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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIAS FACULDADE DE EDUCAGAO tf PROGRAMA DE POS-GRADUAGAO EM EDUCACAO RACHEL BENTA MESSIAS BASTOS RAGA E HISTORIA A metamorfose do negro no contraponto do mito da democracia racial GOIANIA - GO 2013 bi PRPG $ secre a eter Ed UFG TERMO DE CIENCIA E DE AUTORIZAGAO PARA DISPONIBILIZAR VERSGES ELETRONICAS DE TESES E DISSERTAGOES NA BIBLIOTECA DIGITAL DA UFG Na qualidade de titular dos direitos de autor, autorizo a Universidade Federal de Goids (UFG) a disponibilizar, gratuitamente, por meio da Biblioteca Digital de Teses e Dissertacdes (BDTD/UFG), regulamentada’ pela Resolugdo CEPEC n° 832/2007, sem ressarcimento dos direitos autorais, de acordo com a Lei n® 9610/98, o documento conforme permisses assinaladas abaixo, para fins de leltura, impresso ¢/ou download, a titulo de divulgacéo da produco cientifica brasileira, a partir desta data. 1. Iden ‘agdo do material bibliogréfico: [ ] Dissertagao [x] Tese 2. Identificaco da Tese ou Dissertacéo: Nome completo do autor: Rachel Benta Messias Bastos Titulo do trabalho: Raga e histéria: a metamorfose do negro no contraponto do mito da democracia racial. 3. Informacées de acesso ao documento: Concorda com a liberacio total do documento [x] SIM [NAO Havendo concordncia com a disponibilizagéo eletrénica, torna-se Imprescindivel 0 envio do(s) arquivo(s) em formato digital PDF da tese ou dissertagéo. Radad Beebo. Wi. Roster ‘Assinatura do(a) autor(a)* Ciente e de aie i} I ‘Assinatura fid(b) orientador(a)? Data: 02 / 08/17 merece Beeps i o, 1 Neste caso o documento seri embargado por até um ano 2 partir da data de defesa. A extensio deste prazo suscita {justificativa junto & eoordenagio do curso, Os dados do documento nio serio disponibilizados durante o periodo de embargo. ‘Caos de embargo: Solicitagdo de regisre de patente = Submissio de artigo om revista cientfica Publicagio como capitulo de livro ~Publicago da dissertagao’tese em livro *A assinatura deve ser escancada, ‘Veo aualizada em main de 2017, RACHEL BENTA MESSIAS BASTOS RAGA E HISTORIA A metamorfose do negro no contraponto do mito da democracia racial GOIANIA 2013 Tese apresentada ao Programa de Pés- Graduagio em Educagio da Faculdade de Educagao da Universidade Federal de Gods, como parte dos requisitos para obtencao do titulo de Doutora em Educagéo. Orientadora: Profa. Dra. Anita Cristina Azevedo Resende dos Linha de pesquisa: Fundamentos Processos Educativos -GO Ficha de identificac&o da obra elaborada pelo autor, através do Programa de Gerago Automatica do Sistema de Bibliotecas da UFG. Bastos, Rachel Benta Mesias. Raga e Histéria: manuscrito] : @ metamorfose do negro no contraponto do mito da democracia racial / Rachel Benta Messias Bastos. - 2013, xi, 196. COrientador: Prof. Anita Cristina Azevedo Resende. ‘Tese (Doutorado) - Universidade Federal de Goiés, Faculdade de Educagao (FE), Programa de Pés-Graduacao em Educagao, Goidnia, 2013. Bibliogratia. 4. raga. 2, historia. 3. metamorfose do negro. 4. mito da democracia racial |, Resende, Anita Cristina Azevedo, orient. I. Titulo. cous7 PROGRAMA DE Faculdade POs.cRADUACAO io ee u de Edi PPGE EA EDUCACAO enero EG) ATA DA REUNIAO DA BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE TESE DE RACHEL BENTA MESSIAS BASTOS - Aos viote ¢ nove diss do mis de agosto do ano de dois mil e treze (29/08/2013), as 14h, reuniram-se os componentes da Banca Examinadora: Anita Cristina Azevedo Resende, doutora em Ciéncias Sociais pela PUC/SP; Jean Luiz Neves Abreu, doutor em Historia pela UFMG; Romilson Martins Siqueiea, doutor em Edueacio pela UFG; Nubia Ferreira Ribeiro, doutora em Educacio pela PUC/SP ¢ Maria Margarida Machado, doutor em Educagio pela PUC/SP para, sob a presidéncin da primeira, e em sessio piiblica realizada nas, dependéncias da Faculdade de Educacio, procederem a avaliagao da defesa de tese intitulada: “Raga © Histéria: a metamorfose do negro no contraponto do mito da democracia racial”, em nivel de Doutorado, area de concentracio em Educagdo, de autoria de Rachel Benta Messias Bastos, discente do Programa de Pés-Graduacio em Educagio da Universidade Federal de Goi. A sessio foi aberta pela presidente da Banca Examinadora, Prof Dr" Anita Cristina Azevedo Resende, gue fez a apresentacio formal dos membros da Banca. A palavra, a seguir, foi concedida 4 ‘autora da tese que, em 20 minutos, procedeu 4 apresentacio de seu trabalho. Terminada a apresentacio, cada membro da Banca arguiu a examinanda, tendo-se adotado o sistema de didlogo sequencial ‘Teeminada a fase de arguicio, procedeu-se a avaliagio da defesa. Tendo-se em vista o que consta na Resolugio n° 1063/2011 do Conselho de Ensino, Pesquisa, Extensio e Cultura (CEPEC), que regulamenta o Programa de Pés-Graduagio em Bducacio ¢ procedidas as correcdes recomendadas, tese foi APROVADA por unanimidade, considerendo-se integralmente cumprido este requisito paca fins de obtengio do titulo de DOUTORA EM EDUCAGAO, pela Universidade Federal de Goits. A conclusio do eusso dar-se~i quando da entrega na secretaria do progsama da versio definitiva da tese, com as devidas correcdes. Cumpridas as formalidades de pauta, as 18h a presidéncia da mesa encerrou esta sessio de defesa de cese e, para constar eu, Rosfngela Magalhaes M. de Oliveira, secreviia do Programa de Pés-Graduacio em Educagio, lavrei a presente Ata que, depois de lida e aprovada, sect assinada pelos membros da Banca Examinadora em ttés vins de igual teor. | whe. Resende. Prof. acucee Ab me Membro~ UFUMG Prof’ De* Anital President | av) Wwibindomuce Vibrinn Prof the! Remaast Marine Siqusca Prof De Nibia Fereeiea Ribeiro Membro=PUC/GO- a Membro ~ FE/UFG: Prof De ER raieto ean rete snwersidade Fedaral de Goias : 0 Ox, tugeob dra Linc ‘saa ree a3 Ao sublime amor em negro e branco. Aos meus pais, José Pereira Bastos e Maurina Messias Bastos. AGRADECIMENTOS Esses agradecimentos constituem um ciclo — cientffico, profissional