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Bidlioteca Pionelia de Estudos Brasileiros OS CRISTAOS-NOVOS POVOAMENTO E CONQUISTA DO SOLO BRASILEIRO (1530-1680) José Goncalves Salvador Biblioteca Pioneira de Estudos Brasileiros OS CRISTAOS-NOVOS POVOAMENTO E CONQUISTA DO SOLO BRASILEIRO Ble Mle eee Cocos © AUTOR de CrisiGos-Novos, Jesuitas © Inquisigdo (Pioneira, 4969) apresenta agora aos leifores um trabalho de grande enverga- dura no qual aborda quesfées pouco versadas da historiografia nacional e responde a algumas indagacoes suscitadas pela obra anterior, premiada com meng¢ao honrosa pelo Instituto Na- cional do Livro. Esta obra é um prosseguimento da ouira, mas sob diferentes as- pectos, quais sejam, o religioso € © social, respectivamente. Para este estudo, o Autor realizou exiensas e meticulosas pesquisas no Brasil e em Portugal — sobretudo na Torre do Tombo, nos arqui- vos Ultramarino e da Ajuda — permitindo o recolhimento de dados fundamentais para o esclarecimento da nossa forma¢ao étnica e social durante os 150 primeiros anos, bem como para o teferente 4 conquista do solo brasileiro. O livro esta dividido em duas partes, que se conjugam harmonio- samente, comecando pelo reexame da fese segundo a qual as populagoes meridionais do Brasil — a que Oliveira Viana dedi- cou uma de suas mais conhecidas obras, tirando conclusées fa- voraveis @ posicao arignisia — teriam marcado cunho aristocrdtico, tal a qualidade ou a nobreza de seus elementos formadores. GONGALVES SALVADOR susienta Donto de vista conirario, mostrande a participacao eficaz, em volume e qualidade, de povoadores ju- deus ou cristaos, pertencentes a classe média ou a niveis sociais inferiores. —Em abono da tematica geral, o Autor oferece dados e argumen- tos dignos de alto apreco, sobretudo no concernente a impor- tancia da imigra¢ao judaica, fato esse que representa, sem du- vida, uma contribui¢ao positiva em prol de estudo mais profundo acerca de nossas raizes éinicas ¢ culturais. Na segunda parte é tratada mais especificamente a presenc¢a dos Cristaos-Novos na conquista do solo brasileiro, incluindo a obtengdo de sesmarias, a exploragdao dos sertoes, o ataque aos aldeamentos jesuiticos do Paraguai e o subseqtiente recuo da linha de Tordesilhas. © quadro do bandeirismo paulisia ganha, desse modo, perspectivas novas. A valiosa contribuigao de Gon- CALVES SALVADOR recebeu o endosso da EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SAo Paulo, co-editora deste langamento. LIVRARIA PIONEIRA EDITORA EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SAO PAULO JOSE GONCALVES SALVADOR OS CRISTAOS-NOVOS POVOAMENTO E CONQUISTA DO SOLO BRASILEIRO (1530-1680) _ _LIVRARIA PIONEIRA EDITORA EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SAO PAULO SAQ PAULO . Capa de Jaina Porficia Nenhuma parte deste livro poderd ser reproduzida sejam quais forem O$ mMeios empregados (mimeografia, xerox, darilografia, gravaco, re- produgao em disco ou em fita), sem a permissdo por escrico da Editora. Aos infratores se aplicam as sangGes previstas nos artigos 122 ¢ 130 da Lei a.9 5.988 de 14 de dezembro de 1 1976 Dadar as alvestor rerersades por ENIO MATHEUS GUAZZELLI & CLA. LTDA. 02515 ~ Praga Dirceu de Lima, 313 Telefore: 266-0926 Sto Paulo Impresso no Brasil Privvéeet tre Brazil Obra publicada com a colaboracao da UNIVERSIDADE DE SAO PAULO Reitor: Prof, Dr. Orlando Marques de Paiva EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SAO PAULO Presidente: Prof. Dr. Mario Guimaraes Ferri Comissdo Editorial: Presidente: Prof. Dr. Mario Guimaraes Feri (Instituto de Biociéncias), Membres: Prof, Dr. Antonio Brito da Cunha iinstituto de Biociéncias), Prof. Dr. Carlos da Silva Lacaz (Faculdade de Medicina), Prof. Dr. Pérsio de Souza Santos (Escola Politécnica) e Prof. Dr. Roque Spencer Maciel de Bartos (Faculdade de