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FUNDAGAO EDITORA DA UNESP Presidente do Conselho Curador Jos Carlo Souza Trindade Dietor Presidente José Castilho Marques Neto Assessor Editorial Jeo Hermani Bornfim Gutierte CConseha Editorial Acadmico ‘Antonio Celso Wagner Zanin ‘Antonio de Pédva Pithon Cyrino Benedito Antunes Carls Ervany Fantinati Isabel Maria F.R. Loureiro Ligia M. Vertorato Trevisan ‘Mania Suel arceira de Arruda Raul Borges Guimaries Roberto Kraenkel Rosa Maria Feiteio Cavalart Editora-Exectiva Christine Rohrig PETER BURKE — ROY PORTER ORGANIZADORES HISTORIA SOCIAL DA LINGUAGEM Traducao Alvaro Hattnher 1° reimpressao Nesp CAMBRIDGE UNIVERSITY PRESS Contght © 1987 by Cambridge University Pes siete anal em ingles: he Sia soy of Langa. Copyright © 1996 da tradugio brasil: Fundagio Editora da UNESP (FEU) A rar era esp Hope bi ieu@ebtoraunespte ‘Dados Intemacionais de Catalogagio na Publicagio (CIP) (Cémara Brasileira do Livro, SP, Brasil) nc ng er Be ey Tete | i a tedugio hivaro Hattahe~Sio Fala Funds- | se Ei | nase 2 Sigies tate foe | T.Forer Roy, 146. én srss07 eciecne RTE caee {dice para catélogo sistemitico 1. Sociolingatstica 401.9 Editoraafiiads: oS. anes aBew (2). = SUMARIO Apresentagio. 7 Renato Janine Ribeiro 1 Os usos da alfabetizagéo no inicio da Ilia moderna 15, Peter Burke 2 Provérbios e hist6ria social 43 James Obelkevieh 3 A linguagem do charlatanismo na Inglaterra, 1660-1800 83 Roy Porter 4 Insultos verbais na Paris do século XVII 121 David Garrieck 5 Lelangage male de la vertu: as mulheres ¢ 0 discurso da Revolugéo Francesa 141 Dorinda Outram 6 Palavras e instituigbes durante a Revolugéo Francesa ‘ocaso do ensino cientifico e téenico “revolucionério" 161 Janis Langins 7 A sociologia de um texto: cultura oral, alfabetizagdo e imprensa ros primérdios da Nova Zeléndia 191 Don F. McKenzie 6 PETER BURKE E ROY FORTER 8 Ohistoriador e a questone della lingua 285 Jonathan Steinberg Ensaio bibliogrético 249 Sobre os colaboradores 255 indice remissivo 257 APRESENTACAO, ‘A expresso “hist6ria social da linguagem" parece simples mas, na verdade, implica uma série de pressupostos que, embora possam soar quase acacianos (o que, aliés, € mais um uso socialmente datado da linguagem), é preciso desenvolver. Com efeito, o campo em que se ‘movern as pesquisas expostas neste volume exige uma integracoentre ‘ trabalho do historiador, o do sociélogo e do etnélogo (para nao falar 1no do cientista politico) eo do lingiiista, Sem divida, como observa Peter Burke,) hé hist6rias da linguagem que nao fazem mais do que relataras transformagoes desta, renunciando, pois, a buscar seu sentido ‘ou repercusséo na sociedade, bem como hé andlises da linguagem que ‘observam seus aspectos sociais, mas se restringem a um determinado periodo, perdendo, assim, de vista 0 cardter hist6rico do modo como ‘0s homens nomeiam seu mundo. O inceresse de uma historia social da linguagem estd, porisso, entre ‘outras coisas, em constituir uma abordagem necessariamente interdis- ciplinar de um dos campos que maior relevancia teve, nas ciltimas décadas, para 0 dislogo entre as ciéncias do homem. De certa forma pode ser esta uma volta do péndulo: basta recordar aquele papel relevante que a lingifstica teve, cerca de trinta anos atrés, como uma espécie de ciéncia-matriz, ao irradiar os procedimentos estruturalistas pelas ciéncias humanas em geral. © proprio nome “estruturalismo* pode ter icado datado, passando a imagem, as vezes, de um exagero; ‘mas, ainda que se neguem suas consequéncias de ordem, digamos, filos6fica (entre elas, aquelas que se referem & histéria € & consciéncia dohomem),e que se podem seus supostos excessos, néocabem diividas 8 PETER BURKE E ROY PORTER de que ele desempenhou importante papel acentuando, nas diversas disciplinas que lidam com © homem, procedimentos que cabe dizer Cientificos, Pelo menos no campo do método, a lingifstica cumpriu fesim uma fungdo relevante. Ora, 0 que temos aqui & a possiblidade de um outro engate interdisciplinar, no qual as cincias da linguagem {¢ nao mais a disciplina saussuriana em particular) sé0 confrontadas pela convicggo de que o ser-dorhomem, aquele que Heidegger lia na linguagem, se vé medido pela sociedade e pela histéria ~ que, ambas, negam qualquer caréter natural ou permanente ao que nosse espécie pratique. Vemos aqui, pois, uma outra interdisciplinaridade, muito fistinta daquela que marcot o estruturalismo, e que também possut sua filosofia implicita. “Talvez pareca cedo para falar numa filosofia implicita nos artigos que se seguem, até por serem eles bastante distintos entre si—mas pelo thenos convém assinalar alguns pressupostos ou, quem sabe, decorrén- cias que esta iniciativa opera, Uns so bastante ébvios: 0 caréter social, politico e hist6rico da linguagem; o fato de que seus usos e mudancas ho aparecem mais como fruto do acaso, ou da ignoréncia, mas mar- cados por fortes niveis de tensdo. E o que nos permite ler hoje com certa jronia aqueles historiadores ou te6ricos da linguagem que sequer