e familiar — de rupturas e continuidades engendradas pelos desdobramentos da conjuntura histérico- social de formag4o humana, Assim, agradego: A Universidade Federal de Goiés (UG), especificamente A Faculdade de Educagaio (FE), por proporcionar uma educago ptiblica de exceléncia em nivel de graduagao, mestrado ¢ doutorado. A professora Anita Cristina Azevedo Resende, pela formago determinada pelo rigor dos conhecimentos, pelo estudo sistematico das categorias e pela convivéncia intelectual mediada pelos profundos debates no campo das ciéncias sociais, das artes, da literatura... Muito obrigada pelo “percurso” de orientagio, 0 que me possibilitou uma formagiio objetiva, intelectual, mas também subjetiva! A professora Maria Margarida Machado, pela “acolhida” incondicional num momento em que a minha insergiio no mundo do trabalho nao se efetivou por escolha, mas por condigdes de sobrevivencia na materialidade histérica. Agradeco pela oportunidade de participar das atividades e estudos da pesquisa relacionada ao Instituto Federal de Educagdo, Ciéncia e Tecnologia de Goias (IFG), possibilitando-me a reflexio a respeito da atividade profissional que se iniciava naquele momento (8/2010). A vocé, professora, sou eternamente grata! A professora Marilia Gouveia de Miranda, pelo processo formativo proporcionado pela experiéncia da Iniciagdo Cientifica (IC) ¢ pela orientagiio no Mestrado. Agradego pelo seu auxilio durante esses doze anos, 0 qual atingiu dimenstes académicas e pessoais. Obrigada pela valiosa contribuigdo referente ao trabalho de qualificagao da tese. Ao professor Jean Luiz Neves de Abreu, da Universidade Federal de Uberlandia (UFU), pelo conhecimento ¢ pelo estudo sobre as matrizes intelectuais que formularam o pensamento social brasileiro. Agradego pelas manhiis de estudo, “quase individual”, da disciplina Histéria Politica nos escritos sobre o Brasil. Agradeso, desde jé, pelo aceite para compor a banca de defesa desta tese. A professora Nibia Ferreira Ribeiro, pelas contribuigdes referentes a leitura do trabalho de qualificagao desta tese, a partir dos seus estudos sobre a Sociologia Brasileira, Agradego pela convivéncia durante anos decorrente das atividades de pesquisa, Planilhas, planilhas!! As professoras Miriam Fabia, Lueli, Keila, Susie e Maria do Rosario, pelo afeto e 0 incentive constante por meio de palavras de perseveranga que contribufram essencialmente para a continuidade © desenvolvimento deste trabalho intelectual. Agradego a vocés por manterem a “chama” da esperanga! As professoras Gina, Edna, Virginia e Mona, do Niicleo de Estudos ¢ Pesquisas em Educagiio, Cultura e Educagaio (NEPPEC/FE/UFG), e também as professoras Marilia e Anita, pela oportunidade, no decorrer de doze anos, de aprender com o grupo 0 que é ‘um processo formativo a partir da pesquisa cientifica. As atividades — estudo teérico, debate, participagdo em eventos cientificos, estagio com os bolsistas ~ proporeionadas por este niicleo constitufram-se 0 “diferencial” para minha formagao académico- cultural, Além de tudo, possibilitaram-me “ver o mar a vista”! Aos professores Ildeu Coélho ¢ Ged Guimaries, do Programa de Pés-Graduagao em Educago (PPGE/FE/UFG), por instigarem a busca pela génese do conhecimento por meio do rigor dos coneeitos e do estudo teérico dos clissicos. E também agradego as funcionarias Rosangela ¢ a Ana Paula, pela presteza em auxiliar os discentes do PPGE. ‘Aos colegas doutorandos Lénin, Cynthia, Guillermo, pelo companheirismo e pelos didlogos na orientagao coletiva, Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnolégico (CNPq), pela bolsa concedida para a realizagiio desta tese. Ao Instituto Federal de Educagio, Ciéncia © Tecnologia de Goiés (IFG/Campus Itumbiara), pela possibilidade de organizagao do trabalho pedagdgico considerando a situagio do docente em formagiio académica, Agradeco a todos, gestores, funcionarios e colegas professores, Agradego, especialmente, amiga Ana Paula, que me “acolheu” em seu lar num momento em que a insergo no mundo do trabalho se tornou inevitivel. A partir desse momento, emergiui uma valiosa amizade pautada pela cumplicidade, companheirismo, didlogos pessoais, profissionais e intelectuais. E a amiga Ligia Andrade, cuja amizade surgiu da afinidade de “almas” e por uma reciprocidade incrivel de afeto. A Mynara Melo Borges, orientanda de Iniciago Cientifica (IC/CNPg/EM), pelos estudos, discusses tedricas instigantes, acerca do desenvolvimento da pesquisa sobre as ages afirmativas no IFG. Agradego pelo comprometimento e dedicagio aos estudos. A amiga Soraya, pelo carinho e pela cumplicidade no decorrer da nossa formagio intelectual e principalmente porque extrapolou esse mbito ¢ se fortaleceu na vida pessoal. Vocé também mora no meu coragao! As amigas Kaithy e Luciene, cujas trajetérias de vida assemelham-se 4 minha propria vida, em virtude da luta continua ¢ contraditéria entre a formagao intelectual e 0 mundo do trabalho. Agradego a vocés pela nossa grandiosa amizade! As amigas Aquira, Nayra, Leticia e Simone pela amizade decorrente da graduagio, perdurando no tempo de tal forma que se tornou lagos familiares. As colegas Camila, Juliana, Leilyane e Renata a amizade mediada pela insergo no mundo da cultura A Anita Rocha ¢ Luzimar a prontidao em auxiliar nas circunstancias cotidianas. A Ana Carolina, pela escuta e intervengiio nos processos da dinamica da vida, Enfim, aqueles que constituem a plenitude da minha vida, a minha familia, Aos meus pais, cuja oportunidade de estudo limitou-se, em fungaio da condigdo social. Agradego, assim, ao meu pai e poeta do sertdio, que incentivou cotidianamente este percurso formativo! A minha mie, pelo amor sublime, pelo apoio e pela determinagiio em relagao aos enfretamentos da vida, A Millamay Alice, irma ¢ eterna amiga que carinhosamente duplicou o nosso amor com novas vidas, as princesas brancas Alice Rachel e Isabel Rachel. Minhas sobrinhas que nasceram (respectivamente, em 2010 e 