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Introdugao Captar a instdncia material da sujeigao enquanto constitui¢do dos sujeitos. Michel Foucault, “Soberania e disciplina” A cisdo do sujeito, dentro da qual o si-mesmo tal como presente para si é apenas um momento, e a reflexividade carregada desse momento, é 0 ponto de apoio, dentro do sujeito, de sua sujeigéo. A culpa intensa e corpérea da qual o sujeito se investe como insinuagao febril dessa autoconsciéncia, que acaba por saber tao pouco de si mesma, é decisiva para garantir 0 controle interno profundo que chamamos de interpelagao. Francis Barker, The Tremulous Private Body: Essays on Subjection Sujeigao... Ato ou efeito de estar sujeito, como aum monarca ou soberano, ou a um poder superior; dai gen. subordinagao. [...] Condigdo de estar sujeito ou exposto a; de responder perante a; responsabilidade legal [...] Logica. Ato de fornecer um sujeito a um predicado. Oxford English Dictionary Como forma de poder, a sujeigo é paradoxal. Uma das formas familiares ¢ angustiantes como se manifesta 0 poder esté no fato de sermos dominados por um poder externo a nés. Descobrir, no entanto, que o que “nds” somos, que nossa propria formagao como sujeitos, de algum modo depende desse mesmo poder € outro fato bem diferente. Estamos. acostumados a pensar no poder como algo que pressiona o sujeito de fora, que subordina, submete e relega a uma ordem inferior, Essa é certamente uma descrigdo justa de parte do que faz o poder. Mas, consoante Foucault, se entendemos o poder também como algo que forma o sujeito, que determina a propria condi de sua existéncia e a trajetéria de seu desejo, 0 poder ndo ¢ apenas aquilo a que nos opomos, mas também, e de modo bem marcado, aquilo de que dependemos para existir © que abrigamos ¢ preservamos nos seres que somos. O modelo habitual para entender esse processo ¢ este: o poder se impde sobre nds; enfraquecidos pela sua forga, nds interiorizamos ou aceitamos seus termos. O que essa deserigao nao diz, no entanto, é que “nds” que aceitamos tais termos somos fundamentalmente dependentes deles para “nossa” existéncia. Nao existem condigdes discursivas para a articulagdo de um “nds” qualquer? A sujeigdo consiste precisamente nessa dependéncia fundamental de um discurso que nunca escolhemos, mas que, paradoxalmente, inicia ¢ sustenta nossa ago. “Sujeigdo” significa tanto o processo de se tornar subordinado pelo poder quanto o processo de se tornar um sujeito. Seja pela interpelagdo, no sentido de Althusser, seja pela produtividade discursiva, no sentido de Foucault, o sujeito € iniciado através de uma submissao priméria ao poder. Embora Foucault identifique uma ambivaléncia nessa formulagdo, ele nao entra em detalhes sobre os mecanismos especificos de como 0 sujeito se forma na submissao. A teoria de Foucault quase deixa passar em branco todo o campo da psique, mas néo s6 isso: 0 poder, nessa dupla valéncia de subordinagao e produgdo, também nao ¢ explorado. Portanto, se a submisséo é uma condic&o da sujeigao, faz sentido perguntar: qual ¢ a forma psiquica que o poder adota? Tal projeto requer que a teoria do poder seja pensada junto de uma teoria da psique, tarefa evitada por escritores tanto da ortodoxia foucaultiana quanto da ortodoxia psicanalitica. Embora no oferega a promessa de uma grande sintese, a presente investigago busca explorar as _ perspectivas provis6rias a partir das quais uma teoria ilumina a outra. O projeto néo comega nem termina com Freud e Foucault; a questio da sujeig&o, de como o sujeito se forma na subordinagdo, ser tratada na sega sobre a Fenomenologia do Espirito, de Hegel, que descreve a abordagem do escravo a liberdade e sua decepcionante queda na “consciéncia infeliz”. O senhor, que a princfpio parece ser “externo” ao escravo, ressurge como a propria consciéncia do escravo. A infelicidade da consciéncia que surge é sua propria autocensura, o efeito da transmutagao do mestre em uma realidade psiquica. As automortificagées que buscam aliviar a persistente corporeidade da autoconsciéncia instituem a ma consciéncia. Essa figura da consciéncia voltada sobre si mesma prefigura o relato de Nietzsche, em Genealogia da moral, ndo s6 de como a repressao e a regulagéio formam os fenémenos sobrepostos de consciéncia e ma consciéncia, mas também de como esses fendmenos se tornam essenciais para a formagao, a permanéncia e a continuidade do sujeito. cada caso, 0 poder que a principio aparece como externo, imposto ao sujeito, que o pressiona 4 subordinagao, assume uma forma psiquica que constitui a identidade pessoal do sujeito. A figura assumida por esse poder é€ marcada inexoravelmente pela imagem de retorno, de uma volta sobre si mesma ou até contra si mesma. Essa figura se dé como parte da explicagdo de como se produz o sujeito, por isso néo ha sujeito, em sentido estrito, que faga essa volta. Pelo contrario, essa volta parece funcionar como inauguragao topoldgica do sujeito, um momento fundador cujo status ontolégico se mantém permanentemente incerto. Desse modo, parece dificil, talvez até impossivel, incorporar essa ideia na explicagao da formagao do sujeito. A quem ou a que se atribui essa volta, e qual é seu objeto? Como é possivel um sujeito ser forjado a partir de uma forma de torgao ontologicamente vaga? Com a insergaio dessa figura, talvez nosso interesse nao seja mais “dar um relato da formagio do sujeito”. Em vez disso, estamos diante da suposigao tropoldgica feita por qualquer explicagio desse tipo — uma suposigao explicativa, mas que também delimita a explicagaio. Parece que entramos nesse dilema tropolégico no momento em que buscamos descobrir como o poder produz seu sujeito, como sujeito recebe o poder pelo qual é inaugurado. Nao podemos pressupor um sujeito capaz de internalizagio sem que a formagio do sujeito seja explicada. A figura a que nos referimos ainda ndo adquiriu existéncia e nao faz parte de uma explicagao verificavel; nos referéncia, contudo, continua fazendo certo sentido. O paradoxo da sujeigéio implica 0 paradoxo da referencialidade: isto é que devemos nos referir ao que ainda nao existe. Procuramos explicar o vir a ser do sujeito usando uma figura que marca a suspensdo de nossos compromissos ontolégicos. Que essa figura seja em si uma “volta” é, em termos retéricos, performativamente espetacular: “volta” traduz 0 sentido grego de “tropo”. Desse modo, 0 tropo da volta tanto indica quanto exemplifica a condigao tropolégica do gesto.l A sujcigdo inaugura a tropologia de alguma