Educacaol, BIBLIOTECA PIONEIRA DE ESTUDOS BRASILEIROS Coordenagde OSMAR PIMENTEL A memdria de meus querides pais, Elias Goncalves Salvador e Encarnagio Goncalves Cardoso. O mew sincero agradecimenta a Fundacis de Amparo & Pesquisa do Estado de Sio Paulo e ap Institute de Alea Cultura, do Ministério da Educagdo de Portugal, 6s quais, através de suas ajudas valiosas, permitiram-me realizar excensas pesqui- sas no Brasil ¢ aaquele pais, além de manter uma proveitosa correspondéncia com aiguns ifustres historiadores do Paraguai, Argentina, Franga, Holanda ¢ Is- rae Prefacio, XT Introdugdo, XVI PARTE A A Formacao Etnica e Social das Capitanias do Sul Capitile Primetra Os Cristaos-Novos e a Questao Filogenética, 3 Capitals Segundo Os Estatutos de Pureza Sangiiinea ¢ a Nobreza do Sul, 19 Capitulo Tercerro Uma Avaliagio Quantitativa dos Cristaos-Novos nas Capitanias do Sul, 45 Capttuls Quarto O Elemento Flutuante nas Capitanias do Sul, 69 Capituls Quinta Os Cristdos-Novos Estrangeiros nas Capitanias do Sul, 85 Capituls Sexto Cristaos-Novos Portugueses Radicados nas Capitanias do Sul, 107 A. No Espirito Santo, 108 B. Na Capitania de Sao Vicente, 124 C. No Rio de Janeiro, 153 Capituls Sétimo A Contribuicdo Cultural dos Cristaos-Novos a Sociedade Luso-Brasileira, 211 PARTE B A Presenga dos Cristéaos-Novos na Conquista do Solo Brasileiro Capttule Primeiro Os Primérdios da Ocupagao do Solo, 237 Capttule Segands A Colonizacao Sistematica do Brasil, 241 ituela Terceire © Povyoamente das Cz Novos, 249 itanias Meridionais e os Cristaos- Capitula Quarta Os Cristéos-Novos ¢ a Exploracdo dos Sertaes, 263 itule Quinte © Recuo da Linha de Tordesilhas © os Cristaos-Novos, 283 (strangeiro ¢ os C dos-Novos, 319 1. Ingleses no Brasil e Cristidos-Noves, 319 2. Os Franceses ¢ a Conquista de Solo Brasileiro, 324 3. Holandeses e Cristaos-Novos no Brasil, 328 Consideragoes Finais, 369 Apéndice, 377 Abreviaturas, 383 Fontes ¢ Bibliografias, 387 indice Onomastico, 399 Prefacio José Gongalves Salvador — um dos mais respeitados historiado- res brasileiros, merecidamente acatado no Pais ¢ no estrangeiro — é bacharel ¢ licenciado em Geografia ¢ Historia pela Universidade de $a0 Paulo, bacharel em Teologia e, ainda, Doutor em Ciéncias pela entao Faculdade de Filosofia, Ciéncias e Letras da Universidade de Sao Paulo. Figura no rol dos doceates do Ensino Superior que nos infundem natucalmente respeito ¢ admiracao, Dorado da mais ala qualificacgao profissional, cultural & cientifica, revela-se, outrossim, no setor do ensino como distinto professor, exercendo o magistério no Grande Séo Paulo. José Goncalves Salvador participou do ¥ Coléquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, realizado na cidade de Coimbra, em 1963. Neste ano e em 1970, com ajuda financeira da Fundacgdo de Amparo 4 Pesquisa do Estado de Sao Paulo, da Fundacac Calouste Gulbenkian ¢ do Instituro de Alta Cultura do Ministério da Educa- so de Portugal, trabalhou nos Arquivos piblicos e particulares de Portugal, notadamente nos ricos acervos de Lisboa, ultimando segui- damente suas pesquisas em Sao Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Bue- nos Aites. José Goncalves Salvador é um dos grandes especialistas em His t6ria dos Cristias-Novos, no atinente, sobrecuda, ao papel desempe- ahado no processo de desenvolvimento da formacdo brasileira, como fos Mostra a sua produgao cientifica onde se destacam, entre outras, as seguintes obras, todas elas bem conhecidas e apreciadas. marcando-lhe a vocacio de historiador: Crivtdas-Noves, Jesutias ¢ In- quiticao — que mereceu menco honrosa do Instituto Nacional do Livro; Os transportes em Sdo Pails na pertads colonial — que em 1959 fez jus aos prémios da Academia Paulista de Letras e da Camara Mu- nicipal de Sao Paulo; A lef de smprensa e do comércty de livvos, de Filipe IL, e seus reflecos