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Para uma etnografia da comunicagio DELL HYMES [ TRADUGAO: LUCIANA PENNA E, BRANCA FALABELLA FABRICIO ] termo “ctnografia da comunicagao" pretende assinalar o neeessério campo de aco, e encorajar a produglo, de estudos etnogrdfieas em sua base e comunicativas no sentido da alcance e da natureza da complexidade padronizada com que lidam, Dito de outra forma, 0 termo sugere duas caracteristias que devem pautar qualquer abordagem edequada de linguazem, Com relagéo ao campo de agio, no se pode simplesmente tomar diferentes dados produzidcs no eampo da Linguistica, psicolonic, soclologla e einologia come pressupostos @ comegar a estabelecor correlagGes entre eles, ainda que esse trabalho possa rer Gti de slguma forma, se quisermos desenvalver uma teoria da linguagem (© 0 apenas uma teoria da gramética). S40 necessérias novas modalidades de dados, € preciso investigar dirctamente 0 uso da linguagem em contextos situacionais a fim de discernir padres caracteristicos das atividades de fala, padres que escapam as andlises em separado de ‘questies gramatieais, de personalidade, de estrutura social, religiio e cutras tantas, cada qual gerando teorizagies a partir dos padres des atividades de fala e inserindo-as em alguma outra matriz referencia, Ja com relagdo a fundamentagdo, nio se pode tomar as formas, linguisticas como um cédigo dado, ou ainda a fala em si mesma como uuma matrlz refecondial que dalimita « pesquisa, Deve-se tomar por contexto uma comunidade, ou uma rede de pessoas, examinando suas atlvidades eomunieativas deforma abrangente, de modo que qualquer uso de canal ou de cédigo seja incluido entre os recursos de que dispem os/as partcipantes. [Nao que a Linguistica ngo tenha um papel crucial a desempenhar. ‘Dados linguisticos analisades so indispensiveis e a loplca da ‘metodologia Linguistica tem influéncia dirsta sobre a perspectiva cemogrifica. A quostio é que no é a Linguistica, mas a Etnografia; ¢ ago a Iingua, mas a comuinieagio, que deverio farnecer o arcabougo referencial segundo o qual o ugar da linguagem na cultura © na saciedade serd snalisado, A demarcasio da comunidade dentro da ‘qual a comunicaslo & passive de se dar; a demarcacao das situacces dentro das quais a comunicaggo se dé os meios, 0s propésitos © os pparimetros de selogio, sua estrutura © hiorargula — todes aqueles| elementos que comptcm a economia comuntcativa de um grupo — festlo condicionados, eertamente, por propriedades dos eSdigos linguisticos vigentes no grupo, mas nio determinados por eles. Os ‘mesmos meios linguisticos podem ser empregados para servir a diferentes fins; os mesmos fins eomunicativos podem ser aleangades| linguisticamente por diferentes meios. Facctas dos valores cultura € cerengas, Institulgies © formas socinis, papéis © personalidades, a histéria e a coologla de uma comunidade talver precivem ser analisados em termos de sua relagio com os eventos © padites comunicatives (assim como qualquer aspocto da vids de uma comunidade pode ter relagdo mais ou menos estreita com estudos de parentesco, exo ou confit envolvendo papeis socials). ‘Veremos que muito do que eontrariava o sistema linguistico sob a forma de variayo ou desvio possui uma oryanizaglo prépsia. O que, dda perspectiva de andlise de um Lnguista, parece vasiagio e desvio pode ressurgir como estrutura e padeio, do ponto de vista da economia conmunieativa do grupo no qual a modalidade de fala analisada esta inseride, As estruturas e padrdes que emergem iréo, aemais, levar a que se roconsidere a andlise dos codigos linguisticos em si mosmos. Assim como o¢ clementos e relagdes da fonclogla ‘garam paretalmente sob nova luz quando vistos da perspectiva da ordenagio grumatical, e assim como os dlementos © selagbes ‘gramaticais figuram parcialmente sob