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Renato Amado Peixoto 175 Referén AS BASES das instrugdes para a Comissao Cientifica de Exploracdo. Revista do IHGB, Rio de Janeiro; Tomo XIX, 1856, p. 70. Suplemento. AGUIAR, Marqués de. Documentos relativos as questées de limites do Império do Brasil ventiladas no Congreso de Paris em 1818. [S.l.]: IHGB, Lata 79, Documento 9, 16/06/1816. ALMEIDA, Candido Mendes de. Atlas do Império do Brazil. Rio de Janeiro: Litografia do Instituto Philomathico, 1868. ARROWMITH, John. Brazil. In: The London Atlas of Universal Geography. Londres: J. Arrowsmith, 1844. BARBOSA, Rui. Obras Completas, Vol. XXIII, Tomo I, 1896. Cartas de Inglaterra. Rio de Janciro: Ministério de Educagao ¢ Satide, 1946. p. 6. BRASIL. Camara dos Deputados. Anais..., sessio de 2/07/1827. BRASIL. Camara dos Deputados. Anais..., sesso de 21/06/1828. CAPITANIA de Mato Grosso em 1° de setembro de 1781 Revista do Instituto Historico e Geogréfico Brasileiro, n. 262, p. 344-345, jan. 1964. Renato Amado Peixoto que 6 algo e que sinto por ela querer SAIR: a presenga da minha dor do corpo, a presenga ameacadora infatigavel do meu corpo.” 173 A linguagem de Artaud é uma geografia dos sonhos, seu barco, um corpo sempre pronto a zarpat. TDSARTAUD, Anvonin. Para acabar com o julgamento de Deus. In ‘Antonin Artaud. Focto Alegre: LPM, 1983, . 157-158. Escritos d 172 Cortegrafios lmaginérias da crueldade estaria ligada a uma ética da crueldade, onde caberia a cada um a invencao de uma linguagem prépria e miltipla, lapi- dada por meio de uma boca-anus que suga e esvazia. Ao car- t6grafo caberia, portant, a tarefa de investigar a invengio de uma linguagem que constréi espacos por meio do excremento, espacos-sémen que engendram e se multiplicam ~ espagos imagi- ndrios ~ ao mesmo tempo que mergulha e bebe desses liquidos. Foucault (1994, p. 762), aquele que fala sobre espagos sepa- rados, as “heterotopias’, talvez ecoando Lewis Carroll, escreveria no final de seu famoso texto sabre 0 espaco que, “nas civiliza- Ges sem barcos 05 sonhos se escoam’’ No final de outro texto, igualmente famoso, Antonin Artaud descreve um espaco igual mente separado: seu corpo. “O espaco do infinito Nao sei Mas Sei que © espago © tempo a dimensao © devir © futuro © destino © ser, © nfo-ser, ocu, o nao-eu nada sao para mii mas hé uma coisa que 6 algo, Renato Amado Peixoto 71 ‘Tropicos, Zonas, e Linhas de Meridiano? Entdo o Sineiro gritou: e a tripulagao responderia ‘Eles s4o apenas sinais convencionais! Outros mapas sio do mesmo formato, com suas ilhas e cabos! Mas nés temos nosso bravo Capitao para agradecer: € a tripulacéo protestaria) Ele nos trouxe o melhor ~ Um perfeito ¢ absoluto vazio! Isto era maravilhoso, sem divida; Mas eles rapida- mente descobriram Que 0 Capitao que eles acreditavam tanto Tinha apenas uma nogio para cruzar 0 oceano, E esta era o tilintar de seu sino.” Se considerarmos a cartografia enquanto © experimento resultante de uma linguagem miiltipla e autonoma, a afirmacto de Foucault “eu sou um cartégrafo” ganharia outros sentidos. Utilizando novamente a metéfora dos mapas, esta cartografia constituiria uma critica 4 linguagem achatada e inerte das cartas, remetendo-nos ao estudo de uma construco que se efetuaria pelas margens ¢ nos intersticios, atravessando organizagSes gra- maticais, léxicas e sintaticas, para compreender sua deformagao a partir do exercicio da constitui¢do de um sujeito-esquizofrenico, miiltiplo, multiplicado, mas multiplicador. Afinal, pare Artaud, a linguagem emergiria em um estado de putrefac4o pura do ser, como uma linguagem do pensamento, capaz de engendrar, como a peste, © outro que seria 0 sujeito mesmo. Contudo, essa estética 124 The Bellman’s Speech. In: CARROLL, Lewis. The Hunting ofthe Snark: An Agony {in Eight Fits. Adelalde: The University of Adetalde Library, 2007. 