2013) imersas a convivéncia com esse processo formativo. A vocés agradego pelo “sentido” da sublimagdio do amor. Ao meu irmao Sancho, pelo apoio, pela tranquilidade em relagao aos processos da vidal Ao meu cunhado Robson, pelo companheirismo e pelo didlogo. Ao Moisés, 0 principe negro, cujo amor é eterno! Agradego pela cumplicidade e sinceridade de uma vida que comegamos e pretendemos construir juntos! Agradego pela sua atuago como “poeta” nos momentos em que o trabalho intelectual nos distanciou de forma imperativa, em busca do desfecho desejado: o término desse ciclo formativo. Amo voeé, Gregori O homem vem ao mundo inacabado, Mas transforma-se em uma espécie de pequeno deus, ainda que tenha que trabalhar para viver. E precisamente no trabatho que se exterioriza, expressa. Todo produto da atividade humana configura-se também como realidade espiritual. O homem se manifesta em coisas, fatos, acontecimentos que se ‘apresentam como realizagdes com significado. Ao eriar, cria-se a coisa e 0 sentido, Criatura, Assim se formam a semente e o fruto, 0 algodio e 0 tecido, a casa e 0 lugar, 0 livro e 0 poema, 0 teatro e 0 espetdculo, a escultura e 0 movimento. Da mesma maneira formam-se 0 gesto, 0 traco, a imagem, 0 som. Tudo expressa a dialética criador € criatura. Em tudo 0 homem se revela, amplia, multiplica. Parece un deus TANNI SUMARIO RESUMO. x Abstract... xi INTRODUCGAO. 12 CAPITULO 1 RACA E HISTORIA: AS FORMAGOES SOCIAIS DO CICLO DO CAPITAL... 22 1.1 “Novo Mundo”: uma formagaio da era do ciclo do capital 26 1.2 Brasil Negro: uma particularidade hi: do “Novo Mundo™.. 42 1.3 Miscigenagiio: uma singularidade da formagiio do povo brasileiro. 60 CAPITULO 2 RAGA E CLASSES: A METAMORFOSE DO NEGRO EM CIDADAO. 2.1 A configuragao politico-econémica do Brasil modemo.... B 2.2 Brasil nagao: a miscigenagaio como caleidoscépio da relagao individuo- sociedade, 85 2.3 O negro cidadaio na era do capital: a complexa pritica politica...scnssmmnne 102 CAPITULO 3 RAGA E POLITICA: A RECONFIGURAGAO DO MITO FUNDADOR. 108 3.1 Questo racial: dilema da modernidade-mundo.. 14 3.2 A democracia racial: a reconfigurago do “mito fundador” na era global... 128 3.3 A afirmagdo da igualdade politica e da diversidade étnico-racial como justiga social para a raga negra. 134 CONSIDERAGOES FINAIS... 143 REFERENCIAS.. 150 RESUMO, BASTOS, Rachel Benta. Raga ¢ histéria: a metamorfose do negro no contraponto do mito da democracia racial, 2013. 157f. Tese (Programa de Pés-Gradua Educagiio) — Faculdade de Educagao, Universidade Federal de Goiss, Goidnia, 2013. Esta tese postula que 0 jogo das forgas sociais da modernidade engendrou as transformagées constitutivas do negro imbricadas pelas tramas politico-sociais de criagdo e recriagaio do mito da democracia racial. A investigagtio envolveu o descortino da questio racial, como universalidade inerente 4 condigio humana de relago com 0 outro igual e diferente, Assim, optou-se, como metodologia de pesquisa, pelo estudo de natureza bibliogrifica. E, a partir da compreensio da fecundidade intelectual das matrizes que formularam 0 pensamento social brasileiro, definiram-se como principais referenciais tedricos desta tese as obras de Octavio Ianni e Florestan Fernandes, haja vista os estudos pioneiros sobre as relagdes raciais no Brasil, especificamente sobre a raga negra. A realizago da pesquisa tedrica permitiu, assim, estabelecer as seguintes categorias: raga, historia, classe e politica. Tais categorias legitimam conclamam as contradigdes determinadas pela mediago da raga como nexo constitutive dos desdobramentos das relagdes sociais condicionadas pelas determinagGes histéricas, de classe e das politicas. Compreende-se que a raga é uma categoria logico-histérica, uma construgo social. Nesse sentido, a par das singularidades constitutivas da questo racial, portanto, das trés ragas, optou-se por estudar especificamente a raga negra, 0 negro brasileiro em constituigdo, transformagio, diluigdio e recriagdo histérica no jogo das forgas sociais. Como estudo e investigagao dessa problematica, trés capitulos foram propostos a partir do desdobramento das relagdes inter-raciais e da perspectiva do Brasil negro: “descobrimento/consolidago”, “identidade nacional/modemizagao” e “reparo histérico/mito fundador”. O primeiro tem como propésito desvelar e elaborar o significado do passado da raga negra na formagio do povo brasileiro. O segundo capitulo expde a contradigao raga-classe como transig‘lo e ruptura da época colonial e monérquica para o proceso de constituigio do Brasil modemo, proveniente da metamorfose da nago, do tipo social, da sociabilidade, da cultura e da condiga0 do negro na trama social. O terceiro busca aprender os desafios da contradigao raga-classe na contemporaneidade, por meio das especificidades conjunturais, desde caleidoscépio da miscigenagiio com a ideologia da inexisténcia do conflito inter-racial até a contemporaneidade das politicas de Estado com a discriminagaio positiva. Conclui- se que o descortino da metamorfose do negro reconfigurada pelo mito da democracia racial é 0 desvelamento da relago raga-classe. Historicamente, a raga, a condigao de raga, foi configurada e legitimada pela identidade, pela marca social que & a cor. A condigio de classe ~ a pertenga a uma classe social — ficou subsumida & proclamagdo da democracia, cidadania, diversidades. O que esti em questo é um passado presentificado pelas contradigGes oriundas do capital. Assim, proclamam-se ideais de igualdade em nome de ideais de uma “identidade racial” que se afirma e se resolve na aparéncia. A condig&o socioeconémica tomou-se elemento positivo de insergao, ou seja, de incluso social, na politica, que se deslocou de lugar, tornando-se determinago mundial Palavras-chave: raga; historia; metamorfose do negro; mito da democracia racial. ABSTRACT. BASTOS, Rachel Benta, Race and history: the metamorphosis of the black contrast the myth of racial democracy. In 2013. 