men- lonavam o patois ao tratar da lingua francesa, ou que identificavarn pais lingua? Mas hé outros aspectos menos bvics. Deles, ressaltam J releitura de Herder e a idéia de um conflito no qual nao hé mais vetor determinado. ‘Data do século XVIII uma consciéncia mais aguda do papel politico da lingua, que Herder coloca a nu em seu ensaio sobre a origem das Iinguas °O primeiro ponto importante é negar-lhe uma origem divina Como Rousseau, num ensaio de titulo semelhante, ele aticula-a com aspectos sociais, Lembremos que 0 pensador andarilho dizia que em fnossos dias no se reunia mais © pov nas pracas para 2 fala, e isso porque jS néo havia povo livre: o que se precisa dizer aos homens, hoje fe diz com cartazes nas esquinas ou soldados nas casas — duas formas de discurso do poder ao cidado que ndo admitem controvérsia, ¢ das Gquais a tnica que estabelece uma proximidade fisica de homem a fhomem (osoldado acantonadonacasa do cidadéo) barra toda veleidade de discussio ou didlogo ao contraporo invasor armado ao morador sem armas. Esta passagem, que encerra o Ensaio sobre a origem das linguas de Rousseau, soma-se a outra, em que 0 filésofo distingue as linguas dos lugares quentes e frios: naqueles, o que aproxima os homens ¢ 0 famot, nestes, a necessidade; por isso, [é se diz primeiro aimez-noi HISTORIA SOCIAL DA LINGUAGEM 9 (amai-me), aqui, aidez-moi(ajudai-me) Ora, bastam ess . ai-me) Ora, es dois pontos cbse orohex Rec Pr atta couse oun ESA este dard énfase ao cardter evolutiva da lingua ea associaré 20 povo ou A nagio-o que o outro filésofo ndo faz. Eé por isso que, embora Herder talvez tivesse como principal mével mostrara lingua como algo huma- bo, mito human, enegare inspira dna, su never acabou constituindo-a como fatorestreitamente ligado aos nacionalis- ‘mos modemos, de matriz romantica. Jé Rousseau ligava a lingua néo a0 nacional, mas ao social, e entendido este em sua maior densidade, indo, pois, do clima trabalhado pela ago humana até os afetos em sua espontaneidade apenas aparente. Dat ae um dos los mais cotestdos nesta obra eo a de nagéo, melhor dizendo, a de um conjunto mais ou menos identitério que seria formado por povo, nagéo e Estado, tendo por fio de liga tna lingua neclooa. ata sar eeu enpeiaments capectd a exprimir os sentimentos e ideais de um povo, assumindo forma politica auténoma na forma de um pais que gee seus propriosdestinos. Tver seu esa a supstio mais amalgada que esa obra pretende lesmontar, para tanto, o exemplo da Italia é particularmente rico, porque nesse pas, jé 20 comecar 0 século XX, era quase infimo 0 riimero de cidadios que dominava a lingua dita nacional -cuja adocio fora, aids, uma deciséo explicitamente politica. Evidentemente, 0¢3s0 italiano — no qual uma Iingua afirmada como ‘marta’ assim se viu revigorada~ pode parecer anélogo ao do hebraico,e pena que nao aja aqui anilises concretas de alguns novos Estados nacionais (ainda que este Io dee instruments ue 2s permitam ou provoauem), © braico é particularmente interessante por tornar-se lingua nacional deum Estadoa um tempo oveme antigo. O Estadode Israel constituiu sua mistica em torno de uma energia que apela diretamente para a sua mocidade, a0 mesmo tempo que estabeleceu sua legitimidade e seu apeloemoconal em tomo desuaantighidade, vet sind orca le um cardter mais ou menos sagrado que ali grado que a lingua ressurretareforca (ais ov menos, ore os unin fares deal moero, sndo sionistas, nfo é poss e ,ngo eram religiosos; mas é possivel que a mistica da Antigi- dade ena sudado os grupos maisconseradoes, que pretend a se biblica ~e niolaicamente nacional - para sua pt al ~ para sua pétra, a alcancaro poder em certa fase da histia incense). Tambem seiainstigante uma discussio do érabes tanto por haver um descompasso entre a lingua lteréria, mais clissca, eos flares nacionas, de corte demtico, ee ee eee 10. PETER BURKE E ROY PORTER insisténcia dos movimentos, sobretudo populares, na unidade érabe, algo que tem 0 seu qué de mitico: a comunidade se realiza sobretudo atraves de uma lingua que, se vale para o acesso ao Livro sagrado, da menos lugar a vida cotidiana; isso ao mesmo tempo que se contrasta ruitas vezes o drabe com a lingua da antiga metr6pole colonial, na qual, como por exemplo no Marrocos dos anos 70, s¢ ensinavam as ciéncias, enquanto o drabe era empregado para as disciplinas de perfil mais conservador, como a religiSo. Mas por isso mesmo, se italiano evidencia bastante bem ocaréter facticio pelo qual as linguas se proclamam nacionais, hé que notar que tem outros lugares as coisas ocorrem de forma menos explicita. Nemo francés, nem o inglés, ocastelhano ou 0 portugués terdo tido esse perfil de lingua morta, culta, imposta com uma tal artificiaidade. E, no tentanto, 0 caso aparentemente extremo, que hé poucas décadas pas- saria até por exceco, toma-se, com os estuddos mais reventes, aquele {que melhor mostra um processo de teor bastante politico que esteve presente, a0 que tudo indica, em todos os casos nos quis uma lingua fe constituiu como