170 Cartegrafies Imaginsrias Mapa do Oceano OCRAN-CHART. Fonte: HOUDAY, 2007 “Ble [o Capitdo-sineiro] tinha trazido um grande ‘mapa representando o mar, Sem o minimo vestigio de terra: Ea tripulagao ficou muito agradecida quando desco- briu que aquele era ‘Um mapa que todos poderiam entender. Para que servem os Pélos Norte e os Equadores de Mercator, Renato Amado Peixoto 169 [MAPA ‘A New Yorker's ldea of United States’ Seria nesse sentido que Lewis Carrol, em ‘The hunting of the Snark’ utiliza também a metéfora cartografica © mesmo um mapa em branco para ilustrar o episédio em que os protago- nistas, de barco, preparavam-se para cruzar 0 oceano € iniciar a cacada aos ‘Snarks', seres imaginérios, fugidios, miiltiplos, 168 Cortograjias imegindries Por outro lado, o mapa ‘A New Yorker's idea of United States of America’, produzido para a Feira Mundial de Nova Iorque de 1939 explora o provincianismo dos nova-iorquinos através, de uma distorgéo que valoriza os espagos mais valorizados por esses ¢ da inscrigéo de nomes incorretos ou ficticios, por exem- plo, ‘Minedpolis’ e ‘Indianapolis’ s4o grafadas nesse mapa como “The cwin cities’. Se no primeiro exemplo, a transliteracdo pode ser entendida enquanto a inscrigo de um lugar, um ‘espago da imaginacao’ resultante da autonomizagao da linguagem, no segundo, a transliteragao pode ser entendida como a representa- ‘do de um espaco pela disseminacio dos mapas das imaginacSes das geografias pessoais que em um dado momento extrapola- ram seus limites para constituir uma gramética e uma sintaxe cartografica. ‘Local’, ‘Lugar’ e ‘Espago’ resultariam, portanto, de uma con- tinua tensdo entre autonomia e multiplicidade onde o exercicio da cartografia significaria reconhecer nao apenas 0s intersticios ¢ as margens que permitiram a construgio dos tapas, mas tam- bém uma economia de suas linguagens que remete a investi- gago de sua producio e de sua reelaboracdo. Afinal, retiradas as convengGes cartogrificas, resta-nos néo mais um mapa, mas apenas uma folha em branco que, esvaziada de suas fruicées, pode ser preenchida por razées outras as da sua linguagem. Renato Amado Peixoto 167 Veja-se este exemplo: no mapa ‘Neu-York’ de Melissa Gould, ‘os topOnimos da cidade de Nova lorque esto grafados em ale- mio e a partir deste s20 ‘localizados’ no mapa da cidade certos lugares tipicos da Alemanha do Entre-guerras. No caso, a autora, filha de judeus austriacos que haviam se exilado nos Estados Unidos na década de 1930, pretende partilhar a vivencia do pre- conceito que experimentou durante sua residéncia de dois anos na Berlim dos anos 80 e com isso motivar os judeus de Nova Torque para agGes junto & opinido publica que informem a sobre- vivéncia daquilo que motivou a imigracio de seus pais ¢ também co Holocausto. Fonte: GOULD, 1991 Material com direitos autorais 166 Cartografes Imaginérias ‘Mapa da Nova Harmonia Fonte: WEINGARTNER, 1832 Se tomarmos um novo exemplo, o ‘Mapa da nova harmo- nia’, podemos observar que esse pode ser lido a partir de qual- quer posicao: alto-baixo, esquerda-direita, etc. Esta caracteris- tica somente pode ser explicada se for entendido que o ‘Mapa da nova harmonia’ foi confeccionado, nos Estados Unidos, por dissidentes da Igreja Luterana, seguindo os padroes jé utiliza- dos nos mapas de outra denominagio protestante, os ‘Shakers’ No caso, 0 ‘Mapa da nova harmonia’ segue uma linhagem que ‘localiza’ através da propria inscri¢io um ‘lugar’ de composi¢ao, representando um ‘espaco’ da experiéncia, a saber, a persegui- Gao religiosa softida € 0 desejo de possibilitar o exercicio de diferentes interpretag6es. O ‘lugar’ seria, portanto a expressdo aceita pelos falantes ideais de uma dada comunidade linguistica em certo momento, que poderia, ou nao, conviver com outras expresses, mas que poderia a partir daf constituir ‘locais’, os quais sé podem ser bem entendidos a partir das leituras feitas por meio da escrita que os inscreveu no mapa. Renato Amado Peixoto 165 A partir desse exemplo, também podemos utilizar a ideia da linguagem artaudiana para problematizar 0 espago enquanto uma produgao 20 mesmo tempo auténoma e miiltipla. Ao con- tririo da cartografia achatada e estitica de Mercartor, sempre orientada para 0 norte, em Ogilby cada pergaminho imaginério possuia uma orientagao diferente, novamente transformada nos pergaminhos seguintes. Cada um desses pergaminhos imagina- rios buscava detalhar os elementos que podiam servir enquanto marcos para suas narrativas