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Revista Portuguesa de Filosofia

Poesia e História: fundamento necessário e desdobramento possível da Linguagem - o ensino


de Martin Heidegger acerca da Essência do Pensamento
Author(s): MANUELA SANTOS
Source: Revista Portuguesa de Filosofia, T. 72, Fasc. 2/3, Percepção e Conceito / Perception
and Concept (2016), pp. 807-817
Published by: Revista Portuguesa de Filosofia
Stable URL: https://www.jstor.org/stable/44028694
Accessed: 02-04-2021 12:43 UTC

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Revista Portuguesa de Filosofia, 2016, Vol. 72 (2-3), pp. 807-818.
© 2016 by Revista Portuguesa de Filosofia. All rights reserved.
DOI 1 0. 1 7990/RPF/20 1 6_72_2_0807

Poesia e Historia: fundamento necessário e desdobramento


possível da Linguagem - o ensino de Martin Heidegger
acerca da Essência do Pensamento

MANUELA SANTOS*

Abstract

This article aims to follow the teaching of Martin Heidegger about the relationship
enterteined between poetry and history and the nexus that both phenomena entertain with
language. Our aim is to understand the real extent that the philosopher assigns to language
as the source of guidance for thought. Hölderlin s poetry is the thread Heidegger offers for
his own philosophical research to think of the meaning of what concerns History essentially,
as well as poetry and language. Taking this thread means to rise to a perspective able to see
the structure that governs all that existence is originally connected, determining it in a tacit,
incessant imperious way. We assume this is in fact considering that for both philosopher and
poet, poetry is the institution of Being housed in the word, and the historical foundation of
people.

Keywords : Heidegger, history, Hölderlin, poetry.

1. A História enquanto curso de um discurso: o destinamento do


Dasein

crito por Heidegger em seu Ser e tempo, comecemos por abordar


Em o crito Ser consonancia por deatravés
o Ser através Heidegger defáctica.
sua manifestação com Queremos
sua em o investigar
manifestação proprio seu Ser procedimento e tempo, fáctica. comecemos Queremos metodológico por investigar abordar pres-
aqui os fenómenos da poesia, da história e da linguagem. Sabemos que
Heidegger visa a poesia enquanto o fundamento da história e enquanto
essência da linguagem. Pensamos que o estudo destas questões possa ser o
passo prévio necessário para uma investigação própria de Ser e tempo que
permanece, a nosso ver, uma condição imprescindível para a compreensão
da primeira perspectiva aberta pela filosofia contemporânea a respeito do
Ser do homem - dizemos primeira, precisamente porque o esforço funda-

* Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil.


Ē3 santosmanuelaO@gmail.com

807-818

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mental da filosofia de Heidegger é o de ensinar que so agora, no auge d


perigo da era técnica, onde o homem se depara com o risco da perda d
sua propria essência, o Ser alcançou tornar-se, para o pensamento, motiv
de questão por si mesmo e revelar, assim, sua autonomia frente ao ente.
Entendemos, porém, que uma investigação de tamanha envergadura
impõe um verdadeiro preparo e um atento reconhecimento de campo do
problemas essenciais que suportam a proposta filosófica da fenomenologi
de Heidegger. Propomo-nos a esta tarefa de reconhecimento, elegendo
primeiramente a perspectiva que o filósofo oferece do que seja poesia
história, pois aquela ele apresenta como solo necessário da linguagem,
esta como possibilidade de desdobramento da linguagem doada por tal
solo. Pensamos assim, poder tornar claro o papel desempenhado pela
linguagem enquanto meio de orientação para o pensamento em sua missã
de determinar o lugar e a forma próprios da concernencia do homem
ao Ser. A História seria, portanto, a forma do desdobramento fatico d
linguagem cuja essência é poesia. Vejamos então como a linguagem s
desdobra enquanto história e talvez isto nos habilite a contemplar a forma
própria de sua essência.
Heidegger compreende a história enquanto o curso de um discurso
que constitui o Ser do homem enquanto ser-no-mundo. Este esquema,
que configura a estrutura existencial do Ser do homem nos termos de um
Dasein, se oferece como forma a priori de determinação deste Ser enquanto
pura compreensividade, instituída em vista da possibilidade própria de
sua facticidade, qual seja, a compreensão do Ser. Enquanto modo único
de ser do ser-no-mundo, a História de modo algum se determina em su
essência enquanto sequência de fatos passados ou atuais, nem, tampouco
enquanto simples verificação de caráter quer crítico quer exemplar, quer
mesmo ilustrativo de tais fatos, de tais tempos. Bem antes, a História ao se
determinar enquanto o curso do discurso constitutivo do existir human
estabelece de partida os modos e as orientações deste existir em sua tota
lidade, nesta ou naquela atualidade.
Assim, tomar corretamente a História enquanto o curso de um
discurso concernente ao existir ele mesmo é tomá-la sob a perspectiva
da estrutura ser-no-mundo, a qual compreendida, como foi afirmado
acima, enquanto a compreensividade através da qual o Ser do homem
deve se determinar em vista da possibilidade própria da sua facticidade,
se deixa apreciar nos termos de um destinamento do Dasein no interior da
linguagem. Para entendermos isto com mais precisão é necessário, ainda
que de modo muito genérico, apresentar a configuração existencial fático
-cadente que Heidegger propõe da estruturação do Ser do homem em Se