na América Luso-Espanhola — com que obteve, meri- tamente, o prémio de jornalismo da Prefeirura Municipal de Sao Paulo, em 1963. © seu labor de historiador revel: suas colaboragdes na Encyelopedia af World Merbodism, vols. I ¢ 11. Projeta-se, ademais, em seu curticulo, o valioso estado sob and- lise, que presentemente temos a honra ¢ a satisfacio de apresentar, recomendando-o, Os Cristdar-Novos: Povaamenta e Conguista do Sata Brasileiro (1530-1680). A Editora da Universidade de Sao Paulo, em co-edi¢io com a Livraria Pioneira Editora, editando este estudo, colaca ao aleance dos interessados uma obra marcante, consagradara de uma vocagio. O trabalho lé-se com gosto € proveito, tal o interesse que suscita. © poder de interpretacdo do fenédmeno histérico nele manifestado & de anotar e de imitar. Acento o cuidado posto pelo autor na sua Preparacao, recomenda-se insistentemente. A pesquisa sobre a qual as- senta custou a José Gongalves Salvador alguns anos de paciente ¢ constante labor profissional. Impressiona, logo de inicio, a sua inves- igagao tanto bibliografica, como documental. Dir-se-ia mesmo que o autor preparou-se cuidadosamente para 2 elaboracdo deste estudo, podendo, por isso, apreciar-se o seu quilate. Através de Crrstaos-Novas, Jerattas ¢ Ingutsipéo, e agora deste es- mdo — Os Cristdos-Novos: Poveamento ¢ Congutsta do Salo Brasileira — José Goncalves Salvador demonstra que 0 acervo de judeus ibé cos, notadamente portugueses, estantes no seio da populacao do Bra- sil, no decurso dos séculos XVI e XVII, fol bem maior do que se tem, cd e 14, admicido. Assim sendo, influiram com expressiva gran- deza em nossa formacao étnica, cultural ¢ econdmica. Comprova-se, de modo igual, que os Cristios-Novos participa- ram de nossa vida colonial, ajudando na conquista da terra ¢ na ex- pulsao do inimigo estrangeiro. Equivale dizer que a maioria deles mMostrou-se sempre identificada com a causa portuguesa no process de ocapagae do espace tropical — terras e dguas do Atlintico Sul — contribuindo, em todos os setores da vida, no processo de mudanca do Sistema Colonial ¢ deslocamento da fronteiza. © presente estudo toma por enfoque as Capitanias do Sul, as quais nao despertaram ainda a devida perquiricao da historiografia contemporanea, nacional e estrangeira. Ademais, o que sé escreveu, sobretudo o atincate a Sio Paulo, deixa muito a desejar, negando, inclusive, a conduta psicoldgica e as apriddes dos judeus para o ser- tanismo, que o fendmeno penetracao continental — bandeirismo paulista — contradiz e denega. © tema — Cristéos-Novos no Brasil — encontra-se ainda por desbravar. Realmente muito pouco se tem escrito com seriedade ciéntifica. Excepto os estudos de Anita Novinski, Sénia Siqueira, Arnold Wiznitzer e Eduardo Oliveira Franga, nada, ou quase nada, merece destaque. Salvo citadas abordagens, o assunto permanece omitido. Com efeiro, as Capitanias do Sul sempre andaram negligenciadas. Dilucida-as agora em grande parte José Gongalves Salvador, levan- tande genealogias e estudando o labor desempenhado pelos Cristaos-Novos nessas dreas, principalmente. De par com isso revela aspectos bem diversos de outros espacos brasileiros, destacando-se, de modo singular, a diferenca entre Sao Paulo ¢ Rio de Janeiro — a planalto ¢ © litoral. O trabalho em epigrafe acha-se desdobrado em duas partes, A primeira —"A formacao étnica ¢ social das Capitanias do Sul” — com sete capitulos. A segunda — “A presenca dos Cristins-Novas na conquisra do solo brasileiro” — composta por mais seis capitulos. Precede-as uma sugestiva inttoducao onde se problematiza o tema a ser esclarecido. © trabalho é deveras conclusive. O que José Gancal- ves Salvador se propds comprovar foi realmente demonstrado. Os indices — geral ¢ onomastico — apéndice, abreviaturas, fon- tes manuscritas ¢ impressas —, tudo, afinal, testemunha