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ECO, Uvarets $ | PTECRADSS - PHfockutri os & Sauls + Peespechre-, 200% r~ CULTURA DE MASSA E “NIVEIS” DE CULTURA “Mas ao chegar a escrita: ‘Esta ciéncia, 6 rei, disse Teut; tornaré os egipcios mais sabios e aptos para recordar, porque este achado é um remédio itil nao s6 para a meméria, como para o saber". E disse © rei: ‘O artificiosissimo Teut, uns so habeis em gerar as artes, outros em julgar a vantagem ou o dano que pode advir a quem dclas estiver para servir-se. E assim tu, como pai das letras, na tua benevoléncia para com clas, afirmaste o contrério do que podem. Ao dispen- sarem do exercicio da meméria, elas produzirao, em verdade, o olvido na alma dos que as tenham apren- dido, © assim estes, confiando na escrita, recordarZo 33 mediante esses sinais externos, ¢ ndo por si, mediante seu proprio esforgo interior’ . .” ‘Hoje, naturalmente, ndo podemos estar de acordo com o rei Tamus; mesmo porque, nesse intervalo de algumas dezenas de séculos, o répido crescimento do repert6rio de “coisas” a saber e recordar tornou im- provavel a utilidade da meméria como tnico instru- mento de sabedoria; ¢ por outro lado, o comentério de Sécrates ao relato do mito de Teut (“estés disposto a crer que eles [os discursos] falem como seres pen- santes; mas onde quer que os interrogues, querendo aprender, nao te respondem mais que uma 56 coisa, © sempre a mesma”) est4 superado pela consciéncia diversa que a cultura ocidental elaborou do livro, da escrita e das suas capacidades expressivas, ao estabe- lecer que, através do uso da palavra escrita, pode tomar corpo uma forma capaz de ressoar no animo de quem a frua de modos sempre variados e mais ricos. Esse trecho do Fedro, no entanto, fora citado para lembrar-nos que toda modificacao dos instru- mentos culturais, na histéria da humanidade, se apre- senta como uma profunda coloca¢do em crise do “mo- delo cultural” precedente; ¢ seu verdadeiro alcance sé sé manifesta se considerarmos que os novos instrumen- tos agirao no contexto de uma humanidade profunda- mente modificada, seja pelas causas que provocaram © aparecimento daqueles instrumentos, seja pelo uso desses mesmos instrumentos. A invengao da escrita, embora reconstituida através do mito platénico, € um exemplo disso: a da imprensa, ou a dos novos instru- mentos audio-visuais, outro. Avaliar a fungao da imprensa segundo as medidas de um modelo de homem tipico de uma izagao baseada na comunicagio oral e visual é um gesto de miopia hist6rica que no poucos cometeram; mas o processo € outro, e o caminho a seguir é 0 que recen- temente nos mostrou Marshall McLuhan com o seu The Gutenberg Galaxy, onde procura enuclear exata~ mente os elementos de um novo “bomem gutenber- Mussyast Mewuan. The Gutenbers Gales. University of To a gas, ex” 36 onsen, Pe \aamiken” Eero De imibolisme. mitioo-ritualc © mess di Semumicazione “ai massa”. in Culeura nottocuitura “(1 problemi at Gee" Fiorencs, sub ad 19615- 34 guiano”, com o seu sistema de valores, em relagio av qual sera apreciada a nova fisionomia assumida pela comunicagao cultural. Assim ocorre, em geral, com os mass media: al- guns os julgam cotejando-lhes o mecanismo e os efeitos com um modelo de homem renascentista, que, eviden- temente (nao s6 por causa dos mass media, mas também dos fenémenos que tornaram possivel o advento dos mass media), n&0 mais existe. evidente, no entanto, que ser preciso discutir 0s varios problemas partindo da assungao, a um tempo hist6rica © antropolégico-cultural, de que, com © advento da era industrial e 0 acesso das classes su- balternas ao controle da vida associada, estabeleceu-se, ma hist6ria contemporanea, uma civilizagdo dos mass media, cujos sistemas de ‘valores deverao ser discuti- dos, © em relacdo a qual sera mister elaborar novos modelos ético-pedagdgicos*. Nada disso exclui o jul- gamento severo, a condenacdo, a atitude rigorist: mas aplicados em relacio ao novo modelo humano, ¢ nado em nostilgica referéncia ao velho.. Em outros termos: exige-se, por parte dos homens de cultura, uma atitude de indagacdo construtiva; ali onde habi- tualmente se opta pela atitude mais facil. E ante o prefigurar-se de um novo panorama humano, do qual € dificil individuarmos os confins, a forma, as ten- déncias de