maneira, ou nés evocamos necessariamente o trabalho inaugurador dos tropos quando tentamos explicar a geragdo do sujeito? Voltaremos a esse ponto mais no fim da investigagao, quando considerarmos como a explicagao da melancolia participa do mecanismo que descreve, produzindo topografias psiquicas que so claramente tropolégicas. A cena de “interpelagao” oferecida por Althusser é um exemplo desse esforgo quase ficticio para relatar como o sujeito social é produzido através de meios linguisticos. A doutrina da interpelagdo, no pensamento de Althusser, prepara © terreno para as ideias posteriores de Foucault a respeito da “produgao discursiva do sujeito”. Foucault, é claro, insiste que © sujeito néo ganha existéncia por ser “dito”, e que as matrizes de poder e discurso que constituem 0 sujeito nao sao singulares nem soberanas em sua ago produtiva. No entanto, Althusser e Foucault concordam que existe uma subordinagao fundadora no processo de assujettissement. No ensaio “Tdeologia ¢ aparelhos ideoldgicos de Estado”, de Althusser, a subordinagao do sujeito acontece pela linguagem como efeito de uma voz de autoridade que chama o individuo. No exemplo infame oferecido por Althusser, um policial chama um transeunte na rua, ao que este se vira e se reconhece como aquele que é chamado. A interpelagdo — a produgdo discursiva do sujeito social — acontece nessa troca pela qual o reconhecimento € oferecido e aceito. E importante destacar que Althusser nao diz nada que explique por que o individuo se vira, aceitando a voz que o interpela e a subordinagdo e a 2 ssa voz impée. Por que 0 sujeito s para a voz. da lei, e qual € 0 efeito dessa volta na inauguragdo do sujeito social? Esse sujeito se sente culpado, e, se sim, de onde vem sua culpa? A teoria da interpelag&o exige uma teoria da consciéncia? volta A interpelagao do sujeito através do chamado inaugurador feito pela autoridade estatal pressupde nao sé que a consciéneia j4 tenha sido inculcada, mas também que a consciéncia, entendida como a operagdo psiquica de uma norma reguladora, constitui um trabalho especificamente psiquico e social de poder do qual a interpelagao depende, mas que nao consegue explicar. Além disso, o modelo de poder na descrig&io de Althusser atribui poder performative 4 voz de autoridade, & voz da sangao, e, desse modo, a uma nogao de linguagem entendida como discurso. Como podemos explicar © poder do discurso escrito, ou do discurso burocratico, que circula sem voz ou assinatura? Por fim, a concepgao de Althusser, por mais util que seja, continua implicitamente limitada pela nog&o de um aparelho de Estado centralizado, modelado na autoridade divina e cuja palavra é ato. Foucault desenvolve sua nogio de discurso em parte para refutar 0 modelo soberano do discurso interpelativo em teorias como a de Althusser, mas também para ter em conta a eficacia do discurso em outras instanciagdes que ndo sejam a palavra falada. Apegos apaixonados A insisténcia em que sujeito tem um apego apaixonado por sua propria subordinago tem sido evocada cinicamente por quem tenta desacreditar as reivindicagdes dos subordinados. A ideia ¢ que se for possivel mostrar que 0 sujeito leva adiante ou sustenta sua condigao de subordinado, talvez, a responsabilidade final dessa subordinagao seja do proprio sujeito. Em oposigao a essa ideia, eu diria que o apego a sujeig&io € gerado pelo poder, e parte dessa operagio do poder se esclarece nesse efeito psiquico, uma de suas produgées mais insidiosas. $e, num sentido nietzschiano, o sujeito ¢ formado por uma vontade que se volta sobre si e assume uma forma reflexiva, entdo 0 sujeito ¢ a modalidade de poder que se volta sobre si; 0 sujeito é 0 efeito do poder em recuo. os O sujeito que ¢ ao mesmo tempo formado e subordinado ja esta implicado na cena da psicandlise. A subordinagao reinterpretada por Foucault como algo que se impée ao sujeito e também o forma, ou seja, que se impée ao sujeito j4 em sua formagaio, sugere uma ambivaléncia no Ambito em que o sujeito surge. Se o efeito da autonomia é condicionado pela subordinagao, e se essa subordinagdo (ou dependéncia) fundadora € rigorosamente reprimida, o sujeito surge em conjungao com o inconsciente. A postulagao foucaultiana da sujeigao como subordinagao ¢ formagao simulténea do sujeito assume um valor psicanalitico especifico quando consideramos que nenhum sujeito surge sem um apego apaixonado aqueles de quem ele depende fundamentalmente (mesmo que essa paixio seja “negativa” no sentido psicanalitico). Embora a dependéncia da crianga nao seja uma subordinagao politica de forma nenhuma, a formagdo da paixdo primaria na dependéncia torna a crianga vulneravel & subordinagao e 4 exploragao, um assunto que tem preocupado © discurso politico recente. Além disso, essa situagdo de dependéncia priméria condiciona a formagao politica ¢ a regulagao dos sujeitos ¢ se torna o meio de sua sujeigao. Se o sujeito jamais se forma sem o apego apaixonado a quem o subordina, significa que a subordinagao é fundamental para o vir a ser do sujeito.2 Como condigao do vir a ser do sujeito, a subordinagao implica uma submissao obrigatoria, Além disso, © desejo de sobrevivéncia, o desejo de “ser”, é um desejo amplamente exploravel. Aquele que mantém a promessa de existéncia continua explora 0 desejo de sobrevivéncia. “Eu prefiro existir na subordinagio do que nao existir” é uma das formulas dessa situagiio (em que o risco de “morte” também é possivel). E esse é um dos motivos que explicam a tendéncia das discussdes sobre a realidade do abuso sexual de criangas a distorcer 0 carater da exploragaio. Nao se trata apenas da imposigao unilateral de uma sexualidade por parte do adulto, ou da fantasia unilateral de uma sexualidade por parte da crianga, mas sim da exploragio do amor da crianga, um amor necessario para sua existéncia, e do abuso de um vinculo apaixonado. Consideremos que 0 sujeito nao seja apenas formado na subordinagao, mas também que a subordinagao fornega a condigao de possibilidade continua do sujeito. O amor de uma crianga é anterior ao julgamento e a deciso; quando a crianga é cuidada e nutrida de uma forma “boa o suficiente”, 0 amor acontece primeiro; s6 depois é que ela teré a chance de discernir entre os que ela ama. Em outras palavras, nao é que a crianga ame cegamente (pois, desde muito cedo, ja existe algum tipo importante de discernimento e “conhecimento”), mas sim que, para a crianga persistir, no sentido psiquico e social, é preciso haver a dependéncia e a formagao do apego: nao