o planeja- mento € a logicidade da obra que ora apresentamos, confirmando, sobcjamente, a inteligéncia e erudigao de autor em tratar os referi- dos aspectos da atuagio dos Cristios-Novos naquelas Capitanias. Certamente a obra se ird impor, quer pelo interesse intrinseco do assunro, quer pela sericdade ¢ rigor cientifico com que foi concebida, qualificaco que se estima particularmente importante. A Ieitura do livro ratifica plenamente a nossa expectativa ¢ certi- fica o preparo euristico de Jos¢ Goncalves Salvador. E exata que nenhum historiador ¢ insensivel a determinados induzimentos ou propens6es. Entretanto o autor procurou manter-se neutral na abor- dagem do fendmeno hist6rico, cientificamente reto na verdade do evento, sereno na comprova¢io sobre a qual assenta a obra elabo- rada. Claro que nenhum trabalho intelectual esgota o tema abordado Toda layra ciencifica tem méritos deméritos. Ademais, toda ciéncia progride pelas controvérsias. Seguramente alguns eriticos mais escla- recidos encontarao deficiéncias ou lacunas. Mas, asseveramos, em- bora passiveis de reparos, nio so, de modo nenhum, suficientes para deslustrar o merecimento do estudo de José Gongalves Salvador que, afinal, na apuracdo dos resultados, apresenta saldo sobremaneira po- sitive € se exprime como uma das mais valiosas obras que nos foi dado conhecer, Através deste livro bem acabado, o autor contradiz, sem o dizer, os falsificadores do passado e as mal-avinhadas restemunhas do pre- sente, fiéis representantes de uma historiografia contemporinea sub- tepticia, dolosa ¢ fraudulenta, inserida de temperos oriundos de outras Ciéncias Humanas, que certos adeptos igualmente ingnoram, ¢ que se comprova subdesenvolvida, transferindo para © pretérito realidades de Nosso tempo, entao inexistentes, adulterando, com isso, consciente cu inconscientemente, a verdade histdrica sempre indagad MANUEL NUNES DIAS Professor Catedratico da Universidade Introducao Antropélogos, historiadores e sociGlogos tém-se ocupado em estu- dar a presenca do indigena ¢ a do escravo negro na elaboraggo do complexo sociceconémico brasileiro, mas nao deram ainda a suficiente importancia a um terceiro grupo étnico mui significarive, qual sejaodos chamados cristios-novos, nos primeiros séculos. S40 poucas as obras que tratam dos mesmos, quer as de cardter geral, quer as de natureza especi- fica’, ¢ bem assim os estudos vindos a lume em jornais ¢ revistas®. E, no entanto, j4se passaram mais de sessenta anos desde que Varnhagen abriu valiosas trilhas em sua invejavel Histiria Geral da Brasil, E impressio- nante, sobretudo, o laconisme com respeito as Capitanias do Sul. Acrescente-se, alids, que quase tudo quanto ja se escreveu, gira a0 redor da Bahia ¢ de Pernambuco,estribando-se os autores nas visitaoes do Santo Oficio em 1591 ¢ L618. Ai estao a comprovd-lo as introdugdes aos textos das mesmas, as biografias de Bento Teixeira, os alinhavos sobre a pessoa do metcador Jodo Nunes, e alguns outros estudos. Mere- cem destaque mais recentemente diversas comunicagdes de Anita No- vinski ¢ a sua obra Os Cristdos-Novos na Babia (1624-1654); 08 dois esclarecedores trabalhos do professor Eduardo de Oliveira Franca, intim- lados “Engenhos, Colonizagao ¢ Cristaas-Novos na Bahia”, ¢ “Um Pro- blema_ a Traicao dos Cristéos-Novos em 1624™. Constitui uma honrosa excecao as obras de cunho especifico Os Judens no Brasil Colonial, de Armold Wizniter, ainda que limitada em amplitude e profundidade. Nela o autor dedica uma dezena e meia de paginas ao Rio de Janeiro, no século XVIII, ¢ nada mais quanto 4s Capitanias do Sul. Sobre Sao Pauloo iléncio permanece toral®. Mas, por que essa exigiiidade? O faro decorre, certamente, de uma série de perspectivas mal formu- ladas sobre a emigrario judaica e do papel que os da progénie desempe- oharam na mesma. A deduzir