nacional. sto somente se deu destituindo alterna- tivas, eliminando possibilidades outras, estabelecendo uma homoge- neidade que € também uma hegemonia. No francés, isto se dé pela repressio aos patois, que chegam, algs, a incluir auténticas linguas, de familia ndo-latina, como o bretao; e basta lembrar a Bécassine das hist6riasem quadrinhos docomeco doséculo (que hoje tém um sentido de leitura cult, mas até néo muito tempo atrés eram lidas por seu valor de face, isto é, como uma devastadora zombaria dirigida 8 pobre camponia pobre da Bretanha, um de cujos tracos era uma lingua evidentemente ridicula, se comparada ao verculo da civlizagao que era fo francés). Na mesma lingua, ainda, convém recordar que um escritor respeitado, como Maurice Druon, chegou a dizer, sendo ministro da Cultura do presidente Pompidou, que quando se fala bem francés, é-se sncapaz de mentit ~associando, portanto,o dominio da lingua nacional ‘a uma virtude moral; e que, numa proporcao talvez mais acentuada Gque em outros Estados europeus, a identidade nacional fica presa 20 idioma. E por isso que apontar o modo pelo qual se construit a atual ‘valoracio da lingua nacional assume particular relevancia: no, apenas, erudita; mas politica: porque mostra quais operagSesde exclusso foram necessérias para se chegat a iss. Desde que de exclusio se fala, éclaro que aénfase, mesmo no trato da nacio, esté em léla segundo a sociedade. Assim, nd est4 apenas em jogo como determinadas comunidades tiveram suas linguas reprimidas HISTORIA SOCIAL DA LINGUAGEM 11 para que triunfasse apenas a de uma; se fSssemos por af, estarfamos apenas restabelecendo — para usar um termo bastante empregado no estudo da literatura brasileira — nativismos no lugar de um nacionalis- mo, reabilitando (como se faz hoje em torno das chamadas “comuni- dades étnicas", em especial nos Estados Unidos) outras identidades, € certo que menores e historicamente reprimidas, contra aquela que venceu, Em suma, um homogeneo estaria sendo substituido por uma pluralidade de homogéneos. E este, provavelmente, o drama do que hoje é chamado o “politicamente correto", e que, contra 0 cénone ‘cidental do adulto, branco, maior de idade, de classe média, em vez de apostar numa decidida pluralidade radicalizada, simplesmente afir- ma uma série de mini-c&nones, do negro, do no-s2xénico, da mulher, do homosexual, de um ou outro grupo social subordinado. Pluralizar, 2 rigor, ndoconsisteem aumentaro ntimero de cénones ou em defender uum deles contra 0 outro —_mas em constatar que a decisiva pluralidade esté em tomar critica a propria identidade, em ver que néo existe algo como “a mulher" em guerra contra “o homem’, “o negro” em guerra contra “o branco’, Em suma: 0 problema nao est apenas em quem porta o papel de sujeito, moral, politico e econémico, mas no préprio papel de sujeito, Eessa problematizagio me parece constituir um ponto comum a boa parte, pelo menos, dos textos que se seguem. E por essa via que determinados meios socials sfo discriminados 8 medida que ‘corre a vitéria de outros. Isso significa, derradeiro pressuposto que convém chamar a luz, ‘queo paradigma pelo qual as questées aqui sio pensadas éo do conflito, por sinal muito apropriado aos tépicos do poder, desde, pelo menos, ue estes deixaram de ser tratados nos termos da bondade do rei paternal em relacdo a seus ilhos®e que passou a ser aceita adivergéncia como norma, ¢ no mais excecao, Ora, 0 conflito casa-se bem com a suposicéo do construto, na medida mesma em que se costuma identi- ficaro natural com oharménico, oequilibrado, Mais que isso, contestar a identidade como naturalmente dada equivale a negar que ela seja hharmOnica: implica recuperar, com todo ocuidado, a tensées que nela subsistem e a fazem mudar constantemente. Contudo, aqui uma ltima observagio deve ser feita, E que os conflitos aqui sao mostrados ‘a meio caminho entre uma representaco que os faz rumar para um fim determinado (como fez a tradicéo dialética, sobretudo com Hegel € Marx) e outra, que se nega a dar-lhes qualquer valor ou mesmo sentido, e por isso tende a ler qualquer conflito como opondo termos neutros, A meta final estd nitidamente ausente dos trabalhos que se 12 PETER BURKE E ROY PORTER seguem, nenhum dos quais se inspira na idéia de um proletariado que portaria o sentido da Histéria, Mas tampouco encontramos aqul negacdo de todo e qualquer vetor. f evidente que ocorre umm processo de racionalizacio, como diria Weber, de disciplinatizacio, falando como Foucault, de civilizacio, para usaros termos de Elias,” ou mesmo de repressdo aos subalternos, se quisermos empregar linguagem mais préxima dos marxistas, Hé, portanto, um sentido nos processos des- britos, ainda que provisério e mesmo passivel de reversio; e € esse sentido precdrio que permite lidar com o poder de uma forma bastante interessante, Por mais cientificos que sejam os artigos, neles ~ ou em boa parte deles - reponta uma tomada de partido, uma convicgio que os alasta, repito, da mera descrigdo. Se essa tomada de partido é ética “uma solidariedade, 20 longo dos tempos, com aqueles que sofreram os processos de normatizacao ~ ou politica - uma proposta de eman- cipacio, ainda que vaga, mas que reserve maior lugar diferenga - no set. Mas convém pelo menos assinalar que, aqui, como em parte da producéo de conhecimento sabre o homern, pode ficar indefinida a fronteira entre o que é ciéncia eo que éética Renato Janine Ribeiro Sete Praias, agosto de 1995 Notas 1 No artigo que constitu a introdugéo da edo ingeta desta obra, publcado em poveugate como o capita 1 (A histéra socal da linuagem) de seu A arte da ones, Ho Paulo: Editora UNESP, 1985. 