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Sujeicao, resisténcia, ressignificacao%5 Entre Freud e Foucault Meu problema é essencialmente a definigao dos sistemas implicitos nos quais nos encontramos prisioneiros; 0 que eu gostaria de entender é 0 sistema de limites e exclusdo que praticamos sem saber; eu gostaria de tornar aparente o inconsciente cultural. Foucault, “Rituals of Exclusion” Consideremos, em Vigiar e punir, o carater paradoxal do que Foucault descreve como a subjetivacao do prisioneiro. O termo “subjetivagao” traz em si © paradoxo: 0 assujettissement denota tanto o devir do sujeito quanto 0 processo de sujeigdo — s6 se habita a figura da autonomia sujeitando-se a um poder, uma sujeigdo que implica uma dependéncia radical. Para Foucault, esse processo de subjetivagdo ocorre, de maneira s do corpo. Em Vigiar e punir, o corpo do pri aparece apenas como signo de culpa e transgressdo, como a corporificagdo do proibir ¢ a sangdo para rituais de normalizagdo; esse corpo & enquadrado e formado pela matriz. discursiva de um sujeito juridico. A afirmagao de que um discurso “forma” o corpo nao é nada imples, e precisamos comegar por distinguir como esse “formar” ndo é a mesma coisa que “causar” ou “determinar”, muito menos uma ideia de que os corpos, de algum modo, sao feitos do discurso puro e simples.3¢ joneiro ndo central, atravi Foucault sugere que 0 prisioneiro nao & regulado por uma relagdo exterior de poder, segundo a qual as instituigdes tomam como alvo de seus objetivos de subordinagao um individuo preexistente. Pelo contririo, 0 individuo se forma — ou melhor, formula-se — como prisioneiro por meio de sua “identidade” constituida discursivamente. A sujeigéio, é literalmente, a feitura de um sujeito, o principio de regulagdo segundo o qual um sujeito é formulado ou produzido. Essa sujeigdo é um tipo de poder que nao s6 unilateralmente age sobre determinado individuo como uma forma de dominagdo, mas também ativa ou forma o sujeito. Portanto, sujeigdo ndo & simplesmente a dominagdo de um sujeito nem sua produgdo — ela também designa um certo tipo de restrigdo na produgdo, uma restrigdo sem a qual é impossivel acontecer a produgdo do sujeito, uma restrigdo pela qual essa produgdo acontece, Embora Foucault tente argumentar algumas vezes que o poder historicamente juridico — 0 poder que age sobre os sujeitos preexistentes e os subordina — precede 0 poder produtivo, a capacidade que tem o poder de formar sujeitos, com 0 prisioneiro fica claro que 0 sujeito produzido ¢ o sujeito regulado ou subordinado so a mesma coisa, ¢ a produgdo compulséria é a sua propria forma de regulagio. Foucault fa um alerta contra aqueles que fazem parte da tradigao liberal e que considerariam libertar o prisioneiro dos limites opressivos da prisdo, pois a sujcigdo representada pela instituigao exterior da prisdo ndo & independente da invasdo e da gestiio do corpo do prisioneiro: isso ¢ © que Foucault desereve como o pleno cerco ¢ a invasio desse corpo pelas priticas significantes da priséo — a saber, a inspegio, a confissio, a regularizago e normalizagdo dos movimentos e gestos corporais, os regimes disciplinares do corpo que levaram as feministas a ler Foucault para elaborar uma teoria da produgo disciplinar do género.32 A prisdo, desse modo, age sobre 0 corpo do prisioneiro, mas 0 faz obrigando-o a se aproximar de um ideal, de uma norma de comportamento, de um modelo de obediéncia. Ei assim que a individualidade do prisioneiro se torna coerente, totalizada, que se converte na posse discursiva e conceitual da prisdo; é como afirma Foucault, dessa forma que ele se torna “o principio de sua propria sujeig%io”.38 Esse ideal normativo inculeado no prisioneiro, por assim dizer, é um tipo de identidade psiquica, ou o que Foucault chamard de “alma”. Como a alma tem um efeito encarcerador, Foucault afirma que o prisioneiro é submetido “de uma maneira mais fundamental” do que a do espago fisico do carcere representado pela prisdo. No que cito a seguir, alids, a alma ¢ considerada ela mesma um cativeiro fisico, uma espécie de pris, que possibilita a forma exterior ou o principio regulador do corpo do prisioneiro. Isso fica claro quando Foucault afirma que “o homem de que nos falam e que nos convidam a liberar j4 & em si mesmo 0 efeito de uma sujeigao [assujettissement] bem mais profunda que ele [...] a alma, prisdo do corpo” (p. 29). Por mais que, nesse ponto, Foucault se refira especificamente & subjetivagdo do prisioneiro, ele também parece privilegiar a metéfora da prisdo para teorizar a subjetivaga0 do corpo. Como devemos entender 0 encarceramento ¢ a invasio como figuras privilegiadas utilizadas por Foucault para articular 0 processo da subjetivagdo, a produgdo discursiva de identidades? Se 0 discurso produz identidade ao prover e impor um principio regulador que invade completamente 0 individuo, totaliza-o ¢ 0 torna cocrente, entdo parece que toda “identidade”, na medida em que & totalizadora, age precisamente como uma “alma que encarcera 0 corpo”. Em que sentido essa alma & “bem mais profunda” que o proprio prisioneiro? Isso significa que a alma preexiste 0 corpo que a anima? Como podemos entender tal afirmago no contexto da teoria foucaultiana do poder? Em vez de responder a essa pergunta diretamente, podemos, para fins de esclarecimento, contrapor a “alma”, que Foucault considera uma estrutura encarceradora, 4 psique no sentido psicanalitico.2® Na psique, 0 ideal do sujeito corresponde ao ideal do Eu, a0 qual o Supereu consulta, por assim dizer, para avaliar 0 Eu. Lacan redefine esse ideal como a “posigdo” do sujeito dentro do simbélico, a norma que instala 0 sujeito dentro da linguagem e, portanto, dentro dos esquemas disponiveis de inteligibilidade cultural. Esse ser vidvel e inteligivel, esse sujeito, sempre produzido a um custo, e tudo aquilo que resiste exigéncia normativa pela qual os individuos sao instituidos permanece inconsciente. ‘A psique, desse modo, que inclui 0 inconsciente, ¢ muito diferente do sujeito: a psique ¢ justamente o que excede os efeitos encarceradores da exigéncia discursiva de