das leis que |hes proibiam o ausentarem-se de Portugal, nao seriam tantos os que vieram para o Brasil, terra indspita € que teria pouco a oferecer-lhes de proveitoso. Mas, ao invés dista, os Paises-Baixos Ihes acenavam com excelentes oportunidades. No rol de tais critérios concebidos aprioristicamente, outros se enfi- leiram. Assim, jase pretendeu que a presenca da Companhia de Jesus em nosso pais, bastaria para afastar os judeus daqui, como se os inacianos fossem seus inimigos. E, a semelhante engano, foram levados historiado- res ¢ genealogistas na suposicao de que certos nomes adotados pelos sefardins os distinguiam dos legitimos cristios, ou ainda quando alguém estivesse identificade com as confrarias religiosas, ou sendo com as ordens eclesidsticas ¢ militares, ou exercesse um encargo publico. Nao se deram conta,porém, da faldcia, deixando de observar a distancia entre a tigidez das leis ¢ as realidades da vida prdtica. Nem é exato que somente se diseribuiram sesmarias aos cristios, conforme preceituavam os Forats conferidos aos donatérios capitaes-mores € as Ordenacies do Reino. Se assim fosse, seriambs obrigados a reconhecer que os imigrantes da pro- génie hebréia andaram ausentes das fainas agricolas, nada mais lhes festando senio © comércio ¢ as profissées liberais. Como, porém, expli- cariamos a sua presenga na indiistria agucareira, uma vez que muitos dentre eles tornaram-se “partidistas™ de cana ¢ senhores de engenho, jé nos primérdios da colonizacao? Examinado o problema sob tais critértos, longe estaremos de alcangar a plena verdade. O movimento imigratério sofrerd duas distorgdes basila- res: a primeira, enaltecendo-o a favor do cristéo-velho, e a segunda menoscabando o afluxo hebreu, especialmente nas Capitanias do Sul. O cémputo demografico permaneceria o mesmo, mas desfigurado quanto as duas etnias brancas. De modo que, também assim, seria dificil precisar o comportamento de cada uma em relacio a outra e 4s subservientes, representadas pelos indigenas ¢ pelos escravos africanos. Note-se, todavia, além disso, que os judeus figuravam entre as pes- soas bem informadas sobre 0 ultramar portugués, e inclusive o Brasil. Gente sua havia tomado parte nas expedigées de Vasco da Gama e de Cabral. Martim Afonso de Sousa, donatario de Sao Vicente, era particu- lar amigo do cosmdégrafo Pedro Nunes. Nesta mesma profissao serviu depois o ilustre Jodo Batista Lavanha. Na qualidade de médicos da Corte enumeram-se os doutores Manuel Rodrigo de Lucena e Anténio de Lefo, ao passo que Diogo do Couto, Antonio Bocarro ¢ Duarte Nunes de Ledo foram cronistas oficiais. Ligados a D. Joao IV, arrolam-se financistas e embaixadores. E assim por diante. Por palavras e por escrito os“da nagio”foram grandes propagandistas do Brasil. Luis Mendes de Vasconcelos, em 1606, enalteceu as suas possibilidades econémicas, ¢ nisso foi imitado logo depois (1618) por Ambrésio Fernandes Brandao, autor dos Drdlogos das Grandezas do Brasil. Em 1621, Duarte Gomes Solis procurou mostrar ao rei que mais valia ocupar-se com o Brasil do que com o Oriente. Em 1629, veio a publico, 10 meio castefhano, a obra do lic. Antdnio de Leao Pinelo, Epttone de la Bibl Oriental e Ocidental. Além de tudo, as condicées no Reino transcorriam mal pata os da progénie. O Brasil, pois, era um incentivo. Havia fatores, aqui, capazes de atrai-los. E os judeus vieram em ntimero crescente. Aqui acharam o seu Paraiso. O fluxo imigeatério nunca cessou. Mesmo nas fases de impedi- mento, achavam meios para sair. Muitos possuiam navios. A Inquisigao também os enviava a cumprir degredo neseas partes. As Capitanias do Sul com maiores razGes nao escaparam @ preconcei- Tos € nem a perspectivas falazes. Admite-se, por exemplo, que a econo- mia do Rio de Janeiro, durante todo o século XVII manteve-se em nivel inferior 4 do Nordeste, ¢ que S40 