You are on page 1of 11
AFTER POTTER, QUE FUTURO PARA A BIOETICA GLOBAL Daniel Serréo* Apés a morte de Van Rensselaer Potter, em 6 de Setembro de 2001, na sua residéncia de Wisconsin (USA), aos 90 anos de idade, parece-me legitimo e, talvez, até, necessdrio, colocarmos esta questéo: como ira evoluir o pensamento de Potter, sem Potter? Van Potter nao foi um fildésofo; estes sempre tém quem os siga, os complete, os contradiga, ou, até, quem atraigoe o seu legado intelectual. Para citar apenas alguns, direi que Aristételes, Platéo, Tomas de Aquino, Kant ou Heidegger est&o presentes no actual debate filosdfico, como se estivessem ainda vivos e a intervirem nas cdtedras universitdrias ou nos congressos internacionais. Muito recentemente, a propdsito de uma efeméride, Kant ocupou paginas e pdginas das revistas dedicadas a estu- dos filos6ficos, esteve presente em coldéquios e seminarios e até viu publicados alguns textos inéditos pelos quais nao teria tido grande apreco em vida. Mas Van Potter nao era fildsofo nem era médico. Foi um eminente investigador em bioquimica da cancerizagio experimental e humana no McArdle Laboratory for Cancer Research, tendo cunhado uma sentenca que dizia assim: “oncogénese € ontogénese bloqueada”. O que significa, trocado em mitidos, que Potter pensava, com base em resultados experi- mentais, que 0 organismo constréi o cancro tal como constréi os 6rgaos no desenvolvimento embriondrio e na regeneragao de érgdos no adulto; mas se 0 processo de diferenciagao celular que dar4 origem aos 6rgaos do corpo for bloqueado, por defeito genético ou por acgéo epigenética, * Professor Catedratico Jubilado da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, Membro do Conselho Nacional de Etica para as Ciéncias da Vida. 272 Bioknica ov BiokTICAs Na EvoLucAo Das SOCIEDADES entao a célula fica a dividir-se sem controle e ao produto dessas divisées celulares incessantes chamamos cancro. Esta visdo, que diria apenas filo- s6fica quando foi apresentada, est4, hoje, mais do que confirmada, com © conhecimento do mecanismo de accdo de oncogenes ¢ antioncogenes, dos diversos factores de crescimento celular e do processo de apoptose. Recentemente a transformagdo em neoplasias de células matriciais (stem cells), tanto em cultura como desenvolvidas in vivo, porque nao “obede- cem” aos factores de diferenciacdo exdgenos (accfio ontogenética), é uma clara confirmagio de que a oncogénese € ontogénese bloqueada. Esta capacidade de olhar para a actividade cientifica, que era 0 seu trabalho de todos os dias, com uma preocupagao de andlise intelectual e de reflexao ética, é muito evidente no discurso que proferiu como Presi- dente da American Cancer Society (ter sido eleito Presidente atesta o respeito dos cancerologistas americanos pelo seu valor como cientista) intitulado “Humility with responsibility — a Bioethics for oncologists” publicado no Cancer Research, a primeira revista de cancerologia expe- rimental do mundo, discurso este que nao tem merecido muita atenc’io por parte dos estudiosos dos contributos de Van Potter para a ética. E um texto dificil no qual procura expor uma metodologia cibernética para o exercicio da bioética, ou seja, para o cruzamento, horizontal e vertical, entre saberes biolégicos — anatomia, fisiologia, bioquimica, genética molecular, etc. — e os saberes éticos — antropologia, sociologia, hist6- ria, filosofia, teologia, etc. — para atingir 0 wisdom, a sabedoria bioética que Potter define como “the knowledge of how to use knowledge for human survival and for improvement of the human conditions”. A sua proposta final é que a informagao biolégica, armazenada no ADN celular, como meméria que se exprime para construir 0 corpo, num esforgo gran- dioso