2.Cf ocapitule de Jonathan Steinberg, nf, sobre a question dla ing. 3 Uhr den Usp der Sprache (Sobre a orig da lingua), de 1772 “4 “As lingua e formar naturalmence segundo as necessdades doshomens mudar (alteram conforme as mudangas desea mesmasnecessidades, Nos emposantigos quando a persuasio serva de forca pla, a eloqiéncia era receshia. De que ‘Gira ela hoje, quando aforgapableasupre a persuasio? No € preciso arte nem Figura para diet ta € me beprazer, Que dacuroeresta entio diigo povo rerdG? seembes . As Iinguas populares e tornaram tio perfitamenteindtes, Fan, quantoacloquénc,Atsocedadesassumiram suaformaderradet: nels, vid mare mesifica a ndo se plo canhloe plas moedas;e como nada mais tema caet ao povo, a ndo set dai cura, is se diz com cartazes nas esquinas 04 feldados nas eats, Pare tanto nfo € preciso reuni as pessoas; 20 contro, urge “ante esparsos os sitos:€ esta a primeira maxima da paitica modera J.J HISTORIA SOCIAL DA LINGUAGEM. 15, Rovsseny Ess orig des angus cap XX (Rela es) ein 17, ped AY OPPOS Reto ds ings com gover g Gost n pte ‘it ds tnt pena dca em fe ca em fc do a de Dvd Ouran, ime cs lage mi wn es ne Kevolugao Francesa”: no me parece que na Revolucdo Francesa, ao atacar o mc io tke ner mer an peng eal ane an neal Se pee ht oct dpa coe east ns inca spe wrducine pole pecans oer peo ig lone i tomar adultos (*maiores’, diria Kant em O que é 0 Haminismo). Sem divi es “Sed wen semncaisnor nia Geutsomntadnnoc ae, i ne apie gu scotte wba ‘one Sentara Mls pn cadena ain ee Peto ors prn ea oe yi ype a tha eyes ton ‘shen de nomen ano tno ep dora incor ce psa tas ps _ mnttoememte tn masse i oo elapse vm iat sto econ ve se re asp cet dee com anche ioe an fama hee Burke, op. cit, 1995, p.150). a stees OS USOS DA ALFABETIZACAO } NO INICIO DA ITALIA MODERNA | PETER BURKE Na metade do século XX, quando muitas nagées novas estavam, iniciando campanhas macicas de alfabetizacSo, académicos de diversas disciplinas comegaram a levar a questo da leitura eda escrita mais @ sério do que anteriormente. Os sociélogos, por exemplo, argumenta: vvatn que “aalfabetizacao ¢a habilidade pessoal bésica subjacente a toda seqiéncia modernizadora' pelo fato de “proporcionar &s pessoas acesso a0 mundo da experiéncia indireta’.} Os antropélogos sugeriram que a distingdo tradicional entre pensamento “l6gico" e “pré-logico" deve- tla ser estruturada em termos de pensamento “alfabetizado” e“pré-al- fabetizado", pois 0 que tornava possivel o pensamento abstrato era a alfabetizacdo.? Os historiadores também comegaram a se preocupar com esse tépico, avaliando a medida da difusdo da alfabetizacéo em diferentes periodos e discutindo as conseqiiéncias econémicas,sociais, € politicas dessas técnica Menos de uma geracdo depois, estabeleceu-se uma reagéo contra essa abordagem que se caracterizou por uma critica de seus pressupos- tos. Os estudiosos que haviam escrito sobre a revoluclo da alfabetiza- fo foram acusados de exagerar a distancia entre as culturas orais e as, alfabetizadas; de subestimar as realizagées e recursos das sociedades 16 PETER BURKE E ROY FORTER sem alfabetizacio; e, o que é mais séro, de tratar a alfabetizagao como uma tecnologia neutra. uniforme, ue pode ser estudada soladamente de seu contexto social, como se o significado, os usos ¢ as convengoes da alfabetizacgo néo variassem de uma sociedade para outra.* ssa reagio contra uma abordagem mais antiga é, em si, parte do contextodaquilo que atualmente é chamado de ‘etnografia da escrita”, uma abordagem que se desenvolveu a partir da etnografia da comu nicagdo e que enfatiza as condigdes nas quais a alfabetizacdo é apren dida e as finalidades para as quais € usada, seja nos Estados Unidos ou na LibériaS A poeira desse debate ainda no assentov, e sem duivida ainda é muito cedo para dizer se existem ou ndo tragos comuns subjazendo aos diferentes graus de instrugdo, suas condigbes econven- Ges. O que se tornou claro éa necessidade de ocupar a regido interme- disria entre as grandes teorias sobre a alfabetizaao e suas conseqllén- cias, por um lado, e a pesquisa empfrica, ainda que limitada, sobre *taxas” e iniveis” de alfabetizacio, por outro. Dessa forma, este ensaio enfocar4, assim como outros estudos histbricos recentes, aquilo que Richard Hoggart chamou de os usos da alfabetizagio".