Paulo, no cimo. da’ Paranapiacaba, vegetou na pobreza e no isolamenro. Pretende-se, ademais, que ne- nhuma das trés, ou mais especificamente, as vilas do planalto, ofereciam atrativos para os judeus, os quais no entender de alguns autores, gosta- vam de uma vida cOmoda € onde pudessem granjear riqueza facil. Sio Paulo, localizada 2 boca do sertao ¢ subsistindo com base no escravismo indigena, nenhum fascinio teria sobre cles. A prova estd, acrescenta-se, em que a Inquisigo jamais subiu aos campos de Piratininga. Dai o nosso interesse pelo assunto. Preferimos enfocar os estudos nas Capitanias do Sul, campo ainda mal conhecido na fase em aprego: 1530 a 1680. © Rio de Janeiro e Sao Paulo prestam-se a comparacdes admirdveis, de um lado por sua relativa Proximidade, edooutro por suas diferengas geoccondémicas ¢ “modus vivendi”. Se é que “a gente de nacio” se localizou nas duas dreas, como de fato sucedeu, pergunta-se: que influéncia o “habitat” gerou sobre cada niicleo? Qual o seu procedimento ¢ formas de arividade? Quais as respectivas concribuicdes? Naturalmente o problema da identificagao dos individues foi o que mais nos preocupau. Sem resolvé-lo, como haveriamos de discernir as atores e de acompanhar-ihes a acdo? Assim, fomos ouvir primeiro os genealogistas, mas cles nos confundiram, excetuando-se ¢ inclito Cris- tovao AlZo de Morais. Procuramos, a seguir, os réis das fintas que se cobraram aos judeus ¢ nao os encontrames em parte alguma, As evidén- cias proporcionades pelas atas das Cimaras, pclas habiliragdes de génere ao sacerdécio ¢ as Ordens Militares, pouco ajudaram. As visitacoes de 1591, 1618 e 1627 também nao adiantaram muito. Os cadernos manda. dos copiar por Eduardo Prado, ¢ ainda inéditos, nao atiram luzes sobre a capitania de Sao Vicente. Certa vez informou-nos 0 professor José Perez, que, se féssemos a Torre do Tombo, em Lisboa, 14 acharlamos um livro tmanuscrito com os nomes de inumeros judeus, muitos dos quais do Brasil. Entao, para ld nos dirigimos em 1963, ¢, de fato, logo vimos o precioso alfarribio, pois os funciondrios do arquivo conhecem-no bem pelo titmlo de Litro Grande doi Homens do Santo Oficio®. Nele estio arrolados por ordem alfabética os individuos que foram senrenciados pelo Tribunal de Lisboa desde o perdao geral de 1605. Vem até meados do século X VIL. Consticui fonte valiosa gracas aos informes que oferece. E falho, porém, quanto as capitanias de Sdo Vicente ¢ Espirito Santo, apresenta lacunas sobre o Rio de Janeiro no século anterior. Mas outros documentos do mesmo arquivo concorrem para eliminar alguns dos sence Assim, processadas as identificacoes foi possivel conhecer as pessoas €, €m muitos casos, formalizar os seus quadros genealdgicos. Tinhamos, agora, por conseguinte, uma base para clucidar os quesitos que aos acu ram & mente. Queriamos saber, antes de tudo, se, na realidade, a pora scfardim glcancou © Brasil, ¢ mais particularmente as Capivanias do Sul. Nao se daria o caso de efetiv “8 apenas quanto jd estivesse bem adentrada a colonizaciio, sendo menores os sactificios, ou, por ventura, os da estirpe figuraram entre os piongiros do novel Pais? De que regides procederam? Foram muitos ou poucos? Que ambiente os aguardava aqui? Qual © seu estado civil? Que profissées tinham? Os solreiros casaram-se deniro da propria emia ou sucederam-se enlaces exogamicos? Mas o espirita da época nao era contrario a isto, quer do lado catélico. quer do judaico? Foram macrimdnios fecundos, se admitirmos que o hibridismo étnico é nocive? Dentro, ainda, da mesma linha de pensamento, evocamas a situagio em Portugal, onde sofriam perseguicies e nado mais lhes facultavam as judiarias. Vindo para o Brasil, rentavam viver em guetos ou separados dos restantes europeus? Que tipos de relacionamento mandyeram com respeito aos vizinhos? Agiram em Sio Paulo ¢ no Rio