nova luz quando vistos da perspectiva da ordenagio semémica (Lamb, 1964), os elementos © relagées do cédign linguistiea coma um todo figurario também parcialmente sob nova luz quando visios da perspective da onganizacio dos elementos crelagdes do ato de fala e do evento de fala, cles préprios parte de um sistema de atos e eventos eomunicativos caractoristioos de um grupo. Projelar a etnografia da comunieaglo de tal forma equlvale A ereaga de que uma segunda cifncia descritiva que inclufse a Tinguagem estaria em vias de se constitu, pare além de e, era itima instncie, abrangendo a Linguistica atual — uma ciéneia que a0 abordarie a Jinguager ner como forma abstraida nem como eorreato abstrato de Juma comunidade, mas como eonhecimento situado no uso ¢ no ppadslo dos eventos comunicatives. Ela estudaria a forma e a fangio comunicacional em completa relagio uma com a outra, Nisso ela ccontrastaria com visées cansagradas da Linguistica e do que & préprio dda Linguistica, Alguns distinguem a forma linguistica de contexto & fungdo. Um velho exemplo, mas ainda oportuno, que ilustra essa visio ‘encont¥a-se no tantas veaes citado comentario de Bloomfield no qual le observa que quando um mendigo diz “Tenho forme” a fim de ‘conseguir comida, e uma erianga diz “Tenho fome” para evitar ir para a ‘cama, 2 Lingulstia se ocupazia unicamente do que se tepete nos dols casos, Ou seje, ela se abstrai do comtexto, Por outro lado, um prestigioso livrocarecterizou a Pragmética em —_perteita ‘complementaridade a isso, pois compreende "todos aqueles aspectos {que servem para distinguir um evento eomuntcativa de qualquer outro ‘om que 0¢ tipos de signos possam ser os mesmas” (Chery, 2961, p. 1295). Ou soa, ola se abstral da forma Linguistica, Esses perspectives nfo io as Gnicas existentes, mas tém cearacterizado 2 Linguistica, por um lado, as Ciéncias Socials, por ‘outro, endo que a maior parte des prticsss pperspectiva. Pare as etnografias da comunicagio, entretanto, o objetivo go deve ser desmembrar 0 ato ou evento comunieacional, separando 4 forma da mensagom (da tipologia dos signos de Cherry) de seu contexto de uso. Deve-se ter como objeto manter em vista as riltiples hlorarqulas de relagbes entre mensagens © contextos (cf. Bateson, 963). Andlises dos contextos socisis © fungdes da comunicagéo, se apartados dos meios de que se servem, sio tio desprovidas de propésito quanto andlises dos meies cormunieativos, se divoreiadas dos contextos e propésites a que server. kim termos ‘metodologicos, naturalmente, nfo ge trata de limitar uma perspectiva inham a uma os ates cstrutural, Inspirada na Lingufstica, a um componente espectico da comunieagdo, mas de estendé-1a 20 todo. ‘A ctnografia da cormunicagio deve muito acs avangos metodolégioos provenlentes de estudos recentes da forzna Linguistics em si mesma, € ‘2 uma onda de opinides favoréveis& relevincia da Linguistica formal ‘Suas raizes, entrelanto, sio mais profundas e mais espraiadas. Por um, lado, haa tendéncia é duradoura que se afast do estudo das formas e conteddos socioculturats como produtos e se aproxima de seu estudo como processo — distanciando-se do estudo de catezorizacoes abstratas, departamentos da cultura, em pro! do estudo das situagbes, Interagées ¢ eventos (ef. Sapis, 1933b). Por outro lado, hd uma corente que persiste na prépria Linguistica e que busca analisar a totalidade da complexidade lingufstea em termos do que o Cireslo Linguistico de Praga, nos idas de 2929 (ano de publicagio de “Linguistica como Ciéncie", de Sapir), chamou de “anélise fmeional- cstruturalise" e que Jakobson hoje chame de esforgo entreguerras em, pol de um “modelo de meios ¢ fins” Jakobson, 196). 