157F. Thesis Program (Graduate Education) - Faculty of Education, Federal University of Goids, Goidnia, 2013. This thesis posits that the interplay of social forces of modemity engendered transformations constitutive of black interwoven plots by socio-political creation and recreation of the myth of racial democracy. The research involved the insights of race as universality inherent human relationship with equals and different. Thus, it was decided, as a research methodology, the study of bibliographic nature. And, from the understanding of intellectual fecundity of mothers who formulated the Brazilian social thought, defined as the main theoretical framework of this thesis works of Octavio Tani and Florestan Fernandes, given the pioneering studies on race relations in Brazil, specifically on the black race. The research allowed theoretically the establishment of the following categories: race, history, class and politics. Such categories legitimize certain contradictions and call the mediation of race as constitutive of unfolding nexus of social relations conditioned by historical factors, and class policies. It is understood that the race is a logical-historical category, a social construction, Accordingly, the pair of singularities constitutive of the racial issue, so the three races, we chose to specifically study the black race, the black Brazilian constitution, transformation, dilution and historical recreation of the social forces at play. How to study and research this problem, three chapters were proposed from the split of interracial relationships and the prospect of black Brazil: "discovery / consolidation", “national identity / modernization" and “note history / founding myth", The first aims to reveal and elaborate the meaning of the past of the black race in the formation of the Brazilian people. The second chapter exposes the contradiction as race-class transition and rupture of the colonial and monarchical to the process of constitution of modern Brazil, from the metamorphosis of the nation, the social type, sociability, culture and condition of the social fabric in black . The third attempts to grasp the challenges of race-class contradiction in contemporary, through the specific term from the kaleidoscope of miscegenation with the ideology of the lack of inter-racial conflict until the contemporary state policies with positive discrimination, We conclude that the insights of the metamorphosis of black reconfigured by the myth of racial democracy is to reveal the relationships race-class. Historically, race, race condition, was set by the identity and legitimized by social mark that is the color. The class condition - belonging to a social class - was subsumed to the proclamation of democracy, citizenship, diversity. What is in question is a past-present the contradictions arising fom the capital. So proclaim themselves ideals of equality in the name of ideals of a "racial identity" that affirms and resolves in appearance. The socioeconomic status became positive element insertion, social inclusion policy, which moved from place to become global determination. Keywords: race, history; metamorphosis of black; myth of racial democracy. INTRODUCAO, Esta tese, intitulada Raga e histéria: as metamorfoses! do negro no contraponto do mito da democracia racial, postula que a condig&o do negro na sociedade brasileira & determinada histérica ¢ socialmente ¢ esté implicada no processo de modemizagao e criagtio/recriagtio do mito da democracia racial. Essa postulagiio sustenta-se na pesquisa” realizada no doutorado, cuja investigagio envolveu o descortino da questio racial,’ como universalidade inerente 4 condigao humana de relagfo com o outro igual ¢ diferente, e 0 exame da problematica racial considerada como a metamorfose das ragas* em povo, em cidadio. Tomada a partir de distintas conjunturas da histéria politico- social do Brasil, a questo racial é constitufda e constitutiva da formagtio do povo indigena, e revela a criagao € brasileiro, por suas mesclas derivadas das ragas luso-negr a recriagio do mito da democracia racial. Essa investigagio objetivou desvelar os nexos constitutivos da metamorfose do africano em negro escravo pertencente ao sistema escravocrata ¢ da ruptura ¢ 0 termo metamorfose é um conceito desenvolvido tanto por Octavio lanni, como se pode verificar nas obras As metamorfoses do escravo: apogen e crise da escravatura no Brasil Meridional (1962) € Eseravismo e racism (1978), quanto por Florestan Femandes em O negro no mundo dos braneas (2007) €-A integragao do negro na sociedade de classes (O legado da “raga branca”, v. 1; No limiar de uma nova era, v. 2) (2008a, b). Para os autores, a metamorfose refere-se a0 processo de configuracao do africano negro € mulato em escravo e do escravo em operitio/cidadao a partir da ruptura da sociedad agrério- ‘exportadora para a urbano-industrial. Ianni (1978) afirma que a metamorfose é a dupla alienago do negro ‘escravo a negro operirio, ¢ a dupla alienaco do negro em relagto a sua raga € a sua condigao de classe. Fernandes (2007) explica que a metamorfose do negro estérelacionada a0 processo de exclusto soci, 20 preconceito de cor em detrimento da raga. O termo metamorfose também faz parte dos estudos de Tanni (1999, 20022, 2004a,b,¢, d, 2011) sobre a era da globalizagio, O termo € apropriado para explicar sobre a ‘metamorfose da historia e sobre a metamorfose do cidado do mundo provenientes do ciclo de expansio & concentragto do capital 2 © objeto desta pesquisa originou-se a partir da participacdo principalmente da coleta de dados, do projeto de pesquisa “As contas da dialética inclusto-exclusto: a experiencia das cotas na coordenado pela profa. Anita Cristiana Azevedo Resende, em 2009. Esse projeto faz parte das ati de pesquisa desenvolvidas no Nicleo de Estudos e Pesquisas em Educagao, Cultura e Educagao (Neppec) da Faculdade de Edueago da Universidade Federal de Goiés (FE/UFG). Os debates teéricos com o grupo dda pesquisa sobre os dados coletados contribuiram significativamente para a definigéo, elaboragio © direcionamento desta tse. + Para Tanni (1996, p. 122), trata-se da problemética racial, da controvérsias sobre o significado das ragas da metamorfose que constitui o negro do branco com tragos de uma inferoridade e diferenga. A questao racial “[.] compreende toda a gama das etnias, ou ragas,e suas mesclas, que compiem a populagio”. 