de Janeiro da mesma forma? Foram valiosas as suas contribuigGes sociais e culturais? Enfim: eles se interessavam pelo bem da terra? Que atitude tiveram face a0 desbravamento do solo e 4 presenca de esteangeiros, tais como france~ ses, ingleses, holandeses, ¢ mesmo espanhdis? Eis porque, em respostaa esses considerandos, dividimos a obra em duas partes. Ver-se-a pelaleitura que ambas se entrosam perfeitamente. E mais: que ela nao esgota o assunto. Alargamos apenas a contribuicao que outros estudiosos jai vém prestande. Demos um passo adiante em fossa promessa anterior, quando publicamos Cristdar-Noves, feiuftes ¢ Ingnisi¢éo ¢ deliberadamente evitamos proceder a maiores detalhes.? Fica, desta vez, langado um novo desafio a nds préprios que €0 de, em préximo langamento, rratarmos da questio econdmica nos seus miltiplos aspectos. Na oportunidade traremos 4 cena as relagGes preva Jecentes ao redor do Atlaatico Sul. Notas 1 - Esti neste rol duas monografias de Solidénio Leite Filho sobre os judeus no Brasil, ¢ a Histérta Secreta do Brasil, par Gustavo Barroso; 3 Breve Histéria dos Jedeas io Brasil, de Jac Serebrenick: a obra Or Judens na Histiria no Brasil, eferita por Afsiaio Peixoto ¢ outros. Todas, porém, falhas as veres, visto basearam-se em fontes secutdirias, Nio merece igual confianca a Histérie dos Liracliies ne Brasif, de isaac Reizman, 2 - Incluiriamos aqui os artigos ¢ comunicagGes de Aarénio Baida, de Pedro dé Azevedo © de Joie Licio de Azevedo, somando uma devena. se tanto, Além, naturalmente, dos isformes que este nos legow ax ffitiria de Antinio Vieira {191B), na Hisideia das Cristdos- Novas Portugueses (1921) € nas Noves Epandforas (1930), 4 - Francisco Adoipho Varnhagen. Histiria Geral do Brasil. Sao Paulo: Edigbes Melboramecatos. + Sido também de sua lavra: “Notas ao Diiirio de Pero Lopes de Sowsa", em que se refere aas da prognie cristd-nova, ¢ "Excertos de virias Listas de Condena- dos Pela Inquisican de Lisboa desde o ano de 1711 so de 1767, compreen— dendo s6 brasileires ou colonos estabelecides no Brasil”, ie Ree. do imssiz” Hist. ¢ Geogr. Brasileiro, 1X, 14d, ¢ tomo VIL - As liseas foram ampifadas ultimamente por Arnold Wiznitzer na revista Adnde Vanes, ano XIE. 1953. 4 + Anais do IV Simpério des Proféssores Untversitavies de Histéris, Sio Paulo, 1969, pp. 181 © segs. ~ Revita de Histiria, da USP, n.° 93, 1970, pp. 21 © segs ~ Arnold Wirniczer. Os Jedews ne Brasil Colonial, Sio Paulo: Livraria Pioneiza Editora, 1966. @ + Tratase de um volume pesado, com 1.136 folhas, de 0,43 por 0,30 em. mais ou menos. Foi redigido peto Dr. Luis Alvares dg Rocha, depois que deizou o cargo de promotor da Inquisicao em Lisboa, + O material é fareo. Basta citar 0s Cadermes da Promotaria, of Autat Pracessoats dos Rts, os bradizes das Reconciliados, 03 Livros dos Presos Ricas, os da Receita do Pesce e ourros, 8 - Sao Paulo: Livraria Pioneira Editora ¢ Edirora da Univ. de Sio Paulo, 1969. PARTE A A FORMACAO ETNICA E SOCIAL DAS CAPITANIAS DO SUL Potesi ITAIM Buenos Aires BS. Matias Capitanias Paraiba do . Norte Recife 2 Salvador By 3 a a Capitan, do Sul Ria de Janeiro Santos (As Capitanias do Sul no Século XVI Je Tordesithas CAPITULO PRIMEIRO OS CRISTAOS-NOVOS E A QUESTAO FILOGENETICA A Peninsula Ibérica foi o cadinho onde, através dos séculos, se fundiram os mais diversos grupos émicos. Ao substrato formado em tempos remotos, sobrepuseram-se sucessivamente os fenicios, os gregos, os fromanos, 05 godos, € por Liltimo, os mouros, além de numeroses filhos da Africa negra. A contribuigao dos hebreus nao se afigura menos importante, porque o luxe imigratério manteve-se quase ininterrupto, ¢ ainda que confinados em comunas separadas, judiarias ou guetos, até fim da Idade Média, casos houve de cruzamentos ¢xogamicos ¢ ndo poucos. Eles prdéprios, a fim de resistirem 4 assimilacao, defendiam