ‘um leitor, um “escrevente” assiduo, um pesquisador, um produtor do conhecimento que pretende fazer circular entre os alunos com quem convive, a TAR COM PRLAVRAS: COESKO E COERENCIA De forma suméria, poderiamos dizer que tais insuficiéncias acontecem também quando estio em Jogo atuagdes orais, de cardter mais formal. No en- tanto, no momento presente, queriamos fixar-nos na ‘modalidade escrita da lingua, 1.3. 0 que é 0 processo de eserever? A pergunta poderia ser: O que é 0 processo de cscrever textos? Nao a fiz. nesses termos, por conside- rar isso uma redundancia. Na verdade, sempre que escrevemos socialmente escrevemos textos. Mas por que procurar entender o que é escrever? Por uma razéo muito simples. Da compreensio que temos do que seja escrever vao derivar nossas ativida- des com a prética da escrita. Conforme as concepgées que se tem do que seja escrever, treina-se a escrita de palavras soltas, de frases inventadas, de redagies descontextualizadas, para nada e para ninguém; ou se escrevem textos socialmente relevantes, de um determinado género, com objetivos claros, supondo uum leitor, mesmo simulado. Assim, nunca é€ demais relembrar as nogdes sobre o que caracteriza a atividade de escrever. Vejamos. 1.3.1, Escrever é, como falar, uma atividade de interacao, de intercimbio verbal. Por isso € que néo tem sentido escrever quando nao se esta procurando gir com outro, trocar com alguém alguma informagio, alguma ideia, dizer-the algo, sob algum pretexto. Nao tem sentido o vazio de uma escrita sem destinatério, sem alguém do outro lado da linha, sem uma intengéo particular. Como avaliar a qualidade dessa escrita? 28 ‘com que parimetros fazé-lo, se falta aquilo que es- sencialmente define o ato comunicativo? Desse modo, 0 pparimetro que resta o da ortografia, da concordancia ¢ 0 de outras particularidades da realizagao superficial a escrita, 0s quais sio importantes, ¢ claro, mas nio dispensam o concurso de outras regularidades. 1.3.2. Escrever, na perspectiva da interagao, 56 ‘pode ser uma atividade cooperativa, Uma atividade fem que dois ou mais sujeitos agem conjuntamente para a interpretacao de um sentido (0 que esta sendo dito), de uma intencio (por que esta sendo dito). Dai que se torna muito dificil escrever sem se saber para quem. Como selecionar as informagdes, como escolher a ordem em que as coisas devem ser ditas, como ajustar o grau de formalidade da linguagem, fo nivel do vocabulério e outras particularidades, se no sabemos, mesmo de forma simulada, quem é 0 nosso interlocutor e como avalié-lo? Se repararmos que, com algumas excegdes, essa tem sido a pratica costumeira das escolas, fica fécil entender por que fa escrita fica reduzida a um exercicio mecénico de escrever qualquer coisa, de qualquer jeito, que, fafinal, nao se sabe bem que fim vai ter. Também ‘io fica dificil entender por que tanta averséo dos alunos & atividade de escrever. 1.3.3. Bscrever, a outros ¢ de forma interativa, 6, pois, uma atividade contextualizada. Situada em algum momento, em algum espago, inserida em algum ‘evento cultural. Os valores que, convencionalmente, se atribuem a esses momentos ou espagos determinam certas escolhas linguisticas. Dessa forma, nao se es- Ey LWTAR CoM PALAVRAS: COEEHO E COERENCIA reve da mesma maneira, com os mesmos padrdes, em contextos diferentes. A descrigdo de um apartamento sera diferente, por exemplo, se ela é feita por um corretor, interessado em vendé-lo, se ela é feita por algum comprador interessado em conseguir baixar 0 preco do imével ou se ela é feita por algum arquiteto ‘que pretende fazer o projeto de sua decoragao. O que equivale a dizer que nao hé uma escrita uniforme, uma escrita desvinculada de um propésito, como ingenua- ‘mente se pensa, por vezes. A escrita uniforme, que, na verdade, é mais uma escrita vazia, existe quando se trata da escrita de frases soltas ou da escrita daqueles textos sem destinatérios. Como sfo para ninguém, a forma nao importa, o que se diz néo importa. Como nio varia o interlocutor (que, na verdade, nem exis- te), também nao varia o modo de interagir com ele. E assim se perde o sentido de ser da escrita, Assim € que se pode escrever, em qualquer contexto, “Meu tio viajou.”, mesmo que ndo tenhamos nenhum tio ou que nenhum tio nosso tenha viajado. 1.34, Tal como falar, escrever é wma atividade necessariamente textual. Ninguém fala ou escreve por meio de palavras ou de frases justapostas aleatoria mente, desconectadas, soltas, sem unidade. O que vale dizer: 56 nos comunicamos através de textos. Sejam eles orais ou escritos. Sejam eles grandes, médios ou pequenos. Tenham muitas, poucas, ou uma palavra apenas, Assim, a competéncia comunicativa, aquela que nos distingue como seres verbalmente atuantes, inclui necessariamente a competéncia para formular € entender textos, orais e escritos. 