que transforma o caos da matéria inerte na ordem da estrutura vital, deve ser compaginada com a informagao de toda a reflexdo intelectual, armazenada nas ideias abstractas, como memoria ética da espécie que, igualmente, transforma o caos do pensamento primitivo num corpo orde- nado e légico de ideias para a salvagio dos homens, ao longo do tempo bioldégico. Em dois outros artigos — “Getting to the year 3000: Can Global Bioethics overcome evolution’s fatal flaw’? e “Global Bioethics: Linking 'V.R. Potter, “Humility with Responsibility - A Bioethics for Oncologists. (Presidential Address)”, 1975, pp. 2297-2306. 7 V. R. Potter, “Getting to the Year 3000: Can Global Bioethics Overcome Evolution’s Fatal Flaw?", 1990, pp. 89-98, AFTER POTTER, QUE FUTURO PARA A BIOETICA GLOBAL, 273 genes to ethical Behavior’ — 0 pensamento de Van Potter torna-se muito mais amplo e profundo, comegando a apresentar ressondncias messianicas que atraiem discipulos jovens e estimulam debates fora dos Estados Unidos. Resumindo as teses de Potter nestes dois artigos, sem atraigoar a sua postura cientifica e ética, destaco duas convicgdes chave. A primeira € relacionada com a biologia evolutiva (archeo-biologia, Ibe tenho eu chamado) e diz assim: 1, O objectivo da evolugio, a sua teleonomia, € tornar os membros de uma espécie cada vez melhores e cada vez mais bem adaptados ao seu nicho ecolégico. 2. Para lograr este objectivo a natureza promove as mutagdes que sio titeis no imediato mesmo que essas mutagdes possam ser fatais no longo termo (fatal flaw). 3. As extingdes em massa, particularmente depois da publicagio de S. J. Gould intitulada “Wonderful Life” sobre os achados em Burgess Shale, relacionados com a explosao cAmbrica, confirmam, segundo Potter, 0 conceito, adaptado de Dobzhansky, de que “a selecgao promove o que & imediatamente Util mesmo que a modificagio possa ser fatal no longo termo”. 4. Ha metabolitos essenciais 4 vida. Para Horowitz a primeira en- tidade possuidora da vida (proto-célula Ihe tenho chamado) era comple- tamente heterotrofica reproduzindo-se 4 custa de moléculas organicas pré-fabricadas no seu meio ambiente. Quando neste meio ocorra uma deplecg’o destas moléculas a multiplicagao da unidade proto-celular é deprimida e pode até terminar, extinguindo-se essa unidade. Uma muta- cdo (casual? espontinea? induzida pelo stress biolégico dessa proto- -célula?) permitira a utilizagao de outros componentes do meio ambiente a custa dos quais a dita unidade celular vai conseguir dividir-se e sobre- viver, Este acontecimento biolégico imprevisivel tera permitido a evolu- ¢4o da bio-sintese e a expansio do que chamamos vida. Mas se nao existirem as condigdes para que este mecanismo mutacional funcione, como acontece quando é destrufdo 0 componente orgdnico do meio ambiente, as formas de vida extinguem-se na totalidade. 5. Potter propde um conceito novo: a extingao ocorre nas espécies que desenvolvem adaptagdes cada vez melhores para sobreviverem num meio, adaptagdes estas tao perfeitas e eficientes que acabam por esvaziar + V. R. Potter, “Global Bioethics: Linking Genes to Ethical Behavior”, 1995, pp. 118-131. 274 BIOETICA OU BIOETICAS NA EVOLUCAO DAS SOCIEDADES © meio ambiente dos metabolitos necessdrios 4 sua sobrevivéncia; aca- bam porque a sua especializagdo adaptativa optimizada os tornam depen- dentes de metabolitos que, para a espécie, passaram a ser metabolitos essenciais a vida e que ela vai usar até que se esgotem no meio ambiente. Darei um exemplo para tornar mais clara a hipdtese de Potter. No decurso da evolugdo alguns seres com respiragdo aquatica lograram adaptar-se 4 respiragdo aérea; mas fizeram-no de forma tao perfeita que ficaram depen- dentes desta forma de oxigenagio e serao extintos em massa se as Aguas dos oceanos, um dia, cobrirem todos os continentes. 