existe a possibilidade de ndo amar quando o amor esta vinculado aos requisitos da vida. A crianga nao sabe ao que se apega; contudo, tanto o infante quanto a crianga precisam se apegar para persistir por si e como si mesmos.3 O sujeito néo surge sem essa ligagdo, que se forma na dependéncia, mas também nunca lhe € possivel, no decorrer de sua formagao, “enxergar” totalmente esse elo. Para que o sujeito surja, esse apego, em suas formas primarias, deve tanto vir a ser quanto ser negado, seu devir deve consistir em sua negagao parcial. Isso explica em parte o sentimento de humilhago do adulto ao se ver diante dos primeiros objetos do amor — pais, guardides, irmaos, etc. -, 0 sentimento de indignagao tardia em que se afirma: “Eu possivelmente nao amaria uma pessoa assim”. A declarago admite a possibilidade que ela mesma nega, estabelecendo que 0 “eu” se baseia nessa forclusio e se alicerga nessa impossibilidade firmemente imaginada que o fundamenta. O “eu”, desse modo, é fundamentalmente ameagado pelo espectro do reaparecimento desse amor (impossivel) e permanece — condenado reencenar inconscientemente esse amor, revivendo e deslocando repetidas vezes esse escandalo, essa _impossibilidade, orquestrando essa ameaga ao seu proprio senso de “eu”. “Ew” no poderia ser quem sou se tivesse de amar do jeito que aparentemente amei, e para continuar sendo eu mesma, devo seguir negando esse amor ao mesmo tempo que reenceno inconscientemente na vida de agora, tendo como consequéncia © softimento mais terrivel.” A repetigdo traumética do que foi forcluido da vida de agora ameaga o “eu”. E através dessa repeti¢do neurética que o sujeito busca sua propria dissolugao, seu proprio deslindamento, uma busca que assinala uma ago — nao a ago do sujeito, mas sim do desejo que visa a dissolugdio desse sujeito. Este, por sua vez, representa uma barreira para o desejo. Se 0 sujeito é produzido por meio dessa forclusao, ele produzido por uma condigao da qual, por definigao, ele se separa e se diferencia. O desejo visa ao deslindamento do sujeito, mas é tolhido justamente pelo sujeito em cujo nome ele opera. A vexagdo do desejo, que prova ser crucial para a sujeigao, indica que, para persistir, 0 sujeito deve tolher seu proprio desejo. E para que o desejo triunfe, o sujeito deve ser ameagado de dissolugio. Nesse modelo, 0 sujeito voltado contra si mesmo (seu desejo) parece ser a condigao de sua persisténcia. Desejar as condigdes da propria subordinagao é, portanto, necessério para persistir como si mesmo. O que significa assumir a forma de poder — regulagdo, proibigdo, supressdo — que ameaca nos dissolver precisamente na nossa tentativa de persistir na propria existéncia? Nao ¢ que exigimos o reconhecimento do outro, e que uma forma de reconhecimento nos é conferida através da subordinagio, mas sim que dependemos do poder para nossa propria formagdo, que essa formagdio ¢ impossivel sem a dependéncia e que a postura do sujeito adulto consiste precisamente na negagio e na reencenago dessa dependéncia. O “eu” surge com a condigao de negar sua formagéo na dependéncia, de negar as condigdes de sua propria possibilidade. O “eu”, no entanto, é ameacado de disrupgao precisamente por essa negagdo, pela busca inconsciente de sua propria dissolugdo através de repetigses neuréticas que remontam os cenérios primarios que ele se recusa a ver, mas que também nao pode ver caso queira significa, é claro, que, tendo como base 0 que se recusa a saber, o “eu” esta separado de sie continuar sendo ele mesmo. Isso. jamais pode se tornar ou permanecer totalmente si mesmo. Ambivaléncia A ideia de sujeito tem motivado controvérsias em discussées tedricas recentes, nas quais é promovida por alguns como precondigao necesséria da agao e criticada por outros como sinal de “controle” a ser recusado. Meu objetivo nao é listar nem resolver as instancias contemporaneas desse debate. Em vez disso, proponho ter em conta de que modo um paradoxo estrutura a discussdo de forma recorrente, levando-a quase sempre a culminar em demonstragées de ambivaléncia. Como € possivel que 0 sujeito, tido como condigéio e instrumento da ag&o, seja ao mesmo tempo o efeito da subordinagao, entendido como privagéo da agio? Se a subordinagao é a condigao de possibilidade da agdo, como podemos pensar a ago contraposta as forgas da subordinagao? “O sujeito” costuma ser interpretado por ai como se fosse intercambiavel com “a pessoa” ou “o individuo”. A genealogia do sujeito como categoria critica, no entanto, sugere que 0 sujeito, em vez de ser identificado estritamente com o individuo, deveria ser descrito como categoria linguistica, um lugar-tenente, uma estrutura em formagdo. Os individuos passam a ocupar o lugar do sujeito (0 sujeito surge simultaneamente como um “lugar”) ¢ desfrutam de inteligibilidade somente se, por assim dizer, estabelecerem-se primeiro na linguagem. O sujeito ¢ a ocasiao linguistica para 0 individuo atingir ¢ reproduzir a inteligibilidade, a condigéo linguistica de sua existéncia ¢ ago. Nenhum individuo se torna sujeito sem antes se tornar subjetivado ou passar por “subjetivagao” (tradugaio do assujettissement francés). Nao faz sentido tratar “o individuo” como termo inteligivel quando se diz que os individuos adquirem sua inteligibilidade se tornando sujeitos. Paradoxalmente, néio pode haver nenhuma referéncia inteligivel aos individuos ou ao seu devir sem uma referéncia prévia A sua condig&io de sujeitos. A histéria pela qual se explica a sujeigio é inevitavelmente circular ¢ upde 0 mesmo sujeito que ela busca expli ir. Por um pres lado, 0 sujeito sé pode se referir & sua propria génese assumindo uma perspectiva de terceira pessoa sobre si mesmo, isto é, despossuindo sua prépria perspectiva no ato de narrar sua génese. Por outro lado, a narragdo de como o sujcito ¢ constituido pressupée que a constituigao ja tenha acontecido, ¢ por isso ocorre depois do fato. O sujeito se perde para contar a histéria de si mesmo, mas ao contar a historia de si mesmo procura relatar o que a fungaio narrativa j4 deixou claro. Desse modo, o que significa dizer que 0 sujeito, defendido por alguns como pressuposi¢do da a¢do, também ¢ entendido como efeito da sujeicéo? Tal formulagdo sugere que, no ato de se opor a subordinagdo, 0 sujeito reitera sua sujeigéo (ideia compartilhada tanto pela psicandlise quanto pelos relatos foucaultianos). De que modo, entéo, devemos pensar a sujeigdo e como ela pode se tornar um lugar de alteragdo? Como poder exercido sobre 0 sujeito, a sujeigao, nao