30 __Essa evidéncia parece no prevalecer em muitas das propostas de estudo da lingua, pois ainda persis- tem os exercicios de formar frases, cada uma solta da precedente ou da seguinte, 0 que contraria nossa ‘propria experiéncia de usuérios da lingua, que nunca ‘nos comunicamos formando frases soltas, ou juntando ppalavras, simplesmente porque elas comecam com’ ‘© mesmo som. O que todos nés sabemos é que se juntam palavras conforme seja necessério para que ‘se consiga dizer 0 que precisa ser dito Persiste também 0 uso do texto (as vezes, poe- mas!) apenas para nele se reconhecer a nidade gra- ‘matical em estudo ou dele se retirar uma ocorréncia de tal unidade (muita coisa “se retira do texto”). Pelo fato de ainda persistirem tais préticas, pode-se dizer que a escola nudou muito pouco, pois, agora, 0 mais significativo é que a andlise da classe gramatical da palavra ou a classificagdo das oragées analisadas ja no io feitas a0 acaso ou em frases inventadas na hora da aula, Sao feitas em fragmentos tirados de um texto, © qual, dessa forma, como diz Lajolo (1986, p. 52), serviu apenas de pretexto para 0 ensino do mesmo: reconhecimento das unidades gramaticais e de suas classificagdes. Por esses meios, reduzimos, muito ¢ simplistamente, 0 texto enquanto objeto de estudo. pior € que, com isso, ficamos com a ilusio de ‘que estamos estudando o texto. Na verdade, 0 texto no chega a ser objeto de estudo, pois, como disse, as tarefas continuam as mesmas: as de circular digrafos, as de srifar substantivos, as de distinguir com cruzes oragées substantivas de adverbiais e outras semelhantes. Ainda no se deu, portanto, 0 salto qualitativo esperado pelas 3 LUmaR COM PALAVRAS: COESHO & cOERENCIA propostas da linguistca de texto. Como se diz. jocosa- ‘mente: “sait-se de Guatemala para Guatapior”, uma vez {que se continua excluindo, dos objetivos e programas, 0 estudo das regularidades textuais ou o estudo das regras de como as interagées orais ¢ escritas se produzem e s40 interpretadas, para que servem e 0 que as pessoas fazem ‘com clas no cotidiano de suas relagbes sociais. Se, por tais atividades em torno de frases soltas, escola nio chega ao texto — enquanto condigéo da atividade verbal — também nao chega as propriedades da textualidade e, muito menos, lingua enquanto tota- lidade. Nao chega ao discurso, nem & compreensio do que se faz através dele na reprodugdo e na criagdo das representagdes culturais. E, na exploragio das partes desse corpo desarticulado — sem alma e sem vida —, fica, melancolicamente,o saldo de um estudo que serve muito pouco para além das paredes escolares. Ja fica fundamentada, assim, uma questo, a ser levantada daqui a pouco: por que o texto? Nao se trata, evidentemente, apenas de um modismo a mais, 1.3.5. Bscrever & uma atividade tematicamen- te orientada, Ou seja, em um texto, hé uma ideia central, um t6pico, um tema global que se pretende desenvolver,Um ponto de chegada, para 0 qual cada segmento vai-se encaminhando, vai-se orientando. Assim, como acontece numa caminhada. Nao im- porta se estamos dissertando, contando uma historia, fazendo um relatério, uma carta, ou a descrigao de ‘um aparelho. Nao importa. Hé sempre um ponto em vista. E perdé-to significa romper com a unidade tematica ¢ comprometer a relevancia comunicativa da interagdo. Esse aspecto justifica plenamente a le- 2 imidade de se preferir o texto a frase para ampliar jnossa competéncia comunicativa, 1.36. Escrever € uma atividade intencionalmente Escreve-se para se obter determinado fim, para eumprir determinado objetivo. Na verdade, nenhum dizer é simplesmente um dizer. Todo dizer é, como ppropée a teoria dos atos de fala (cf. Searle, 1981), uma forma de fazer, de agir, de atuar. A desculpa que, as ‘veres, apresentamos — “Falei por falar” — é, quase sempre, uma estratégia de nos eximirmos de uma tes ‘ponssbilidade, de nao assumirmos o que foi dito. ‘Assim, que intengbes, que objetivos visamos, na escola, com nossas propostas de escrever um texto? Nos mesmos, os autores dessas propostas, temos cla- teza quanto ao que pretendemos com elas? Nao seria ‘bem mais eficaz buscar essa clareza e explicitar essas ntengdes? Como outros fatores, as intengOes servem de parametro para muitas das decisdes que precisam ser tomadas no percurso da interagai 1.3.7, Escrever ¢ uma atividade que envelve, além de especificidades lingutsticas, outras, pragmd- ticas'. Creio que j4 se pode perceber como tudo na Jinguagem esté inter-relacionado. De fato, cada um dos pontos que vimos enumerando esta ligado aos ‘outros anteriores e subsequentes. Ou seja, se escrever constitui uma atividade interativa, contextualmente situada e funcionalmente definida, é natural que cada 7 Por ‘speciiidade pragmatic’, refirome aqui a todas as Drtcuaridades que podem acontecer ém um texto por conta das ‘ondigdes do contexto ou da situagio (espacial e cultural) da qual cle faz pare 33 LUTaR com PHLAVRAS: COESHO E COERENCIA texto seja marcado pelas condigées particulares de cada