6. Usando este conceito e aplicando-o, por analogia, ao homem actual, Potter, propde a seguinte tese: “in pursuing perfect adaptation the evolutionary process has built into each member of the human species an instinct for short-term gains so strong that no prescient individual, committee, religion, or private organization has so far been able to conceive or effect a cultural milieu that could adequately balance the short-term instincts of human individuals with the long-range needs of the species. The goal of global bioethics is to recruit “true believers” who can see the need for future as well as currently oriented cultural change, and who can influence governments, locally and globally, to achieve adequate voluntary control of human fertility, the other forms of human dignity, and the preservation and restoration of the natural environment. These are the minimal requirements for what I have described as acceptable survival, in contrast to mere or miserable survival. The goal of acceptable survival is what university graduates should be promoting but are not because our culture has been unable to overcome the fatal flaw. The malignant expansion of the “most perfectly adapted species” may in the long run foil any effort to overcome the fatal flaw.” Cinco anos depois (1995) Van Potter, j4 com 84 anos de idade, publica o artigo ja referido “Global Bioethics: Linking genes to ethical behavior”. E um artigo particularmente complexo e de leitura dificil para quem nao tenha algum conhecimento da neuro-biologia humana, em especial da sua aplicagéo 4s decisées comportamentais. Vou tentar sintetizar o corpo principal do artigo. 1. Louvando-se em A. Damasio, Potter comenta que se o célebre doente Phineas Gage tinha um comportamento altrujsta, com sentido de responsabilidade pessoal e respeito ético pelos outros, e perdeu estas caracteristicas comportamentais apds a lesdo cerebral, entio o cérebro humano esta funcional e estruturalmente capacitado para promover com- AFTER POTTER, QUE FUTURO PARA A BIOETICA GLOBAL 275 portamentos éticos e esta capacidade devera estar inscrita na informagaio que permite aos genes fazer aparecer um cérebro com a referida capaci- dade. So os controversos “genes éticos” propostos pela psicdloga ame- ricana Sandra Scarr. 2. S. Scarr afirma que cada ser humano nasce com um conjunto de genes que levam & construgao de um fenétipo (direi o fenétipo especifi- camente humano) que tem capacidade para seleccionar 0 seu proprio meio social e cultural no qual este fendtipo (ou seja cada pessoa) se desenvolvera, desde o nascimento até A maturidade e & morte. Vale dizer, afinal, que o ser humano nasce preparado para fazer escolhas em relagao a tudo o que 0 rodeia, a seleccionar algumas das experiéncias perceptivas e, deste modo, criar 0 seu proprio meio ambiente interiorizando e memo- rizando as percepgdes seleccionadas (transformadas, assim, em valores, direi eu). Esta visio do desenvolvimento humano no interior da cultura exte- rior simb6lica (no conceito luminoso de Merlin Donald"), que pode ser ameacadora, agressiva, intolerante, mesmo cruel, apresenta 0 ser humano dotado de um cérebro criativo e dindmico, cuja capacidade de aprender e de experimentar novos ambientes externos, para os interiorizar pelo mecanismo perceptivo cerebral, amplifica os efeitos do gendtipo (genes éticos) sobre 0 fendtipo (decisées comportamentais). Este homem €, entdo, conhecido como um ser de relagdo e um ser socidvel porque dispde de um cérebro geneticamente construido para que 0 possa ser. 3. Tal como todas as outras caracterfsticas corporais que estao registadas nas informagdes gendmicas