1d paralelos centre clas ea perspectiva de J. R. Firth (2035) ea de Sapir no mesmo pesfodo, Essas perspectivas tm tdo suas vielsiuudes, mas tm rezko ‘aqueles quo veer na etuografla da comunicagio uma renovagto dela. Para multos,o lugar da etnografla da comunicaglo deve ser pensado no em relagéo a uma ou mais escolas linguisticas, mas em relagéo a lume perspectiva tebrica abrangente acerca do comportamento Jnumano, Para muitos, tal perspectiva deverd se chamar Antropologia Social, ou Sociologia, ou Peieologia, ou ainda alguma cutra categoria diseiplinar. © trabalho demandado de fato so eneaixa, de alguma forma, dentro da competéncia de cada uma dessas diseiplinas, nio seria 0 caso de se discordar de nenhuma delas, a nfo ser para argumentar que @ divisio do estado do ser humane em disciplinas| departamentalizadas nos pareco multas vozes bastante arbitrario e de fato um obsticulo. © que ¢ fundamental, em todo caso, 6 que 0 fenfoque specifica de reflexdo inielado aqui soja reeankecido © cultivado, nfo importando a designago disciplinar. Uma forma de se afirmar essa necessidade é observando que hé diversas modalidades| de estudos antropaligiecs, socioligioas e psicolégicas; entretanto, analises etnografieas do comportamento comunicativo © cstudos comparstivos a partir delashé ainda muito poucos. Essas observagdes se aplicam também a rea de pesquisa que, ‘muitos diam, engloba as preocupacées agui apzesentadas, a saber, a Somiética. Saussure havia proposto a Semiologia eomo um campo ‘mais abrangente do que a Linguistica, ¢ Levi-Strauss a earaeterou camo sendo o estudo da vida dos signas inserides no seio da vida social, englobando tanta a Linguistica eamo a Antropologia Social (1960). Apeser do sentido amplo atribuido a0 termo, a Semidtica (Semiclogia) segue sugerindo de forma mais imediata a andlise logica 0 estudo de sistemas de signos exclusivamente como c6digos. 0 cestudo empirico de sistemas de signos inseridos em contextos de uso fem comunidades de fato parece, quando multa, secundério, se no totalmente fora de questo. ‘Aqui, a divisio da Semiética segundo a formulagio tripartite de Morris (1936) pode ter serventia. A Pragmética, que se ocupa do uso dos signos pelo/a intérprete, talvez seja @ ponte entre a presente &rea| de interesse © 2 Linguistica propriamente dita, © s¢ firme eomo designagéo para o desenvolvimento de uma teoria dos usos da lingua {entre outros eédigos) juntamente com uma tooria sobre suas estruturas formals e semintieas (a sintagmétiea e a semantiea de ‘Morris) Esse uso do tecmo ‘pragmatiea’ parece estar ficando em voga. nna érea da pesquisa cm linguas gorménicas, Algumas caracterizagées da Progmitica, ceramente, nio seriam adequadas, como observado ‘anteriormente. Uma visto da Pragmdtiea ocupando-se das variagSes de significado, enquanto a forma da mensagem permaneee constanie, “aboie cnnepopada porn atu 1H numerosos exemplos de culturas mundo afora, como, para citar tum relato recente, o caso dos homens da tribo Amahace, 208 quais se juumtam uma classe de espritos comhecidos como yoshi, com os quais fos Amahuaca partilbam bebida, perguntas ¢ respostas, © que curiosamente estto assoclados a uma forma espocifea do eanto e de uso do trato voca] (com as cordas vocals fortemente comprimidas) (Carneiro, 1954, p. 8). 0 relato de Hallowell sobre o entendimento dos Ojiwa da coneeita de pessoa mostra, com particular contundénca, as implicagies das valores cultura e visSes de mundo para os episédios de cunho communicative, Como exemplo da eontribuigdo que uma cernografia da comunicagdo oanceiente, que enfoque as oecerénelas de atividades como 2 fala, tem a oferceer a nogées tio antropolégicas como visio de mundo, defxe-me eltar um outro exemple Ofibwa interealado com o arrependimento de Hallowell: tendo camentado 0 fata de que as pedras sio classficadas gramaticalmente como de ginero animado, ¢ acreditando-se que stjam capazes de comportamento animado, especialmente durante