4 Nesta tese, compreende-se raga como uma categoria ldgico-historica, como “f..] uma condigdo social, psicossocial e cultural, criada, reiterada e desenvolvida na trama das relagdes sociais, envolvendo jogos de forgas sociais e progressos de dominagao e apropriagio” (IANNI, 2004d, p. 23). Dessa forma, optou- se pela apropriagao do termo raga, com a finalidade do descortino especifico das metamorfoses da raga negra reiteradas por mitos democriticos. continuidade da metamorfose do escravo em cidadao e trabalhador livre no contexto do desenvolvimento de consolidagao do capitalismo, Em tais condigdes, 0 processo de metamorfose do negro cria e reproduz uma dupla alienago: a da raga € a de classe (IANNI, 1978). A metamorfose do negro escravo em cidadao igualmente é tributéria da consolidagio de ideologias raciais estabelecidas, por um lado, pela proclamagiio ¢ a existéncia de uma democracia racial e, por outro, pela perpetuagio velada de desigualdades e distingSes sociais, As ideologias raciais ainda existentes na contemporaneidade esto pautadas por teorias raciolégicas estrangeiras que imperaram, no contexto brasileiro, a partir de meados e final do século XIX, no periodo da crise da escravidio (SCHWARCZ, 2011a, 2012a, b). E também pelas préprias ideologias do branqueamento, do branco, do negro ¢ do mulato que emergiram da composicao mestigada das relagdes sociais e foram legitimadas, sobretudo, a partir dos processos de constituiglio da Republica brasileira, As ideologias raciais sfio, portanto, compostas pelos processos contraditérios da racializagao’ e do racismo, presentes na histéria brasileira, Sob a énfase da democracia racial, as ideologias legitimaram ideais de tolerdncia racial,’ marcada por antigos padrdes de relagdes raciais. Ideologicamente 0 “negro” teve a oportunidade de ser livre; se nfo conseguiu igualar-se ao ‘branco’, 0 problema era dele ~ nao do ‘branco’” (FERNANDES, 2007, p. 46). Assim, as metamorfoses do negro no contraponto do mito da democracia racial exigem compreender, a0 mesmo tempo, a particularidade da formagéo do povo brasileiro, pelo jogo das forgas sociais intemas e externas, e também exigem compreender a produgao de uma singularidade oriunda das relagées sociais e raciais. Tal singularidade efetivou-se pelo processo de miscigenagao consagrado pela produgao de relagdes raciais supostamente democriticas. Historicamente, afirmou-se a 5 A racializagdo, segundo Ianni (2004c, p. 18), assim como a raga, & produzida pelas relagdes sociais ¢ suas implicagdes politcas, econdmicas ¢ culturais. A racializagao existe desde 0 contexto das grandes navegagtes, de formagio do “Novo mundo”, ou seja, constitu a histdria do mundo modemo, dos ciclos, do capitalismo. “A racializagao do mundo esta em curso. Numa reflexao sobre a questi racial no Brasil somos obrigados a reconhecer que, simultaneamente, esti havendo algo de diferentes gradagdes em muitas partes do mundo © que surtos de diferentes manifestagdes de racismo ¢ intoleréncia esto imbticados com a dindmica da sociedade”, © Toleran de racismo, “um preconceito de nfo ter preconceito”, de accitar as formas de desigualdade racial, de racial 6 um conceito desenvolvido por Florestan Fernandes e significa uma forma particular acomodagao racial econvivéncia inter-racial. O autor enfatiza que ha uma confustio entre tolerdncia racial ce democracia racial (FERNANDES, 2007). 4 democracia racial em virtude da existéncia de uma plasticidade, ou seja, a convivé harménica entre as ragas e mesclas de ragas (FREYRE, 2005). E negou-se pelo desvelamento de relagGes raciais produtoras, na verdade, do mito da democracia racial (FERNANDES; BASTIDE, 1955, 2008). Sob 0 mito paira um “véu encobridor” de tensdes, conflitos, contradiges, preconceito, discriminagao ¢ racismo. Com esse escopo, reitera-se que o problema de pesquisa desta tese ¢ a postulagdo de que a condigao do negro na sociedade brasileira é determinada hist6rica e socialmente e esta implicada no processo de modemnizagaio e criagdo/rectiagao do mito da democracia racial. Assim, o objetivo deste trabalho foi realizar uma andlise da formagao ¢ transformagiio dessa raga imbricada por processos de legitimagio e negagao da democracia inter-racial’ a partir do pressuposto de que as metamorfoses do negro so reconfiguradas pelo mito da democracia racial, que prega a afirmagao ¢ efetivagaio da igualdade politica e da diversidade étnico-racial na era global. Acerca desse pressuposto é possivel afirmar que esta tese tem como imperativo a elaboragio do passado como desvelamento para o tempo presente, no qual a condigao do negro reiterada pelo mito democrético encontra-se mais desenvolvida, Distintamente, esta tese busca desvelar a construgdo histérica da raga negra, pautada pelos desdobramentos da formagio das classes sociais e dessas pelos desdobramentos provenientes da proclamagio da cidadania, de principios democriticos. Assim, distingue-se por tratar 0 tema da raga como uma questo de classe, conforme Ianni ¢ Fernandes, e nfo como uma questo cultural, como foi tratada a questio a partir da década de 1930 no Brasil com os estudos culturalistas. No desenvolvimento da pesquisa, fundamentou-se a investigagéio em autores que, em distintas conjunturas histéricas da formagiio brasileira e movidos pela inquietago ¢ indagaglio acerca da questo nacional, desenvolveram estudos sobre as 7 © termo inter-racial esté presente tanto em algumas obras de Octavio Ianni, mas principalmente nas ‘obras de Florestan Femandes. Destaca-se a recorséncia do termo na obra “Brancos e negros