e tém uma hist6ria evolutiva, no tempo, também esta caracteristica de comportamento ético e relaciona- mento social, exibida pelo cérebro humano, tem uma histéria temporal. Usei a expressio archeo-ética num artigo publicado em 1996 para abrir © debate sobre a génese temporal do que hoje chamamos personalidade ou autoconsciéncia humana, enfatizando uma realidade incontorndvel: o homem ético nao foi sempre como se apresenta hoje porque, no homem, © “animal ético” precedeu, no tempo, o “animal racional”. Potter imagina esta evolugio afirmando que as primeiras capacida- des humanas, geneticamente constitufdas através das actividades cere- brais, destinavam-se a assegurar a sobrevivéncia no dia-a-dia imediato e no curto prazo mas eram “cegas” em relagio ao futuro. Merlin Donald chama, a esta fase, cultura episédica que é geralmente reconhecida no 1 Cf, Merlin Donald, Origens do Pensamento Moderno, 1999. 276 Biotrica ov Blogricas NA EVOLUGAO DAS SOCIEDADES comportamento dos Primatas nao-humanos (interessantes e instrutivos desenvolvimentos deste conceito podem ser encontrados em Frans de Waal, The Ape and the Sushi Master. Cultural reflections by a Primato- logist’). Com a informacao codificada neste conjunto de genes, o fendtipo humano € adaptativo e consegue sobreviver e reproduzir-se mudando os produtos da informagio segundo, por exemplo, a temperatura ambiente (mais tecido adiposo, mais espessamento e pilosidade do revestimento epitelial, etc.) a altitude, a relagdo proteinas/hidratos de carbono e muitas outras caracteristicas fisicas. Estas modificagdes que podem incluir, claro esta, alteragdes na expresso “cultural” rudimentar sido eficazes no pre- sente € no curto termo mas ameacam a sobrevivéncia no futuro, no longo prazo. Por isso, Potter, como referi, tem chamado a esta limitagdo do genoma humano para garantir a sobrevivéncia do ser humano no mundo natural, 0 “fatal flaw”, o defeito fatal do genoma humano. 4. Para explicar a sobrevivéncia e 0 sucesso desta espécie peculiar que é a espécie humana, Potter propde a existéncia de genes “éticos” que moderam 0 defeito fatal e promovem o desenvolvimento de caracteristi- cas fendtipicas outras que possibilitam a percepgdo ou consciéncia do futuro, como 0 altruismo, a responsabilidade e a decisio ética, porque tais fendtipos sdo receptivos as mensagens éticas que emanam dos outros seres humanos, quer presentes, contemporaneos, quer passados, hist6ri- cos. Para Sandra Scarr um recém-nascido tem jd os genes “éticos” — leia- -Se, genes que irao constituir um corpo capaz de decisées éticas — mas nao tem ainda o fenétipo adequado que s6 com o tempo fica funcional. Tempo, aqui, significa que os produtos dos ditos genes éticos — um cére- bro e um corpo humanos — vio interagir selectivamente com 0 ambiente fisico e social para produzirem, entio, um fenétipo com capacidade para decis6es éticas. Para Potter a capacidade ética da inteligéncia humana emergiu da comunidade de seres humanos dotados ja de inteligéncia emocional e reflexiva e pode ser contemplada, por exemplo, nos manda- mentos que Moisés apresentou ao povo hebraico atribuindo-Ihes uma origem divina, tao transcendentais eles eram para aquele grupo de huma- nos que erravam pelo deserto do Sinai 4 procura de uma terra para se fixarem e sobreviverem. Com esta hipétese evolucionista da aquisigio da capacidade ética pelos humanos fica exclufdo o dualismo cartesiano e tudo 0 que de errado Cf. Frans de Waal, The Ape and the Sushi Master Cultural reflections of a primatologist, 2001. AFTER Porter, QUE FUTURO PARA A Broética GLOBAL 277 se construiu sobre ele, quer no campo da ciéncia quer no dominio filo- s6fico. Como proposta metodolégica para o estudo do homem a distingao entre res extensa e res cogitans tem as suas virtualidades pragmaticas mas, como explicagio da realidade humana, da natureza especifica dos humanos, é um desastre. 