“Trabalhar com 2 alfabetizagao italiana do inicio do perfodo moderno é, de certa maneira, frustrante. A tarefa preliminar de uma avaliagéo mais ou menos aproximada € muito mais diffcil de ser realizada do que em relagio & Gré-Bretanha, ainda mais em relagéo a Suécia. Apesar do crescente interesse dos bispos pelas posturas dos leigos, na Itélia nao hhavia nada semelhante as investigacdes de casa em casa, inspiradas pela Ipteja, que aconteceram na Suécia (husverhdr). Tampouco haviaalguma coisa semelhante ao British Protestation Oath (Juramento de fideli- dade ao Parlamento], de 1642, cujas assinaturas foram usadas como um indicador da alfabetizacéo masculina” Nao havia sequer uma tradigdo de se assinar os registros de casamento ¢, € claro, néo houve ‘uma Itlia unificada até 1860. Até até que seiniciassem os levantamen- tos em ambito nacional, como o que foi realizado em 1911, hd pouco a ser feito além de coletar informagées fragmentadas vindas de fontes fragmentadas” Um fragmento famoso, que € freqdentemente usado como base, é o testemunho do cronista e mercador florentino Giovanni Villani, para fatestar que, em 1838, entre 10 mil e 12 mil criancas florentinas iam & escola. Esse nimero, se for preciso (como muitos historiadores acredi- tam que sa) € bastante surpreendente para uma cidadedo século XIV, ‘com uma populacéo abaixo de 100 mil habitantes. £ provavel que 4 HISTORIA SOCIAL DA LINGUAGEM 17, aioria dos alunos, se no todos eles, fosse do sexo masculino, resul- tando dessa hipotese que entre 45% e 60% dos meninos ficrentinosem idade escolar estavam realmente freqiientando algum tipo de escola? Esse dado representa um notdvel contraste em relagdo as estatisticas, do levantamento de 1911, que descobriu que a taxa média de alfabeti- zagfo nacional era de apenas 38% da populacéo com idade acima de seis anos, mesmo se levarmos em consideragio o fato de que 0s 38% representam um total que é rebaixado pelos niimeros referentes a mulheres, rea rurale regio sul ‘Também para Veneza no final da Idade Média ~ ou inicio da Renascenga —existem dados que sugerem uma populacdo que apresen- tava escolaridade relativamente alta, No inicio do século XV, quando a cidade continha cerca de 85 mil habitantes, havia cinglenta ou sessenta professores, ou seja, um. para cada 850 homens com idade inferiora vinte anos. Por volta do final do século XVI, a proporgéo havia ‘melhorado, um para 185, visto que mais de 250 mestres-escolas ativos foram registrados em uma populaco que havia aumentado para cerca de 135 mil habitantes.!” Em Miléo, no final do século XVI, considera-se que havia 120 “escolas de doutrina crista’, que combinavam ensino religioso e alfabetizacio elementar.!! Roma parece ter ficado atrds até © final do século XVII, mas, em 1703, foram registrados 126 mesttes- escolas em uma populagao de cerca de 150 mil pessoas.” Embora néo tenham sido feitas comparagées sisteméticas, parece provavel que 2 alfabetizacio, ao menos na regido Norte da Itélia, tomou-se alta em relagéo a outras partes da Europa (com a possivel excecso dos Pafses Baixos) a partir do ano 1000, se ndo antes, até cerca de 1600, e que a lideranga italiana s6 foi desafiada no século XVI, com a ascensdo da Reptblica Holandesa eda grande campanha de alfabetizacéona Suécia Mas essa conclusao, ainda que plausivel, nao pode ser provada,e isso é © mais frustrante. As perspectivas melhoram quando nos desviamos da taxa de alfabetizagio em direcio 20 verdadeiro assunto deste capf- tulo, a questo sobre as formas de uso dessa habilidade obtida com dificuldade e bastante prezada. Iss0, € claro, representa menos uma questdo Gnica do que todo um grupo de questées. Os etndgrafos da escrita tém enfatizado a necessidade de se estudar uma série inteira de problemas: quem, em uma determinada cultura, escreve para quem, sob quais condigées sociais e também sobre quais assuntos — visto que rem todas as informagées so consideradas adequadas para a trans ‘isso por meio de canais escritos. E nesses problemas que me con- centrarei 18 PETER BURKE E ROY PORTER Um conjunto semelhante de questées poderia ser suscitado @ respeito da leitura, que, de maneira ideal, deveria ser discutida separa~ damente da escrita em razao da probabilidade de muitas pessoas que nao sabiam escrever saberem ler. Villani descreve criancas em escolas primérias que “estdo a ler” (stanno a leggere), enquanto a escrita era ensinada a um némero ainda menor de alunos em outros lugares. preciso perguntar quem lia o qué, ou, na verdade, quem lia o qué para quem (visto que havia muitas leituras em voz alta), eem quais condi- g6es. Aprender, por exemplo, que no comego do século XV o papa Eugénio IV costumava ler antes de dormir significa obter mais do que uma trivialidade pitoresca, pois o exemplo ajuda a documentar a lenta mas significativa mudanca da letura do ambito publico para o &mbito privado.!8 Descobrir que. lenda de Santa Margarida eralida em vor alta para mulheres em trabalho de parto na Itélia do século XVI revela alguma coisa sobre as posturas da época em relaco ao poder da pala- va. No entanto, este capitulo tratard principaimente dos variados uusos da escrita, ou alfabetizacio ativa, quer a escrita fosse em latim, ou naquilo que estava se tornando a lingua italiana padrao, ou em dialeto; quer acaligrafia Fosse gética ou da elegante letra cursivaitdlica que estava se difundindo nos circulos humanistas, quer a mensagem fosse escrita em pergaminho ou em papel, ou entalhada em pedra, ou, ainda, escrita em paredes."