situagio. Isso significa dizer que tudo o que é peculiar aos sujeitos, as suas intengdes, ao contexto de circulagdo do texto vai-se refletir nas escolhas a serem feitas. De fato, so os elementos da situagio — 0 elementos pragmsticas, pois — que determinam as escolhas linguisticas, eno o contrério. A lingua mio existe em fungéo de si mesma. Estamos fartos de ouvir essa afirmacao. Falta Jevé-la em conta quando estamos planejando nossas atividades de estudo da lingua. Fomos orientados durante muito tempo de nossa vida escolar para distinguir 0 certo € o errado, sem nenhuma referéncia a uma situagio qualquer. Pre- cisamos aprender a pensar em: certo, errado? Onde, quando, com quem, para qué? 1.38, Escrever é uma atividade que se manifes- ta em géneros particulares de textos. Isto é, 08 textos ‘néo tém a mesma cara, Nao tém 0 mesmo esquema de sequenciagdo, 0 mesmo conjunto de partes ou a mesma forma de distribuigéo dessas partes. Uma carta, um requetimento, uma ata, uma declaracdo, ‘um comentério, uma noticia, um aviso, por exemplo, no comecam do mesmo jeito, nao se desenvolvem ¢ se fecham sob 0 mesmo modelo, Ha esquemas tipicos para cada um desses géneros; uns mais flexiveis, ou- tros mais rigidos. Por vezes, a criatividade do autor se expressa, exatamente, pela quebra desses esquemas tipicos, 0 que, normalmente, acontece, sobretudo no Ambito da produgio literéria. A verdade é que, fora da linguagem com fungao poética, nao € usual que crie- ‘mos nosso préprio modelo de texto. Como em outros dominios sociais, sujeitamo-nos aos esquemas con- 4 (© EsTVo0 OA Uncua definidos institucionalmente ¢ legitimados recorténcia. Saber usé-los constitui mncia do mundo letrado em que circulemos; mente, essa é a verdadeira competéncia que escola desenvolver. Dai, a conveniéncia de se enciar a entrada na escola de géneros textuais, ntes, levando em consideracio aqueles que, de aparecem socialmente. Se acabaria, assim, com ppratica amorfa de escrever textos que parecem ertencer a nenhum género reconhecivel 139. Escrever é uma atividade que retoma outros 5, isto é, que remonta a outros dizeres. De forma ‘ou menos explicita, estamos sempre voltando @ fontes, (ou a outras “vozes”, como se costuma ), proximas ou remotas. Nunca somos inteiramente is. Nosso discurso vai-se compondo pela ativagao imentos jé adquiridos. Em alguma medida, texto comporta procedimentos de recapitulaglo e eenquadramento de outros que ouvimos ou lemos. emo-nos ¢ fazemo-nos, individualmente, na rede fiva de todos 0s discursos com que entramos em ato, Fizemo-nos e fazemo-nos no convivio social conhecimentos partillados. Nunca entendi por que tos cursinhos estipulam que, numa dissertagdo de fibular, o candidato nao pode citar a palavra de ou- 0. Nao pode, isso sim, preencher a maior parte de seu exto com a palavra alheia. Mas pode, evidentemente, oiar-se nos dizeres de outro ou refuté-los, conforme estratégias adotadas em cada situacdo discursiva. 1.3.10, Por tiltimo, gostaria de lembrar que a eseri- € uma atividade em relacio de interdependéncia com 35 a leitura. Ler & a contraparte do ato de escrever, que como tal, se complementam. O que lemos foi escrito por alguém, e escrevemos para que outro leia. Nao existe solidio em nenhum dos dois momentos. Na verdade, 86 aparentemente estamos s6s, quando escrevemos ou Jemos. Hé sempre um alguém do outro lado. Imagino como ndo devem ser estranhas aos alunos as primeiras experiéncias de escrever para nio ser lido, ou de ler sem ser para entrar em contato com quem escreveu. ‘Mais ainda, deve parecer estranho o fato de haver aulas de redagdo (que devem ser aulas de escrita de textos), dissociadas das aulas de literatura e das aulas de portugués (“aulas de portugués” quer dizer “aulas de gramética”.) Dessa fragmentacao meio esquizofrénica, ficam as percepcdes distorcidas do funcionamento das linguas, concretamente ¢, sobretudo, a ideia equivocada de que a portugués corresponde gramética. E, ainda, fica a crenga de que “ler e escrever bem & um trogo ‘ao dificil que nem adianta a gente tentar aprender”. Ou seja, fica a conviegdo de que, se néo aprendemos, € porque ndo fomos capazes ¢, assim, somos 0 tinico responsével por nosso insucesso. Na verdade, é preciso que encontremos condigdes — na escola, na familia, na sociedade — para desenvolvermos em nds 0 gosto e a competéncia para a leitura e a escrita de textos. Nem tudo depende apenas de nossa capacidade pessoal A escrita também guarda dependéncias em relacio & propria fala. Falando, ouvindo, lendo ow escrevendo, os sujeitos realizam uma atividade de interagdo verbal. Com muitos pontos em comum € algumas diferencas também, salvando-se naturalmente a ideia de que cada uma dessas atividades supe a participacdo efetiva dos sujeitos envolvidos. 