5. Como consequéncia das consideragées anteriores Potter avanga com uma definig&o de Bioética Global nestes termos, estritamente biolé- gicos: é a conservagdo e a propagagdo do ADN especifico das espécies e a manutengao da sua variabilidade intraespecifica. Para cumprir este objectivo a Bioética Global ha-de conseguir criar um acordo entre o Homem e a Natureza para que a vida da nossa espécie seja sustentével e sustentada. Neste contexto Potter analisa 0 conceito de sobrevivéncia, definindo cinco categorias, a saber: + A mera sobrevivéncia, que serd, hoje, 0 que foi outrora a sobre- vivéncia dos cagadores/recolectores. * A sobrevivéncia miseravel, que € representada naquelas areas da Terra onde as doencas parasitérias, a fome, as lutas fratricidas, a sida semeiam a morte ou geram vidas de miséria, ffsica e cultural. * Sobrevivéncia ideal sera a de pessoas e povos, com cuidados de satide para todos, sem doengas preventveis e evitaveis, sem fome, com habitag’o condigna para todos, sem guerras nem outras for- mas de morte do homem pelo homem. * Sobrevivéncia irrespons4vel € a dos muito ricos que ignoram os muito pobres, com degradacao e deplecgio da biosfera, e a do sobreconsumo de bens materiais para alimentar uma economia de sucesso cujos proveitos sao arrecadados por uma minoria que, por sua vez, gera e mantém esta cultura dominante. * Sobrevivéncia aceitavel € 0 objectivo da bioética. Aceitével para quem e aceitével por quem, é legitimo perguntar. A resposta de Potter é: aceitdvel para todos os povos do mundo e aceitével por quem tenha um sentido universal do que é moralmente reto e bom e que, realisticamente, podera ser mantido no longo termo. Nao é 0 mesmo que desenvolvimento sustentdvel porque este nao tem implicita uma constricao moral. Sustentavel € em termos econémicos, apenas, e desenvolvimento significa muitas empresas de sucesso; e tem uma perspectiva apenas antropocéntrica. A sobre- vivéncia aceitdvel de Potter é, também, antropocéntrica mas olha para o homem no contexto da biosfera reconhecendo a urgente 278 Bioética ou BIOETICAS NA EVOLUCAO pas SOCIEDADES: necessidade de proteger toda a natureza viva. Nas palavras de Potter, “Global Bioethics, calls for moral responses based on continually developing the best possible understanding of the world and humankind’s place in it. As an evolving morality, global bioethics must proceed with humility, responsibility, and compe- tence explicitly directed toward the long-range survival of the human species, and coupled with a genuine compassion for present populations in terms of protection of human dignity”. Mas Potter morreu. Que perspectivas para o futuro do seu pensa- mento inovador e, em certa medida, profético? Refiro, em primeiro lugar, 0 nome e os propésitos de quem se considera a si préprio como herdeiro de Van Potter. Peter Whitehouse*’, neurologista e geriatra mas com grau de Mestre em Bioética, foi amigo pessoal e colega de Potter e com ele publicou, como segundo autor, um artigo’ no qual apela para o renascimento da bioética potteriana submersa pela bioética como ética médica e de cuida- dos de satide. Brunetto Chiarelli’, que dirige, em Florenga, o Instituto Internacio- nal para o Estudo do Homem, criou uma Associacao Europeia de Bioética Global, colocada sob 0 alto patrocinio de Van Rensselaer Potter e alterou © titulo da revista do Instituto de “Problemi di Bioetica” para “Global Bioethics”. Apés a morte de Potter publicou um nimero especial (Vol. 14, n.