habitar uma identidade coerente, de se tornar um sujeito coerente. A psique & 0 que resiste & regularizagio que Foucault atribui aos discursos normalizadores. A ideia € que esses discursos enearceram 0 corpo na alma, animam o corpo e o encerram dentro dessa estrutura ideal, e, nesse sentido, reduzem a nogdo de psique as operagdes de um ideal de normalizagio e estruturagdo externas. Esse gesto foucaultiano parece tratar a psique como se ela recebesse unilateralmente © efeito do simbélico lacaniano. A reconsideragdo da alma como uma estrutura exterior e encarceradora do corpo desocupa, por assim dizer, a intetioridade do corpo, transformando essa interioridade numa superficie maleavel para os efeitos unilaterais do poder disciplinar. Estou me aproximando um pouco de uma critica psicanalitica a Foucault, pois acredito ser impossivel explicar a subjetivagio e, em particular, tornar-se o principio de sua prépria sujeigdo sem recorrer a um relato psicanalitico dos efeitos formativos ou geradores da restrigo ou da proibigo. Além disso, nao podemos pensar de modo completo a formagao do sujeito — se ¢ que, de algum modo, ela pode ser pensada — sem recorrermos a um conjunto de restrigées fundadoras que, paradoxalmente, também sio facilitadoras. No entanto, ao elaborar esta critica, fago uma analise crucial de algumas concepgdes roménticas que definem 0 inconsciente como uma resisténcia necessdria, e esse movimento critico implicaré 0 ressurgimento de uma_perspectiva foucaultiana dentro da psicandlise. A questio de haver ou nfo uma psicandlise suprimida em Foucault — questo que ele mesmo levanta quando se refere a um “inconsciente cultural”, como visto na epigrafe deste capitulo — pode ser suscitada mais precisamente como o problema de localizar ou explicar a resistencia. Na formagdo disciplinar do sujeito ou em relagdo a ela, onde a resisténcia tem lugar? Poderiamos dizer que reduzir 0 amplo conceito psicanalitico de psique 4 alma que encarcera & 0 mesmo que eliminar a possibilidade de resistir & normalizagio e A formagdo do sujeito, uma resisténcia que surge precisamente da incomensurabilidade entre psique © sujeito? Como entenderiamos essa resisténcia? © processo desse entendimento implicaria reconsiderar ctiticamente a psicanilise? No que se segue, farei duas perguntas diferentes, uma relacionada a Foucault e outra a psicandlise (aplicando 0 termo alternadamente a Freud ea Lacan).tl Primeiro, se Foucault entende a psique como um efeito enearcerador a servigo da normalizagdo, como cle péde explicar a sténcia psiquica a normalizagdo? Segundo, considerando que alguns defensores da psicandlise argumentam que a resisténcia & normalizagdo & uma fungao do inconsciente, sera essa garantia de resisténcia psiquica apenas uma prestidigitago? Mais precisamente, a resisténcia sobre a qual a psicandlise insiste ¢ produzida social c discursivamente, ou é uma espécie de resisténcia 4 produgdo social e discursiva como fais, um enfraquecimento delas? Consideremos a ideia de que o inconsciente, sempre e exclusivamente, resiste & normalizago, que cada ritual de conformidade com as injungdes da civilizago tem um custo, e que, desse modo, acaba sendo produzido um residuo desatrelado e nao socializado que contesta a aparigo do sujeito cumpridor das leis. Esse residuo psiquico significa os limites da normalizagao. Essa posigdo nao quer dizer que tal resistencia exerga 0 poder de retrabalhar ou rearticular os termos da exigéncia discursiva, as injungdes disciplinares pelas quais se dé a normalizagao. Tolher a injungao para produzir um corpo décil ndo € 0 mesmo que desmantelé-la ou alterar os termos da constituigdo do sujeito, Se o inconsciente — ou a psique, em sentido amplo — é definido como resisténcia, como entendemos os apegos inconscientes A sujei¢do, que subentendem que inconsciente esté to pouco livre do discurso normalizador quanto 0 sujeito? Se o inconsciente escapa de uma determinada injungdo normativa, a que outra injungdo ele estabelece um apego? O que nos faz pensar que o inconsciente é menos estruturado pelas relagdes de poder que permeiam os significantes culturais do que a linguagem do sujeito? Se encontrarmos um apego & sujeigao no nivel do inconsciente, que tipo de resisténcia € possivel construir a partir disso? Mesmo se admitirmos que a resisténcia inconsciente a uma injungdo normalizadora garante o fracasso dessa injungdo de constituir plenamente seu sujeito, essa resisténcia age de alguma maneira para alterar ou expandir as injungdes ou interpelagées que dominam na formagdo do sujeito? O que podemos coneluir de uma resisténcia que s6 tem a solapar os termos simbélicos — usando o linguajar lacaniano — pelos quais os sujeitos se constituem, pelos quais a sujeigao se instala na propria formagdo do sujeito, mas que nao parece ter nenhum poder para rearticula-los? Essa resisténcia determina que todo esforgo de produzir um sujeito por meios disciplinares no se completa, mas continua ineapaz de rearticular os termos dominantes do poder produtivo. Antes de continuar esse questionamento da psicandlise, retornemos a0 problema dos corpos em Foucault. Como e por que a resisténcia ¢ negada aos corpos produzidos por regimes disciplinares? Em que consiste essa concepedo de produgdo disciplinar? Essa concepgio é tdo eficaz quanto Foucault parece indicar? No wltimo capitulo do primeiro volume de Historia da sexualidade, Foucault recomenda uma “historia dos corpos’ gue investigue “a maneira como se investiu sobre o que neles ha de mais material, de mais vivo”.42 Nessa formulagdo, ele sugere que o poder age no s6 sobre 0 corpo, mas também dentro do corpo, que 0 poder nio s6 produz 0s limites do sujeito, mas também permeia sua interioridade. Com isso, 0 corpo parece ter um “interior” que existe antes da invasio do poder. Mas dada a cxterioridade radical da alma, como podemos entender interioridade” em Foucault?2 O que essa interioridade pode ser se ndo é a alma, tampouco a psique? Seria o espago de uma malcabilidade pura, que estaria, por assim dizer, pronta para se ajustar as exigéncias da socializagao? Ou chamamos essa interioridade