36 (© €STU00 OA LINGUA __Hé mais um ponto que gostaria de trazer & re- flexio. Trata-se do que costumo chamar de as idas ¢ vyindas da atividade de escrever. ‘A escola favorece a aceitagdo de um grande equivo- co; 0 de que escrever um texto se faz. numa primeira e finica versio. Nos exercicios de redacio, normalmente, 0 tempo nio chega para se refletir, para se levantar ou se estar hipSteses, para se encontrar a palavra certa, para se voltare avaliar a pertinéncia cas escolhas feitas. Tudo fica conforme apareceu na primeira escrita. Sem mais nem me- nos Sem grandes exigencias. De qualquer jeito. Tanto faz dizer isso ou aquilo, deste ou daquelejeito. Sem tentativas para se dizer melhor. Como se ndo houvesse regularidades, ‘normas. As vezes, imagino qual seria a reagdo dos alunos, se tivessem acesso aos borrdes de até grandes escritores. ‘Quantos corte, actéscimos, substituigdes, deslocamentos vo sendo feitos! O texto final que aparece impresso no uarda as marcas desses reparos. Mas eles aconteceram, Para deixar o texto no ponto, segundo pede a situacio, Em Antunes (2003), admiti tés grandes momentos para a atividade de escrever: 0 do planejamento (remoto préximo), 0 da escrta propriamente dita e oda revisio. Consequentemente, construir um texto escrito: © primeiro, é uma atividade que comeca antes da tarefa mecanica de grafar, ‘= segundo, inclui essa tarefa de grafar, de por no papel; = terceito, € uma atividade que ultrapassa 0 ‘momento da primeira versio. Ou seja, claborar um texto escrito € uma taefacujo sucesso nilo se com: pets, simplesmente, pela codificago de ideas ou informaces, 37 LUTa® Com PALAVRAS: COESHO E COERENCIA através de sinais grfico. Supe etapas de idas evindas, tapas interdependentes eintercomplementares, que acontecem desde 0 planejamento, pasando pela esrit,até0 momento posterior da revsio eda reescrta (Antunes, 2003, p. 54) O planejamento e a revisio do que escrevemos ainda parecem ser, na escola, um procedimento even- tual e ndo uma prética sistemética, que ja previsse, como coisa natural, o momento do planejamento ‘© momento da revisio. Reiterando o que disse em Antunes 2003, lembro que, muito provavelmente, a prética das redacées es- colares?, normalmente realizada num limite escasso de tempo, sem planejamento e sem revisio, leva a que se escreva de qualquer maneira. ‘A competéncia para escrever textos relevantes é uma conquista inteiramente possivel. O mito de que somente sabem escrever as pessoas que nasceram com esse “dom” cai por terra numa andlise aprofundada e objetiva. O dom de escrever é, na verdade, resultado * Creo que o termo ‘redaio’, pela sua grande didatizacdo, Jit ganhou uma conotacio demasiado escolar, prvativa do exerccio didatico de “fazer uma dissertagio” 08, até, “eserover um texto ‘qualquer’: Se observarmos, normalmente, em nossa vida social fora a escola, ndo somos solicitados a “fazer uma redacio’ Pedem-nos (que fagamos uma carta, uma ata, um requerimento, um relatéro, um artigo, um resumo ete. Ou sea, indicam-nos, com um nome especfic, 1um determinado género de texto que devemos esrever, com Vistas & algum fim bem defnido. $6 na escola scontece a solicitacio amorts 4e fazer uma redagdo: Nio seria melhor usar, em lugar de ‘edacio', ‘© nome do préprio genero que vai ser elaborado? Por exemple: ‘Faga um comentério’; ‘Faga um convite ou uma cart’ ‘Apresente ume ustificativa’; DE um parecer: Tavex se riasse um efeito novo, mais préximo do que acontece nas interags socais fora da escola. 38 0 estuo0 oA LINGUA muita determinacao, de muitas tentativas, de muita tica, afinal. Desde cedo Eyidentemente, cada pessoa € singular e vive esse de aquisicao e desenvolvimento das habilidades fer de forma e num ritmo muito particulares. ‘nenhum momento, partilho a ideia de um automa- ‘cego ou de qualquer amulagéo do sujeito em seu ‘de relago com a linguagem. Cada um tem seu de aprender e de reagir as investidas da atividade conhecer. O que quero sublinhar aqui é que nio se , ingenuamente, esperar que, sem aplicaglo, sem , sem tentativas, muitas epersistentemente conti- ‘se possa chegar a desenvolver as habilidades de € excrever textos relevantes e adequados aos muitos itos interativos de nosso dia a dia. 0 texto, por qué? No desenvolvimento dos itens anteriores, fomos respondendo a essa questo; mas, quisemos incluila explicitamente aqui, devido a grande importancia que assume. 