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© MUNDO IMAGINARIO DE CLARICE LISPECTOR ‘A auuto obras de Clarice Linpector recorenms arto. presente ‘sudo: “Pero do Corte Sevege (orange, 20 ede 196), Lire Francico alves); Lacos de Famie (100, Lira Etaicoo Aes) A Masi no Breuro’ romance, 10, Lara Prananco AWes) © A Patio Setunda’G. Ht (romance, 198, "Sen eo" AM) mana, tratando-de problemas como a argristia, 0 nada, A NAUSEA, © desenvolvimento de certos temas importantes da ficgdo de Clarice Lispector insere-se no contexto da filosofia da existéncia, formado por aquelas doutrinas ‘Que, muito embora diferindo nas suas conclusdes, par- tem da mesma intuigio kierkegaardiana do carster pré-reflexivo, individual e dramético da existéncia hu- © fracasso, a linguagem, a comunicagac das conscié ias, alguns dos quais a filosofia tradicional ignorou ou deixou em segundo plano, Nao se pretende afitmar, com isso, nem que a ficcionista va buscar as situagées ‘fpicas de seus personagens na filosofia existencial, nem 93 ‘que as intengdes fundamentais de sua prosa s6 désse conjunto de doutrinas receba o impulso extra-artistico que as justifica e anima. No entanto, é sempre possivel encontrar, na lite- ratura de fice0, principalmente na escala do romance, uma concepedo-do-mundo, inerente 4 obra considera da em si mesma, concepefo esta que deriva da atitude criadora do artista, configurando e interpretando a rea- lidade, Qualquer que seja a posicao filos6fica da escri- tora, 0 certo 6 que a concepedo-do-mundo de Cl Lispector tem marcantes afinidades com a filosofia da existencia, como no-lo revela, para darmos um s6 exem- plo, dentro dos limites déste ensaio, a experigncia da néusea, que aparece nos contos e romances da autora de Lacos de Familia, ‘A. ndusea, que Sartre descreve em A Néusea, € a forma emocional violenta da angtistia, que arrebata o corpo, manifestando-se por uma reagio orginica defi- nida. “Quando nos sentimos existindo, em confronto solitério com a nossa prépria existéncia, sem a fami- liatidade do cotidiano © a protecéo das formas habi- tuais da linguagem, quando percebemos ainda a inre- medifvel contingéncia, ameagada pelo Nada, dessa cexisténcia, € que estamos sob 0 dominio da angtstia, sentimento especifico e raro, que nos dé uma com- preensio preliminar do Ser. Foi ésse 0 sentido que Heidegger emprestou & angistia, ao descrevé-la, em Ser e Tempo, com a ter minologia da analitica existencial, Mostra-nos 0 filé- sofo alemio o quanto tal sentimento, de alcance meta- fisico, difere do médo, Tem-se médo de algo definido, de um ser particular (intramundano); tem-se angéstia sem saber de qué. & que 0 objeto desta é 0 ser-no- -mundo, a existéncia humana instantineamente reve- Jada, numa penosa experiéncia de isolamento metafisi- ‘co, como a que Pascal realizou e exprimiu, Isolamento essencial € paradoxal! Pode o homem, através da an- ‘gistia, encontrar a sua realidade de ser existente; mas € para escapar da angistia que éle se refugia no coti- iano, onde, protegido por uma crosta de palavras, por interSsses fugidios e limitados, que nfo 0 satisfazem completamente © apenas disfarcam 0 cuidado (Sorge) 94 fem que vive, passa a existir de modo piblico e impes- soal Diferente do médo, o mal-estar éa angistia pro- ‘vém da inseguranca de nossa condicas, que 6 como possibilidade origindria, puro estar-ai (Dasein). Aban- donado, entregue a si mesmo, livre, o homem que se angustia vé dilir-se a firmeza do mundo. O que era familiar torna-se-the estranho, indspite. Sua_persona- lidade social recua. O circulo proteter da linguagem esvazia-se, deixando lugar para o siléncio, A descri¢éo mais minuciosa e eslarecedora que Sartre faz désse mesmo sentimento coincide, nos pon- tos essenciais, com a de Heidegger. Para o autor de 0 Ser e 0 Nada, que utiliza outras categorias interpre- tativas, a angéstia traduz a libetdade da consciéncia, que contamina o ser em geral. J4 Kierkegaard a ela se referia, chamando-a de vertigem da liberdade. E a yertigem da consciéncia, como ser