obstante, é um poder assumido pelo sujeito, uma suposigao que constitui © instrumento do vir a ser desse sujeito. Sujei¢’o/subordinagio O duplo aspecto da sujeigdo parece levar a um circulo vicioso: a ago do sujeito parece ser efeito de sua subordinagao. Qualquer esforgo para se opor a essa subordinagao necessariamente a pressupée e a reinvoca. Felizmente, a historia sobrevive a esse impasse. O que significa para a ago de um sujeito pressupor sua propria subordinagdo? O ato de pressupor & igual ao ato de restabelecer, ou existe uma descontinuidade entre o poder pressuposto e o poder restabelecido? Considere que no ato pelo qual o sujeito reproduz as condigées de sua prépria subordinagao, © sujeito exemplifica uma vulnerabilidade temporaria que pertence a essas condigées, especificamente as exigéncias de sua renovagdo. O poder considerado como condigdo do sujeito nao é necessariamente 0 mesmo poder que se diz ser exercido pelo sujeito. O poder que inicia o sujeito perde a continuidade com o poder que € a agdo do sujeito. Uma inversio significativa e potencialmente facilitadora ocorre quando o status do poder passa de condig&o da ago para a “propria” agdo do sujeito (constituindo uma aparénci do poder em que o sujeito aparece como condigéio de seu “proprio” poder). Como podemos avaliar essa transformagao? Trata-se de uma ruptura facilitadora ou ruim? Como € possivel que © poder do qual o sujeito depende para existir e que 0 sujeito ¢ obrigado a reiterar se volte contra si mesmo no decorrer dessa reiterago? Como podemos pensar a resisténcia nos termos da reiteragao? Tal perspectiva sugere que a agdo nao pode ser derivada logicamente de suas condigdes, que nao se deve assumir nenhuma continuidade entre (a) 0 que torna o poder possivel ¢ (b) os tipos de possibilidade que o poder assume. Se, ao agir, 0 sujeito retém as condigdes de seu surgimento, isso nao significa que toda sua ago continue presa a essas condigdes nem que elas sejam as mesmas em todas as agdes. Assumir 0 poder ndo consiste na ficil tarefa de retird-lo de um lugar, transferi-lo intacto ¢ imediatamente se apropriar dele; o ato de apropriagdo pode envolver uma alteragdo do poder, de modo que 0 poder assumido ou apropriado atue contra o poder que Ihe possibilitou ser assumido. Na medida em que as condigdes de subordinagao tornam possivel a assungaio do poder, o poder assumido permanece ligado a essas condigées, mas de forma ambivalente; com efeito, 0 poder assumido deve conservar essa subordinagdo e€ ao mesmo tempo se opor a ela. Nao devemos pensar essa concluso como (a) uma resisténcia que na verdade € uma recuperaco do poder, ou (b) uma recuperagio que na verdade é uma resisténcia. Ela é as duas coisas ao mesmo tempo, ¢ essa ambivaléncia forma o vinculo da ago. De acordo com o raciocinio de que a sujeigao é tanto a subordinagao quanto o devir do sujeito, 0 poder é, como subordinagao, um conjunto de condigdes que precedem o sujeito, que 0 efetuam e 0 subordinam desde o principio. Essa formulagdo vacila, no entanto, quando consideramos que n&o ha sujeito anterior a essa efetivagao. O poder nao s6 age sobre 0 sujeito como também, em sentido transitive, pde em ato o sujeito, conferindo-lhe existéncia.6 Como condigao, 0 poder precede 0 sujeito. No entanto, o poder perde sua aparéncia de prioridade quando é exercido pelo sujeito, uma situagao que da origem perspectiva inversa de que o poder é efeito do sujeito, de que ¢ algo que os sujeitos efetuam. Uma condigao nao pode possibilitar ou converter em ato sem que esteja presente. Como o poder nao existe intacto antes do sujeito, a aparéncia de sua prioridade desaparece conforme ele age sobre © sujeito ¢ © sujeito ¢ inaugurado (¢ derivado) mediante essa inversio temporal no horizonte do poder, Como agao do sujeito, 0 poder assume sua atual dimensio temporal.Z O poder age sobre o sujeito pelo menos de duas maneiras: primeiro, como 0 que torna o sujeito possivel, como condigao de sua possibilidade e ocasiao formativa; segundo, como 0 que & retomado e reiterado no “prdprio” agir do sujeito. Como sujeito ao poder (que pertence a ele) e sujeito de poder (que 0 exerce), 0 sujeito ofusca as condigdes de seu préprio surgimento; ele ofusca o poder com poder. As condigdes niio s6 possibilitam © sujeito, mas também entram na sua formaciio. Elas se fazem presentes nos atos dessa formagio e nos atos decorrentes do sujeito. ‘A nogo de poder presente na sujeigao, portanto, afigura-se em duas modalidades temporais incomensuraveis: primeiro, como algo que é sempre anterior ao sujeito, fora dele mesmo e operante desde 0 inicio; segundo, como 0 efeito desejado do sujeito. Essa segunda modalidade contém pelo menos dois conjuntos de significados: como efeito desejado do sujeito, a sujeigo & uma subordinagao que o sujeito provoca sobre si mesmo; no entanto, se a submissio produz o sujeito e o sujeito & a precondigdo da ago, entio a sujeigao ¢ 0 motivo de o sujeito se tornar garantidor de sua propria resisténcia e oposi¢aio. Quer 0 poder seja concebido como anterior ao sujeito ou como seu efeito instrumental, a vacilagaio entre as duas modalidades temporais do poder (“anterior” e “posterior” a0 sujeito) tem marcado a maioria dos debates sobre o sujeito e © problema da agdo. Muitas discussdes sobre 0 assunto acabam presas na tentativa de definir se 0 sujeito é a condigao ou o impasse da agiio. Na verdade, os dois dilemas levam muitos a considerar a questo do sujeito como uma pedra de tropeco inevitvel na teoria social. Parte dessa dificuldade, acredito, é 0 sujeito ser em si o lugar dessa ambivaléncia, o lugar em que ele surge tanto como efeito de um poder anterior quanto como condigdo de possibilidade de uma forma de ago radicalmente condicionada. Uma teoria do sujeito deve levar em conta a total ambivaléncia das condigdes de sua operagao. Nao h4 como fazer, por assim dizer, nenhuma transigdo conceitual entre 0 poder como externo ao sujeito, “agindo sobre ele”, ¢ 0 poder como constitutivo do sujeito, “posto em ato por ele”. O que podemos esperar a guisa de transigdo é, na verdade, uma cisdo e uma inversdo do préprio sujeito. O poder age sobre o sujeito, um atuar que também é pér em ato: quando se tenta distinguir entre o poder que (transitivamente) poe em ato o sujeito e 0 poder posto em ato pelo sujeito, ou seja, entre o poder que forma o sujeito ¢ o proprio “poder” do sujeito, surge uma ambiguidade insoltivel. Aqui, 0 que ou quem esta “pondo em ato”? E 0 poder que antecede o sujeito ou o poder do préprio sujeito? Em