0 texto, falado, ouvido, lido e escrito € que constitui, na verdade, 0 objeto de estudo das aulas de Tingua. Tudo deve convergir para ele: todas as nogées, ‘todas as atividades e procedimentos propostos. Nao tem sentido aprender nog6es sobre o pronome, por exemplo, '8¢ niio se sabe como usi-to em textos, orais ¢ escritos, ‘e que funcdo ele tem para a coesio € a coeréncia do ‘que se pretende dizer. Nao tem sentido aprender a lassificar as conjungées, saber que nomes elas tém, 39 LUTAR COM PALAVRAS: COESKO € COERENCIA se ndo se sabe que tipos de relagdes semanticas elas estabelecem nos pontos do texto onde aparecem. O texto deve permear, assim, toda e qualquer a dade da sala de aula de lingua (da mesma forma que ele ‘permeia toda e qualquer atividade de nossa atuagdo social). Constitui o ponto de comergéncia de qualquer pritica, de ‘qualquer exercicio, de qualquer plano. O fundamento para essa concepgio, jd vimos, € 0 seguinte: ninguém interage verbalmente a nao ser por meio de textos. Pretender ampliar competéncia verbal de alguém é pretender ampliar as suas possibilidades de criar € receber textos. O mais, io pobres manejos de pedagos, de fragmentos, de pecas desarticuladas de um quebra-cabecas cuja figura global nunca se manifesta, Manejos que, sem divida, esto a servigo de muitos outros interesses para além daqueles de deixar as pessoas, cada vez mais, com o poder da palavra, pam intervirem nos destinos de suas vidas. Os textos no podem, assim, acontecer na escola, eventualmente, como ‘quem faz, uma concessio, ou para preencher um tempo que sobra, se 0 programa permit. Algumas pesquisas tém mostrado que, em muitas esoolas, nao ha tempo, por exemplo, para a leitura. O cuidado maior ainda é aquele de cumprit um programa, de it “com a matéria pra frente”, o que evidencia que a leitura ndo faz parte deste programa, nao é item desta tmatéria; esté fora. Tanto assim que inclu‘la seria correr orrisco de comprometer, de atrapalhar o tempo destinado as explicagoes da matéria. Que matéria, podiamos per- guntar, pode ter relevancia se exchuimos o texto, como atividade de interagdo emissiva e receptiva? programa ea matéria, em geral, tem estado em fungio de se aprender uma fala correta, como se o con- 0 ‘0 esrua0 0A UNGUA ‘com bons textos ndo fosse a melhor maneira de se os padres mais prestigiados da lingua, Nao a escola se escondendo ou se protegendo, por dessa necessidade de “cumprir 0 programa”, para ificar a manutengdo de um ensino da lingua tao wyante? A escola néo procura cair na conta de que tem sido dada autonomia suficiente para fazer seus ios programas, Por que nfo mudé-los, pois? Se admitirmos que 0s acontecimentos de sala aula se projetam na vida particular das pessoas, deduzir que muito pouco interesse pela lei- pela escrita fica como heranca da experiéncia . E, depois, Id fora, na vida social, familiar € trabalho, nao haverd tempo nem gosto para ler € ver textos, exatamente como, agora, na escola, se encontra tempo e outras condigdes para de- Iver tais competéncias. Creio que, por essas sumérias consideracdes, ram razbes que justificam a opcao de se fazer do sto 0 objeto de estudo das aulas de lingua. A medida se aceita 0 desafio dessa opcdo, vai-se experimen- tando o gosto (e 0 goz0) de se descobrir uma lingua nando, uma lingua Viva, teal, situada, pela qual, fem textos — e no em frases soltas —, as pessoas interagem e até se defendem, como atores da grande aventura humana da troca, da mitua relagdo. 1.5. O qué, no texto? Essa 6, sem duivida, a grande questio. Nao 6 dificil ‘apresentar razies que jutifiquem a opcao pelo texto. Dificl descobrir 0 que em cada texto se deve fazer objeto de ‘estudo da lingua e, em desdobramento, como se faz. a LUIAR Com PALANRAS: COESKO € cOERENCIA Nio é pretensio minha, nesse comeco de comversa, responder inteiramente & questdo. Impossivel. Até por- que nenhuma resposta é total. Ha uma ciéncia, hd um saber que se vai fazendo, que se vai tecendo na ativi- dade de cada um, e as descobertas vém com a prépria determinagao de querer saber. Na certeza de que estarei apenas fornecendo algumas pistas de como orientar 0 estudo da lingua por um caminho mais interessante € mais eficaz, rumo 4 competéncia comunicativa das pessoas, disponho-me a apresentar alguns pontos acerca de como deixar um texto mais coeso e coerente e de como essas regularidades podem ser objeto de explici- tagio, de explicagdo, de estudo, afinal. As regularidades a que nos vamos referir tém como suporte geral a ideia de que um conjunto de palavras deve ter algumas caracteristicas para que possa funcionar e ser reconhecido como um texto. Entre essas caracteristicas do texto (ou propriedades*, somo alguns autores tem chamado), se destacam: = a coesdo = a coeréncia = a informatividade = © a intertextualidade. No momento, meu propésito é fixar-me na proprie- dade da coesdo, se fugir as suas inevitéveis relagées com as outras propriedades, sobretudo, com a coerén¢ As propriedades da textualidade tém sido objeto de muitos estudos ¢ de muitas pesquisas, por aatores estrangeirose nacionss, ‘Um trabalho bastante eonhecido é0 de Beaugrande & Dreslr (1981), ‘onde ¢apresentado oconjunto do que se tem chamado de “propriedades 4a textualdade’s Nessa mesma links tedvica, metecem referencia 0s Irabalhos de Inedore Koch, Leonor Févero, Lue AntOrio Marcuschi, ‘Maria da Graga Costa Val, entre outros (ver Bibliograa). 