simplesmente de corpo? Chegamos ao ponto paradoxal em que Foucault afirma a alma como forma exterior e 0 corpo como espago interior? na Por mais que Foucault, em alguma possibilidade de um corpo produzido fora das relagdes de poder, as suas explicagdes exigem que um corpo mantenha uma materialidade ontologicamente distinta das relagdes de poder que o tomam como lugar de investimento4t Na verdade, 0 termo “lugar” aparentemente surge nessa frase sem nenhuma garantia, pois qual é a relagdo entre o corpo como /ugar e os investimentos que esse lugar recebe ou suporta? O termo “lugar” estabiliza o corpo em relagdo a esses investimentos, ao mesmo tempo que desvia a questo de como os investimentos estabelecem, contoram e abalam 0 que a frase da por certo como “lugar” do corpo (ou seja, o termo “lugar” desvia o projeto do “estégio de espelho” de Lacan)? © que constitui um “investimento” ¢ qual é 0 seu poder constitutive? Teria cle uma fungao de visualizagdo, e poderiamos entender a produgio do Eu corporal em Freud como a modalidade projetada ou espacializada de tais investimentos?5 Alids, em que medida o lugar do corpo estabilizado por meio de uma certa instabilidade projetiva, que Foucault no descreve totalmente ¢ que talvez o envolvesse na problematica do eu como fungao imaginéria? eZes Em Vigiar e punir, Foucault oferece uma configuragio diferente da relagdo entre materialidade e investimento. Nesse livro, a alma é definida como instrumento de poder pelo qual o corpo é cultivado e formado. Em certo sentido, funciona como um esquema carregado de poder que produz € efetiva © corpo. Podemos entender a jas de Foucault alma como uma reelaboragao implicita da formulacdo aristotélica, na qual a alma é entendida como a forma e o principio da matéria do corpo.46 Foucault argumenta em Vigiar e punir que a alma se torna um ideal normativo e normalizador segundo o qual 0 corpo & treinado, moldado, cultivado e investido; é um ideal imagindrio historicamente especifico [idéal spéculatif| sob 0 qual o corpo se materializa. Essa “sujeigdo” ou assujettissement nao & apenas uma subordinagdo, mas uma garantia e manutengdo, uma instalago do sujeito, uma subjetivagdo. A “alma o leva [o prisionciro] 4 cxisténcia”; assim como em Aristételes, a alma, como instrumento de poder, forma e enquadra 0 corpo, imprime-o, e, ao imprimi-lo, torna-o existente. Nessa formulagdo, nao hd corpo fora do poder, pois a materialidade do corpo — alias, a propria materialidade — & produzida pelo investimento do poder e numa relago direta com ele. A materialidade da prisio, escreve Foucault, & estabelecida na medida em que [dans la mesure oii] & instrumento e vetor de poder.!2 Por conseguinte, a prisdo é materializada na medida em que & investida de poder. Para ser gramaticalmente precisa, nao ha prisio anterior & sua materializagao; sua materializagdo e sua investidura com relagdes de poder so coincidentes; e a materialidade ¢ 0 efeito e a dimensao desse investimento. A pristio s6 existe dentro do campo das relagdes de poder — mais especificamente, apenas na medida em que est saturada dessas relagdes e que essa saturagdo € formativa de seu proprio ser. Nesse contexto, 0 corpo ~ do prisioneiro e da prisio — ndo é uma materialidade independente, uma superficie ou um lugar estético que um investimento posterior viria marcar, significar ou permear; para 0 corpo, materializagdo ¢ investidura so coincidentes. Embora a alma seja entendida em Vigiar e punir como quadro do corpo, Foucault sugere que a produgdo do “sujeito”, em certa medida, ocorre através da subordinagdo e até mesmo da destruigdo do corpo. Em “Nietzsche, a genealogia, a histéria”, Foucault observa que o sujeito como unidade dissociada” s6 surge através da destruigao do corpo: “o corp superficie de inscrigao dos acontecimentos (enquanto a linguagem os marcam ¢ as ideias os dissolvem), lugar de dissociagdo do eu (ao qual ele tenta atribuir a ilusdo de uma unidade substancial), volume em perpétua pulverizagdo”.48 O sujeito aparece & custa do corpo, uma aparigdo condicionada na relagao inversa ao desaparecimento do corpo. O sujeito no s6 efetivamente toma o lugar do corpo, mas também age como a alma que enquadra e forma o corpo em cativeiro. Aqui, a fungao de formagdo ¢ enquadramento dessa alma exterior funciona contra 0 corpo; na verdade, pode ser entendida como a sublimagdo do corpo em consequéncia do deslocamento da substituigao. Ao redefinir a im o corpo no pensamento de Foucault, aventurei-me claramente no vocabulario psicanalitico da sublimagao. J4 que estou aqui, colocarei uma questo para retornarmos A problematica da sujei¢ao e da resisténcia. Se 0 corpo € subordinado, e até certo ponto destruido, na medida em que surge o si-mesmo, e se esse surgimento pode ser interpretado como a sublimagao do corpo, e o si-mesmo como a forma fantasmagérica do corpo, existe alguma parte do corpo que nao seja preservada na sublimagio, alguma parte do corpo que permanega sem ser sublimada? Eu diria que, para o sujeito, esse residuo corporal sobrevive no modo de jA ter sido destruido, quigd sempre destruido, em uma espécie de perda constitutiva. O corpo ndo é um lugar onde acontece uma construgdo: & uma destruigo em cuja ocasiao o sujeito é formado. A formagdo desse sujeito é& ao mesmo tempo, o enquadramento, a subordinagio © a regulagdo do corpo, e 0 modo como essa destruigdo & preservada (no sentido de sustentada ¢ embalsamada) na normalizagao. Desse modo, se agora devemos entender 0 corpo como aquilo que nao 86 constitui o sujeito em seu estado dissociado e sublimado, mas que também excede ou r a qualquer esforgo de sublimagao, como podemos entender esse corpo que é, por assim dizer, negado ou reprimido para que o sujeito possa viver? Poderfamos esperar que 0 corpo retornass num estado selvagem nao normalizavel, ¢ hi momentos em Foucault em que algo parecido realmente acontece. Mi s possibilidade de subversio ou resisténcia apare Foucault, de duas maneiras: (a) durante uma subjetivagdo que excede os objetivos normalizadores que a impulsionam, por exemplo, no “discurso reverso”, ou (b) pela convergéncia