peculiares: alguns enfatizevam as estradas, outros destacavam os montes, rios, florestas ¢ pontes, outros ressaltavam ainda cidades e vilas. O modelo de Ogilby ndo revelava apenas fragmentos do espago, mas, através da uti- lizagao do mistério e do suspense, elaborava espagos em perma- nente frui¢ao. A ideia de uma produgao de espaco auténoma ¢ miiltipla pode ser mais aprofundada se entendermos ainda a existéncia de ‘lugares’ produzidos, os ‘espacos imaginsrios’, e as ‘localizacdes’ que interagiriam com aquele através de sua inscrigZo no mapa. A ‘producio’ ¢ a ‘inscri¢ao” desses ‘lugares’ ¢ ‘locais’ remetem, portanto, a investigacdo de um processo de composi¢io onde & necessério delimitar diferentes instancias: a composicao pro- priamente dita, seu projeto ¢ construgio, a inscri¢ao ¢ a sua dis- seminagao. Nesse sentido, continuando a utilizar a merafora do mapa, poderiamos exemplificar a constitui¢ao de diferentes con- digdes da composi¢ao de suas graméticas ¢ sintaxes. 164 Cortograies lmagindrias as cartas baseadas na projerao de Mercartor dividiram 0 espaco editorial com 0 modelo cartogrifico de John Ogilby que diferia abruptamente tanto no que diz respeito 4 orienta¢ao quanto 4 construgao dos mapas. No modelo de Ogilby, os mapas eram projetados sobre per- ‘gaminhos imaginarios que dividiam entre si a extensao da folha. Cada pergaminho destinava-se a permitir 0 acompanhamento de um itinerério, que partia de uma cidade ou povoado situado sempre na parte de baixo no extremo esquerdo da folha. Essa rota ascendia entdo ao topo do pergaminho para reaparecer na parte de baixo do pergaminho seguinte, dai ascendendo nova- mente e continuando sucessivamente, até terminar no topo do pergaminho situado no extremo da pégina direita. ‘Mapa Ogilby Fonte: OGILBY, 1675, Renato Amado Peixoto 163 esquizofrenia' ou pela relago que Foucault estabelece entre ‘uma literatura da peste e ‘O teatro e seu duplo”™). A cartografia dos espacos Por conseguinte, a materializacao da linguagem do pensa- mento se constitui num espago de continua tensdo entre a razio € a desrazio que pode ser problematizada por meio da metafora cartografica. Neste sentido, é necessario centralizar nosso argu- mento sobre uma das proposigées iniciais deste ensaio, de modo a exemplificd-la, no caso, a ideia de que nos mapas nao existiu uma exclusdo total da desrazao, tal como Foucault observou na sua ‘Histéria da Loucura’ ou em relagio a Literatura desde a época classica até a modernidade, mas 2 convivencia de varias, razbes," Para isso nos valeremos de alguns exemplos selecio- nados de modo a cobrir alguns elementos essenciais tanto para a compreensao do espago como para a construcao cartografica. Esses exemplos visardo a constituir, a partir do viés interpreta- tivo da ‘linguagem artaudiana’, elementos para a minimizacao dos problemas da anélise foucaultiana do espaco. Pesquisada a cartografia dos séculos XVI e XVII, podemos observar que a existéncia de modelos cuja cientificidade, esté- tica e acuidade geogrifica eram amplamente reconhecidas, nio impede 0 surgimento e a aceitacdo de mapas absolutamente divergentes em relagdo aqueles. No século XVI, por exemplo, 121 FOUCAULT Michel. La folie tla sociéte 1970, In Dits et éerts, Tomo I. Paris: Editions Gallimard, 1994, p. 132. 122°0 teatro ¢ seu duplo’ esta considerado dentro de uma linhagem litericia que Femionta 2 Tucidides. Ver FOUCAULT, Michel. Os Anormais. So Paulo. Martins Fontes, 2001. p. 58; 68, 123Ver PEIKOTO, Renato Amado. A mascara da Medusa: 2 construcio do espa¢s nacional brasileiro através das corografias e da carcografa no século XIX. 2005. Tese- (Doutorade em Histéra) - UFRJ, Rio de Janeiro, 2005, 162 Cartografias Imaginérias Foucault em 1964: “Artaud pertenceré ao solo de nossa lingua- gem ¢ nfo a sua ruptura”."!> Esse entendimento da obra de Artaud enquanto uma lin- guagem em movimento, uma “linguagem experimentada e per corrida como linguagem”, consolidar-se-ia em ‘As palavras ¢ as coisas’ quando Foucault a discerniria como “uma espécie de contradiscurso”, junto a outras obras nas quais julgava poder discernir uma “autonomia literdria” capaz de impelir “as mar- gens onde ronda a morte, onde o pensamento se extingue”.!"7 Entretanto, na obra de Artaud, mais do que em outros autores, essa linguagem era entrevista como uma aco, um ato perigoso, “recusada como discurso e retomada na violencia plastica do choque e remetida ao grito, ao corpo torturado, 4 materialidade do pensamento, & carne”.""