algum momento, ocorre uma inversdo e um encobrimento, e o poder surge como algo que pertence exclusivamente ao sujeito (o que faz parecer que © sujeito nao pertencia a nenhuma operagdo prévia do poder). Além disso, 0 que o sujeito poe em ato é viabilizado, mas nao terminantemente determinado pelo funcionamento prévio do poder. A agdo excede o poder que a possibilita. Pode-se dizer que os propésitos do poder nem sempre siio os propésitos da agiio. Na medida em que estes diferem daqueles, a agdio supde a assungiio de um propésito nao projetado pelo poder, um propésito que nao poderia ser derivado légica ou historicamente, que opera numa relagdo de contingéncia e inversdio com respeito ao poder que o torna possivel, e ao qual, nao obstante, ele pertence. Essa é, por assim dizer, a cena ambivalente da agio, que nfo esté limitada por nenhuma necessidade teleolégica. O poder € externo ao sujeito e simultaneamente seu ambito de agdo. Essa aparente contradigéo faz sentido quando entendemos que o sujeito ndo nasce sem poder, mas que seu vir a ser envolve uma dissimulagao do poder, uma inverséo metaléptica em que © sujeito produzido pelo poder acaba proclamado como sujeito que funda o poder. Esse carater fundador do sujeito é efeito de uma operagao do poder, um efeito atingido pela inversdo e pelo encobrimento da operagao anterior. Isso ndo significa que 0 sujeito possa ser reduzido ao poder que o ocasiona, tampouco que esse poder seja redutivel ao sujeito. O poder nunca é apenas uma condigao externa ou anterior ao sujeito nem pode ser identificado exclusivamente com 0 sujeito. Para que as condigées do poder persistam, elas devem ser reiteradas; © sujeito é justamente o local de tal reiteraco, uma repetigdo que nunca é meramente mecanica. Na medida em que a aparéncia do poder passa da condigaio do sujeito para seus efeitos, as condigées do poder (anteriores e externas) assumem uma forma presente e futura. Mas o poder assume esse cardter presente ao inverter sua diregdo, uma inversdo que provoca uma ruptura com o que passou e se dissimula como ago que inaugura a si mesma. A reiteragao do poder nio sé temporaliza as condigées de subordinagdo como também mostra que essas condigdes nao sao estruturas estaticas, mas temporalizadas — ativas e produtivas. A temporalizacao realizada pela reiteragdio segue a rota pela qual a aparéncia do poder se desloca e se inverte: a perspectiva do poder muda daquilo que sempre age sobre nés a partir de fora e desde o principio para o que constitui o senso de ago nos nossos atos presentes e a futura extensdo de seus efeitos. Embora este estudo tenha uma relagdo de divida com as ideias de Foucault sobre 0 problema do assujeitissement em seus ensaios “O sujeito eo poder” e “Soberania e disciplina”, bem como com muitas discussdes sobre 0 sujeito do desejo e o sujeito do direito em Histéria da sexualidade (volumes 1 e 2) e Vigiar e punir a formulagio do sujeito em questo ressoa com uma dificuldade cultural e politica maior, a saber: como assumir uma relagdo de oposigéio ao poder que esteja reconhecidamente implicada no proprio poder ao qual nos opomos. Essa visio pés-liberatéria tem levado muitos a concluir que a ago encontra aqui seu impasse. Ou se considera que as formas de dominagio capitalista ou simbél so tais que no: io desde sempre “domesticados” previamente, ou se oferece uma série de insights generalizados e atemporais sobre a estrutura aporética de todos os movimentos em diregao ao futuro. Eu diria que a cumplicidade primaria com a subordinagdo nao leva necessariamente a nenhuma conclusao histérica ou légica, mas deixa algumas possibilidades em aberto. O fato de a ago estar implicada na subordinagao nao é sinal de que existe uma contradigao interna fatal no nucleo do sujeito e, por conseguinte, uma prova adicional de seu carater pernicioso ou obsoleto. Mas tampouco retoma aquela ideia antiga de sujeito, derivada de alguma formulagao liberal-humanista classica, em que sua agdo é sempre e exclusivamente oposta ao poder. A primeira perspectiva caracteriza formas politicamente hipécritas de fatalismo; a segunda, formas ingénuas de otimismo politico. Espero ficar longe das duas alternativas. io atos No entanto, ainda podemos pensar que o sujeito deriva sua ago precisamente do poder ao qual se opée, por mais estranha e desagradavel que essa ideia parega, especialmente para quem acredita que a cumplicidade e a ambivaléncia deveriam ser eliminadas de uma vez por todas. Se o sujeito ndo é totalmente determinado pelo poder, tampouco é totalmente determinante do poder (mas é significativa e parcialmente as duas coisas), isso significa que ele ultrapassa a légica da nao contradigao — & uma excrescéncia da légica, por assim dizer. Afirmar que 0 sujeito ultrapassa essa dicotomia nao é dizer que ele vive em alguma zona livre de sua propria feitura. Exceder nao é escapar, € © sujeito excede precisamente aquilo a que esta vinculado. Nesse sentido, 0 sujeito nao pode suprimir a ambivaléncia que o constitui. Dolorosa, dinamica e promissora, essa vacilagdio entre 0 “ja existente” e o “ainda por vir” é uma encruzilhada que religa cada passo que a atravessa, uma reiterada ambivaléncia bem no cerne da agdo. O poder rearticulado se “re”-articula no sentido de que ja esta feito e no sentido de que se refaz, faz-se de novo, mais uma vez. O que ainda resta considerar é: (a) como a formagao do sujeito envolve a formagio reguladora da psique, inclus podemos religar o discurso do poder ao psi e; e (b) como fazer com que tal concepgaio do sujeito funcione como uma nogio da a¢do politica em tempos pés- liberatorios. Regulagées da psique Se o poder funciona nao so para dominar ou oprimir os sujeitos existentes, mas também para formar sujeitos, em que consiste essa formagao? E evidente que o poder nao traz as pessoas ao mundo no sentido comum do termo. Foucault associa 0 carater formativo ou produtivo do poder aos regimes reguladores ¢ disciplinares. Em Vigiar e punir, o crime produz uma classe de criminosos, cujos corpos se engendram no gesto e no estilo da prisdo. Mas como devemos entender esse sentido de produgdo e engendramento? Devemos entender a dimensao formativa do poder de maneira nao mecanicista e nao comportamental. O poder nem sempre produz de acordo com um propésito, ou melhor, a sua produgdo é tal que muitas vezes excede ou altera os propésitos para os quais produz.!0 E notério que Foucault diz muito pouco sobre o tema da psique, mas me parece que para descrever a sujeigado é preciso acompanhar os