com outros regimes discursivos, momento em que a complexidade discursiva produzida inadvertidamente solapa os objetivos teleolégicos da normalizagao.42 Assim, a resisténcia aparece como efeito do poder, como parte do poder, como subversdo dele mesmo. Na teorizagdo da resisténcia, surge certo problema relacionado a psicandlise e, por implicagao, aos limites da subjetivagao. Para Foucault, © sujeito que é produzido através da sujeigo ndo é produzido em sua totalidade instantaneamente. Em vez, disso, esté em processo de produgao, & produzido repetidamente (0 que nao significa ser produzido de uma forma nova repetidas vezes). E precisamente a possibilidade de uma repetigdo que 1 © sujeito, mas que prolifera efeitos que debilitam a forga da normalizagao. O termo que néo 86 designa, mas também forma e enquadra 0 sujeito — pensemos no exemplo de Foucault de homossexualidade — impulsiona um discurso inverso contra o proprio regime de normalizagao pelo qual é gerado, Nao amesma “homossexualidade” se trata, é claro, de uma oposigdo pura, pois ser empregada primeiro a servigo da heterossexualidade normalizadora ¢ s6 depois a servigo de sua propria despatologizagdo. Ha um risco de termo conservar primeiro significado no segundo. Mas seria um erro pensar que s6 de pronuncié-lo o sujeito transcenderia a normalizagao heterossexual ou se tornaria instrumento dela, O risco de renormalizagdo esté sempre presente: considere a pessoa que revela sua homossexualidade “saindo do armério” de modo provocativo ¢ simplesmente escuta a seguinte resposta: “Ah, sim, entdo vocé € isso e apenas isso”. Tudo que a pessoa disser sera reinterpretado como uma manifestagdo sutil ou evidente de sua homossexualidade essencial. (Nao devemos subestimar 0 quanto cansa a expectativa dos outros para que tenhamos nossa homossexualidade exposta o tempo todo, seja a expectativa oriunda de gays e lésbicas amigos ou de seus inimigos.) Aqui Foucault cita reclabora a possibilidade de ressignificar, de mobilizar politicamente © que Nietzsche, em Genealogia da moral, chamou de “cadcia de signos”. Nietzsche argumenta que os usos aos quais originalmente se atribui determinado signo sao totalmente diferentes dos usos para os quais ele se torna disponivel depois. Essa lacuna temporal entre os usos abre a possibilidade de uma inversio de significado, mas também abre caminho para a inaugurago de possibilidades significativas que vio além daquelas a que o termo foi previamente vinculado. modo, 0 sujeito foucaultiano nunca esté totalmente constituido i s tui repetidamente; e ¢ na possibilidade de uma repetigdo que se repete contra sua origem que a sujeigio adquire seu poder involuntariamente habilitador. De uma perspectiva psicanalitica, no entanto, podemos perguntar se essa possibilidade de resisténcia a um poder constitutive ou subjetivador pode ser derivada do que esté “no” discurso ou é “do” discurso. Como entendemos 0 modo como os discursos no s6 constituem os campos do dizivel, mas so cles mesmos limitados pela produgdo de um exterior constitutivo: 0 indizivel, o insignificdvel? Do ponto de vista lacaniano, poderiamos perfeitamente perguntar se 0s efeitos da psique se esgotam no que pode ser significado ou se nao existe, em contraste com esse corpo significante, um campo psiquico que contesta a legibilidade. Se, de acordo com os psicanalistas, 0 sujeito nao equivale A psique da qual ele surge, € se, para Foucault, 0 sujeito nao equivale ao corpo do qual ele surge, entdo talvez, em Foucault, o corpo tenha s to & como o que ultrapassa e perturba a injungdes da normalizagdo. Trata-se de um corpo pura e simplesmente, ou “o corpo” acaba por representar determinada operagdo da psique, que é claramente distinta da alma representada como efeito encarcerador, talvez até diretamente oposta a ela? Talvez 0 proprio Foucault tenha investido 0 corpo de um significado psiquico que ndo consegue explicar nos termos que usa, Na teoria foucaultiana e psicanalitica, de que modo 0 processo de subjetivagdo, a produgo disciplinar do sujeito, entra em colapso (se é que 0 faz)? De onde vem esse fracasso e quais so suas consequéncias? Consideremos a ideia de interpelagao em Althusser, segundo a qual 0 sujeito se constitui ao ser chamado, abordado, nomeado.50 De modo geral, parece que Althusser acreditava que essa exigéncia social — poderiamos chaméla de injungdo simbélica — na realidade produzia os tipos de sujeito que nomeava. Ele di o exemplo do policial na rua que grita “Ei, vocé ai!”, © conclui que esse chamado, de maneira importante, constitui a pessoa que ¢ abordada ¢ situada. A cena é claramente disciplinar; 0 chamado do policial ¢ um esforgo para recolocar alguém na linha. No entanto, também podemos compreendé-lo em termos lacanianos como o chamado da constituigio simbélica. Como afirma o préprio Althusser, esse esforgo performative de nomeagdo s6 pode fentar dar origem ao interpelado: sempre existe 0 risco do desconhecimento. Se 0 esforgo de produzir 0 sujeito nao & reconhecido, a prépria produgio vacila. Quem é chamado pode ndo ouvir, entender mal o chamado, virar para o outro lado, responder a outro nome, insistir para ndo ser abordado daquela maneira. Na verdade, Althusser delimita 0 campo imaginério precisamente como aquele que torna possivel o desconhecimento. Quando um nome é chamado e tenho certeza de que é 0 meu, mas ndo é. Quando um nome é chamado e tenho certeza de que & o meu, mas a voz ¢ incompreensivel, ou pior, ¢ alguém que tosse, ou pior, € um radiador cujo som, por um instante, assemelha-se a uma voz humana. Ou eu tenho certeza de que ninguém percebeu minha transgresso, e que no é meu nome que esti sendo chamado, mas apenas um transeunte que tosse, ou 0 som alto do mecanismo de aquecimento — mas é meu nome, e, no entanto, no me reconhego no sujeito que o nome instaura naquele momento.S- Consideremos a forga dessa dindmica de interpelagio desconhecimento quando 0 nome ndo é um nome proprio, mas uma categoria social,32 e, portanto, um significante capaz de ser interpretado de varias maneiras divergentes e conflitantes. O chamado “mulher”, ‘judia”, “queer”, “preta” ou “chicana” pode ser ouvido ou interpretado como afirmagdo ou insulto, dependendo do contexto em que ocorre (¢ contexto, aqui, ¢ a historicidade © a espacialidade efetivas do signo). Na maioria dos casos em que um nome assim é chamado, a pessoa hesita sem saber como responder ou se deve responder, pois o que esté em jogo é se a totalizagdo temporaria realizada pelo nome ¢ politicamente facilitadora ou paralisante, se a forclusdo — alids, a violéneia — da redugdo totalizadora da identidade realizada por aquele chamado especifico é politicamente estratégica ou regressiva ou, se paralisante © regressiva, também facilitadora de alguma maneira. er faz da teoria lacaniana concentra-se na fungdo do © uso que Althu: imagindrio como possibilidade permanente do desconhecimento, ou seja a incomensurabilidade entre a exigéncia simbélica (0 nome que é interpelado) e a instabilidade e imprevisibilidade de sua apropriagao, Se 0 objetivo do nome interpelado ¢ consumar a identidade a que se refere, ele comega como um processo performative que acaba descarrilado no imaginario, pois 0 imagindrio certamente se preocupa com a lei, é estruturado por ela, mas nao Ihe obedece diretamente. Para os lacanianos, entio, o imaginario significa a impossibilidade da constituigao discursiva — isto &, simbélica — da identidade. A identidade jamais ser4 plenamente totalizada pelo simbélico, pois o que ele no pde em ordem surge no imaginario como uma desordem, um lugar onde a identidade € contestada. Desse modo, seguindo uma linha lacaniana, Jacqueline Rose formula © inconsciente como aquilo que tolhe todo esforgo do simbélico de constituir, de modo pleno e coerente, a identidade sexuada, um inconsciente indicado pelos atos falhos ¢ pelas lacunas que caracterizam 0 funcionamento do imagindrio na linguagem. Cito uma passagem que ajudou muitos de nés que procuraram na psicandlise um principio de resisténcia a formas determinadas da realidade social: O inconsciente revela constantemente o “fracasso” da identidade. Como nao existe continuidade da vida psiquica, ndo existe estabilidade da identidade sexual, tampouco uma posig4o que as mulheres (ou os homens) possam simplesmente aleangar. A psicandlise também nfo vé esse “fracasso” como uma incapacidade especial ou um desvio individual da norma. “Fracasso” ndo é um momento que se deva lamentar durante um ss0” 1 processo de adaptagio, ou do desenvolvimento em normalidade [...] “fracasso” € algo repetido e revivido indefinidamente, momento a momento, ao longo de nossas historias individuais. Ele aparece no s6 no sintoma, mas também nos sonhos, nos lapsos de lingua e nas formas de prazer sexual rechagadas as margens da norma... hd uma resisténcia & identidade no ceme da vida psiquica.S3 Em Vigiar e punir, Foucault presume a eficdcia da exigéncia simbélica, sua capacidade performativa de constituir o sujeito a quem nomeia. Em Histéria da sexualidade 1, no entanto, ha tanto a rejeigio de “um lugar da grande Recusa” — que supostamente inclui em seu Ambito a psique, o imagindrio ou o inconsciente — quanto a afirmago de miltiplas possibilidades de resisténcia possibilitadas pelo préprio poder. Para Foucault, a resisténcia ndo pode estar fora da lei em outro registro (0 imaginario) ou naquilo que escapa ao poder constitutivo da lei. ndo existe, com respeito ao poder, um lugar da grande Recusa — alma da revolta, foco de todas as rebelides, lei pura do revoluciondrio. Mas sim resisténcias, no plural, que so casos inicos: possiveis, necessdrias, improvaveis, esponttineas, selvagens, solitérias, _planejadas, _arrastadas, _violentas, irreconcilidveis, prontas a0 compromisso, interessadas ou fadadas ao sacrificio; por definigao, ndo podem existir a nfo ser no campo estratégico das relagdes de poder. Mas isso ndo quer dizer que sejam apenas subproduto das mesmas, sua marca em negativo, formando, por oposigio A dominagao essencial, um reverso inteiramente passivo, fadado infinita derrota.S4 Essa iiltima caricatura do poder, embora claramente escrita tendo Marcuse em mente, lembra o efeito da lei lacaniana, que produz seu proprio “fracasso” no nivel da psique, mas que nunca pode ser deslocado ou reformulado por essa resisténcia psiquica. O imagindrio tolhe a eficdcia da lei simbélica, mas ndo pode se voltar contra a lei, exigindo ou efetivando sua reformulagdo. Nesse sentido, a resisténcia psiquica tolhe a lei em seus efeitos, mas ndo pode redirecionar a lei ou seus efeitos, A resisténcia, portanto, esta situada num campo que praticamente ndo tem poder nenhum para alterar a lei a que se ope, Por conseguinte, a resisténcia psiquica presume a continuagdo da lei em sua forma anterior, a simbélica, ¢, nesse sentido, contribui para o seu status quo. Nessa perspectiva, a resisténcia parece condenada a derrota perpétua, Em contraste, Foucault formula a resisténcia como efeito do poder ao qual ela se opde. Essa insisténcia na dupla possibilidade de ser tanto constituido pela lei quanto um efeito da resistencia 4 lei marca um afastamento do referencial lacaniano, pois enquanto Lacan restringe a nogdo de poder social ao campo simbélico e delega a resisténci imaginario, Foucault reformula 0 simbélico como relagdes de poder e entende a resisténcia como um efeito do poder. A concepgao de Foucault da inicio 4 passagem de um discurso sobre a lei, concebido como juridico (e que pressupée um sujeito subordinado pelo poder), para um discurso sobre o poder, que é um campo de relagdes produtivas, reguladoras contestadoras. Para Foucault, 0 simbélico produz. a possibilidade de si proprias subversées, e essas subversdes sao efeitos inesperados da interpelagdes simbélicas, A ideia de “simbélico” nao aborda a multiplicidade de vetores de poder nos quais Foucault insiste, pois o poder em Foucault nao consiste apenas na elaboragao reiterada de normas ou exigéncias interpeladoras, mas € formative ou produtivo, maledvel, miltiplo, proliferative conflituoso. Além disso, em suas ressignificagdes, a propria lei transmutada naquilo que se opde aos seus propésitos originais e os ultrapassa. Nesse sentido, para Foucault, o discurso disciplinar