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e tempo. Tentemos aqui uma breve aproximação desse complexo proble-


mático:
Nesta obra, Heidegger apresenta e explicita o conjunto estrutural que
constitui a essência existencial-fático-temporal do Ser do homem em seu
sentido próprio de Dasein. Em sua primeira parte nos é ensinado que o
modo enquanto o qual se determina o Ser do homem nos termos de um
Dasein , isto é, de um ente determinado por uma exclusiva transitividade
no interior da linguagem , se deixa configurar através do esquema de sua
estruturação ontológico-temporal enquanto o Ser-si-antecipado-já-em-um-
mundo junto ao ente intramundano encontrado ; tal estruturação se deixa
unificar sob o nome de Cura - sentido latente e necessário à determinação
fenomenologica do que possa ser compreendido por História.
O primeiro momento ontológico-formal da estrutura constitutiva do
Dasein , o Ser-si-antecipado, determina o Ser deste ente-ontológico em sua
existencialidade exclusiva, nos termos de uma projeção em vista de um
poder-ser - o que determina de partida o Dasein enquanto um constante
Ser-em vias de..., portanto enquanto algo inteiramente outro que um ente
subsistente, tanto pelo seu caráter transitivo (integralmente projetivo)
quanto pelo o caráter devedor de seu próprio si, sempre à frente. - Aqui se
impõe uma breve observação: este Ser-em vias de... deve necessariamente
determinar o Dasein do homem enquanto iminência pura e, desta forma,
enquanto pura abertura. O que nos leva a compreender que Heidegger ao
distinguir o termo alemão Dasein separando os sentidos implicados no
conceito com hífen {Da- sein) quer acentuar precisamente a determinação
própria desse Ser-em, a qual deve orientar a compreensão do Dasein nos
termos de um ser-oaí, ou seja, de abertura e curso contínuo de abertura
concedida pelo seu Ser visado.
O segundo momento, determina tal Ser, em sua facticidade própria,
nos termos de um Já-ser-em-um-mundo; e desta forma, determina o âmbito
próprio de possibilidade deste Ser-projetivo , assinalando de imediato para
a problemática concernente ao sentido de um Ser-em e de Mundo.
O terceiro momento determina, por fim, este Ser em sua cotidia-
nidade efetiva, nos termos de um ser-junto ao ente intramundano encon-
trado. Se já tivermos compreendido os dois aspectos do segundo momento
estrutural da determinação do Dasein, o Ser-em enquanto Ser coexis-
tente assistente e ocupado, isto é, enquanto um Ser curador; e o Mundo
enquanto o âmbito de significação possível para este Ser-em e de possibi-
lidade reiterada para o seu Ser-projetivo, concluímos com facilidade que
o terceiro momento, o qual Heidegger denomina o momento da queda,