* No que diz respeitoa essas questées, nio existe escassez de evidén- cias. Pelo contrério, estas sio abundantes; tao abundantes que chegam a ciat sérios problemas para os historiadores que querem usé-las. A partir do século XI, se ndo antes, a Itia — ou, pelo menos, as muitas ‘idades do norte e do centro do pais ~estava se tornando daquilo que poderia razoavelmente ser chamado de “cultura notarial", com uma alta proporcao de notanos na populacdo (em 142/, oito em cada mil habitantes de Florenca), gracas & grande procura por registros de testamentos, contratos matrimoniais, contratos de aprendizes e par- cerias, e outros “atos” e “instrumentos"legais.!° Nesse sentido, a Italia no estava sozinha. A cultura notarial parece ter se estendido a boa parte do mundo cristdo mediterrénico no final da [dade Média. No entanto, um contraste com a Inglaterra, que se poderia estender a coutras partes do norte da Europa, é sugerido pela observaco de um hnotério italiano que visitou aquele pais no século XIII. “Os italianos*, escreveu ele, ‘como homens precavidos que s4o, querem ter um instru- mento piblico para praticamente todos os contratos que realizam; mas 0s ingleses se portam de maneira oposta, e raramente exige-se um HISTORIA SOCIAL DA LINGUAGEM 19 instrumento, a menos que seja indispensével".!6 Os remanescentes dessa atividade notarial so vastos. A idéia de escrever sobre esse assunto me ocorreu enquanto esperava por alguns documentos em um arquivo italiano (um proceso que freqiientemente permite muito tempo livre para reflex6es), junto com a percepedo, ao mesmo tempo Inebriante e refreadora, de que todo documento naquele vasto reposi- trio seria relevante para a pesquisa. De certa forma, estarfamos inter- rogando 0s documentos a respeito deles mesmos, e no, como de costume, sobre alguma outra coisa; estariamos também perguntando pata quais finalidades eles foram originalmente criados, eos dividirfa- mos em categorias ~ textos notariais, notas, certficados, licengas, passes, dentincias, petigées e assim por diante. (Os usos da alfabetizacéo obviamente incluem o que chamamos de “literatura” e aquilo que os humanistas conheciam como bona literae (categorias que se sobrepdem em uma medida considerével, mas que nfo so coincidentes). Essa Fungo nao serd discutida aqui, nfo por nio set importante (afinal,o perfodo que estamos analisando vai de Petrar- caaGoldoni), mas pelo fato de atrair muita atencio académica, o que rdo tem acontecido com a alfabetizacio prética ou “pragmética’. Os sociolingiistas distinguem aquilo que chamam de “dominios do com- portamento da lingua’, estilos diferentes de fala que so encontrados sob diferentes condigdes.”” De forma semelhante, gostaria de fazer a distinggo entre quatro dominios principais de alfabetizacéo prética e discutilos separadamente: os negécios, a familia, a Igreja e o Estado. Embora seja imposstvel distinguir quatro estilos de escrita, um para cada dom{nio, existem indicios de variaggo de estilo & medida que se passa de um “uso” para o outro. Em trés desses dominios, tipos Giferentes de caligrafia eram costumeiramente empregados. Os merca- dores usavam “letra mercantil”(lertera mercantescha) em suas variagbes regionais (mercantile forentina, veneriana etc.). Os documentos adminis- trativos eram geralmente produzidos em “letra chanceleresca" (letera cancellarescha), enquanto os funcionérios a servigo da Igreja usavam a ‘letra eclesiéstica” (litera eclesiastica), em conjunto com estilos espe- cificos para as bulas e breves papais.™ O latim era a lingua nio s6 da Igreja, mas também do direito e de boa parcela da administraggo piiblica. A altemativa a ele nao era o italiano, mas sim os dialetos. Embora o toscano estivesse ampliando seu espaco no infcio do perfodo moderno no dominio da literatura, ele ainda nao havia invadido os domfnios piblicos dos negécios, da politica e da Igreja, muito menos a privacidade da familia 20 PETER BURKE E ROY FORTER Alfabetizacao e negécios Os usos da alfabetizacio nos negécios sio relativamente bem conhecidos. Nos séculos XIV € XV, os autores de orientacées a comer- ciantes ~ um género que em stilustra um dos usos prdticos da alfabe- tizagio - aconselhavam-nos a ndo poupar suas penas, dizendo-lhes que tum bom mercador tem os dedos sujos de tinta.!¥ No infcio do século XVIL, 0 patricio genovés Andrea Spinola ainda dava um conselho semelhantea qualquer um que quisesse ser bem-sucedidonos negécios. ‘Até mesmo os nobres deveriam saber contabilidade e escrever com uma boa caligrafia. Era “tealmente vergonhoso” que alguns deles dependes- sem de outras pessoas que fizessem isso para eles.