nao constitui unilateralmente o sujeito — ou melhor, se 0 faz, constitui simultaneamente a condigio para a desconstituigao do sujeito. O que & gerado pelo efeito performativo da exigéncia interpeladora é muito mais do que um “sujeito”, pois 0 “sujeito” criado nao é, por esse motivo, fixado numa posigdio: ele se torna a ocasidio para uma feitura posterior. Na verdade, gostaria de acrescentar que 0 sujeito sé permanece sujeito mediante a reiteragdo ou rearticulagao de si mesmo como sujeito, ¢ 0 fato de a coeréncia do sujeito depender dessa repetig’o pode constituir a incoeréneia desse sujeito, seu carater de incompletude. Essa repetigdo — ou melhor, iterabilidade — torna-se assim 0 nfo-lugar da subversio, a possibilidade de recorporificar_ a norma subjetivadora capaz de redirecionar sua normatividade. Considere as inversdes de “mulher” © “mulher”, de acordo com 0 modo de encenagdo ¢ abordagem de cada representagio, e de “queer” ¢ ‘queer”, de acordo com seu modo patologizador ou contestador. Os dois exemplos dizem respeito no a uma oposigao entre o uso reacionério € 0 uso progressivo, mas sim a um uso progressivo que exige e repete 0 uso reaciondrio com o objetivo de efetivar uma reterritorializagdo subversiva. Para Foucault, ento, o aparelho disciplinar produz sujeitos, mas, como consequéncia dessa produgdo, traz a0 discurso as condigdes para subverter 0 préprio aparelho. Em outras palavras, a lei se volta contra si mesma e produz versdes de si mesma que se opéem aos propésitos que a colocam em ago e os proliferam. Entdo, a pergunta estratégica para Foucault é: como administramos as relagdes de poder pelas quais somos administrados, e em qual direg’0? Em suas iiltimas entrevistas, Foucault da a entender que, dentro dos arranjos politicos contempordneos, as identidades se formam em relagdo a certos requisitos do Estado liberal, os quais presumem que a afirmag3o de direitos ¢ a reivindicagdo de direitos legais sé podem ser feitas com base em uma identidade singular ¢ injuriada. Quanto mais especificas se tornam as identidades, mais totalizadas se tornam por essa mesma especificidade. Na verdade, podemos entender esse _fenémeno contempordneo como o movimento pelo qual um aparelho juridico produz © campo de possiveis sujeitos politicos. Tendo em vista que, para Foucault, 0 aparelho disciplinar do Estado opera através da producdo totalizadora de individuos, ¢ tendo em vista que essa totalizagao do individuo estende a jurisdi¢ao do Estado (isto é, transformando individuos em sujeitos do Estado), Foucault sugere uma reconstrugdo da subjetividade além dos grilhdes da lei juridica. Nesse sentido, 0 que chamamos de politica identitéria & produzido por um Estado que s6 pode alocar reconhecimento e direitos a sujeitos totalizados pela particularidade que constitui suas condigdes de reclamantes. Ao exigir uma derrocada, por assim dizer, dessa estrutura, Foucault ndo est pedindo a libertagao de uma subjetividade escondida ou reprimida, mas sim a feitura radical da subjetividade formada na hegemonia histérica do sujeito juridico e contra essa hegemonia Talvez 0 objetivo hoje em dia nao seja descobrir © que somos, mas Tecusar 0 que somos. Temos que imaginar e construir 0 que juplo constrangimento’ poderiamos ser para nos livrarmos deste “ politico, que é a simultanea individualizagdo e totalizagdo propria as estruturas do poder modemo [...] A conclusdo seria que 0 problema politico, ético, social e filoséfico de nossos dias nao consiste em tentar liberar 0 individuo do Estado nem das instituigdes do Estado, porém nos liberarmos tanto do Estado quanto do tipo de individualizagdo que a ele se liga, Temos que promover novas formas de subjetividade através da recusa deste tipo de individuatidade que nos foi imposto ha varios séculos.55 Dessa andlise, surgem dois grupos de questdes. Em primeiro lugar, por que Foucault define a resisténcia em relago a0 poder disciplinar da sexualidade em Histéria da sexualidade, enquanto em Vigiar e punir 0 poder disciplinar parece determinar corpos déceis incapazes de resisténcia? Na relagio da sexualidade com o poder, existe algo que condiciona a possibilidade de resisténcia no primeiro texto, e a auséncia notavel de uma consideraco sobre a sexualidade na discussdo do poder € dos corpos no segundo? Vale notar que, no Histéria da sexualidade, a fungo repressiva da lei é enfraquecida precisamente por ela se tornar 0 objeto de excitagtio e de investimento erético. O aparelho disciplinar no reprime a sexualidade precisamente por ser ele mesmo erotizado, tornando-se a ocasido para a incitagdo da sexualidade e, portanto, anulando seus proprios objetivos repressivos. Em segundo lugar, tendo em mente essa propriedade transferivel de investimentos sexuais, podemos perguntar: o que condiciona a possibilidade suscitada por Foucault, a de recusar o tipo de individualidade correlacionada com aparato disciplinar do Estado moderno? E como explicamos 0 apego precisamente ao tipo de individualidade ligada ao Estado e que reconsolida a lei juridica? Em que medida o aparelho disciplinar que tenta produzir e totalizar a identidade torna-se um objeto permanente de apego apaixonado? Nao podemos simplesmente nos desfazer das identidades que nos tornamos, ¢ o apelo de Foucault para “recusarmos” essas identidades certamente encontrard resisténcia. Se rejeitarmos teoricamente a fonte de resisténcia em um campo psiquico que precede ou excede 0 socials — como devemos fazer —, sera possivel reformularmos a resisténcia psiquica nos termos do social sem que a reformulagdo se torne domesticago ou normalizagdo? (Deve 0 social ser sempre equiparado ao que ¢ predeterminado ¢ normalizavel?) Em particular, como podemos entender nao s6 a produgao disciplinar do sujeito, mas também o cultivo disciplinar de um apego a sujeigéo? Esse tipo de postulago pode suscitar a questo do masoquismo — na verdade, a questo do masoquismo na formagio do sujeito -, mas nao responde a questo do status do “apego” ou do “investimento”. Aqui surge 0 problema gramatical pelo qual o apego parece preceder 0 sujeito que “teria” esse apego. No