meandros da vida psiquica. Mais especificamente, ela precisa ser descrita na volta peculiar do sujeito contra si mesmo que ocorre em atos de autocensura, consciéncia e melancolia que se dio em conjunto aos processos de regulacdo social. No entanto, se recusarmos 0 dualismo ontolégico que postula a separacao entre 0 politico e © psiquico, parece crucial oferecer um relato critico da sujeigdo psiquica em termos de efeitos reguladores e produtivos do poder. Se as formas de poder regulador se sustentam em parte pela formagdo do sujeito, e se essa formagio acontece de acordo com os requisitos do poder, especificamente como incorporagéo de normas, entéo uma teoria da formaciio do sujeito deve descrever esse processo de incorporag&o, ¢ a nogdo deve ser investigada para que se determine a topografia psiquica que ela supée. Como a sujeigdo do desejo requer e institui o desejo de sujeigio? Ao afirmar que as normas sociais sao internalizadas, ainda no explicamos o que é a incorporagao ou, em sentido amplo, © que € a internalizagao, o que significa o fato de uma norma ser internalizada ou 0 que acontece com a norma no processo de internalizagao. A norma existe primeiro “no exterior” para depois entrar num espago psiquico previamente dado, entendido como um tipo de teatro interior? Ou a internalizagao da norma contribui para a produgao da internalidade? Tendo se tornado psiquica, a norma envolve apenas sua interiorizagao ou também a interiorizagao da psique?!! Defendo que que esse processo de internalizag’o cria a distingGo entre vida interior e exterior, oferecendo-nos uma distingao entre 0 psiquico e 0 social que difere significativamente do relato da internalizagéo psiquica das normas. Além disso, dado que as normas nao sao internalizadas de maneiras mecanicas ou totalmente previsiveis, seré que a norma assume outro cardter enquanto fenémeno psiquico? Em particular, como explicamos 0 desejo pela norma e, de forma mais geral, o desejo pela sujeigao nos termos de um desejo prévio pela existéncia social, um desejo explorado pelo poder regulador? Quando as categorias sociais garantem uma existéncia social reconhecivel e duradoura, muitas vezes se prefere aceita-las, ainda que funcionem a servigo da sujeigdo, a ndo ter nenhuma existéncia social. Entéo como € possivel que o anseio pela sujeigao, baseado no anseio pela existéncia social que lembra e explora as dependéncias primarias, surja como instrumento e efeito do poder da sujeigdo? Para ressaltar os abusos do poder como reais, e nao como criagdo ou fantasia do sujeito, 0 poder é muitas vezes projetado como inequivocamente externo ao sujeito, como algo imposto contra sua vontade. Mas se a propria produgdo do sujeito e a formagiio dessa vontade so as consequéncias de uma subordinagao priméria, é inevitavel que 0 sujeito seja vulnerével a um poder que nao criou. Essa vulnerabilidade qualifica 0 sujeito como um tipo de ser exploravel. Se tivermos de nos opor aos abusos do poder (0 que ndo é o mesmo que se opor ao poder em si), parece prudente considerarmos no que consiste sermos vulneriveis a esse abuso. O fato de os sujeit serem constituidos em vulnerabilidade primaria nao justifica os abusos que sofrem; 30 sé deixa ainda mais pelo contrario, i vulnerabilidade pode ser fundamental. claro o quanto a Como € possivel que 0 sujeito seja um tipo de ser ao qual se pode explorar, um ser que, em virtude de sua propria formagio, é vulnerdvel & subjugagdo? Fadado a buscar o reconhecimento de sua prdpria existéncia em categorias, termos e nomes que nao criou, o sujeito busca o sinal de sua propria existéncia fora de si, num discurso que é a0 mesmo tempo dominante e indiferente. As categorias sociais significam, ao mesmo tempo, subordinagao e existéncia. Em outras palavras, o prego de existir dentro da sujeigio é a subordinagao. Precisamente no momento em que a escolha € impossivel, © sujeito busca a subordinagio como a promessa da existéncia. Essa busca nao € escolha, mas tampouco € necessidade. A sujeigdo explora o desejo de existéncia, sendo a existéncia sempre outorgada de outro lugar; para existir, ela assinala uma vulnerabilidade primédria para com 0 Outro. ‘Assumir termos de poder que nunca criamos mas aos quais somos vulnerdveis e dos quais dependemos para existir parece apontar para uma submisséio mundana na base da formagao do sujeito. No entanto, “assumir” © poder ndo é um processo simples, pois 0 poder nao se reproduz mecanicamente quando & assumido. Em vez disso, ao ser assumido, o poder corre © risco de tomar outra forma e diregao. Se as condigdes de poder nao produzem sujeitos de modo unilateral, que forma ele assume quando ¢ assumido? Para deixar claro como o poder social produz modos de reflexividade a0 mesmo tempo que limita as formas de socialidade, é preciso redefinir o campo da sujeigo psiquica. Em outras palavras, na medida em que as normas operam como fenémenos psiquicos, restringindo e produzindo o desejo, elas também regem a formagio do sujeito ¢ circunscrevem 0 campo de uma socialidade habitavel. A operagao psiquica da norma oferece uma via mais insidiosa para o poder regulatério do que a coergao explicita, cujo sucesso permite sua operagio tacita dentro da esfera social. Por ser psiquica, no entanto, a norma nao apenas reintegra 0 poder social — ela se torna formativa e vulneravel de maneiras es sociais que altamente especificas. As _categoriz: estabelecem a vulnerabilidade do sujeito a linguagem s mesmas vulneraveis a mudangas tanto psiquicas quanto histéricas. Essa perspectiva refuta a compreensdo de uma normatividade psiquica ou linguistica (como se dé em algumas versdes do Simbélico) que seja anterior ao social ou que o restrinja. Assim como o sujeito é derivado das condigdes de poder que o precedem, a operagdo psiquica da norma é derivada de operagdes sociais anteriores, embora nao de mancira mec4nica ou previsivel. io elas A sujeigdo psiquica caracteriza uma modalidade especifica de sujeigdo. Nao apenas reflete ou representa relagdes mais amplas de poder social — mesmo que mantenha com elas uma ligagao importante. Freud e Nietzsche oferecem diferentes descrigdes da formagio do sujeito, ambas apoiadas na produtividade da norma. Os dois explicam a fabricagdo da consciéncia como efeito de uma proibicao internalizada (assim estabelecendo a “proibigo” nao sé como privativa, mas também como produtiva), Em Freud e Nietzsche, percebemos que a proibigao da ago ou da expressio leva “a pulsio”!2 a se voltar sobre si mesma, criando uma esfera interna, que