desenvolvimento, muitos preferem candi- dizar-se como o Rutilio’ Namaziano* da nova (2). ¥- g,gnssio de Dante Beit. “Les formes de expérience eve uretic!, In’ ZommuniSacions nC nano: Spareces no osm The Evolution of American Thought, organizado Dor "A,B. soeuer is Retr Ae ttaatt Se ae SET bee A eet Gigsic “da circuisgao™ dow vsidees Exeicor., Portanta, nko Lvaremas ese Se Soe is, See oer ees eee hee eee ee ee fillure, Soyigt culdedos de Berard’ Rosenters s David Mansing White, Giencoe, 1560. ee = oF ResiosChutog Mamatin, gor nine age ee eS SS ae 2 ee Pie aoe ee meres Bete oe aortas et oe Seka, he, Bec ne Se Seis conse oe ee ee. pore cease are or Ss coi Beemer See eae ee re Pa os 35 transigo. E € I6gico que um Rutilio Namaziano nao arrisca nada, tem sempre direito ao nosso comovido respeito, © consegue passar para a hist6ria sem com- ‘prometer-se com © futuro. A cultura de massa no banco dos réus As acusagées contra a cultura de massa, quando sustentadas por agudos e atentos escritores, tm uma fungo dialética propria dentro de uma discussio sobre © fenémeno. Os pamphlets contra a cultura de massa devem ser, portanto, lidos e estudados como do- cumentos & inserir numa pesquisa cquilibrada, le~ vando-se em conta, porém, os equivocos que, nao raro, Thes residem na base. ‘Na verdade, a primeira tomada de posig¢ao sobre © problema foi a de Nietzsche, com a sua individua- co da “enfermidade hist6rica”’e de uma de suas for- mas mais aparatosas, 0 jornalismo. Ou melhor, no fil6- sofo alemfo jd existia em germe a tentagdo presente a toda polémica do género: a desconfianca ante o igua- litarismo, a ascensdo democratica das multidées, o discurso feito pelos fracos para os fracos, o universo construldo nao segundo as medidas do super-homem, mas do homem comum. A mesma raiz,parece-nos, anima a polémica de Ortega y Gasset;e certamente nfio seré descabido buscarmos na basede cada ato de intolerancia para com a cultura de massa uma raiz aristocrdtica, um desprezo que s6 aparentemente se dirige & cultura de massa, mas que, na verdade, aponta contra as massas; e sO aparentemente distingue entre massa como grupo gregério ¢ comunidade de individuos auto-responsaveis, subtrafdos & massificao © & absorcdo em rebanho; porque, no fundo, ha sempre a nostalgia de uma época em que os valores da cultura eram um apandgio de classe e ndo estavam postos, indiscriminadamente, @ disposicao de todos*. Mas nem todos os criticos da cultura de massa sao classificveis nesse filo. Sem falarmos em Adorno, cuja posigfio é por demais conhecida para que a te- (2) Sobre 0 caréter clatsista de certo tipo de, polémics, V. também Uge Semrro, “sCoitura per pochl e ‘cultura per titi", im Culnura e 20%" 36 nbamos de trazer & baila, pensemos em toda a multidao de radicals norte-americanos que conduzem uma feroz polémica contra os elementos de massificag’o pre- sentes m0 corpo social de seu pafs; sua critica € in- dubitavelmente progressista nas intengdes, e a descon- fianca em relagdo A cultura de massa é, para eles, desconfianga em relacdo a uma forma de poder inte- lectual capaz de levar os cidadaos a um estado de sujeicdo gregaria, terreno fértil para qualquer aventura autoritéria. Exemplo tfpico é 0 de Dwight MacDonald, que, nos anos 30, formou nas posigées trotskistas, ¢ Portanto, pacifistas © andrquicas. Sua critica representa, talvez, 0 ponto mais equilibrado que se alcangou no Ambito dessa polémica, ¢ como tal, deve ser citada. MacDonald parte da disting4o, agora canénica, dos trés niveis intelectuais, high, middle © lowbrow (distingaéo que deriva daquela entre highbrow e low- brow, proposta por Van Wyck Brooks, em America’s Coming of Age), mudando-lhes a denominagao de acor- do com um intento polémico mais violento: contra as manifestagdes de uma arte de clite ¢ de uma cultura Propriamente dita, erguem-se.as manifestacdes de uma cultura de massa que nao é tal, e que, por isso, ele nao chama de mass culture, mas de masscult, e de uma cultura média, pequeno-burguesa, que ele chama de midcult. Obviamente, so masscult as est6rias em qua- drinhos, a mtisica gastronémica tipo rock’n roll, ou es piores filmes de TV, ao passo que o midcult é re- presentado por obras que parecem possuir todos os requisitos de uma cultura procrastinada, e que, pelo contrério, constituem, de fato, uma