2 CAPITULO 2 A COESAO DO TEXTO |. © que & a coesio? Gostaria de iniciar este ponto trazendo uma crdnica Femando Sabino, que muito pode ilustrar a com- >, mesmo intuitiva, do que seja a coesio de um ‘Antes, uma palavrinha acerea do que tem sido uma 0 nas minhas conversas com 0s professores. Perocbo que os professores falam em coesdo, em texto ‘mas nao tém uma ideia muito clara do que seja essa coesio e de como ela & conseguida. Fala ‘coesHo como uma coisa meio abstrata © vaga, uma ie de zona indefinida que tudo abarca, que comporta ‘© que no se sabe bem o que é. Tudo o que a gente conseyfue explicar bem é, genericamente, apontado uma questio de coesio ou de coeréncia. Meu intuito com o presente trabalho € contri- fr para que se possa mais facilmente preencher lacuna e, assim, possibilitar uma clareza maior, F parte de professores, alunos ou quaisquer outros itores, acerca do que € a coesao € por meio de que 1508 ela acontece!. Vamos & cronica anunciada e " No estou com isso querendo simplifiar a questo. A coesio ‘© coeréncia do texto tlm sido objeto de muitos estos, entre 4 Luman cou paLavRas: COESKO E coeRENCIA ‘A cotsto 09 16x10 procurar entender por que a situagdo descrita pelo autor causou tanta estranheza. Vejamos. pesquisadores de diferentes tendéncas térica, e nem sempre hi, ‘esses studs, intra concordancia aerca do que ess duas propre > dads signiticam e de como ambas se manifestam nos textos. No inal deste ivr, consta a relagdo de uma bibiografa bésica em torno das ‘questtes da coesto e da coeréncia ~ questbes que bem poderiam ‘onstar de qualquer programa de estado da lingua. “4 LUTAR COM PALAVRAS: COESHO E COERENCIA Reparemos que ha por parte dos dois interlocu- tores um estranhamento que vai perpassando todo 0 texto. A eles, algo parece estar fora do “normal”, fora do costumeiro ¢, por isso mesmo, € interpretado como esquisito, como indicio, inclusive, de que o outro parece estar brincando, estar falando por cédigo ou ser idiota. A esquisitice que & sentida pelos dois interlo- coutores decorre exatamente da constatagio de que algo std funcionando fora dos padrdes normais, fora do modelo de fala das pessoas. E que ninguém fala assim: trazendo aos pedagos desarticuladas, soltos, as coisas que se quer dizer. Tudo vem em cadeia, encadeado, ‘umas partes ligadas as outras, de maneita que nada fica solto ¢ um segmento dé continuidade a outro, O que ¢ dito em um ponto se liga 20 que fo dito noutro ponto, anteriormente e subsequentemente, Assim, cada segmento do texto — da palavra ao pardgrafo — esta reso a pelo menos um outro. Quase sempre, cada um esta preso a muitos outros. E é por isso que se vai fazendo um fio, ou melhor, vao-se fazendo fios, igados entre si, atados, com os quais 0 texto vai sendo tecido, numa unidade possivel de ser interpretada, Conclusit: 0 texto com sequéncia, em que se reconhece um tipo qualquer de continuidade, de artculagio, € que consttui a normalidade dos textos com que interagimos. E € por isso também que o exercicio, tao comum 4s escolas, de pedir aos alunos que formem frases a partir de uma palavra mostra-se bastante reduzido e inadequado para desenvolver nesses alunos a compe- téncia para a escrita. Reduzido, porque ativa apenas parte do que é preciso saber para construir um texto coerente. Inadequado, porque nio exercita a habili- dade inerentemente textual de juntar, de articular 46 ‘A coEsto 00 texto parte, para que o sentido global ou a unidade sentido e da intencdo que se pretende realizar jam possiveis. Além disso, em nossa experiéncia sntes, ndo escolhemos primeiro uma palavra ou conjunto de palavras para, a partir dai, produzir enuinciado, Pelo contrério, temas algo a dizer, ou r, temos algo a fazer dizendo e, entao, escolhemos ppalavras que nos parecem adequadas. . Na verdade, a experiéncia cotidiana da crian- como falante de uma lingua, nao é a de formar Seria até natural que ela estranhasse esse tipo solicitagdo da escola. O que ela tem feito fora sala de aula, sempre, é interagir com as pessoas, wvés de textos marcados pela continuidade, pela articulagao de cada uma de suas partes (mesmo que la nao tenha consciéncia disso). Contentar-se com atividades de formar frases € promover o exercicio da Tinguagem, daquilo que, inevitavelmente, contraria ‘0 modo de ser do funcionamento da lingua. ‘Nessa perspectiva, sobressai a questio da coesio, exatamente como sendo essa propriedade pela qual se ria ese sinaliza toda espécie de ligacao, de laco, que da ‘a0 texto unidade de sentido ou unidade temdtica. 