em Sio Paulo” de 1955. Essa obra, de coautoria com Roger Baste, foi uma pesquisa eneomendada pela ‘Organizagio das Nagdes Unidades para a Ciencia, Cultura e Educagdo (Unesco) na década de 1950 e fo considerada um estudo pioneiro que revelou, Segundo Ianni (20046, p. 10), “[..] a realidade do preconceito racial de par em par com o preconceito de classe e, portanto, o preconceito racial constitutive da socinbilidade na sociedade brasileira". A pesquisa patrocinada pela Unesco estendew-se por outras partes do Brasil, como o Sul, por eausa da participagdo de outros intelectuais pertencentes a Cadeira de Sociologia I da Faculdade de Filosofia, Cinciase Letras da Universidade de Sdo Paulo (USP). Femando Henrique Cardoso, Octavio Ianni e Renato Jardim Moreira reaizaram a pesquisa em regides do pais nas quais escravidlo efetivou-se de modo particular e com uma concentragio menor de negros (FERNANDES; BASTIDE, 1955, 2008). raizes da sociedade nacional acerca do povo, da cultura e da politica, com destaque para Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Caio Prado Jinior, Clovis Moura, Octavio Ianni, Darey Ribeiro, Florestan Fernandes e Lilia Moritz Schwarez. Os trés primeiros, segundo Ianni (1996, p. 44), inauguraram “f...] estilos de pensar o pafs, a histéria brasileira, os dilemas do presente, as perspectivas provaveis. Formam discipulos, continuadores, dissidentes. Inclusive resgatam contribuigdes precedentes, suscitam precursores”, A produgiio desses intelectuais contribuiu para a constituigiio da sociologia brasileira e, consequentemente, para a interpretagdo do Brasil, em meados do século XX. Segundo Bastos e Botelho (2010, p. 479), a década de 1950 simbolizou o periodo em que a sociologia brasileira apresentou “[..] os seus primeiros resultados mais significativos em termos de produgio de conhecimento, que a tradigdo intelectual nacional ganhou o interesse piblico dos cientistas sociais profissionais”. ‘Apés compreender a fecundidade intelectual das matrizes* que formularam 0 pensamento social brasileiro, especialmente a partir da década de 1930, definiu-se como principais referenciais tedricos desta tese as obras de Octavio Ianni? ¢ Florestan Fernandes", ‘Trata-se de autores da tradigdo intelectual brasileira, pioneiros nos estudos sobre as relagdes raciais no Brasil, especificamente sobre a raga negra. Eles integraram © grupo de intelectuais da chamada Escola de Sociologia Paulista, institui¢lo que © A compreensio das matrizes intelectuais que formularam o pensamento social brasileiro significou a imersio tedrica mediante os estudos da diseiplina Hist6ria Politica nos Escritos Sobre o Brasil, ministrada pelo prof, Dr, Jean Luiz Neves de Abreu, no Programa de Pés-Graduagio em Historia da Universidade Federal de Uberlindia (UFU). Esses estudos consttuiram-se como determinag6es tedricas fundamentais para a elaboragio da tse. ° Octavio Tani nasceu em 1926 e faleceu em 2004. Foi professor da Faculdade de Filosofia, Letras ¢ Cigncias Humanas da Universidade de So Paulo, de 1956 a 1969. Mas no periodo da ditadura militar foi afastado do pais juntamente com Florestan Fernandes e Ferrando Henrique Cardoso. No contexto da ditadura, lecionow na Pontificia Universidade de Sa0 Paulo (PUC/SP). Com a redemocratizagio do pats, em 1986, Ianni passou a lecionar na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Lecionou também como professor visitante em varias universidades estrangeiras. Recebeu alguns titulos, como de intelectual do ano. Produziu cerca de quarenta livros (“Notas da Editora Civilizagéo Brasileira’, [ANNI, 2011). "© Plorestan Fernandes nasceu em So Paulo, em 1920. Em 1941 comegou o curso de Ciéncias Sociais na Universidade de Sio Paulo (USP), Em 1945 jé tinha se tomado professor assistente da cadeira de Sociologia II. Em 1953 obteve o titulo de livre-docente nessa mestna instituigdo, Na década de 1960 foi considerado um dos lideres mais atuantes em defesa da escola pablica. Em 1964, foi efetivado como professor catedritico na USP, mas em 1969 foi aposentado compulsoriamente, por conta do regime ‘militar, vindo a lecionar em universidades estrangeiras. Em 1977 trabalhou na Pontificia Universidade de ‘Sto Paulo (PUCISP). Em 1985 recebeu o titulo de professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras ¢ Cigncias Humanas da USP, Em 1986 filiou-se no Partido dos Trabalhadores (PT), sendo nesse mesmo ano eleito deputado federal, cargo que ocupou por dois mandatos. Faleceu em 1995 ¢ deixou uma vasta ‘obra com mais de cinquenta volumes. Foi considerado um dos maiores socidlogos do seu tempo, o que Ihe carreou o titulo Doutor Honoris Causa em duas universidades estrangeiras (CANDIDO, 2001). inaugurou os estudos sobre a situagdo do negro e 0 preconceito racial no Brasil. A questiio racial, eno, foi determinada como o tema da fase clissica da ciéncia social brasileira. Estabelecidos os principais referenciais tebricos, optou-se pela pesquisa de natureza bibliografica como metodologia do trabalho, 0 que requer estudo, leitura, interpretagio, andlise ¢ elaboragiio, apés a compreenstio dos conceitos concebidos pelos autores, das questées e teméticas estudadas. A pesquisa de natureza bibliogréfica implica “[...] aprender a pensar na esteira deixada pelo pensamento do outro. Ler € retomar a reflexéio de outrem como matéria-prima para o trabalho de nossa propria reflextio” (CHAU, 1994, p. 21). Esse tipo de trabalho, portanto, tomnou-se 0 exercicio primordial e rigoroso para a construgio deste projeto intelectual. A realizagio da pesquisa tedrica possibilitou, assim, estabelecer categorias de andlise que permitem sintetizar e apreender nexos constitutivos da realidade:"' raga, historia, classe e politica. A raga é compreendida como uma categoria ligico-histérica, 6 ‘uma construgio social que, nos desenvolvimentos implicados na formagao do povo brasileiro, derivou diferentes interpretagdes em distintas vertentes cientificas, tais como © positivism, o darwinismo e a