precio, falho, nfo idéntico a si mesmo (Para-si), oposto ao modo de ser das coisas (Em-si), e que cria, devido & sua propria caréncia, através das possibilidades que projeta no mundo, o sentido da existéncia, Originaria, a liberdade dimensiona 0 Em-si, sob forma de “tealidade”; mas 0 Em-si, para 0 qual se volta a consciéncia e que de certa maneira a polariza, nem com ela coincide, nem pode determiné-la. Aspirar pelo Ser 6 para o homem, con- denado 2 liberdade que a sua condicdo ontol6gica impée, “une passion inutile” A angistia nos desnuda, reduzindo-nos aquilo que somos: consciéncias indigentes, com a maldicdo © 0 privilégio que a liberdade nos da, No extremo de nnossas possibilidades, a0 qual ésse sentiment nos transporta, cla intensifica a grandeza e a miséria do homem. Da fiberdade que engrandece, e que nos torna tesponsveis de um.modo absoluto, deriva a razio de nossa miséria, Vivemos, afinal, num mando puramente hhumano, onde a consciéncia ¢ a tinica realidade trans- cendente, 2 ‘A ameaca da angistia ¢ o risco inerente a liberda- de reconhecida e assumida. Pois sc ¢ a liberdade a garantia do sentido da existéncia, a argtstia, que im- plica 0 reconhecé-la e assumi-la totalmente, pode con- duzir 2 vertigem de ser livre e resporsdvel, 20 vazio 95 gerado pela impossibilidade de aplacarmos inguie- tagio, o cuidado e a preocupacao com o futuro, Con- tudo, a angistia, que assinala a extrema Iucider @ que cchega a consciéncia em confronto consigo mesma ¢ com ‘5 séres, jamais apaga o nexo entre conscigncia © sen- tido, A'Iucidez que ela da é 0 discernimento extatico do corte que hia entre 0 nosso modo de ser e 0 ser das coisas. Désse ponto de vista, o sentimento de angistia € a consciéncia exacerbada, 0 paroxismo da liberdade. Devido a supremacia do Para-si, que entao se manifesta, como 0 que ¢ verdadeiramente real, o mundo material © 6 mundo social vacilam para o angustiado. Aflige-nos a falta de correspondéncia entre nés ¢ as coisas, os nos- S0s projetos © © mundo! Na ndusea, a supremacia do Para-si desaparece, com o sacrificio do nexo entre consciéncia e sentido. A lucidez da angéstia, que perdura, arrebatada pelo ser anénimo, @ que se reduzem as coisas circundantes © 0 pPréprio corpo humano, exterioriza-se s6 para afirmar 0 Absurdo, de mistura com 0 médo e a repugndincia que Ihe inspira © espetéculo injustficavel, gratuito, incon- trotivel, da existéncia em ato, Roguentin, © protagonista de A Neéusea, de Jean- Paul Sartre, softe 0 assédio do ser bruto, macico, que se desembuca, com a violencia de um assalto, da raiz de uma castanheira, no jardim de Bouville. © jardim, como territério humano, lugar de contemplacao amena, de repouso ¢ cio, & suplantado, de repente, por um. formigamento da existéncia que, propagado de coisa a coisa, toma conta de todo 0 universo. O corpo de Ro- quentin cede a essa corrente impetuosa do ser. no meio dda qual a sua consciéncia apenas consopue flutuar, a principio impulsionada pelo médo, depois por um certo mal-estar fisico, que se transforma na emocio ambigua, barréca, descrita como “éxtase horrivel” © “deleite atroz”, confinando com a repugnancia ¢ a célera Como @ angistia, a ndusea nao tem por objeto um ser determinado. Embora desencadeada pela contem- plagdo de uma coisa em particular, a sua causa real é © mundo, a existéncia. Numa e noutra o cotidiano ¢ 0 poder dos simbolos ficam neutralizados. Enquanto ésses estados duram, as palavras pertlem 0 migico privilégio do unir-nos ao mundo. “Les choses se sont delivrées de 96 leurs noms”, diz Roguentin. As propriedades das coisas aparentam dissolver-se no fluxo da exiséncia informe © avassalante, (0 significado da niusea, mais transtornante do que 1 angistia, no é a simples descoberta da existéncia, como fato irredutivel, absoluto. E, também, a desco- berta de que ésse fato € contingente, totalmente gratuito, reduzinde-se ao Absurdo, que nenhuma razao, nenhum fundamento podem eliminar. A consciéncia, embebida no Absurdo, descobre-se supérflua, irrelevante. Sua li- berdade paralisada