° 4, Dezembro 2001) com onze artigos, nove sobre a vida e 0 pensa- mento de Van Potter e dois de Potter um dos quais com Lisa Potter, sua familiar e investigadora no McArdle Laboratory for Cancer Research. Darryl Macer'’ nao se apresentando como conhecedor do pensa- mento de Potter, que nunca refere, escreveu um livro “Bioethics is love of life: an alternative textbook”, publicado em 1998 que é rigorosamente potteriano na sua estrutura e no lugar que atribui ao amor nas rela- © Cf. Peter J. Whitehouse, “The Rebirth of Bioethics. A tribute to Van Rensselaer Potter”, 2001, pp. 37-46. 7 Cf. Peter J. Whitehouse, “In Memoriam. Van Rensselaer Potter: the original bioethicist”, 2001, pp. 47-48. * Cf. VR. Potter e P. J. Whitehouse, “Deep and Global Bioethics for a Livable Thitd Millennium”, 1998, p. 9. ° Cf. Brunetto Chiarelli, “Biological and Evolutionist Foundation of Ethics”, 2001, pp. 59-62 Cf. Darryl Macer, Bioethics is Love of Life: an alternative textbook, 1998. AFTER POTTER, QUE FUTURO PARA & Biogtica GLOBAL 279 gdes humanas e na relagio do homem com 0 mundo natural. E cito “we can do our best to minimize harm to life, a principle of ecocentrism (thinking from the view of an ecosystem) that results from a love of life and diversity. Nature does have an intrinsic value, which is its love of life, and this may be applied to the broader ecosystem not only the components organisms, the biocentric view, or the view of human beings, an anthro- pocentric view.” David Abram", um filésofo, doutorado na Universidade do Estado de Nova York com uma tese sobre Merleau-Ponty e a fenomenologia da percep¢ao e um influente doutrinador ecologista, escreveu um livro revo- jucionario, The spell of the sensuous, que é uma forma brilhante de explorar, até ao fim, a tese central de Potter (que nao cita e nao tera lido) das relagdes entre o homem e a natureza viva como estratégia de sobre- vivéncia. Nas suas palavras, “A genuinely ecological approach does not work to attain a mentally envisioned future, but strives to enter, ever more deeply, into the sensorial present. It strives to become ever more awake to the other lives, the other forms of sentience and sensibility that surround us in the open field of the present moment. For the other animals and the gathering clouds do not exist in linear time. We meet them only when the thrust of historical time begins to open itself outward, when we walk out of our heads into the cycling life of the land around us.” Finalmente Edward O. Wilson", que organizou em 2000 na Acade- mia das Ciéncias de Nova York uma conferéncia intitulada “Unity of Knowledge: The Convergence of Natural and Human Science”. No discurso de abertura da conferéncia, que cobriu um vasto leque de temas, Wilson afirmou que disciplinas do conhecimento que chama- mos “borderline” como a neuro-ciéncia da cognigao, a genética humana, a sociobiologia humana e a antropologia bioldgica, deverao, em breve, oferecer-nos uma concep¢ao adequada das ciéncias da natureza e das ciéncias do homem. A esta unidade Wilson chama “consilience”, palavra nao registada no Diciondrio de Oxford (nem o equivalente portugués nos nossos diciondrios). Por “consilience” ou consiliéncia deve entender-se — segundo a minha interpretagao do que Wilson tem adiantado, que nao é muito claro — uma convergéncia em busca de um sentido que ainda se procura mas ja se afirma. A convergéncia serd entre os dados obtidos pelas ciéncias do homem ¢ pelas ciéncias da natureza; a “consiliéncia”, ' Cf, David Abram, The Spell of the Sensuous, 1996. 