* Por conseguinte, a transformacéo do pensamento seria operada por uma sublimagao da energia mate- rial, capaz de sufocar a linguagem discursiva e aniquilar 0 sujeito ele-mesmo e engendrar a nova linguagem." A materializacao de uma “linguagem do pensamento” passaria entfo a ser compre~ endida tanto como o exercicio de uma autonomia linguistica!” quanto como um proceso de decomposigao da individualidade (no caso, se observada a associacéo da obra de Artaud com a TIGFOUCAULT, Michel. Le folic, Tabsence d'oute. 1964, In: Dlts et éerts. Tomo I. aris: Editions Gallimard, 1994, p. 412-413. IITFOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Sio Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 50-400, TISFOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Sto Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 4100. HSFOUCAULT, Michel. La pensée du dehors, 1958. In Dies et éerts, Tomo. aris: Editions Gallimard, 1994, p 522: 525, T2OFOUCAULT, Michel. De TarchSologle a la dynastique, 1972. In: Dits et Serta Tomo IL. Paris: Editions Galimard, 1994, p 412-113, Ver o parle ence Freud Artaud em FOUCAULT, Miche. Theatram pilosophicun, 1970. In: Dits et écrit, Tomo I. Faris: Etions Galmaré 1994. 80, Renato Amado Peixoto 161 nova observacao de certas categorias artaudianas, como 0 ‘atle- tismo afetivo’ € o ‘teatro da crueldade’, A primeira referéncia a Artaud ja é um termémetro seguro da importancia que Foucault lhe atribui, uma vez que o insere junto a Nerval no restrito rol dos criadores que através da lin guagem romperam com uma tradigao de racionalidade ao refazer a experiéneia da loucura."!* Essa importancia seria ainda mais alargada na medida em que a obra de Artaud, juntamente com a de Nietzsche, foi entendida como um dos marcos delimitadores da clivagem entre Razao ¢ desrazéo na cultura ocidental."!’ Mais, © centro mesmo do argumento final da ‘Historia da Loucura’ se constituiria em torno da tensfo entre a arte & a loucura na obra de Artaud, definida pela expresséo “palavras jogadas contra a auséncia fundamental da linguagem [...]’, servindo ainda para alicercar 0 conceito de “auséncia de obra” que Foucault utilizaria para melhor exemplificar a ideia de ruptura."* Entre 1963 ¢ 1966, acompanhando o deslocamento da pes- quisa em torno de ‘O nascimento da clinica’ e ‘As palavras e as coisas’ a obra de Artaud passaria a ser entendida a partir da relagio que faz das chamadas ciéncias empiricas com a con- cepcao filoséfica do conhecimento. Assim, Foucault passaria a entendé-la também enquanto uma experimentagao"* conec- tada mais & ideia da construco da linguagem, acenando um afastamento da ideia da “auséncia de obra”, como assinalaria TI2 FOUCAULT, Michel. La foie n’existeque dans une societé.1961.In:_. Dits et crits, Tomo I Faris: Eclilons Gallimald, 1994, p.167. NBFOUCAULT, Michel. Préface; Folie et Déraison. 1961. In Dite et device “Tomo |. Pars: Editions Gallimard, 1998, p. 181 114 FOUCAULE Michel. Historia da Loucura, ao Paulo: Ed. Pespectva, 1978, pp. 528-530. IISFOUCAULT, Michel. Guetterle jour qui vient 1963, In Dits et eerits. Tomo 1. Pati: Editione Gallimard, 1994, p. 256. 160 Cartogrofias Imaginérias exercicio de autonomia quanto um exercicio de decomposicéo da individualidade, um. entendimento que pode ser acompa- nhado através das investigagées da relac4o entre a literatura e a linguagem feitas por Foucault e, especialmente, pelo rem ‘mento dessas as suas observagies sobre a vida e obra de Antonin Artaud Referéncias a Artaud na obra de Foucault As referéncias a Artaud abrangem um longo periodo de pelo menos dezessete anos, desde 1961 até 1978, podendo ser encon- tradas em varios dos artigos ¢ conferéncias de Foucault assim como em algumas de suas principais obras, especialmente em ‘As palavras e as coisas’, na ‘Histéria da Loucura’ e em ‘O nasci- ‘mento da clinica’. Como essas