parédia, uma de- Ppauperacao da cultura, uma falsificagio realizada com fins comerciais. Algumas das mais saborosas p4ginas criticas de MacDonald so dedicadas a andlise de um romance como O Velho e o Mar, de Hemingway, que ele considera um tipico produto de midcult, com a sua linguagem propositada e artificiosamente liricizante, a tendéncia para configurar personagens “universais” (mas de uma universalidade alegérica e maneiristica) ; © no mesmo plano, coloca ele Nossa Cidade,de Wilder. Esses exemplos esclarecem um dos pontos subs- tanciais da critica de MacDonald: nao se censura & cultura de massa a difusdo de produtos de infimo nivel 37 e nulo valor estético (como poderiam ser algumas est6rias em quadrinhos, as revistas pomnogréficas ‘OU OS programas de perguntas ¢ respostas da 3 cemsu- ra-se ao midcult o “desfrutar” das descobertas da van- guarda ¢ “benaliz4-las” reduzindo-as a elementos de ‘consumo. Critica essa que acerta no alvo e nos ajuda a compreender por que tantos produtos de fécil saida comercial, embora ostentando uma dignidade estilistica ‘exterior, no fim das contas soam falso; mas essa critica, no fim das contas, reflete uma concepgSo fatalmente aristocrética. do gosto. Deveremos admitir que uma solugdo estilistica seja valida unicamente quando re- presenta uma descoberta que rompe com a tradicio ¢ & por isso, partilhada por poucos eleitos? Admitide © fato, uma vez que determinado estilema* chegue 2 penetrar num circuito mais amplo ¢ a inserir-se em no- vos contextos, perder4 efetivamente todaa sua forca ou conquistaré nova funcio? J4 que héuma funcéo, sera cla fatalmente negativa, isto ¢, servird agora o estilema unicamente para mascarar sob uma patina de novidade formal uma banalidade de atitudes, um com- Plexo de idéias, gostos e emocées passivas ¢ esclero- sadas? ‘Ventilou-se aqui uma série de problemas que, uma vez impostados teoricamente* deverdo submeter-se a um complexo de verificagdes concretas. Mas, diante de certas tomadas de posicio,nasce a suspeita de que © critico constantemente se inspire num modclo hu- mano que, mesmo sem ele o saber, é classista: o modelo de um fidalgo renascentista. culto ¢ meditativo m uma determinada condicio econémica permite cultivar com amorosa atencdo, suas experiéncias inte- Tiores, preservando-as de faceis comistées © garantindo thes, ciosamente, a absoluta originalidade. Mas 0 homem de uma Civilizagio de massa nfoé mais esse homem. Melhor ou pior, € outro,e outros deverao ser 0s seus caminhos de formacdo e ‘salvacio. Individuar (4) _Y. Dwtowr Macnowatn, Against the American Grain, Random fouse, New. You 3 fatenlt © aida, Howse, New. York, 1562: parsindo. do, capitulo A oe esses cammhos, e1s, pelo menos, um dos objetives. O problema seria diferente se os criticos.da cultura de massa (e entre esses hé quem pense deste modo, ¢ ent&o © discurso muda) considerassem como problema fundamental da nossa civilizagéo o de levar cada membro da comunidade a fruigdo de experiéncias de. ordem superior, dando a cada um a possibilidade de chegar a elas. Mas a posigao de MacDonald € outra: nes seus Ultimos escritos, confessa ele que, se de uma feita pendeu para a possibilidade da primeira solugao (elevar as massas a “cultura superior”), afirma agora que a brecha aberta entre as duas culturas € definitiva, irreversivel, irremediavel. Desgracadamente, a escla- recer tal atitude, surge, espontanea, uma explicagao bastante melancélica: ‘os intelectuais do tipo de MacDonald haviam-se empenhado, nos anos 20, numa agdo progressista de carater politico que a seguir acon- tecimentos internos da politica norte-americana fizeram malograr; dai porque esses homens se retiraram da cri- tica politica para a cultural; de uma critica voltada para a mudanga da sociedade passaram a uma critica aris- tocratica sobre a. sociedade, quase se pondo fora da luta e recusando toda co-responsabilidade. Com isso demonstrando, embora a revelia, que existe um modo de resolver o problema, mas que esse modo néo é apenas cultural, porque implica uma série de operagdes politicas e, de qualquer maneira, uma politica da cul- tura® Cahier de doléances Das varias criticas a cultura de massa emergem todavia, algumas “pecas de acusagao” que é preciso levar em conta*: ates) » SSeete aS Ge AnSns Scmesinems oe Cee