*? A quantidade de notas, recibos, contratos etc. que sobreviveram sugere que o conselho foi aceito com freqiiéncia. A quantidade de papéis relativos a negécios de um mercador do século XIV, Francesco Datini, de Prato, perto de Florenca, étdo grande a ponto de assustar 05 historiadores que desejam estudé-los, e os faz pensar de que maneira DDatini e seus agente encontravam tempo para fazer qualquer outra coisa além de produzir esse volume de documentagéo, que inclui cerca de quinhentos livros de contabilidade e livros-razio, com a respeitosa inscrigdo “em nome de Deus e do lucro" ?! De fato, na época de Datini, ‘era normal que se usassem nove livros-razdoem uma tinica firma, cada tum deles lidando respectivamente com renda, gastos, salérios, caixa Pequena e assim por diante, sem esquecer o livro-raz40 principal ou “livro secreto” (libro segreto). Os livos-razao empregavam o método de langamento duplo, no qual 0s negociantes italianos foram pioneiros.2 Fazer a contabilidade dessa forma era uma habilidade que, éclaro, tunha de ser aprendida, e as quatro operacées eram ensinadas em um nivel relativamente alto nas chamadas “escolas de 4baco” (comoas seis existentes em Florenga mencionadas por Villani). © abaco era uma prancha com linhas no antigo modelo romano, diferente do sistema de contasefios usado no Extremo Oriente. Parece que os curriculos dessas escolas de baco eram fundamentalmente priticos e orientados para 0s negécios.® As evidéncias disso podem ser encontradas nos livros didéticos que restaram, que incluem questées sobre compra. venda de 1 econversio de diferentes pesos, medidas emoedas. Aexisténciadesse tipo de livro a partir do século XIV — ou seja, bem antes da invencio da imprensa ~ merece énfase, mesmo se os livros fossem destinados aos professores, e néo aos alunos. O mesmo se aplica ao abaco. Causa HISTORIA SOCIAL DA LINGUAGEM 21 perplexidade imaginar os mercadores italianos somando extensas co- Tunas de numerais tomanos, mas na verdade no havia necessidade de se Fazer isso, gracas ao dbaco, que também permitia que os analfabetos fizessem célculos com rapidez* Eaaritmética dos florentinos nos séculos XIV e XV que mais atraiu 2 atengio dos historiadotes, mas esse mesmo tipo de habilidade pode set documentado em um perfodo posterior e em outras cidades. A Summa de arivmética, publicada em 1521, discute taxas de juros € cambio, O Tescuro universal, publicado em Veneza por volta de 1530, afirmava ensinar contabilidade “todos os métodos dos neg6cios" (ogni ragione di mercantia), dando exemplos com um sabor nitidamente vveneziano, tais como a compra e venda de pies doces e especiarias ¢ 0 tempo de viagem de uma galera com destino a Creta® Em 1587, novamente em Veneza, havia 143 alunos em uma escola que estavam aptendendo aritmética eo método contabil dos langamentos duplos 5 Pode-se comecar a pensar se havia negécios em ntimero suficiente para empregar todos esses alunos depois que eles tivessem terminado 0 curso, € a entender por que o Tesouro universal se destinava a “freis, padres, estudantes, médicos, cavalheiros, artesdose, especialmente, aos filhos de qualquer pai que deseja o bem para seus filhos" (Os negécios dependiam de outros tipos de documento além das contas, como, por exemplo, cartas. Existem mais de 125 mil cartas no arquivo Datini em Prato, As cartas traziam noticias, eas noticias eram um assunto de vida ou morte — pelo menos vida e morte econdmicas - para a comunidade dos negécios. A prioridade era fundamental. “Se vvocé esté fazendo negécios,” diz um famoso conselho, “e suas cartas chegam em um mesmo pacote junto com as outras cartas, vocé deve sempre pensar em ler suas préprias cartas antes de passar adiante as, dos outsos.”” As cartas ndo davam somente noticias sobre oferta, procura € pregos em outros lugares. Podia-se fazer pagamentos com tipos espe- cifficos de cartas. © banco dos Medici em Bruges, por exemplo, vendia ‘© que se chamava de “cartas de crédito” aos viajantes que iam para a Italia, cartas enderecadas sua filial em Mildo; os viajantes compravam as cartas pelo valor da moeda local, que seria trocada por outra quando chegassem, Também eram de uso generalizado no século XV as letras, de cémbio, igualmente sob a forma de uma carta, que permitia 0 adiantamento de fundos em um lugar, e sua restituigo em outro ® (Com todas essas cartas para escrever e contas para controlar, sem. falar nas notas recibos que tinham de sercriados, nao € de surpreender 22. PETER BURKE E ROY PORTER que os dedos do bom mercador estivessem tao sujos de tinta. E nfo s6 seus dedos, pois administrar uma familia, tanto quanto administrar lum negécio, poderia gerar uma grande quantidade de papel. Alfabetizacao e a familia (segundo dom{nio da alfabetizacéo prética a ser discutido aqui é oda familia, mais especificamente oda familia patricia urbana (embora a predominancia do registro escrito possa ser, em parte, o resultado de uma taxa de sobrevivéncia documental mais alta). Para quais finalida- des, no infcio da Itélia moderna, os papéis familiares foram escritos € preservados? Neste