apenas esboca, como nas emocdes violentas, uma recusa, uma reagdo de fuga, que entio se manifesta pelo desejo de vomitar: niusea Esse aspecto fisico da néusea existencial deriva de ‘duas circunstincias. Primeiro, a cxisténcia revelada apresenta-se in concreto. £ algo latejante, animado, na imatéria fisiea ¢ nos organismos vegetais € animais: suas qualidades nao s20 apenas atributos da_matéria, mas Verdadeiras qualificacbes ontoldgicas (as raizes slo massas monstruosas © moles etc.). Segundo, essa pre- senca sensivel, excessiva, saturante, do Em-si, associada 2 capacidade de proliferacao indefinida do organico, en- gurgita a consciéncia, forcando-a a experimentar-se nfo como conscigncia situada no corpo, mas como floragio carnal, to existente quanto a carne fspera da raiz que penetra na terra, quanto a carne mole da cobra que dor me ao sol. A raiz da arvore, a cobra, o homen, participam da niiesma contingéncia absurda ¢ inumans, do mesmo cre- pitar da existéncia indefinida que, numa vitalidade indi- ferente 0s nossos. projetos, propaga-se de ser a ser. Violentada por aquilo que nfo pode compreender, pa- ralisada em sua liberdade, no podenco negar e trans- ender essa revelagio do Absurdo, a consciéncia decal. Enguanto dura 2 nausea, faz-se came ¢ organismo. Acumpliciando-se com @ existéncia andnima, experi- ‘menta suprema repugnincia pelo mundo. A néusea € ‘0 seu modo absurdo de repelir a fascinectio do Absurdo, {gue toma o mundo insuportavel e repelente (“aveuglan- te indecence”) ‘A néusea, assim deserita, € 0 momento excepcio- nal, privilegiado, por que passam os personagens de 97 Clarice Lispector mas ctises decisivas. Daremos trés exemplos tipicos. ‘Ana, Personagem de “Amor”, um dos contos de Lagos de Familia, angustia-se a0 ver um cego que masca chicles. Sua desagregacdo interior € profunda: cai-Ihe do colo 0 saco de tric das compras, 0 embrulho de ‘o¥os esparrama-se no chao. Fsse momento de profunda crise jé era esperado, A angtistia cresce, a emogao agrava-se, toma conta do corpo de Ana, mulher quieta, de vida organizada. £ um mal-estar (respiragio opres- sa ete.) que surge do mundo para sujeitar a consciéncia 20 descontrole do corpo. “O mundo se tornava de névo uum mal-estar, Varios anos ruiam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus proprios dias, parccia-the ‘que as pessoas na rua eram perictitantes, que se manti- ‘aham por um mfaimo equilfbrio & tona da escuridio © por um momento a falta de sentido deixava-as to livres que elas nao sabiam para onde ir. Perceber uma auséncia de lei foi tio siibito que Ana agarrou-se a0 bbanco da frente como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que nio o eram.” (Lagos de Familia, p. 27.) No Jardim Botanico, onde Ana jd transiommada ‘entra, o ambiente colorido e ameno de um fim-de-tarde transforma-se, de stbito, num viveiro de agitadas exis- téncias, Bastou que visse um gato, cheio de secretos Podéres. Logo principia por todos os lados 0 assédio das coisas, i estranhas, mobilizando f6rgas secretas, que se derramam em acio indormida. Presengas sensiveis, outrora familiares, repentinamente estendem garras ccultas, destilam sumos, elaboram volumes ¢ camages. Sto os movimentos incontrolaveis porém serenos da mac quina do mundo, em pleno funcionamento, Sem des- continuidade, no giro da existéncia proliferante, que fascina e repugna, essa méquina fabrica a vida e a morte. “Ao mesmo tempo que imaginério — era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas alias ¢ tulipas. Os troncos eram percorridos por para- sitas folhudas, 0 abraco era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulhet tinha nojo ¢ era fascinante... As érvores estavam carregadas, 0 mundo era tao rico que apodre- cia.” (Lagos de Familia, p. 29.) Esse mundo carnoso, tirgido, era nauseante. 