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enquanto integrante da cotidianidade do Dasein , constitui o âmbito


desdobramento efetivo da facticidade formalizada no segundo momen
Vê-se assim que, tendo presente este quadro estrutural onde se
determina o Ser do homem enquanto Dasein, torna-se possível visua
lizar os fundamentos formais da conexão estabelecida pelo filósofo en
história, linguagem e poesia, e da relação deste complexo instituidor c
o homem (não por acaso o homem é fixado aqui como segundo term
da relação, já que o fenómeno homem emerge enquanto tal da conex
ontológica em questão, em função dela mesma e, assim, do seu próp
Ser repousado nela).
Compreendida sob a perspectiva única da estrutura ser-no-mundo
isto é, enquanto destinamento do Dasein no interior da linguagem
História, em seu curso e seu discurso, se revela como o meio de orien-
tação para o entabulamento da questão acerca do quem e do como somos ,
revelando-nos os fundamentos e o percurso da estrutura compreensiva na
qual emergimos nos determinando e sempre já determinados enquanto
históricos.
No interior desta estrutura compreensiva e, portanto, existente,
entre os vários modos de diálogos em que se rege a nossa cotidianidade,
Heidegger procura elucidar um diálogo essencial que se dá com um tempo
primordial - um tempo que concerne àqueles que nele se iniciaram e que,
através de grande luta travada contra a desapropriação do seu Ser em
prol da apropriação de um Mesmo quase sempre sequestrado no curso do
si-antecipado, instituíram-no como tempo dos povos - um diálogo confi-
gurado ele mesmo enquanto História e entabulado pelos poetas, filósofos,
sacerdotes e fundadores de Estado, no âmbito fundamental da poesia, sua
pátria essencial. O âmbito desse diálogo essencial, a poesia, não poderia
ser outro que a pátria mesmo do nosso ser-no-mundo , da sua história e
dos seus povos constituídos. Heidegger assim o estabelece em parceria
com Hölderlin: "(•••) o Dasein histórico, sua ascensão, seu apogeu e ocaso
derivam da poesia, e a partir desta o saber propriamente dito, no sentido
de Filosofia."1 A História, fundada pela poesia e nela abrigada, se cons-
titui, portanto, enquanto o diálogo essencial travado pelo próprio existir
humano com o seu tempo primitivo, o qual não é nunca um tempo já
passado, mas antes é necessariamente o próprio permanente do tempo: o

1. Martin Heidegger, Hinos de Hölderlin , trad. Lumir Nahodil (Lisboa, Instituto Piaget),
56.

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sido, projetado sobre o futuro, no aberto do presente gerado nessa reite-


ração - a fonte e o guia de uma concepção temporal mais própria.
Mas se a História se funda na poesia enquanto diálogo essencial,
é preciso compreender de que modo a poesia se habilita a se justificar
enquanto um tal fundamento. Partindo desta problemática, Heidegger nos
convida a atentar para a poesia de um modo diferente da nossa habitual
atenção, a qual, revelando-se mais propriamente uma desatenção, leva-nos
a supor esse afazer essencial do existir como um jogo, e, quando muito,
como uma bela forma de expressão do real. Se a poesia engendra um
saber tal como a Filosofia, como afirmam o filósofo e o poeta (Hölderlin
o diz textualmente em seu Hipérion), isto só pode significar que a poesia
detém o caráter essencial da linguagem, porque a Filosofia é a pergunta
entabulada pela linguagem acerca do seu próprio Ser, isto é, acerca da
condição de possibilidade de sua essência e dos modos de seu desdobra-
mento.

É no discurso poético, com efeito, que acontece a salvaguar


dizer essencial da linguagem. Se considerarmos que a linguage
ocorrência própria do Ser no momento próprio de sua determ
existencial, enquanto transitividade no interior do sentido (isto e
de sua própria possibilidade fatica, ou seja, do seu poder-ser, seg
esquema cunhado em Ser e tempo), somos levados a compreender q
dizer essencial salvaguardado na poesia, ocorrido em seu âmbito p
e aludido em cada poema poetado precisamente para proceder à a
solicitada pelo próprio Ser, é, com efeito, o dizer característico do
entretido entre a linguagem e a sua essência (que não é outra sen
existência), e enquanto tal é o próprio teor constitutivo do discu
História.