tRrokr_ ony Naitons Sattar” PREY" ie Cubans” for he Mlbons && poe "Norman Faesbe, Sobre ‘o "uso das redzs de TV." Podese vobjetar, ante,'0 “seu oummisen® Ezenecteeas ase’ of “Sreit® ‘an’ coltara’ do snasia “tio “aie of Taela™ do ago, redullveig’ rasno airavés de ‘uma, moderads"Interrengia. proses: Sradeie do "Btindo. “Bin” cGrinon’ enoe “eformintn, main conacko. Soy Frade, deeenvolverre, 80 contratio, @ teditado volume de CosAa® MAN. fatote ‘sensu iberiay Eaters,” Took.” Warucularmente, a ‘prope 0 problema do homem novo, em (6) Quadro semelhante 30 que ceconstruimes pode ser encon- trado ‘em Teo Booant, The Age of Television, Nova York, F. Ungar Pus 39 2) Os mass media dirigem-se a um ptblico he terogéneo, e especificam-se segundo “médias de gosto” evitando as solugSes originais. b) _Nesse sentido, difundindo por todo o globo ama “cultura” de tipo “homogéneo”, destroem as ca- racteristicas culturais préprias de cada grupo étnico. c) Os mass media dingem-se a um piblico in- cénscio de si mesmo como grupo social caracterizado; © plblico, portanto, ndo pode manifestar exigéncias face A cultura de massa, mas deve sofrer-Ihe as pro- postas sem saber que as sofre. 4) Os mass media tendem a secundar o gosto existente, sem promover renovagées da sensibilidade. Ainda quando parecem romper com tradicées estilis- ticas, na verdade se adequam A difus4o, agora homo- logavel, de estilemas e formas j4 de ha muitodifundidos ao nivel da cultura superior ¢ transferidos para nivel inferior. Homologando o que jé foi assimilado desen- volvem funcSes meramente conservadoras. ‘) Os mass media tendem a provocar emogdes intensas e no mediatas; em outros termos. ao invés de simbolizarem uma emogio, de representé-la, provocam- -na; ao invés de a sugerirem, entregam-na jé confeccio~ nada. Tipico, nesse sentido, € o papel da imagem em relagdo a0 conecito; ou entéo da mtsica, como estimulo de sensagSes mais do que como forma con- templavel” f) Os mass media, colocados dentro de um cir- cuito comercial, esto ‘sujeitos a “lei da oferta da procura” Dao ao piublico, portanto, somente o que ele quer, ou, o que é pior, seguindo as leis de uma economia bateada no consumo e sustentada pela aco sasloramente in Industria, culturale socetd, 0 artigo EGGS Coie, Tei" pubicads pela Revise “Birelk”) persuasiva da publicidade, sugerem ao publico o que este deve desejar. 8) Mesmo quando difundem os produtos da cultura superior, difundem-nos nivelados e “‘conden- sados” a fim de ndo provocarem nenhum esforco por parte do fruidor; o pensamento & resumido em “f6r- mulas”; 0s produtos da arte so antologizados ¢ co- municados em pequenas doses. h) Em todo 0 caso, também-os produtos da cul- tura superior s4o propostos numa situagéo de com- pleto nivelamento com outros produtos de entrete mento; num semanério ilustrado, a reportagem sobre um museu de arte vem equiparada ao mexerico sobre © casamento da estrela*. i) Por isso, os mass media encorajam uma visio passiva ¢ acritica'do mundo. Desencoraja-se 0 esforco Pessoal pela posse de uma nova experiéncia. #)_ Os mass media encorajam uma imensa in- formaco sobre o presente (reduzem aos limites de uma crénica atual sobre o presente até mesmo as eventuais reexumaSes do passado), e assim entorpecem toda consciéncia histérica’. k) Feitos para o entretenimento € © lazer, so estudados para empenharem unicamente o nivel super- ficial da nossa atengdo. De safda, viciam a nossa ati- tude, © por isso, mesmo uma sinfonia, ouvida através de um disco ou do radio, sera fruida do modo mais epidérmico, como indicagdo de um motivo assobiavel, € ndo como um organismo estético a ser penetrado em Profundidade, mediante uma atencao exclusiva e fiel”. 1) Os mass media tendem a impor simbolos © mitos de facil universalidade, criando “tipos” pron- tamente reconheciveis e por isso reduzem ao minimo a individualidade © 0 carter concreto nao s6 de nos- pA, spin te,» Macbontis; ¢ anbin Euucp Rac. go “ANT Meemoee: een ce, Revo, Societe cota ease a eae" eee (8) Va tose de CoMEN-SEaT sobre 0 Almanacco Bompiani, op. cit. Bh aces eee A Cb Ataenaee er ti Seo and “Culture”; in Culture for the Milltons?, “Ob. tit. Sede ss reise sie petelnde S Sottad altiet te Rint tts Sear es Rhondda? Gtetenn ea Sie eases os 41

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