referéncias acompanham o deslo- camento tematico e teérico das pesquisas de Foucault, pudemos nos servir delas para inferir certas transformagdes pontuais no seu entendimento da obra de Artaud. Mas essa transforma¢ao do entendimento de Foucault esti conectada também com uma recepedo renovada das principais obras de Artaud na Franca: novas edigdes de ‘Heliogabalo ou o anarquista coroado’, ‘O tea- to e seu duplo’ e “Van Gogh, 0 suicidado pela sociedade’, foram lancadas na Franca a partir de meados da década de 60. Afinal de contas, Artaud abordava em cada uma dessas obras temas caros ao proprio pensamento foucaultiano, como o hamossexta- lismo, a linguagem ea loucura. Além disso, no se deve também descartar a renovagio do interesse em torno da obra de Artaud provocado pela radiodifusao em 1973 de ‘Para acabar com o jul- gamento de Deus’, apés nada menos que vinte e cinco anos de censura. Finalmente, devemos considerar um certo desencanto de Foucault pela literatura, que provavelmente guiou-o a uma Renato Amado Peixoto 159 linguagem, 2o contrério, a experimentacao de linguagens é uma de suas ténicas. Ainda, mesmo que a geografia ou os métodos cartogréficos constituissem modelos racionais para essa escrita, nao existiu um consenso a respeito de controles que desclassifi- quem ou excluam obras ou sujeitos, ou seja, pode-se dizer que existiam outras razées possiveis. Desse modo, é possivel observas, desde o século XVI, a inserc3o mesma dessa experimentagao da desrazdo ou de razées outras na cartografia e a possibilidade de inscrigao, validacao e disseminagao do que poderiamos chamar de geografias pessoais e mapas da imaginagio. No segundo caso, entendemos que a problematizacao de uma discussdo em toro da cartografia deve ser feita menos em fun- ¢fo da sua escrita e mais em torno dos processos cognitivos que a originam e dos métodos em que se investe sua inscrigao. Para se pensar um espago é necessdrio considerar antes um espago imagindrio onde se produz uma linguagem através de miiltiplas experiencias de outras linguagens; ¢ preciso pensar os pressu- postos que possibilitaram as condig6es de composicao da grama- tica eda sintaxe dessas linguagens; entender cada um dos mapas das imaginagdes e das geografias pessoais que extrapolaram em um dado momento seus limites para constituir uma gramética © uma sintaxe cartografica. Pensar 0 espaco significa investigar ‘uma construgo humana que sé existe enquanto parte de um campo de forcas no qual a energia é o falante e a linguagem seu ‘gerador ~ como Antonin Artaud entendia a encenacdo, é neces- sfrio considerar essa linguagem sob a forma de encantamento,!”” uma linguagem que visa a encerrar e utilizar a extensao e fazé-la falar." Uma linguagem que Foucault entenderia ser tanto um TIOARTAUD, Antonin. A encenacaa ea meta ‘Max Limenad, 1984, p. 62. ALLARTAUD, Antonia, Cartas sobre a linguagem. In: O teatro ¢ seu duple. Sio Paulo Max Limenad, 1984, p. 141-142 sca. In: O teatro e seu duplo. io Paul: 158 Cartografias Imagindrias para sua compreensio, como ‘lugar’, ‘espaco’, ‘localizacao’, ‘local’. Segundo, a inexisténcia de uma critica da ideia de ‘local’, embora grande parte da pesquisa de Foucault possa ser caracte- rizada como um investimento em torno da exploragao de temas que contextualizem a perspectiva poder/conhecimento a partir de uma defini¢ao do que poderiamos chamar de contralocais. Terceiro, um desgaste da proposta foucaultiana de historiciza- ¢io do espaco, na medida em que um dos prinefpios mesmo do que podemos chamar de ‘heterotopologia’, 0 estudo das hete- rotopias, é 0 universalismo, que, a nosso ver, iria de encontro a prépria premissa histérica, condicionando-a ¢ restringindo-a."