Compreendido o sentido eminente da História enquanto o discurs


tácito acerca do diálogo entretido entre a linguagem e a sua essência, habi-
litamo-nos a pensar em que sentido Heidegger afirma reiteradamente q
o homem é destinado na linguagem. Entendemos tal assertiva enquanto
afirmação de que o homem se dá na e enquanto História, enquanto cur
de um discurso, que é tão-somente o curso do Ser em sua vertente exi
tencial. Mas, este "se dar" do homem na História e enquanto história é u
dar-se na verdade do Ser, verdade esta que se manifesta ela mesma ilum
nando o ente enquanto o ente que é e naquilo mesmo que ele é. Heidegg
o esclarece rigorosamente: "(...) o homem é lançado pelo próprio Ser n
verdade do Ser, para que, existindo desta maneira guarde a verdade d

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Ser, para que na luz do Ser o ente se manifeste enquanto o ente que ef
vamente é" . 2
E para deixar bem claro que linguagem e Historia não são propriedade
nem derivação de nenhum sujeito pré-estabelecido e desprovido de
Mundo, o filósofo arremata: "Se e como o ente aparece, se como o Deus
e os Deuses, a História e a Natureza penetram a clareira do Ser, como
se apresentam e se ausentam, não decide o homem. O advento do ente
repousa no destino do Ser. Para o homem, porém, permanece a questão
de saber se ele encontra a conveniência de sua essência, que corresponde a
este destino, pois, de acordo com ele, o homem é o pastor do Ser". 3 (Com
o desenvolvimento deste estudo há muito que esclarecer acerca do lugar
que ocupa, nesta estruturação desenhada por Heidegger, o conceito de
liberdade).
Se a História se revela sendo o diálogo essencial entabulado pelo
existir com o seu tempo primitivo, diálogo cujo teor constitutivo é a
própria matéria do diálogo entretido entre a linguagem e a sua essência,
se a história é concomitantemente curso e discurso, então é no interior
de ambos que se pode aprender acerca do o que e do como ocorre e vem
ocorrendo o dizer do ente na totalidade, isto é, o dizer do Ser, que afinal
é antes de tudo a manifestação do modo da correspondência histórica do
homem à vocação do Ser.

2. "Desde que somos um diálogo"

Empregamos reiteradamente o termo diálogo ao nomear a relação


entretida entre a linguagem e a sua essência e a relação entre o existir
humano e o seu tempo primitivo (pelo Ser e o tempo essencial) e apon-
tamos a poesia como o lugar de ocorrência de tal relação. Citando ainda
há pouco um trecho de Carta sobre o Humanismo, encontramos a obser-
vação de Heidegger que, para o homem permanece a questão de saber se
ele chega a encontrar a conveniência de sua essência, a qual corresponde
ao destino do Ser. Se a essência do homem se determina por uma conve-
niência ao destino do Ser, e isto de fato se confirma sendo deste modo, na
medida em que o Ser do homem se manifesta por sua correspondência ao
caráter projetivo do Ser; na medida em que o Ser do homem se comprova

2. Martin Heidegger. Carta sobre o Humanismo, (São Paulo: Centauro, 2005), 34.
3. Ibid., 34.

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Poesia e História: fundamento necessário e desdobramento possível da Linguagem 813