sociologia, com as interpretagSes socioliterdrias do Brasil, Tais interpretagdes legitimam e conclamam as contradigdes determinadas pela mediagéio da raga como nexo constitutive dos desdobramentos das relagdes sociais condicionadas pelas determinagdes hist6ricas, de classe ¢ das politicas. ‘A raga 6 segundo Schwarez. (2007, p. 11), um tema “quase tradicional” na historia das ciéncias sociais brasileiras, pois se faz presente desde 0s relatos histéricos dos viajantes, no século XVI, Mas no “hd como resumir essa hist6ria feita de termos, nomes ¢ cores. O que se pode, sim, afirmar é que raga sempre deu muito que falar sobre 6 e no Brasil”. Tanto a raga, como a cor, a mistura sempre foram, de acordo com a autora, temas fundamentais que ora foram exaltados ora foram referendados com descrédito, No decorrer da historia brasileira, a raga se configurou e virou identificagio, negociagiio, uso social da cor e discurso nacional (SCWARCZ, 201 1a). ‘A par das singularidades constitutivas da questio racial, portanto, das trés ragas —ado branco, a do negro e a do indigena -, optou-se por estudar especificamente a raga " Bssas categorias comp8em os estudos de Octavio Tanni em Escravidao e racismo, de 1978. Nessa obra © autor trabalha com as relagées escraviddo-capitalismo, raga-classe, escravidao-histéria, escravidao- racismo, raga-politica, Em fungio do objeto de estudo € da problemitica desta tese, optou-se pela pesquisa e exposigto das seguintes relagdes categoriais: raga e hist6ria; raga e classe; raga e politica 7 negra, 0 negro brasileiro em constituigdo, transformagao, diluigdo e recriagio histérica no jogo das forgas sociais, “Mais do que outras etnias (ou ragas, entendidas em termos sociolégicos), ele [o negro] desafia o pensamento e a pratica de muitos dentre aqueles que pretendem compreender as condigdes de formagao do povo, sociedade civil, Estado, nagio” (IANNI, 1996, p. 122). Isto porque a raga negra é considerada uma questo mais latente e aguda quando vinculada & problemética da formagao do povo brasileiro © & fungao social do negro. E, além disso, a condigio do negro em momentos de cojuntura critica acentua-se ¢ toma-se mais explicita, Assim, esta investigagio é um desafio que busea entender as metamorfoses do Para expor o resultado dessa negro na reconfiguraglio do mito da democraci investigagiio, a partir do desdobramento das relagdes inter-raciais e da perspectiva do Brasil negro, este trabalho se organiza em trés capitulos: “descobrimento/consolidagao”, ‘“jdentidade nacional/modemizagao” e “reparo hist6rico/mito fundador”, No primeito capitulo, intitulado “Raga e hist6ria: as formagGes sociais do ciclo do capital”, o propésito ¢ desvelar e elaborar o significado do passado da raga negra na formagio do povo brasileiro. A elaboragdo desse passado ¢ 0 descortino das contradigdes da formagaio social escravista e da formagiio social capitalista, Trata-se das relagdes entre raga ¢ escraviddo em uma sociedade colonial e das relagdes raga e classe social em uma sociedade capitalista-competitiva em formagdo (FERNANDES; BASTIDE, 1955, 2008). A compreensio da relagdo raga-histéria se desloca para trés mediagSes: a formagGo do Novo Mundo pela era do ciclo do capital; a questo social do negro; a miscigenago como uma singularidade da formaco do povo brasileiro, dado o cruzamento das ragas como uma particularidade da nacao. As mediages referem-se aos contextos de formagio e & conquista do Novo Mundo, “A descoberta ¢ a conquista do Novo Mundo abalam mais ou menos radicalmente os quadros raciais e mentais de referéncia de uns e outros, tanto no Velho Mundo como no Novo mundo. Todos sto desafiados pela surpresa, inquietagio, deslumbramento, estranhamento, desencantamento” (IANNI, 2000, p. 37). 0 Novo Mundo, em sua origem, constituiu-se pela genese do capitalismo e se desenvolveu pela indi reprodugiio mereantil, cuja acumulagao ori ocorren pelo estabelecimento do escravismo e das formas de acumulagao primitiva. ‘A. consolidagio do ciclo do Novo Mundo se deu por meio das grandes navegagdes, das conquistas, dos descobrimentos ¢ da instauragio do colonialismo como 18 organizagio politico-econdmica do expansionismo da era mercantil. Os desdobramentos dessa era proporcionaram as bases para a formagiio do Brasil. O pais foi considerado um paraiso habitado por uma populago de barbaros. Entretanto, pela sua riqueza aparente, clima tropical ¢ abundancia de territ6rio instalou-se 0 colonialismo como organizagao politico-econémica da terra “descoberta”, E para a exploragio da nova terra 0 negro africano foi “o escolhido” pela civilizagio europeia como forga de trabalho escravo. As relagdes raciais, estabelecidas nessa época no Brasil, ficaram conhecidas ¢ caracterizadas internacionalmente pela ideologia das relagdes cordiais!, por causa do “forte” processo de miscigenagtio. No segundo capitulo, “Raga e classe: a metamorfose do escravo em cidadio”, se analisa a contradigo raga-classe como transigio e ruptura da época colonial ¢ monarquica para 0 processo de constituig&o do Brasil moderno. Estio em questo a identidade ¢ 0 cardter nacional provenientes da metamorfose da nagao, do tipo social, da sociabilidade, da cultura e da condig&o do negro na trama social. A modemizagio do Brasil se fez sobre a permanéneia de bases escravistas contraditérias a0 desenvolvimento do sistema capitalista. Nesse contexto, 0 negro nfo conseguiu integrar-se & nova légica estabelecida, permanecendo, assim, em condigdes sociais de inferioridade e desigualdade. “O negro foi exposto a um mundo social que se organizou para os segmentos privilegiados da raga dominante. Ele ndo foi inerte a esse mundo. Doutro lado, esse mundo também no foi imune ao negro” (FERNANDES, 2007, p. 33). , portanto, por dentro dos processos do Ciclo da Revolugao burguesa no Brasil que a questiio nacional tornou-se mais complexa e provacou varios desenvolvimentos notiveis. A revolugao burguesa “[...] nfo desvenda o labirinto hist6rico-cultural da