® Talvez a chave para se ultrapassar aquela compreensio ¢ minimizar os problemas da andlise foucaultiana do espaco seja, primeiro, contextualizar a questo do espaco em relagao & prd- pria obra de Foucault; segundo, a partir dessa contextualizagao, buscar, em seus escritos e observagées, um viés conceitual alter nativo que reoriente a compreensio daquela anilise. No primeiro caso, cabe observar que em relacdo acs mapas nfo existiu uma exclusao total da desrazio, se tomarmos esse conceitotal como Foucault observou em sua ‘Histériada Loucura’ ou em relagio a Literatura desde a época classica até a moderni- dade. Desde 0 século XVI, muitos mapas se afastaram dos prin- cipios de razdo ou verdade enfeixados nos saberes cartogréficos ¢ geograficos sendo mesmo organizados em torno de um princ{- pio de desrazdo que foi o elemento essencial de sua organizacao, construgao e disseminacao. A sobrevivéncia desse principio de desrazdo pode ser minimamente explicada se considerarmos que no acontecem na cartografia nem rupturas nem cercamentos da TOBVejase, por exemple, a andlise ds compreensio foucaultiana de expago de Edward 5. (Casey. CASEY, Eeward 5. The fate of place, Berkeley: University of California Frese, 1998, p. 296-201 Renato Amado Peixoto 157 Espacos imaginarios: 0 historiador dos espacos como cartografo Pensar o espaco nao 6 apenas entender sua representacao, considerar sua inscriggo, perscrutar sua construcao; é também necessirio buscar suas conexdes. Nao custa relembrar que o sen- tido atribuido por Deleuze 4 afirmacao de Foucault: “eu sou um cartégrafo” (DELEUZE, 1988, p. 53),!"* decorre da concepgao de ‘uma cartografia extensiva a todo 0 campo social, no que se resul taria expor as relagdes de forga que constituem o poder. Nesse entendimento, essa cartografia no seria bem grafada através de um tnico mapa, mas por um atlas que em permanente composi- ao fosse integrado por iniimeros mapas superpostos. Entrecanto, se por um lado, essa metéfora do mapa resolve o problema dacompreensio de um método foucaultiano, por outro, ela também nos impele a considerar a cartografia enquanto um proceso cuja racionalidade ja est4 predefinida, sem atentar que a cartografia mesma € parte também de um conjunto complexo de cognigées que a faz diferir de outras escritas. Essa utilizagio da metafora do mapa refletiria alguns dos principais problemas da andlise foucaultiana do espaco, a saber, primeiro, a inexistén- cia de uma clara e rigorosa distingao de certos elementos basicos 108 DELEUZE, Giles. Um novo cartogrfo, a: Foucaul. Sto Palo: EetoraBrasiinse, 1965 156 Cartografias imagindrias construgio de um espago de solidariedade corporativa decorrente tanto do desfecho da Revolta da Armada quanto a uma fronteira de disputa da identidade que se devia definir exatamente no mesmo local: 0 Sao Paulo era 0 mesmo navio que menos de dez anos antes fora considerado 0 mais poderoso barco de guerra do mundo e onde, ainda assim, grassara a Revolta da Chibata. Renato Amado Peixoto 155 na medida em que ndo se discute o engajamento pregresso de Saldanha na vida militar. A partir das varias biografias de Saldanha, depreende-se um individuo dominado pela figura paterna, condiggo esta que se sobrepde a sua dedicacdo 4 Marinha conforme pode ser enten- dido pela quantidade de sinecuras desfrutadas e barganhadas por Saldanha em nome da pretensto de atender aos anseios de seu pai, como era, por exemplo, o caso da disputa por comendas ¢ pelo privilégio de acompanhar as missdes oficiais do governo brasileiro na Europa. No mesmo sentido, Saldanha se fez capaz de abandonar a mulher amada ¢ 0 seu lar, unicamente pelo argumento paterno de que estes nao faziam jus a sua posicao social: abandonado a tediosa tarefa de se construir social ¢ idealmente como a imagem de seus pares, Saldanha transforma seu corpo num simulacro de si mesmo ~ 0 mesmo corpo-simulacro que sera retalhado pelos seus opositores ao fim da batalha Ainda, a elisdo desses elementos fracos no mitema se torna ainda mais evidente se procurarmos entender a ago dos oficiais que comandavam o Sao Paulo e 0 desfecho da missio a partir do lugar de discurso de Epitacio Pessoa. O bom uso do bem puiblico e de um meio de guerra carfssimo cede vez a uma pritica destinada apenas a legitimar uma ideia que a instituigao fazia de si por meio dos seus membros privile- giados e que a coadunava com um lugar mitico frente a identi- dade da nagao. Se a narrativa os busca construir enquanto guer- reiros-poetas, a investigacao os revela apenas cidadaos-eunucos brandindo suas palavras-espada. Finalmente, no caso do mitema de Saldanha da Gama, resta apontar que as palavras-micleo esto