2 Cf, E. O. Wilson, “How to Unify Knowledge”, 2001, pp. 12-17 280 Biogtica ou BioétIcAs NA EvoLucAO DAS SOCIEDADES que deve ser vista como um projecto de investigagao, surgira quando 0 cruzamento destes dados cientificos fizer sentido, tiver um sentido, per- mitir uma explicagdo superior, abrangente e nao redutora. Claro que é legitimo pensar que dispomos dos meios para efectuar 0 exercicio de busca da “consiliéncia”, ou seja para verificar se ha uma unidade fundamental do conhecimento. Para jd, contudo, olharemos para a “consiliéncia” como um mito novo que dard, como mito, alguma satisfagao 4 necessidade humana de descobrir um sentido. O futuro diré se a abolig&o das fronteiras criadas pelo conceito de disciplina cientifica — fisica, quimica, matemiatica, ge- nética, biologia molecular e tantas outras — dard lugar a uma sabedoria que seja de facto trans-disciplinar. Ora este projecto de E. O. Wilson é, em rigor, o programa da bioética como drea do conhecimento cientifico que emerge do feed-back entre todos os saberes sobre a vida e suas manifestag6es concretas, para criar uma sabedoria que, nas palavras de Van Potter, use todos estes saberes disciplinares para conseguir garantir a sobrevivéncia de cada ser humano no Mundo. Todos estes cinco autores que acabo de citar — e poderia citar mais alguns, embora de menor peso — constituem o after Potter. Ainda que alguns o nao citem e talvez nado conhegam a sua vasta obra escrita, todos sdo continuadores da intuigéo genial de Potter. Conta Peter Whitehouse que Potter andou, durante meses a tentar encontrar as palavras certas para exprimir a necessidade de balancear a orientagao cientifica da medicina com os valores humanos; primeiro escolheu exobiologia, mas quando ia na sua bicicleta, de casa para 0 McArdle Laboratory, a palavra aparece-lhe — Bioética. E ficou. Como escrevi noutro lugar'’, “bioética nao é apenas uma palavra de facil sucesso nos meios de comunicagio social. Ou me engano muito ou a reflexo profunda, que a palavra suscita nalguns dos mais brilhantes e responsdveis espiritos do nosso tempo, vai abrir 0 caminho para que a Bioética seja a grande e generosa utopia do séc. XXI, sobre a qual se ira construir uma economia global mais justa, uma ecologia mais sensata, uma politica mais responsdvel e uma religido mais alegre — tudo con- tribuindo para a realizagio do melhor bem dos seres humanos em paz.” " Daniel Serrao, “Bioética. A aventura de uma utopia saudavel”, 1996, pp. 59-66. AFTER POTTER, QUE FUTURO PARA A BoE TICA GLOBAL. 281 Bibliografia Aram, David, The Spell of the Sensuous. Vintage Books, New York, 1996. CHIARELLI, Brunetto, “Biological and Evolutionist Foundation of Ethics”, Global Bioethics, 14 (4), 2001: 59-62. DONALD, Merlin, Origens do Pensamento Moderno, Lisboa, Fundago Calouste Gulbenkian, 1999, Macer, Darryl, Bioethics is Love of Life; an alternative textbook, Tsukuba, Eubios Ethics Institute, 1998. Porter, V. R., “Humility with Responsibility — a bioethics for oncologists. (Presidential Address)”, Cancer Res., 35, 1975: 2297-2306. Porter, V. R., “Getting to the Year 3000: can global bioethics overcome evolution’s fatal flaw?”, Perspect. Biol. Med., 34, 1990: 89-98. Porter, V. R., “Global Bioethics: linking genes to ethical behavior”, Persp. Biol. Med., 39, 1995: 118-131. Porter, V. R. e WHITEHOUSE, P. “Deep and Global Bioethics for a Livable Third Millennium”, The Scientist, 12 (1), 1998: 9. SERRAO, Daniel, “Bioética. A aventura de uma utopia saudavel”, Coldquio / Ciéncias, 18, 1996: 59-66. Waat, Frans de, The Ape and the Sushi Master. Cultural reflections of a primatologist, New York, Basic Books, 2001. WurreHouse, Peter J., “In Memoriam. Van Rensselaer Potter: the original bioethicist”, Global Bioethicts, 14 (4), 2001: 47-48. WuiTEHoUsE, Peter J., “The Rebirth of Bioethics. A tribute to Van Rensselaer Potter”, Global Bioethics, 14 (4), 2001: 37-46. WiLsoN, E. O., “How to Unify Knowledge”, Annals of the New York Academy of Sciences, 935, 2001: 12-17.

You might also like