eircunsténcias cerimonials, Hallowell (1964, p-56) faz oseguinte registro: (some branc que ra oman evades plano de batt, Sconens ana poo pends, selon: 4 enksormene mena. He (ama garde cosdole en ue as peas onsnnlerete demosara etisalat ann «tans ene over ¢ aren we Fea) O sanarte chanos au ans pra a pede, cameo ete de en eng rpesary fepetertete Age valciresin reek Dimes ean ain era eponce sesteamene eno que Sb Dick, de fom spon, esc a suite em eres Sie feast desire do extet de Engages « cata Oise leneai uc ished capo aio otiane nechae rartschee ade cas da noses esis nenconaes peru que se erst abe aa bos) Fo, & ni piel cue teh so 9 cam No else Scarence or aie de Joa Dace onan we afl smo forma de tomato tr acoder o inte timate do pedepae @ cede de {Ran scl corm ax ces ame Coaster faa da sears senor ce que pate ttn cy fee ui peo” at “ijeo’. sem dee masses ue din des dase so, pre ws Ce, cenesteiado ce pus, Novamente, dentro da eultura aborigine dos Wishram e Wasco ‘Chinnok do rio Columbia, devernos reconheeer nfo uma mas tts redes de comunicagio dentro de uma comunidade definidas por distntos eSdigos partlhados. Uma delas eomproondia os adultos de forma geral ecriangas na segunda infinels; uma outra diziarespeito 2 bebés, ces, coiotes © os espiritos guardides Cio © Coiote, & ppossivelmente, anciéos/anciés que possuissem esses espiitos ‘guardiges; uma torceira rede ineluiria aqueles/as cujas experiéncias ‘com espiritos guardiies os/as tvessem capacitado interpretar a Linguagem dos espritos.» Se uma sbonlagem estrtamente etnogréfica, por um lado, nos ‘obriga a ampliar 0 conceit de comunicagio até os limites ‘estabelecidos pelos/as participantes de uma cultars; por outro, torna- ‘se necessério que 0 conceit sea delimitado por esses mesmos liste, Definir # eomunieagio como 6 acionamento de uma resposta (como fez Woekett (1958, p. 573] eam o aval de Klucktobm [306:, p. 895]) € tornar o termo de certa forma tio equivalonte ao eomportamento & Interaeo de forma geral que se perea de vista seu valor espacfico ‘como conceltuagio cientifiea ¢ moral, Hé muitos exeraplos possives de comportamentos que acionam uma resposta © que nio sio ppercebicos como comunicativos, seja por um/a ou ambos/es os/as pparticipantes. Como um ato elaramente baseado no acionamento de ‘uma resposta (seja no outro ou em si préprio), @relaggo sexual seria uum ovento ideal para so tastar essa hipétese. Que aspeeto, que no 0 todo, do acionamento de uma resposta 6 emitido ou rescbido como ‘comunicagSo? Novaments, é desejével que a transmissi e a recepgio de informaglo nfo sejam tratadas como equivalentes i comunicasso, mas como uma categoria mais genérica que essa, sendo a comunicagio soctouincutsttca uma esfera mais especifica que acontece com a participacs0 obrigatéria de, ou constituida por, pessoas (ct. Cherry, 1961, p. 247). 0 som de passos ou 0 pér do sol podem sor tidos eomo fontes de Informagio sem necessariamonte sorem tkdos como mencagem, (embora em ambos os casos 0 receptor possa interpretar o evento como uma mensegem). essa perspectiva, os genes sio capszes de transmiticinformagio, pporém o processo 6 seré comunicativo do ponto de vista de, ¢ rlatado por, um/a observador/a que o interprete. Que um/a observador/a Jnumano/a relate e trate o processo vivido ou inferido eomo sendo comunleativo ¢ naturalmonte um direito seu que no The pode ser nogade, jd que, em termos formals, tala-se do mesmo dielto que 0/3 cetngrafo/a assume quando impaetade por ura/a Ojibwa, Wishrarm, ou sum/a partcipante de qualquer outra cultura, O aspecta formal é que a cevidéncia de um evento comunieativa & o relata de slguém que dele no participon nem como emissor, nem como receptor. ‘eis eventos relatados (En, ou eventos narrados, segundo @ simbologia de Roman

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