também ligadas 154 Cortograjias Imaginérias alternativa possivel 4 ideia do desenvolvimento e da evolucao historica para 0 estudo de certos problemas. Por conseguinte, no caso das falas de Epitacio Pessoa e do Ministro da Marinha, pode-se perceber que coexistem dois jogos de linguagem em relacéo as palavras apontadas, © primeiro expressando a relacao de uma imagem que a elite brasileira faz de si com o seu lugar na sociedade; o segundo, sobrepondo ao primeiro uma relagao desta elite com os oficiais da Marinha, reco- nhecendo um grupo que lhe est ligado e suas especificidades. Ja no caso do mitema do rei Alberto essas palavras relacio- nam um jogo de linguagem complexo onde a ideia de Nagao ¢ 0 conceito de soberania esto interligados 4 figura reguladora de um soberano por meio da qual se permite expressar uma ideia da identidade. Por conseguinte, se a estratégia de aproximacio através da semelhanca de familia das palavras busca elidir diferengas em relagdo as diferentes enunciagdes, deve-se reparar que © ‘esquema de construcio do mitema de Saldanha da Gama se faz por meio de uma elisio no nivel do sistema de escolha dos ele- mentos, no caso se faz a aproximagao pela elisio dos elementos fracos, ou seja, aqueles que seriam capazes de tornar ineficaz 0 esquema de partilha de significacdes estabelecido por meio da semelhanga de familia ‘Um esses elementos fracos é justamente o da condigao de amotinado de Saldanha da Gama, haja vista que a hierarquia & um dos principios basicos da organizaco militar e sua quebra vai de encontro a prépria cultura regimental. Outro elemento fraco é a sua condiga0 de experto na arte militar, ja que é um completo contrassenso imaginar marinheiros combatendo em terra ca cavalo contra elementos especialistas no mesmo tipo de uta. Também a dedicagao a vida militar deixa de ser questionada Renato Amado Peixoto 153 perspicuas, superando-se as aparéncias da linguagem nao por meio de uma geologia légica e integradora das palavras, mas através de uma geografia logica das palavras, que consistiria exa- tamente na investigacao das suas conexdes. Segundo Wittgenstein, a explicacdo histérica como hipé- tese de desenvolvimento seria apenas um modo de juntar os dados: uma sinopse. Seria igualmente possivel ver os dados em sua relagao miitua e sintetizé-los em um modelo geral sem que isso tenha a forma de uma hipétese sobre o desenvolvimento temporal. Contudo, faltar-nos-ia tanto uma compreensao de sua gramatica quanto uma ‘vis4o sinéptica’ [Ubersich], uma visto global do uso de nossas palavras, Paraisso, seria necessario buscarmos, inicialmente, uma com- preensio clara, nitida das construgdes e das utilizagSes daque- las palavras, problema enfeixado no conceito de ‘representagao perspicua’ [iibersichtliche Darstellung]. Neste conccito, seria de ‘uma importancia fundamental buscar superar as aparéncias da linguagem nao por meio de uma geologia légica das palavras, ‘mas através de uma geografia l6gica das palavras, que consistiria exatamente na investigacao das suas conexées, dai a importancia de se procurar ou inventar cadeias e casos intermedirios. O trabalho sobre essas hipotéticas caceias e casos intermedi. firios permitiria entrever as semethangas, os nexos entre os fei- 105, nao para afirmar que estes haveriam se desenvolvido a partir de um lugar comum, mas para tornar mais aguda nossa observa- ¢fo frente sua relagao formal. Portanto, este trabalho nao visaria a caracterizar os fendmenos, mas determinar um esquema possi- vel para concebé-los. Por isso, buscar-se-ia substituir, na medida do possivel, a explicagio pela descricio e reflexéo a partir das conexGes entre casos histéricos procurando uma representacao perspicua do uso das palavras que nos permita oferecer uma 152 Cartografias imaginérios corporacao, transpassado pela lanca de um estrangeiro, que no hesitaria mesmo em profanar o seu cadaver. Tal narrativa permitiria Rui Barbosa bradar, j4 em 189 Saldanha da Gama, “o heréi dos heréis, [...], 0 homem mais completo ¢ 0 carter mais extraordinario que ja conheci nesta terra” (BARBOSA, 1946, p. 6). Observe-se que as palavras ‘cavaleiro’, ‘cavalheiro’ e ‘herd? utilizadas na descrigo