entanto, parece crucial suspendermos os requisitos gramaticais usuais ¢ considerarmos uma inversdo de termos na qual certos apegos precedem e condicionam a formagao dos sujeitos (a visualizagdo da libido no estégio do espelho, a sustentagao ao longo do tempo dessa imagem projetada como fungio discursiva do nome). Seria essa, entdo, uma ontologia da libido ou do investimento que é, em certo sentido, ao sujeito e separdvel dele, ou seré que, desde o inicio, todo investimento desse tipo esté vinculado a uma reflexividade que se estabiliza (dentro do imagindrio) como o Eu? Se o Eu & composto de identificagdes, ¢ a identificagdo é a resolugiio do desejo, entio o Eu € 0 residuo do desejo, 0 efeito de incorporagdes que, como argumenta Freud em O Ewe o Isso, descrevem uma linhagem de apego e perda. Na opiniao de Freud, a formagao da consciéncia pée em ato um apego 4 proibigdio que funda o sujeito em sua reflexividade. Sob a pressdo da lei Gtica, surge um sujeito capaz de reflexividade, isto é& que toma a s mesmo como objeto e, desse modo, equivoca-se consigo mesmo, uma ver, que, em virtude dessa proibigdo fundadora, o sujeito se encontra a uma distancia infinita de sua origem. O sujeito s6 surge sob a condigdo de uma separagdo imposta pela proibigdo, ¢ se forma mediante 0 apego a proibigdo (em obediéncia a ela, mas também erotizando-a). E ess proibico é ainda mais agradavel precisamente por estar associada ao circuito narcisico que evita que o sujeito se dissolva na psicose.57 Para Foucault, 0 sujeito é formado e s6 depois investido de sexualidade por um regime de poder. No entanto, se 0 proprio processo de formasao do sujeito exige uma apropriagdo antecipada da sexualidade, uma proibi alvo do desejo, entio o sujeito se forma através da proibigao da sexualidade, uma proibigdo que, ao mesmo tempo, forma essa sexualidade € 0 sujeito que a assume. Essa visio de que a psican supde a exterioridade da lei em relagdo ao desejo, pois sustenta que na desejo que profbe. Na verdade, a proibi de preservagdo, um modo de erotizar a lei que deveria abolir 0 erotismo, (0 fundadora que profbe determinado desejo mas se toma ai de encontro a ideia foucaultiana desejo sem a lei que forma ¢ sustenta 0 mesmo jo se torna uma forma estranha mas que s6 funciona incitando a erotizagao. Nesse sentido, a “identidade sexual” ¢ uma produtiva contradigo em termos, pois a identidade se forma gragas A proibigao de alguma dimensao da prdpria sexualidade que a identidade assume, ¢ a sexualidade, quando ligada A identidade, est sempre, de algum modo, solapando a si prépria. Nao se trata necessariamente de uma contradigdo estitica, pois os significantes da identidade nao sio estruturalmente determinados de antemao. Se Foucault argumentou que um signo pode ser absorvido usado para fins contrérios Aqueles para os quais foi projetado, ¢ porque entendeu que até os termos mais nocivos poderiam ser apropriados, que as interpelagdes mais prejudiciais também poderiam ser o lugar da reocupagao e da ressignificagdo radicais. Mas 0 que nos permite ocupar 0 lugar discursivo da injiiria? Como somos encorajados e mobilizados por esse lugar discursivo e sua injuiria, de modo que nosso préprio apego a ele se torna a condigdo para que o ressignifiquemos? Se sou chamada por um nome injurioso, entro em meu ser social, ¢ como tenho algum apego inevitével & minha existéncia, como certo narcisismo se apodera de qualquer termo que confira existéncia, eu sou levada a aceitar os termos que me causam injiria porque eles me constituem socialmente. A trajetéria autocolonizadora de certas formas de politica identitéria ¢ sintomatica dessa aceitagao paradoxal do termo injurioso. Como paradoxo adicional, entdo, ¢ somente por ocupar esse termo injurioso, e ser ocupada por ele, que posso resistir e me opor a ele, reformulando o poder que me constitui como o poder a0 qual me oponho. Dessa forma, a psicandlise tem um lugar garantido para si mesma, uma vez que qualquer mobilizagao contra a sujeigdo tomar esta como seu recurso, ¢ uma vez que 0 apego a uma interpelagao injuriosa, por meio de um narcisismo necessariamente alienado, tornar-se-é a condigéo de possibilidade para que essa interpelagdo seja ressignificada, Isso nao representa um inconsciente fora do poder, mas sim algo como o inconsciente do poder em si, em sua iterabilidade traumatica e produtiva Portanto, se concluirmos que certos tipos de interpelagdo conferem identidade, essas interpelagdes injuriosas constituirdo a identidade por intermédio da injiria. Isso no quer dizer que a identidade tenha de permanecer eternamente enraizada em sua injiria para que seja uma identidade, mas indica que as possibilidades de ressignificagdo vio reformular e abalar o apego apaixonado a submissio sem o qual a formagdo — e a reformagao — do sujeito é impossivel. 35 Fste ensaio foi publicado anteriormente em RAICHMAN, John (Org). The Question of Identity, Nova York: Routledge, 1995, {36 Na discussiio que proponho a seguir, tomo algumas ideias do primeiro capitulo do meu Bodies That Matter ¢ as amplio. Ver BUTLER, Judith. Bodies That Matter: On the Discursive Limits of Sex”, Nova York: Routledge, 1993, p. 33-36. 31, Ver BARTKY, Sandra. Femininity and Domination. Nova York: Routledge, 1990. 