"inepto" para se deixar fixar nos termos de uma subsistência predicável;


na medida, enfim, em que este Ser só se deixa determinar enquanto um
Possível intransponível, se isto de fato é assim, esta conveniência a ser
encontrada permanentemente tem a sua condição de possibilidade no
puro e simples diálogo. Pois convir é precisamente acordar e manter o
acordo. Daí o trecho do poema de Hölderlin, No plácido azul floresce,
citado no frontispício deste parágrafo se desdobrar na estrofe seguinte
afirmando: "E podemos ouvir uns aos outros".
Vejamos com um pouco mais de atenção a possibilidade concreta
do dizer essencial constitutivo da poesia se determinar enquanto um
diálogo. Ponhamos três questões prévias para orientar nossa abordagem
da matéria em questão. Em que sentido o diálogo funda a conveniência
da essência do homem com o destino do Ser? E em que sentido o ouvir
uns aos outros suporta e garante esta conveniência, se é que este ouvir uns
aos outros é de fato uma relação de suporte e garantia? E ainda com um
pouco mais de insistência: o que é propriamente o ouvir?
Sobre a primeira questão, podemos responder que encontramos a
justificação do dizer da poesia dá-se enquanto diálogo, na medida em
que esta é o que instaura a verdade do Ser dizendo ao mesmo tempo a
essência do ente. Ora, tudo o que diz, di-lo a um ouvir possível; tudo o
que diz, di-lo em vista de uma conveniência, de um acordo concedido nos
termos de uma contra-dicção. Se considerarmos a seguinte observação de
Heidegger: "o que fala propriamente é a linguagem, o homem fala tão-so-
mente na medida em que corresponde à linguagem, na medida em que ele
ouve a orientação da linguagem", entendemos com precisão que o caráter
de diálogo constitutivo do dizer da poesia, não é senão o caráter de um
fenómeno cuja essência é o referenciamento. E como poderia ser dife-
rente se a linguagem se inaugura da projeção do Ser existencial para o
seu poder-ser fatico, o qual se destina no homem destinando-o, ao mesmo
tempo, em vista de si mesmo, ao destinar-se para este Ser?
Considerando que este destinamento do Ser se desdobra no interior
do sentido nos termos de um ser-no-mundo , entendemos porque há de
dar-se linguagem e, mais fundamentalmente, porque esta ocorrência se
dá determinada pela forma do diálogo. Concluímos daí que o homem é
a ocorrência desta estrutura referencial aberta em vista dela própria. A
linguagem não é, portanto, um instrumento ou um meio que pertença ao
homem, antes é ele que é matéria de emprego e o meio dela (da linguagem)
dialogar com sua própria essência acerca do seu Ser, no qual se aclara a
conveniência da essência do homem com o Ser em concomitância com a
essência própria do ente enquanto condição fatica para o Ser projetivo. E

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só porque "podemos ouvir uns aos outros", que podemos também fech
os ouvidos uns aos outros (historicamente) e subtrair-nos ao diálogo q
essencialmente somos.
Quanto à segunda questão que se pergunta em que sentido o ouvir
uns aos outros suporta e garante esta conveniência, se é que este ouvir uns
aos outros é de fato uma relação de suporte e garantia, podemos responder
de modo resumido que o ouvir verdadeiro faz o aprendizado e o ensino
da verdade instaurada e proferida. Em tal aprendizado está o suporte da
conveniência a ser mantida (porque embora formalmente ela não possa
ser abolida, do ponto de vista fatico ela pode se determinar precisamente
pela sua privação, desdobrando-se nos moldes de uma inconveniência), e
em tal ensino está a garantia dessa conveniência da essência do homem
com o Ser, enquanto a sua permanente salvaguarda.
Acerca da terceira questão que pergunta sobre o que seja realmente
um ouvir, tanto Heidegger quanto Hölderlin ensinam que ouvir verdadei-
ramente é um genuíno tomar em consideração a oferta de uma medida
adequada à relação entretida entre o homem e o Ser, oferta que a palavra
poética nos faz no ato do seu poetante dizer instaurador e revelador.
Sigamos aqui a partir desta terceira questão. Dissemos que a palavra
poética nos faz dom de uma medida, medida esta tomada por ela própria.
Perguntando então o que a palavra poética de Hölderlin determina
enquanto medida a ser tomada, ouvimos de Heidegger que a poética de
Hölderlin determina o estrangeiro (ao Ocidente) manifesto no Sagrado
como a medida própria da correspondência observada entre o Ser do
homem e a totalidade do ente, correspondência esta que é tão-somente o
que denominamos acima enquanto a conveniência de sua essência com o
Ser.