questo nacional, [...] no realiza as condigées histérico-culturais que caracterizam a autodeterminago, soberania, democracia, cidadania” ([ANNI, 1983, p. 42). No caso brasileiro, grande parte do povo continuou subjulgada pela classe dominante. O processo de exclusio tomou-se mais evidente na nova ordem social capitalista competitiva. ™ Florestan Fernandes e Roger Bastide (2008) afirmam que a ideologia das relagdes “ditas cordiais”, conclamadas por Gilberto Freyre em sua anélise da mestigagem cultural ¢ raciel do povo brasileiro, significa tanto a manutengdo e acomodagdo da situagio interétnica desigual que impedia as relapses de conflitos explicitos, quanto a legitimagdo da inferioridade social, do preconceito de cor e da diseriminagao rac 19 Segundo Ianni (1983), historicamente, quando ocorrem esses processos de intensificagao do capital, as desigualdades e contradigdes raciais, culturais e regionais acentuam-se e ganham dimensGes politicas, Assim, dessa trama da questtio nacional analisa-se a condigdo do negro sob a perspectiva da miscigenagdo como caleidoscépio da relagio individuo-sociedade. Refere-se & constituigio do processo de afirmagio da existéncia de uma democracia racial e ao processo de desvelamento do mito democritico que se propagou sobre as relagdes raciais brasileiras, Refere-se também & legitimagao da ideologia do branqueamento. A ideologia do branqueamento pautou-se pela ideia de uma tolerncia racial, velada pela desigualdade de classe ¢ imperada pelo preconceito de cor. O mito da inexisténcia de conflito racial perpetuou-se mediante 0 processo de miscigenagao e da racial ideia de uma auséncia de estratificagdo social. A existéncia da democraci culminou com a idealizagdo do branqueamento, legitimada, principalmente, com ordem econémico-politica de base capitalista. O branqueamento, como elemento ideolégico, & parte constitutiva da metamorfose do negro, e nessas condigdes a estrutura social tomna-se um problema para o negro, haja vista 0 bloqueamento de sua cidadania plena (FERNANDES, 2007). Trata-se da anilise e compreenstio da condig&o do negro cidadio na era do capital, que corroborou e consagrou com sua condigo de permanecer “[..] condenado a um mundo que no se organizou para traté-lo como ser humano ¢ como “igual” (FERNANDES, 2007, p. 33). Intrinseco a essa condigao, constitufram-se as formas de resisténcia e contestago as injusticas sociais fundantes da ago politica do negro no proceso de modemizagao vivenciado ¢ consolidado no Brasil. Essa ago acentuow-se mediante os desdobramentos desiguais da era do capital e culminou para a constituigao do Movimento Negro Unificado (MN), nos anos de 1970. “...] o MN tornou mais forte © coro daqueles que j demonstravam 0 lado mitico da democracia racial: exaltada cilmente encontrada na realidade” (SCHWARCZ, 2012a, p. 72). No terceiro capitulo, “Raga e politica: a reconfiguragio do mito fundador”, & como modelo, mas analisada a contradigao raga-politica, buscando apreender os desafios dessa contradigao na contemporaneidade. Essa apreensio pauta-se pela retérica instaurada pela légica de justiga social, num processo civilizatério desigual ¢ combinado. Na particularidade historica do Brasil-Nagdo, advém e compde-se de especificidades conjunturais, desde 0 caleidoscépio da miscigenagio com a ideologia da inexisténcia do conflito inter-racial 20 até a contemporaneidade das politicas de Estado com a discriminagao positiva. Esta é caracterizada por uma ideologia de reparago histériea pela via da incluso social estabelecida e normatizada pelas ag6es afirmativas. A relagiio raga-politica & discutida a partir de trés mediagdes. A primeira referente a questi racial como uma problematica da modernidade-mundo. Concerne a0 novo “ciclo da revolugio burguesa” em escala mundial, produzido pelas forgas © as relagdes produtivas da era global. O objetivo ¢ compreender como na era global as relagdes raciais transformam-se em fungdo da instaurago de um novo ciclo do capital A segunda mediagiio & a democracia racial como reconfiguragio do “mito fundador”, em fungio das transformagées estabelecidas pela expansio e concentragiio do globalismo. Trata-se de um mito fundador quando se compreende que & “fendmeno”, um idedrio que historicamente, pelo jogo das forgas sociais, configurou-se © se reconfigurou como reprodugao da légica capitalista. E a terceira ¢ a afirmagao da igualdade politica ¢ da diversidade étnico-racial: a justiga social para a raga negra. Este liltimo item apresenta como emblema os documentos oficiais proclamados pelo governo brasileiro, via orientagao de politicas globais para o combate do racismo, discriminagao, xenofobia, preconceito. Diz respeito a uma contradigdo instaurada pela légica da sociedade global, visto que, 0 mesmo tempo em que se agravam os processos de desigualdades ¢ contradigées raciais, culturais ¢ regionais, proclamam-se_politicas mundiais de combate a essas questGes sociais. Essas politicas sto propostas mediante 0 estabelecimento de programas e projetos de cooperagao econdmica mundial, cuja base envolve a ret6rica de uma justiga social igualitéria, universal. Dessa perspectiva, estudo da metamorfose do negro pode apontar a implantago do sistema de cotas nas universidades brasileiras como um emblema da “democracia racial”, da incluso dos excluidos historicamente pela nagio. Uma politica de “reparo” social de legitimagio de uma desigualdade social caracterizada pelos aspectos econdmicos, politicos, culturais, sociais e educacionais. O sistema de cotas como um programa nacional direcionado para o dilema social das minorias pode ser is de ordem tomado como exemplo na contemporaneidade de desigualdades estruturs econdmica, social e politica que alcangam a condigo do negro © como a sua metamorfose em cidadio ainda encontra percalgos. Pode-se afirmar que tal sistema constitui-se como a materialidade historica & seguinte questéo formulada por Fernandes

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