a endogamiae cultivavam suas tradicGes religiosas. Nao sao, pois, de admirar, os confli- tos com as populagGes nativas desde, talvez, quando se radicaram na Peninsula. Aos motivos de ordem étnica, social e religiosa, juntaram-se, certamenre, os de narureza econémica, porquanto certos individuos da estirpe exerciam destacadas posicdes na vida publica, ao passa que outros exploravam atividades financeiras com lucros exorbitantes. Mas nao se pense que a animadversio surgida fosse generalizada, permanente € radical, ¢ sim local e extempordnea, conforme as circunsrancias. Embora de dificil absorgao, o fudeuw nunca foi inassimilével por indole. A Histéria, a5 genealogias, as inquirigGes de génere ¢ os proces- sos do Santo Oficio af esto para mostrar o contrério, comprovando a miscigenagao de parte a parte, tanto assim que nenhuma classe social escapou, fosse por bastardia ou por legitimo casamento. Lembre-se, a propdésito, que D. Pedro [, cognominado 0 “justiceiro”, teve de suas duas amantes israelitas, D.* Tereza Lourengo ¢ D4 Inés de Castro, descenden- tes que se integraram na alta nobreza. Um deles, D. Joao 1, ainda quedu- Plamente prejudicado, por causa do sangue e do abastardamento, rornou- sé 6 fundador da dinastia de Avis, sendo elevade ao trono pelo pove comum. Igualmente participavam da seiva considerada infecta, D. Afonso de Barcelos, sobrinho de D. Pedro ¢ 18 Inés, ¢ de quem se originou a furara dinastia dos Bragangas, e D* Isabel de Aragao, mulher do rei Fernando de Castela, Mesmo este carregava nas veias 0 sangue cristio- novo que the transmitira a mae, D.4 Joana Henriques.’ E quem desco- nhece 0 famoso prior do Crato, D. Anténin, pretendente 4 sucesso da coroa portuguesa em 1580? Eta cle filho do principe D. Luis ¢ de uma israelita.? Assim, ngbres e plebeus, clérigos e gente de todas as classes & profissGes participaram do caldeamento peninsular. Ainda em pleno. século XVII, quando vigoravam leis impedindo os casamentos mistes, eles se realizavam. Por esse tempo, dizia com acerto o padre jesuita, Diogo de Arede, que os cristos-noves estavam de tal modo incorpora- dos as familias cristas-velhas que nenhuma havia de consideragio isenta de sangue hebreu. Em 1674, 0 agente diplomatico da Coroa, em Roma, Gaspar de Abreu de Freitas, escreve que Portugal é uma nagao de marra- nos, cettamente em virtude da infusao do sangue hebreu pela via thatrimo- nial. Eles tinham-se incorporado em grande parte*. No cnranto, as discri- minacdes chegaram até ao governo do marqués de Pombal, quando certas casas blasonavam de seu pretenso puritanismo, fato que levou o ministroa abolir as duas etnias, obrigando-as a se conjugarem por meio de casamen- tos, Portanto, a integracdo de fata sé aconteceu depois disso. Judicinsa— mente escreveu entio o padre Alexandre de Gusmao, ridicularizando a quantos se jactavam de possuirem boa cepa, pois nao a tinham, € para isso. bastava uma anilise desde os bisavds. © préprio clero ¢ a nobreza, escudados na Inquisic¢ao, haviam revar- dado, por uma série de motivos, o efetivo entrelagamento étnico dos dois grupos. Veja-se, por exemplo, o que se passou em decorréncia das medidas decretadas por Filipe [1 a Li de marco de 1628. Em troca de elevada quantia oferecida pela gente da nacio hebréia, ele lhes concedeu, entre outras faculdades, a de se casarem, se quisessem, com pessoa de linhagem crist@-velha, conforme acabavam de solicitar. O impacto cau- sado foi wemendo e a reacao ainda maior, constrangendo o rei a voltar aurds, Na oportunidade, os israclitas foram acusados por toda a sorte de males advindos ao Reino. Propalava-se em tais escritos que eles cram os culpados pelo enfraquecimento do valor Jusitano, por terem inoculade o judaismo, religido ¢ raga, ou ainda, que o tinham debilitado pelo amor do 4

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