Por que o Sagrado, por que o estrangeiro? Porque a medida a ser


obtida pelo homem deve ensinar-lhe mais uma vez na História que a
relação do seu Dasein com o Mundo e com o ente nele encontrado não
cabe se determinar sob a perspectiva de uma relação sujeito-objeto - o
homem não é a medida do ente e este não é um objeto resultante de sua
ação cognoscível. O Sagrado aponta para o estrangeiro que deve nortear
o percurso de volta do homem a sua Pátria, perdida sempre já de partida
no ato mesmo do despertar inaugural do espírito, desde que vem se dando
a História enquanto esquecimento do Ser. O Sagrado, o que não se deixa
representar em sua concernencia ao Divino, ao sustentar o homem no
insuperável estrangeiro de todo o princípio, ensina-lhe o sentido próprio
do seu morar (demorar) sobre esta Terra enquanto um morar comedido
pelo entre de Céu e Terra. Este morar comedido cabível ao homem é o

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Poesia e História: fundamento necessário e desdobramento possível da Linguagem 815

morar experiente, partido do mais familiar espetáculo do Céu até a sua


máxima inapreensividade, partido da mais familiar presença da Terra
até a sua máxima imprescrutabilidade - é o próprio morar do espírito: o
morar poético. Este morar difere do morar ingenuamente meritório que
se pensa adequado para o homem tomando como um mero realizador de
feitos.
O que se põe como o determinante de um tal morar comedido pela
presença e salvaguarda do estrangeiro em seu âmbito histórico? Heidegger
deixa claro que o que se põe é precisamente a reversão do domínio da
representação sobre o conhecimento do ente, por conseguinte, a reversão
do esquecimento do Ser. O existir humano orientado pelo saber meta-
físico, isto é, pelo saber determinado pela compreensão do Ser nos limites
do ente, levou aos seguintes equívocos fundamentais na facticidade da
nossa originária compreensão do Ser: sequestrou o espírito pela razão,
elegeu esta como medida do conhecimento, estabeleceu seu limitado
saber representativo como lei do conhecimento e instaurou o horizonte
de sua possibilidade como o lugar aberto para a emergência do ente.
A partir daqui, é possível compreender a extensão dos versos de
Hölderlin na Elegia "Pão e vinho", tão discutidos por Heidegger: "com
efeito, no princípio o espírito/ não está em casa, não está na fonte".4 O
espírito não pode estar em casa, pois precisamente no momento em que
a sua pátria se abre inteira ela já se fecha deixando-lhe o dom ofertado
por seu abrimento, dom ao qual o espírito, tomando-o inadvertidamente,
esforça-se à exaustão para concernir.
Mas o espírito tem em caráter necessário que se frustrar reiterada-
mente em seu esforço de concernir ao ente enquanto pátria, pois pela
própria determinação do seu Ser enquanto "vontade experta da origem"5,
sua vocação é a de espírito para o Todo e nesta medida, os pensamentos do
espírito sendo comum ao Todo tem de inclinar-se a pensar a realidade do
real antes de pensar a ele mesmo. Se tomarmos este ensaio de Heidegger
em consonância com o seu Diálogo Para a discussão da serenidade, encon-
tramos uma clara indicação para pensar o teor próprio da ocorrência do
espírito, muito para além da estreita armadura da razão. Se o espírito é
vontade experta, isto deve significar, por um lado, que o espírito é a ocor-
rência primeira da liberdade em sua determinação fundamental e positiva

4. Martin Heidegger. Elucidations of Hölderlins Poetry, trans. Keith Hoeller. (New York:
Humanity Books, 2000), 115.
5. Ibid., 115.