é a condig&io da avaliagao-de-si e da reflexividade. A pulsio que se volta sobre si mesma torna-se a condigao precipitante da formagao do sujeito, um anseio em recuo que também é descrito na viséo hegeliana da consciéncia infeliz. Se essa dobra sobre si é realizada por anseios, desejos ou pulsdes primarias, ela produz em cada caso um habito psiquico de autocensura, que se consolida ao longo do tempo como consciéncia. A consciéncia é 0 meio pelo qual 0 sujeito se torna objeto para si mesmo, refletindo sobre si mesmo, estabelecendo a si mesmo como refletivo e reflexivo. O “eu” nao ¢ simplesmente aquele que pensa sobre si; ele se define por essa capacidade de autorrelagdo reflexiva ou reflexividade. Para Nietzsche, a reflexividade é uma consequéncia da cons resulta da punigéo de si. (Assim, nunca se “sabe” de si antes do recuo do desejo em questo.) Para conter o desejo, 0 sujeito faz de si um objeto de reflexao; durante a produgio da propria alteridade, o sujeito se estabelece como ser reflexivo, que pode tomar a si mesmo como objeto. A reflexividade se torna o meio pelo qual o desejo se transmuda para o circuito da autorreflexao. No entanto, a dobra do desejo que culmina na reflexividade produz uma nova ordem de desejo: 0 desejo pelo proprio circuito, pela reflexividade ¢, por fim, pela sujeigao. iéncia; o saber de s Qual 0 meio pelo qual se entende o desejo como cerceado, duplicado ou até mesmo proibido? A reflexdo sobre © desejo absorve © desejo na reflexio: veremos como isso funciona em Hegel. Mas existe uma outra ordem de proibigaio que nao incorre no circuito da autorreflexdo. Freud distingue repressio de forclusdo, sugerindo que o desejo reprimido pode jA ter existido separado de proibigdo, mas que o desejo forcluido & rigorosamente barrado, constituindo o sujeito mediante certo tipo de perda preventiva. Eu sugeri em outros textos que a forclusio da homossexualidade parece ser fundamental para determinada versio heterosexual do sujeito.13 A formula “eu nunca amei” alguém do mesmo género e “eu jamais perdi” uma pessoa assim firma o “eu” no lugar do “nunca-jamais” desse amor e dessa perda. De fato, a realizag&io ontolégica do “ser” heterossexual tem sua origem atribuida a essa dupla negagao, que forma sua melancolia constitutiva, uma perda enfatica ¢ irreversivel que forma a base ténue desse “ser”. E importante destacar que Freud identifica a consciéncia aguda e a autocensura como signo da melancolia, a condigdo do luto incompleto. A forclusio de certas formas de amor sugere que a melancolia que fundamenta o sujeito (e, portanto, sempre ameaga desestabilizar ¢ abalar essa base) indica um luto incompleto e insolivel. Nao reconhecida e incompleta, a melancolia ¢ 0 limite para o senso de pouvoir do sujeito, o senso do que pode realizar e, nesse sentido, seu poder. A melancolia abre uma fenda no sujeito, marcando um limite para o que ele pode acomodar. Como 0 sujeito nao reflete e nao pode refletir sobre essa perda, ela marca o limite da reflexividade, daquilo que excede (e condiciona) seus circuitos. Entendida como forcl a perda inaugura o sujeito ¢ o ameaga de dissolugao. 10, Considerado sob linhas nietzschianas e hegelianas, o sujeito tolhe a si mesmo, realiza sua propria sujeigao, deseja forja seus prdprios grilhdes, e assim se volta contra um desejo que ele sabe — ow sabia — ser seu. Para dizer que uma perda antecede 0 sujeito, que 0 torna possivel (e impossivel), precisamos pensar no papel que ela desempenha na formagao do sujeito. Existe uma perda que nao pode ser pensada, possuida ou pranteada, e que constitui a condigio de possibilidade do sujeito? E isso que Hegel chamou de “perda da perda”, uma forclusdo que constitui uma incognoscibilidade sem a qual o sujeito sucumbe, uma ignordncia e uma melancolia que permitem ao sujeito considerar como préprias todas as pretenses de conhecimento? Nao ha um anseio de prantear — e, de modo equivalente, uma incapacidade de prantear — aquilo que o sujeito nunca foi capaz de amar, um amor que nao atende as “condigdes da existéncia”? Essa é uma perda nao sé do objeto ou de algum conjunto de objetos, mas da propria possibilidade do amor: a perda da capacidade de amar, 0 luto infindavel pelo que funda o sujeito. Por um lado, a melancolia € um apego que substitui um apego rompido, acabado ou impossivel; por outro, ela da continuidade a tradigo da impossibilidade, por assim dizer, que pertence ao apego que ela substitu. Existem, ¢ claro, varias maneiras de se recusar a amar, ¢ nem todas sao forclusées. Mas 0 que acontece quando determinada forclusio do amor se torna a condigfo de possibilidade da existéncia social? Isso no produz uma sociabilidade afligida pela melancolia, uma sociabilidade em que néio se pode viver o luto da perda porque ¢ impossivel reconhecé-la como perda, pois o que esta perdido nunca teve direito a existéncia? Aqui podemos perfeitamente fazer uma distingao entre (a) um apego que posteriormente é renegado e (b) uma forclusio que estrutura as formas assumidas por quaisquer apegos. No iltimo caso, podemos proveitosamente reassociar a forclusiio com a ideia foucaultiana de ideal regulador, segundo o qual algumas formas de amor se tornam possiveis, e outras, impossiveis. No campo da psicandlise, pensamos na sangdo social como codificada no ideal do Eu e patrulhada pelo Supereu. Mas o que significaria pensar que a san¢do social, por meio da forclusao, trabalha para produzir um campo possivel em que 0 amor e a perda possam operar? Como uma forclusdo, a sangdo funciona nao para proibir o desejo existente, mas para produzir certos tipos de objeto e para impedir outros do campo da produgo social. Dessa forma, a sang&io nfo funciona de acordo com a hipétese repressiva, postulada e criticada por Foucault, mas como um mecanismo de produgdo que pode operar, no entanto, com base numa violéncia ordindria.!4 Na obra de Melanie Klein, a culpa parece surgir néo como consequéncia de internalizarmos uma proibigdo externa, mas como modo de preservar o objeto de amor da nossa propria violéncia potencialmente obliterante. A culpa cumpre a fungao de preservar 0 objeto do amor e, portanto, de preservar o proprio amor. Desse modo, o que significa entender a culpa como um modo de o amor preservar o objeto que, de outra forma, poderia destruir? Como medida proviséria contra uma destruigao sadica, a culpa sinaliza menos a presenga psiquica de uma norma originalmente social e externa do que o desejo compensador de continuar 0 objeto que se deseja morto. E nesse sentido