ponto é preciso que fagamos a distincao entre trés, tipos de documento familiar, Em primeiro lugar, ascarte di notaio, como eram chamadas, ot seja, documentos notariais, como testamentos, contratos matrimoniais, inventérios post mortem e assim por diante, documentos que supostamente deveriam ser guardados com cuidado em cofres para 0 caso de surgirem disputas sobre heranca, © que acontecia com freqUéncia, Em segundo lugar, s cartas familiares. O que as cartas da familia Paston sigificam pata o historiador da Inglaterra do século XV, a8. cartas de Alessandra Macinghi Strozzi representam para o historiador de Florenga no mesmo perfodo. As cartas de Strozzi foram impressas no século XIX, mas as cartas de diversas familias do perfodo continuam in€ditas, como, por exemplo, as dos Dona. Os Dona foram uma familia patricia veneziana cujascartas sobreviveram em ntimeros consideréveis partir do séculoXV1. Como no caso dos Strozzi,ascartaseramescritas ‘em razdo da auséncia dos homens adultos da familia. Filippo e Lorenzo, filhos de Alessandra, estavam no exilio, vivendo em Bruges e Napoles, “Se eu estivesse com vocts,” escreveu ela em seu estilo vivaze coloquial, “eu nio estaria escrevendo essas cartas" (guesteletteracce).° Ela escreveu sobteos possiveiscasamentos das filhas de sua familia, além de desabafar sobre problemas com os criados, mais exatamente problemas com os escravos (uma vez que 0s florentinos compravam circassianos € outros escravos nessa época). De forma semelhante, quando o chefe da familia Dona, Gianbattista, esteve ausente, a negé- cios em Chipre, sua esposa Paola escreveu-lhe contando as novidades sobre os filhos (um deles, por acaso, se tornaria doge): “Lunardo est aprendendo muito bem e acredito que possamos esperar o melhor dele HISTORIA SOCIAL DA LINGUAGEM 28 Antonio ... est comesando a falar e € 0 meu conforto" * Fica claro que o “sentimento da inféncia*, segundo a denominagéo de Philippe ‘Aids, nfo foi uma descoberta dos séculos XVII e XVIII, pelo menos no na Itélia,3| pois o interesse de Paola Don’ por seus filhos encontra diversos paralelos nos papéis familiares do periodo. Em 1501, por exemplo, Isabella Gonzaga, marquesa de Mantua, escreveu a seu ma- rido (outro ausente de casa) a respeito de seu filho: *Nosso menino comecou a andar hoje, e deu quatro passos, para sua grande alegria, e ‘nossa também, sem que ninguém o segurasse (embora fosse observado de perto)..ele cambaleou um pouco,e parecia queimitava um bébado. Perguntando a le se gostaria de mandar lembrancas a Vossa Senhora, respondeu Ti Pa”, No ano seguinte ela novamenteescreveria rlatando 1s progressos do filho a0 pai ausente: “Ontem eu estava rezando quando ele entrou e disse que queria procuraro papa [i Pa), ecomecou 2 folhear sozinho o livro de oragées e encontrou uma figura barbada, que 0 encantou; ele beijou-a mais de seis vezes ¢ disse ‘papai bonito’ [papa bello], com a maior alegria do mundo’.* Os papéis dos Medici contam uma histéria semelhante sobre o sentimento da infancia ¢ as, finalidades das cartas. No final do século XV, Clarice, esposa de Loren- 20, 0 Magnifico, escreveu a ele contando sobre o filho deles, Giovanni, de trés anos (mais conhecido como papa Ledo X), dizendo-Ihe que “ele 1ndo para de perguntar quando Loenciochega’. Giuliano, oirmaomenor de Giovanni, aos seis anos, foi descrito, em uma carta escrta por um cavalheito a servigo dos Medici, como “belo como uma rosa’, e que dizia “com um som de O comprido: O, O, , O, onde esté Lorenzo?” (€ interessante descobrir que esses filhos chamavam seus pais pelo primeiro nome).** ‘Com a excecdo do iltimo exemplo, todos esses detalhes domésti- cos vém de cartas de esposas.a seus maridos, Por outro lado, néo restou nenhuma carta de G, B. Dona a sua esposa pedindo noticias dos filhos; eleescreveu a seu filo adulto sobre a chegada de navios ¢ outros assun- tos de neg6cios, acrescentando diversas mensagens a serem transmiti- das para pessoas diferentes. Ascartas tratavam claramente de assuntos familiares e nao individuais, o que ajuda a explicar sua preservacéo. No entanto, a politica era um assunto tabu, pelo menos para Gianbattista Dona, que certa vez repreendeu o filho por ter feito referéncia a ela em uma carta, “Nunca escreva sobre assuntos das autoridades [cose di signori, uma expresso notével vinda da pena de um patricio], nem para aprovar ou para desaprovar, porque isso pode trazer-te problemas." O problema é que ninguuém podia ter certeza sobre quem veria ascartas, 24 PETER BURKE E ROY PORTER uma vez que elas circulavam em magos, o que estava implicito no conselho aos mercadores citado anteriormente. Um boticério florenti- no do final do século XV relata ter recebido uma carta de seu padrinho “embora estivesse enderecada a outros cidadios" 55 Um terceirousoda alfabetizacdono ambitoda famfliaera compilar © que os florentinos chamavam de ricrdanze, um termo que talvez pudesse ser traduzido por “memérias". S6 de Florenga sobreviveu cerca

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