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enquanto doação de começo de algo a partir de si mesmo. Em sentido


mais originário, enquanto experto, o espírito é a luz cintilada desta vo
da liberdade sobre si mesma, que enquanto possibilidade do Possível co
titui como fenómeno o redobramento contínuo do aberto de uma livre
amplidão. Por outro lado, isto deve significar que o caráter perito dess
vontade deve-se certamente à vocação condicionante e acolhedora dess
aberto, vocação desde a qual pode repousar em seu âmbito algo outro qu
ele próprio - o ente. Com efeito, o espírito não poderia ser perito em se
Ser livre se não tivesse de onde aprender sobre a sua própria liberdade
Da mesma forma que a liberdade precisa do ente para se pensar acerca
de sua própria fenomenalidade, o seu Ser precisa e emprega o homem
porquanto este se determina necessariamente pelo pensamento, para
pensar acerca do saber implicado neste Ser. E porque o espírito tende
pensar a realidade do real, porque ele é determinado pela liberdade qu
lhe concede a luz e o inflama, por mais que se intente encerrá-lo na figura
de uma razão, de uma consciência, não é possível detê-lo aí em caráter
absoluto. O espírito tende para a Pátria, como o fogo tende para o Céu
Sua Pátria é esse não-real, o âmbito exclusivo desde o qual é possível um
real, entenda-se bem, não como produto ou efeito de uma causa, mas
como sua condição apenas.
Com esta compreensão obtida da medida concedida pelo Sagrado,
pelo estrangeiro, o pensamento habilitado a visualizar o seu encerrament
histórico na prática servil da representação, pode então se preparar par
proceder ao passo de volta, proposto pela filosofia de Heidegger. Dizemo
"preparar" porque, a partir da compreensão do seu destino essencial,
o pensamento apenas pode dar início a sua paciente tarefa legada pela
consumação de seu desvio histórico, a qual é a de estabelecer de novo
as bases do seu morar sobre esta Terra, morar que é sempre ainda o seu
demorar-se na proximidade da fonte, na clareira do Ser.
Vemos que Heidegger não se deixou arrebatar pela poesia de
Hölderlin, deslumbrado pela verificação de uma suposta genialidade que
revelasse uma superioridade estilística do poeta. Sua paixão pela poesia
deste provém de sua compreensão da contribuição própria desta poética
para o esclarecimento que efetivamente foi concedido ao pensamento
acerca da sua essência e da sua missão. Ao poetar sobre o poeta, Hölderlin
fez ver o seu lugar próprio de poeta enquanto o mais genuíno preceptor
do espírito. Só o poeta pode ensinar, poetando os pensamentos essenciais
do espírito, que o sentido essencial da morada do homem sobre esta Terra
é o poético Ser-junto ao ente em vista do Ser comedido com o Sagrado.
Heidegger pôde, a partir de Hölderlin, definir com toda precisão o sentido

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Poesia e História: fundamento necessário e desdobramento possível da Linguagem 817

próprio missionário da poesia e do poeta: "Se o espírito quer alguma vez


tornar-se 'o espírito' da História de uma humanidade sobre esta Terra, é
necessário que os pensamentos poéticos do espírito se conjuguem e se
consumam na alma do poeta, porquanto este sobre a Terra e, contudo,
mais além dela, mostra o Céu e mostrando-o assim permite que a Terra
apareça em seu éter poético. Inspirada pelo espírito da poesia, a alma
do poeta é animadora, porque ela nomeia o fundamento poético do real
e traz primeiramente para a 'essência' a sua realidade mostrada através
deste. O espírito da poesia funda, pelo ofício daquele que anima o morar
poético dos filhos da Terra"6.
Concluindo este esclarecimento, Heidegger ressalta o mais funda-
mental: a alma do poeta nomeia e pode nomear o fundamento poético
do real porque o espírito que mora antecipadamente no fundamento
fundante é o espírito da poesia, e isto precisamente porque a matéria de
pensamento da poesia é a sua própria Pátria: o fogo do Céu que dá vida e
alimenta seu espírito.

Referências

Heidegger, Martin. Carta sobre o Humanismo. 2a edição. São Paulo: Centauro, 2005.
Heidegger, Martin. Elucidations of Hölderlins Poetry. Translated by Keith Hoeller. New York
Humanity Books, 2000.
Heidegger, Martin. Hinos de Hölderlin. Tradução de Lumir Nahodil. Lisboa: Instituto Piage
2004.
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Vol. 72

Fase. 2-3 0 RPF 2016

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