que a culpa surge no decorrer da melancolia ndo s6 para manter vivo 0 objeto morto, como Freud teria dito, mas para manter 0 objeto vivo longe da “morte”, que aqui significa a morte do amor, incluindo 2 e perda. ocasides de separagio A perspectiva kleiniana nao sugere, desse modo, que € possivel explicar totalmente a fungao do amor dentro de uma economia psiquica que nao tenha nenhum residuo social significativo? Ou devemos situar o significado social da culpa num registro que no seja o da proibigdo — 0 desejo de repara¢do? Para preservar 0 objeto contra a agressio, uma agressdio que sempre acompanha o amor (como conilito), a culpa entra na cena psiquica como uma necessidade. Se o objeto desaparece, também desaparece uma fonte de amor. Em certo sentido, a culpa funciona para tolher a expresso agressiva do amor que poderia destruir 0 objeto amado, um objeto entendido como fonte de amor; em sentido contrario, no entanto, a culpa funciona para preservar 0 objeto como objeto de amor (sua idealizagdo) e, por conseguinte, para preservar (via idealizagio) a possibilidade de amar e ser amado. A agressio — ou o édio — no é meramente atenuada, mas redirecionada contra o sujeito que ama, funcionando como as autocensuras do Supereu.!5 Como 0 amor e a agresstio andam juntos, a atenuagio da agressio pela culpa também é a atenuagdo do amor. Desse modo, a culpa funciona tanto para forcluir quanto para continuar 0 amor — ou melhor, para continuar amor (de modo menos apaixonado, para ser exata) como efeito de uma forclusio. O esquema de Klein suscita uma série de questées quanto a relagdo entre amor e agressio. Por qual motivo desejariamos a morte do objeto do amor? Trata-se de um sadismo primério explicavel por uma pulsio de morte primédria, ou existem outras maneiras de explicar o desejo de aniquilar aquilo que amamos? Consoante Freud, Klein situa tal desejo de aniquilagio dentro da problematica da melancolia, argumentando que o desejo de aniquilar caracteriza a relagao com um objeto ja perdido: j4 perdido e, portanto, elegivel para um certo tipo de aniquilagao. Klein associa 0 sentimento de culpa para com o objeto com 0 desejo de triunfar sobre o objeto, um senso de triunfo que, se levado longe demais, ameaga destruir 0 objeto como fonte de amor. No entanto, pode-se considerar que certas formas de amor implicam a perda do objeto, no sé devido a um desejo inato de triunfar, mas também porque tais objetos nao so considerados objetos de amor: como objetos de amor, eles assumem uma marca de destruigéio. Na verdade, eles também podem ameagar a destruigaio do proprio sujeito: “Eu serei destruido se amar dessa maneira”. Marcado para “morrer”, 0 objeto ja estd perdido, por assim dizer, e 0 desejo de aniquilar 0 objeto & precisamente o desejo de aniquilar o objeto que, se amado, causaria a destruigdo daquele que ama. Podemos interpretar 0 funcionamento do poder social justamente na delimitagdo do campo desses objetos marcados para a morte? E sera essa parte da irrealidade, a agressio melancélica e o desejo de aniquilar, o que caracteriza a reagdo publica 4 morte de muitos daqueles considerados “socialmente mortos”, os que mortem de aids? Gays, prostitutas, usuarios de drogas, entre outros? Se esto morrendo ou ja morreram, que os aniquilemos mais uma vez. E possivel conquistar 0 senso de “triunfo” precisamente através de uma pratica de diferenciagao social, na qual se consiga atingir e manter a “existéncia social” somente pela produgdo e manutengao dos socialmente mortos? Ser que também poderiamos interpretar a paranoia que estrutura o discurso ptiblico sobre tais questdes como a inversdo dessa agressio: o desejo de aniquilar o outro morto que, por meio de uma inversdo, acaba por marcé-lo como a ameaga de morte, projetando-o como 0 (improvavel) perseguidor dos socialmente normais e normalizados? O que entdo se deseja na sujeigdo? Seria o simples amor pelos grilhées, ou existe um cendrio mais complexo em agao? Como manter a sobrevivéncia se os termos de garantia da existéncia so justamente aqueles que exigem e instituem a subordinagao? Nessa perspectiva, a sujeigéo & 0 efeito paradoxal de um regime de poder em que as préprias “condigées de existéncia”, a possibilidade de continuar como ser social reconhecivel, requerem a formagdo e a manutengao do sujeito na subordinagao. Se aceitarmos a nogao de Espinosa de que o desejo é sempre o desejo de persistir no nosso proprio ser,lo e reformularmos a substancia metafisica, que constitui ideal para 0 desejo, como uma nog&o mais maleavel do ser social, talvez estaremos preparados para descrever o desejo de 0 ser como algo que s6 pode ser negociado ados da vida social. O risco de morte, portanto, coexiste com a insuperabilidade do social. Se os termos com os quais formulamos, sustentamos e abandonamos a “existéncia” sao 0 vocabulario ativo e produtivo do poder, persistir no nosso ser significa nos entregar desde 0 inicio a termos sociais que nunca sao inteiramente nossos. O desejo de persistir no proprio ser exige a submissio a um mundo de outros que fundamentalmente nao é nosso (uma submissao que nao ocorre posteriormente, mas que enquadra e possibilita o desejo de ser). Somente ao persistir na alteridade é que se persiste em seu “proprio” ser. Vulneravel a termos que jamais criou, © sujeito sempre persiste, até certo ponto, por meio de categorias, nomes, termos e classificagdes que assinalam uma alienagao primaria e inauguradora na sociabilidade. Se esses termos instituem uma subordinagao primaria ou, alias, uma violéncia primaria, isso quer dizer que o sujeito surge contra si mesmo para, paradoxalmente, ser para si. O que implicaria 0 sujeito desejar algo além da “existéncia social” continua? Se esta ndo pode ser desfeita sem que se incorra em algum tipo de morte, ainda assim poderfamos arriscar a existéncia, cortejar ou buscar sua morte, a fim de expor 0 dominio do poder social sobre as condigées de persisténcia da vida para que haja uma __possivel transformagiio? O sujeito esta obrigado a repetir as normas que © produzem, mas essa repetigao estabelece um campo de risco, pois se fracassamos ao restabelecer a norma “do jeito certo”, sujeitamo-nos a uma sango posterior, sentimos ameagadas as condiges prevalecentes da existéncia. Todavia, sem a repetigdo que pée em risco a vida — em sua organizagao atual =, como comegar a imaginar a contingéncia dessa organizagao e reconfigurar performativamente os contornos das condigdes de vida?

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