2.2. Que funges tem a coeso do texto? De certa forma, no segmento anterior, vimos implicitamente definindo qual seja a fungio da coesio ‘ade criar, estabelecer e sinalizar os lagos que deixam 18 varios Segmentos do texto ligados, articulados, enca- Geados. Reconhecer, entdo, que um texto esté coeso é reconhecer que suas partes — como disse, das palavras, ‘20s pardgrafos — nao estio soltas, fragmentadas, mas estdo ligadas, unidas entre si. a LUTAR CoM PALAVRAS: COESKO E CoERENCIA autores Halliday & Hasan (1976), definindo a coesio, apelam para a metéfora de “Iago”, no intuito de mostrar que, no texto, cada segmento precisa estar atado, preso, pelo menos, @ um outro, de sorte que nao hé “pontas soltas”, ow pedagos que ndo se juntam a nenhum outro. Mais uma vez, pode-se lembrar a redugio dos exercicios de formar frases, em que essa propriedade de deixar ligados os diferentes segmentos néo é requi- sitada e, consequentemente, nao se exercita uma das caracteristicas fundamentais de qualquer texto. Por causa das sucessivas ligagdes que se vao estabelecendo, « interpretagao de cada segmento, de cada periodo, por ‘exemplo, vai sendo afetada pela interpretagao das outras anteriores ou subsequentes. Ndo hd um segmento que se baste a si mesmo, que prescinda do concurso de outros segmentos. Tudo esté em relacao, portanto. E natural que tais ligagdes nao véo acontecendo simplesmente na superficie da sequéncia textual. Na verdade, elas sinalizam as ligagdes conceituais que estio subjacentes a essa superficie. Ou seja, concomitantes ‘0s encadeamentos identificdveis na superficie do texto, vao acontecendo aqueles outros no nivel semantico. Melhor dizendo, se ha ligagdes na superficie é porque elas existem no ambito do sentido e das intengoes pretendidas. O que a gente diz precisa ter sentido. E, para que tenha sentido o que a gente diz, as palavras devem estar interligadas; os periodos, os parigrafos devem estar encadeados. A compreensio ‘que se consegue ter do que o outro diz resulta dessa 48 > coEsho bo Texto uiltipla que se estabelece em cada segmento, Todos os seus niveis. coesdo —, quando pretendemos que nossos textos coesos, pretendemos que seja preservada sua inuidade, a sequéncia interligada de suas partes, que se efetive a unidade do sentido ¢ das in- de nossa interacao verbal. Para que, afinal, 8 nos fazer entender com sucesso. Este momento é bem oportuno para que lembre- aqui um trecho de um poema de Joao Cabral, que fala na palavra isolada e, porque isolada, ‘mostra muda e nada comunica. Melhor ouvir 0 , na beleza de seu poema: Rios sem discurso. Quando um rio corta, corta-se de vez 0 discurso-rio de dgua que ele fazia cortado, a dgua se fuera fm pedags em poco de dgua, em dgua paralitica. Em situagdo de poco, a dgua equivale ‘a uma palavra em situagao diciondria: isolada, estanque no poco dela mesma, porque assim estanque, estancada; ‘e mais: porque assim estancada, muda, ¢ muda porque com nenhuma comunica, porque cortow-se a sintaxe desse rio, 0 fio de dgua por que ele discorria, 6. de Melo Neto, 19757 £0 destague € meu. 49 CAPITULO 3 COMO SE FAZ A COESAO? ‘A continuidade da qual vimos falando é pro- videnciada no percurso do texto, fundamentalmente, pelas relagdes semanticas que se vio estabelecendo entre os varios segmentos. Nao é, portanto, uma ques- to apenas de superficie. Os termos se vao ligando ‘em sequéncia exatamente porque se vao relacionando conceitualmente. E importante, pois, ressaltar que continuidade que se instaura pela coesio é, fun- damentalmente, uma continuidade de sentido, uma continuidade semantica, que se expressa, no geral, pelas relacGes de reiteragdo, associagéo € conexdo. Essas relagdes acontecem gracas a varios procedi- ‘mentos que, por sua vez, se desdobram em diferentes recursos. Vejamos, em um quadro, apresentado a pagina seguinte, a distribuigdo dessas relagdes, desses pro- cedimentos desses recursos, depois do que desen- volvemos comentérios em torno de cada um, com cexemplos e observagbes acerca de como inclué-los em nnossos estudos do texto. 50 ‘A COESAO DO TEXTO ‘como SE Far A coESHO? {npot) | (Campo2) 1 ha. ha. [denies oleic | denies dagamitia 12.Substiugdo —]1.21.Substugdo [tomato por ‘gamatial|+penomes [22 Sb [rtomoda pr lel sindimas | tiperoimes | caracera-| reson Fr23.tipe toma pe | ‘Lassocac | 2.1.Sleio seed paws por animes lexial lemartcamerte | por eres [rximas desde relaiesde parted CONE | 3.1.Etabeledmena [Uso dedifeenes | prepries ereaiessate leonctors | cones ‘ieosemintias | sdeis centre termes, } erepectas es prods lous pails eto] supraprarifces| ‘QUADRO a:1: A PROPRIEDADE OA COESKO 0 TEXTS RELAGOES, PROCEOIMENTOS € RECURSOS "Koch (2002) fz uma dferengaenteremetere'etomar"e,con- sequentemente, entre remisso’'retomad.Concordo om esa isting, = 8 | BRUCTECA CAMPUS Guat ire | {WIAR Com PALAVRAS. COESKO € coERENGIA ‘Comecemos por distinguir o que so relagées (campo 1), procedimentos (campo 2) e recursos (campo 3). 3.1, Relagées textuais responsaveis pela coesio ‘Temos mostrado que a coesao resulta de uma rede de relagées que se criam no texto, Por isso, chamei-as, de relagées textuais. Tais relagies, ou seja, as ligagbes, (8 elos criados, no entanto, sao de natureza semantica, isto , tém a ver com os sentidos do texto. Diferem quanto ao tipo de nexo que promovem e sio de trés tipos: por reiteracdo, por associagio e por conexio. Como se pode ver, em qualquer uma das relagoes persiste a ideia de ligagdo, de lago. O que difere é a forma como este laco é conseguido. 