98. e © segundo exemplo encontramos em Martim, de A Maga no Escuro, o homem que se impée a obrigacio de nao pensar, mas de ser. Um dos momentos decisivos de sua experiéncia de renovagio, no eaminho da con- uista de si mesmo, é a descoberta ¢ a tentativa de assi- milagio dos elementos sensiveis, brutos, penumbrosos, proliferantes ¢ fortes da vida num curral de vacas, Nessa atmostera de entranhas palpitantes, Martim encontra, sob forma de vida ativa, de matéria operante, que segue curso impassivel, 0 sérdido, © fecal. Coisas afins se entremesclam em mistura hostile repulsiva: matéria- -prima com a sua propria luminosidade, energia com a sua auréola, agitacdo obscena com o set halito © a sua fragrincia. “Por nojo, o homem que repentinamente se tomara de n6vo abstrato como uma unha quis recuar; enxugou com o dorso da mio a béca séea como um. ‘miédico diante de sua primeira ferida, No limiar do estdbulo, no entanto, éle pareceu reconhecer a luz mor- tiga que se exalava do focinho dos bichos. Aquéle ho- ‘mem ja vira ésse vapor de luz evolando-se de esgotos em certas madrugadas frias. E vica essa luz se emanar de lixo quente, Vira-a também como uma auréola em t8mo do amor de dois cachorros; e seu préprio halito ‘era essa mesma luz,” (A Maca no Escuro, pp. 104-105.) No final désse romance, o her6i, que fracassa no debate contra 0 pasado que nao conseguiu desfazer, conhece, de névo, o estado de nausea. Jé é desta vez, porém, “aquéle gisto suave como se fivesse atingido o outro Iado da morte, aquéle ponto minimo que ¢ 0 pono vivo do viver, a veia no pulso”. Gésto suave que Produz em Martim uma esperanca atsurda, sem rcle~ ‘@Bes com 0 crime cometido muito antes, e com as pes- sous que o rodeavam. Trata-se de uma “esperanca im- pessoal”, que redunda na propria negagio da esperanca, Proxima da quietude das coisas aceitas e vividas inde- endentemente de confianca ou temor, do Bem ou do Mal, @ expectativa quieta, silenciosa, que nada mais pede ao futuro e ao pessivel, recua para dentro de si mesma, tornando-se compreensio myude, ou entrega ine- vitével ao Ser, Essa compreensio iiltima € antecipada em muitas outras passagens anteriores da narrativa, t6- das as vézes em que Martim, caindo em éxtase diante da vida impessoal da Natureza, vislumbra a conexio de 99. sua existéncia com a de todo 0 universo, conexio a que a ndusea emprestaré um cunho de participagao orginica, So os momentos de “descortinio”, assim chamados pela romancista os instantes de compreensao fechada, no alvorégo de um éxtase selvagem, sem entendimento ex- plicito ¢ sem palavra: “Ali era o escuro ar de que vive uma coisa viva. E Martim estava bem cercado pelas coisas que éle entendia: as méscas desovavam. Eo sentido daquilo era o sentido mais primeiro daquele homem: estava ali como se houvesse um plano que éle ignorava, mas a que uma planta se agregava com a béca ‘© a que éle proprio correspondia sentando-se muito evi- dentemente na pedra — sentar-se numa pedra estava-se tornando sua atitude mais inteligivel e mais ativa... E a coisa era de tal modo perfeita que até a perspectiva da distincia se agregava quele mundo sem Deus. Pois ‘quando © homem erguia os olhos — as drvores distan- ‘es eram tio altas, tao altas como uma beleza: o homem grunhia aprovando, - Quanto mais estipido, mais em face das coisas éle estava”. (A Maca do Escuro, p. 91.) Em A Paixdo Segundo G. H., 0 desencadeante da néusea € uma barata que a personagem-narradora vé, no quarto da empregada, saindo de dentro de um banal guarda-roupa. Condensam-se, pouco a pouco, em t6rno désse inseto, sentimentos contradit6rios que vaio cres- endo. A comum aversio das donas-de-casa por bara- tas, 0 simples nojo fisico, o médo, ¢ até o stbito interésse despertado pelo inseto caseiro, dio lugar a uma estra- nha coragem, misto de curiosidade de impulso sédico- -masoquista, com que G. H., fechando a porta do guar- da-roupa sébre © corpo do animal, perpetra 0 ato decisive. Um nojo mais violento revolve-lhe 0 estémago e seca-the a bica diante do espeticulo da barata truci- dada, £ que a mulher, entGo, comecou verdadeiramente a ver pela primeira vez a sua vitima; e vendo-a, desco- briu o ser que nela havia, a matéria organizada em cas- cas, antenas ¢ olhos, matéria crua, viscosa, repelente, gue