38 FOUCAULT, Michel. Discipline and Punish: The Birth of the Prison, Nova York: Pantheon, 1977, p. 203; Surveiller et punir: naissance de la prison, Paris: Gallimard, 1975, p. 202. [Edigio brasileira: Vigiar © punir: nascimento da pris. Tradugio de Raquel Ramalhete, 20, ed Petrépolis: Vores, 1987, p. 168.] Doravante citado no texto como Vigiar ¢ punir, com a paginas referindo-se a edig&o brasileira 39. importante distinguir entre a nogio de psique, que inclui a nogdo de inconsciente, e a nose de sujeito, cuja formasdo € condicionada pela exclusdo do inconsciente 40 Para uma discussdo extensa e riea sobre funcionamento das normas na subjetivagio, e, em particular, sobre como devemos entender as normas como agdes transitivas, ver MACHERE’ Pierre. Towards a Natural History of Norms. In: ARMSTRONG, Timothy I. (Org.). Michel Foucauli/Philosopher, Tradugio para o inglés de Timothy J. Armstrong. Nova York: Routledge, 1992, p. 176-191, No mesmo volume, para uma discussio sobre os eseritos de Foucault que se referem indiretamente a Lacan, ver MILLER, Jacques-Alain. Michel Foucault and Psychoanalysis, p. 58-63. Sobre o problema da relagio dindmica entre as exigncias éticas e a subjetividade a que se destinam, ver a discussio comparativa e muito itil sobre Foucault e Lacan em RAICHMAN, John. Truth and Eros: Foucault, Lacan, and the Question of Ethics. Nova York: Routledge, 1991 41 Nio estou sugerindo que a psicanslise seja representada apenas por essas duas figuras, mas, nesta andlise, serd 42 FOUCAULT, Michel. The History of Sexuality, Volume I: An Introduction, Tradugio para 0 inglés de Robert Hurley. Nova York: Vintage, 1978, p. 152; Histoire de la sexualté 1: volonté de savoir. Paris: Gallimard, 1978, p. 200. [Edigdo brasileira: Histdria da sexualidade I: a vontade de saber. Tradugdo de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999, p. 146,] Doravante citado no texto como Histéria da sexualidade 1, com @ paginagdo referindo-se & edigdo brasileira. 43 Essa questo & proposta de uma maneira diferente por Charles Taylor quando ele pergunta se hi lum lugar para a “interioridade” agostiniana em Foucault; ver o seu “Foucault on Freedom and Truth”, em HOY, David Couzens (Ong.). Foucault: A Critical Reader. Nova York: Blackwell, 1986, p. 99, Ela também € colocada de maneira interessante por William Connolly em The Augustinian Imperative. Newbury Park, CA: Sage Press, 1993. 44 Ver 0 meu “Foucault and the Paradox of Bodily Inscriptions”, Journal of Philosophy, v. 86, n 11, p. 257-279, Nov. 1989. 45 Ver as discussdes sobre o Eu corporal em FREUD, Sigmund. The Ego and the Id. In: The ‘Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud. TradugSo para o inglés de James Strachey. Londres: Hogarth, 1953-1974, v. 19, p. 26. [Ediso brasileira: © Eu e o Id, In: Oewe 0 Id, “Autobiografia” e outros textos (1923-1925). Tradugao de Paulo César de Souza. Sf0 Paulo: Companhia das Letras, 2011. (Obras Completas, v. 16),] Ver também WHITFORD, Margaret. Luce Irigaray: Philsophy in the Feminine. Londres: Routledge, 1991, p. 53-74, 46 Para uma explicagio mais completa de como Foucault reelabora as idelas de Aristételes, ver odies that Matter” em meu Bodies that Matter, p. 32-36 47.°O que estava em jogo nfo era o quadro rude demais ou ascético demais, rudimentar demais ou aperfeigoado demais da prislo, era sua materialidade na medida em que ele é instrumento ¢ vetor de poder” (FOUCAULT, Figiar e punir, p. 29). 48 Ver FOUCAULT, Michel. Nietzsche, Genealogy, History. In: RABINOW, Paul. The Foucault Reader. Nova York: Pantheon, 1984, [Faligéo brasileira: Nietzsche, a genealogia, a histéria, In: Ditos e escritos II, Tradusio de Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitaria, 2008, p. 260-281] 49 Ver PATHAK, Zakia; RAIAN, Rajeswari Sunder, Shahbano, In: BUTLER, Judith; SCOTT, Joan (Org). Feminists Theorize the Political. Nova York: Routledge, 1992, p. 257-279, 50 ALTHUSSER, Louis. Ideology and Ideological State Apparatuses (Notes Towards an Investigation). In: Lenin and Philosophy and Other Essays. Tradugio para o inglés de Ben Brewster. Nova York: Monthly Review Press, 1971, p. 170-177, [Edigio brasileira: Ieologia © Aparelhos Ideolégicos de Estado (notas para uma investigaslo). In: ZIZEK, Slavoj (Org). Um mapa da ideologia, Tradusio de Vera Ribeiro, Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, p. 105-142.) 5 Um excelente livro que se apropria dessa problematica de Althusser © a leva para o feminismo & RILEY, Denise, “Am I That Name?”: Feminism and the Category of ‘Women’ in History Minneapolis: University of Minnesota Press, 1988, 52 Sobre a interpelagio social do nome proprio, ver ZIZEK, Slavoj. The Sublime Object of Ideology, Londres: Verso, 1989, p, 87-102. 53 ROSE, Jacqueline, Sexuality in the Field of Vision. Londres: Verso, 1987, p. 90-91 54 FOUCAULT. Histéria da sexuatidade 1, p. 91. ‘OUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul Org.) Foucault, uma trajetéria filoséfica. Tradugio de Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense Universitiria, 1995, p. 239. Para uma adverténcia psicanalitica contra “colapsar” o psiquico o social, ver o preficio de GURGIN, Victor; DONALD, James; KAPLAN, Cora (Org.). Formations of Fantasy. Londres: Methuen, 1986, Nessa discussio, os termos “apego” e “investimento” devem ser entendidos como intencionais ro sentido fenomenolégico, isto é, como movimentos ou trajetérias libidinais que sempre tomam uum objeto, Nao existe apego que se inicie desvinculado e tome posteriormente um objeto; em vez disso, o apego é sempre apego a um objeto, sendo na medida em que aquilo a que se apega altera 0 proprio apego. A transferibilidade do apego pressupse que 0 abjeto ao qual se estabelece 0 apego pode mudar, mas que o apego persistira e sempre tomaré algum objeto, e também que esse ato de ‘vinculagdo (sempre ligado a um tipo de afastamento) & a agZo constitutiva do apego. Hssa nogio de apego & semelhante a certos esforgos de explicar as pulses em termos nfo biolégicos (para distinguielos dos esforgos que levam a sério o biol6gico). Aqui poderiamos recorrer interpretagd0 de Gilles Deleuze a respeito das pulsGes em Masochism: An Interpretation of Coldness and Cruelty (Nova York: Braziller, 1971; Présentation de Sacher-Masoch (Paris: Minuit, 1967)), em que ele sugere que as pulsdes podem ser entendidas como a pulsionalidade da postulao ou da valoragio, Ver também as discusses recentes de Jean Laplanche nas quais “a pulsio” se toma indissocidvel de sua articulagio cultural: “acreditamos ser necessario conceber um duplo estigio expositive: de um lado, estégio preliminar de um organismo vinculado @ homeostase © preservacio de si, e, de outro, o estigio do mundo cultural adulto em que o infante esté imediata e completamente imerso” (FLETCHER, John; STANTON, Martin (Ong). Jean Laplanche: Seduction, Translation, Drives. Londres: Institute of Contemporary Arts, 1992, p. 187)

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