3.11. A coesdo pela relagao de reiteragio A reiteragao é a relagdo pela qual os elementos do texto vdo de algum modo sendo retomados, crian- do-se um movimento constante de volta aos segmentos prévios — 0 que assegura ao texto a necessdria con- tinuidade de seu fluxo, de seu percurso —, como se ‘um fio o perpassasse do inicio ao fim. E por isso que todo texto se desenvolve também num movimento para tras, de volta, de dependéncia do que foi dito antes, de modo que cada palavra se vai ligando as ‘outras anteriores e nada fica solto. Esse movimento, visto de outro lado, indica ainda que tudo o que ‘mas, para eto de fornar « matéria aqui epresentade mais feilmente ‘scessve, deci considerar toa etratégia de volta a texto para estabe- Jeoer um nexoreterativo como sendo, enericamente, uma retomada, 3 como se Faz A coesior ido posto no texto é virtualmente objeto de retomadas. Cada elemento vai dando acesso .. Na verdade, cada segmento do texto esté Tigado a outro, para tras e para a frente. Cada vez que substituimos uma expressio por jome ou por um sindnimo, por exemplo, epetimos uma palavra, estamos reiterando, promovendo a continuidade do texto, sua ia, sua coesio. Para se ter uma ideia mais vel de como isso acontece, vejamos a reiteragao € promovida no trecho abaixo, por exemplo, nas pela repeticdo das palavras cflulas-tronco :. Eyvidentemente, no trecho aconteceram outros 8 de relagdes. 3.1.2. A coesio pela relacio de associagao ‘A associagao € 0 tipo de relagao que se eria no texto gragas A ligagdo de sentido entre as diversas palavras presentes. Palavras de um mesmo campo semantico ou de campos seménticos afins criame sina- Decidi grafar em itlico, em todos os exempls, as expres: sues que, por algum motivo, sio'mostradas para ilustar as questées focalizades. Como anuncie na Introdusio, nfo tive o preocupacio de apresentar, em dealhes, todos 0s eréditos relatives &s Fontes de ‘onde extaimos os exempls, 33 LuTaR cow PALAVRAS: CORSHO & CoERENCIA lizam esse tipo de relagio. Por ela € que, mais amplamente, nenhuma palavra fica solta no texto. Existe sempre, por ‘mais ténue que seja, alguma ligagdo seméntica entre as palavras de um texto. N3o podia ser diferente, uma vez que todo texto é nevessariamente marcado por uma unidade temética, isto é, pela concentragao em um tinico tema, embora desenvolvido, as vezes, em subtemas diversos. ‘Tal unidade condiciona a proximidade, a contiguidade semantica entre as palavras do text. Se retomarmos o trechinho do exemplo anterior, podemos constatar a proximidade de sentido (ou a associago semantica) entre palavras, como: = célula-tronco, medula, cordao umbilical, em- briao, ser humano, ‘© que comprova, exatamente, que predomina no trecho um tépico sobre 0 qual se esté falando. Se garante, também assim, a coesio do trecho. Por isso, nio tem sentido, como vi uma vez, a solicitagao para que o aluno escrevesse uma histéria com 0 objetivo de fazer aparecerem palavras que se escrevem com ‘ss’ ‘s’‘¢, ‘sc’, por exemplo. O critério de selegao das palavras para compor essa historia seria 0 ortogrifico e nao 0 semantico, como ocorre nas situagies comuns da interagdo verbal. Quando interagimos verbalmente com os outros, as palavras no sdo escolhidas pelos sons que tem; na verdade, as, escolhemos em fungio daquilo que queremos dizer. 3.1.3. A coesto pela relagao de conexao A conexiio, no esquema aqui apresentado, corres- ponde ao tipo de relagdo semantica que acontece especificamente entre as oracées e, por vezes, entre 4 ‘como se Faz 4 coeshor pardgrafos ou locos supraparagraficos. Rea- vse por meio de unidades da lingua que preenchem fungdo — mais especificamente, as conjungies, preposigies ¢ respectivas locugées — ou por meio expressies de valor circunstancial, inseridas na ‘éncia do texto. Umas e outras constituem 0 que icionalmente se tem chamado de conectores. Os conectores desempenham uma fungio muito rtante, pois indicam a relagio semantica que tendemos estabelecer entre aqueles segmentos: Jes, periodos, pardgrafos, Sao relagies de causa- de temporalidade, de oposigao, de finalidade, digo, entre outras, as quais vao indicar a diregio ntativa de nosso texto, além de funcionarem como elos com que se conectam as vérias partes de tum texto. Muitos problemas de coeréncia derivam do mau emprego desses conectores. Pretendendo sintetizar este t6pico, volto a0 qua- dro 3.1, distinguindo, agora, s6 as relagdes coesivas, de que acabamos de tratar. (ve exe pels tomas de segments pis do texto ou els amps de segments equines ‘sadaae: [que oe pla coniguidade semdntia ene a alas, fs. coneio: [ge core pla Baro smticeseminia ete tees, (aes, prose parkas. (QUADRO B32 RELAGOES SEWANTICAS RESPONSIVEIS PELA COESHO Na apresentacd dos recursos da coeso, ms adiante, vamos cestabelecer as dfereneas entre 0 que sio essas “retomadas” e essas “antecipagdes’, com a iustraglo de exemplos, inclusive. 55

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