escorreu, pastosa, do corpo esmagado. Mas, de imediato, através disso tudo que sentia, da néusea que 4 dominava, G. H. resvala para o éxtase: descobre, afinal, que ela ¢ @ barata participavam da mesma exis téncia nua, ancestral, inumana, ¢ possuiam 2 mesma identidade,’ “Como chamar de outro iodo aquilo hor- 100 rivel e cru, matéria-prima e plasma séeo, que ali estava, enquanto cu recuava para dentro de mim em ndusea séea, eu caindo séculos e séculos dentro de uma Jama — era lama, e nem sequer lama ja séca, mas lama ainda tmida’e viva, era um lugar onde se remexiam ‘com lentidio insuportavel as raizes da minha identida- de.” (A Paixdo Segundo G. H.. p. 57.) Em “Amor”, a ndusea é a crise que suspende a vida cotidiana da personagem. A Iembranca dos filhos, a presenca do marido, ainda tém fércas para reter Ana 2 beira do perigo de viver, que diante dela se abre como tum abismo sem fundo, Em A Maca no Escuro, o estado nauseante associa-se a0 descortinio instintivo que coloca Martim no plano reificado e orginico da Natureza. Mas jé em A Paixdo Segundo G. H.. 0 mesmo estado nauseante significa “desorganizagao” completa do ser social da enigmética personagem, Qs sentimentos co- muns (o sentimentério) no acodem, como no conto de Lacos de Familia, por nés referido, para reter G. H. & beira do abismo do Ser. © aprofundamento da néusea, como revelaciio do Ser e via mistica de unido com a sua inexpressavel rea~ lidade, € a nota marcante de 4 Paixéo Segundo G. H. Narra-sc ai uma experiéncia espiritual contradit6ria, em que o sacrificio e o sacrilégio se confundem, a redengi0 significando a anulagio da personalidade € 0 amor a enirega do Eu a pottncias césmicas indiferenciadas, ndo-éticas, que tém um lado sombrio e diabélico, infer- nal, e outro luminoso € divino. Ja podemos discenir, nesse ponio, a modificacio que a experigncia sartreana da néusea’sofreu na obra de Clarice Lispector. A partir dessa experiéncia, Jean- -Paul Sartre conferiu aos seus personagens uma liber- dade fundamental. Justamente porque a néusea revela © Absurdo, é preciso criar o sentida que a existéncia no possui. Bsse sentido, que deriva tinica ¢ exclusiva ‘mente da liberdade, e 6 sustentado pelos nossos atos, impde-se apesar da ndusea e contra 0 Absurdo. Para Clarice Lispector a néusea apossa-se da liber- dade'e a destréi, B um estado excepcional ¢ passageiro que, para a romancista, se transforma numa via de acesso A existéncia imemorial do Ser sem nome, que as relagdes sociais, a cultura ¢ o pensamento apenas 101 recobrem. Interessa-the 0 outro lado da nausea: o re- verso da existéncia humana, ilimitado, caético, origi néio, “Escuta, diante da barata vive, a pior descoberta foi a de que o mundo ngo é humano, ¢ de que nao somos humanos.” Essa revelacio humilde e arrasadora de G. H. poderia ser uma réplica a conhecida afirmacao sartreana de que nés vivemos num mundo essencial ‘mente humano, “od il n'y a que des hommes” Finalmente, € A Paixio Segundo G. H., conformé mostraremos no capitulo seguinte, exclusivamente de- dicado ao exame désse romance, 0 roteiro de uma experiéncia méstica (sumamente helerodoxa, pot certo), a pela néusea, culmina no éxtase do Abso” Ito idéntico ao Nada, terminando reticenteniente pela desisténcia da compreensio © da linguagem — o que ‘vem a ser uma forma de consagrar e divinizar o Silencio, 102 A EXPERIENCIA MISTICA DE G. H. ‘Vimos anteriormente que na ficgio de Clarice Li pector 0 estado de néusea atinge © méximo desenvol- vimento em A Paixéo Segundo G. H., onde vai ter fun- io espiritual marcante, 0 que por si 96 bastaria para Comprovar 0 quanto ésse estado adquire na obra de nossa romancista sentido muito diferente da experiéncia de Roquentin, o personagem de A Néusea, de Jean-Paul Sartre. Rojuentin nao adere ao absurclo da existéncia re- velado pela néusea, nem se entrega ao ser indiferenciado, prolifico, repugnante ¢ sedutor que ¢ domina, provo- ceando em sua consciéncia um misto de nojo, de repulsa, 103

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