do martirio de Saldanha da Gama repe- tem-se no micleo do tema mitolégico que fora construido pela imprensa internacional 4 volta de Alberto I: este Rei, comandante maximo das tropas belgas, para incutir bravura as suas tropas, visitava o fronte da 1* Guerra montado a cavalo e arriscando-se a ser morto por qualquer soldado. Por uma razéo de honra, altivez e patriotismo néo aceita 0 ultimato da Alemanha e, apesar da discrepancia militar contra si, luta até o fim. Pode-se, portanto, pressupor a constituigao de clos de ligagao entre os dois mitemas e mesmo uma ‘seme- Ihanga de familias’ entre as palavras utilizadas, a partir da qual, poder-se-ia instituir tanto uma topografia gramatical quanto ‘uma gcografia das palavras cuja organiza¢io ¢ compreensao nos permitiriam aventar uma representagio perspicua, ou seja, uma ‘observacio” dessas conexdes. Note-se que existe uma semelhanca de familia entre os ter- ‘mos que remetem as palavras cavalo e cavaleiro nos dois mite- mas e na fala de Epiticio Pessoa, mas que, 20 mesmo tempo, insisto, essa semelhanca nao impede que diferentes saberes & praticas de espaco possam ser distinguidos a partir de cada um dos exemplos. Logo, para se evitar uma conclusdo sinéptica ou desenvol- vimentista se faz necessdrio investigar suas representagdes na figura do ‘cavalheirismo’, mas também o que se reproduzia continuamente na Marina enquanto ideal de formacio, perpas- sando a educacio formal dos aspirantes a oficiais, mantido pelo recurso a uma cultura regimental e pelas rigorosas normas de ingresso na Escola Naval, conforme ratificado pelo discurso do entao Ministro da Marinha, Essas_normas, encimadas por impedimentos de ordem monetéria, fizeram possivel que a Escola Naval permanecesse, mesmo na Reptiblica, enquanto um lugar de prestigio, e que 0 oficialato da Marinha, através da cultura regimental, reverbe- rasse conceitos ¢ ideias proprias. Mas esta cultura regimental, legado da marinha portuguesa ao Império, fora reformada na Repiiblica por meio da constitui¢ao de uma narrativa mitolégica que reforcaria o élan corporativo da Marinha. Nessa narrativa, enaltecia-se © martirio de um oficial/cavalheiro, 0 Almirante Saldanha da Gama, Diretor da Escola Naval durante a Revolta da Armada. Segundo a narrativa, Saldanha da Gama era um oficial unica- mente devotado ao seu oficio de Diretor da Escola Naval, sendo que, por esse amor aos alunos, se engajaria na Revolta, jé que a maioria daqueles escolhera o partido dos revoltasos, contra o jacobinismo e a truculéncia de Floriano Peixoto. Saldanha, ext mio chefe militar, agora junto ao grosso de sua Corporacao, pas- saria naturalmente a comandar os sublevados. Resiste ac poder maior do Governo, mas a vileza de Floriano, que nao hesita nem dividir a Marinha, oferecendo privilégios aos transfugas, nem em envolver os estrangeiros na peleja, obriga-o a retirar-se. No episédio final da saga, um Saldanha da Gama exilado, mas altivo e sem medo, lideraria seus comandados na invasto dos pampas gatichos, quando, montado a cavalo e & frente de suas tropas, morreu heroicamente em batalha pela honra da 150 Cortografies Imaginérias Concluida a arriscadissima manobra, diga-se de passagem, contra o conselho dos préprios belgas, Tancredo voltou ao Rio de Janeiro conduzindo Alberto I para receber o seguinte elogio do Ministro da Marinha: Dz ordem do St. presidente da Repiiblica, reco ‘endo seja em ordem do dia desse Estado Maior, clogiado, nominalmente, 9 capitio de mar ¢ ‘guerra Tancredo de Gemensoro, comandante do encourarado ‘Sto Paulo’ [..]. A maneira superior- mente distinta,o brilho incontestavel, a disciplina ictepreensivel com que se conduziram oficiais e rmarinheiros, para orgulho e satisfacio do governo brasileiro; no podiam ser de maior correcdo a inteliggncia e a habilidade do comandante do S40 Paulo ¢ seus distintes comandados durante Viagem de Ss. Mm. o3 seis dos belgas, gesto ‘que tanto nos cativeu € muito concorrew para o prestigio internacional de nossa pétria[..] (LIGA MARITIMA, 1921, p. 12). Em relagio a anilise desse caso, entendemos que a fala inicial de Epitécio Pessoa sublima uma construgio do espago brasileiro que o situa de costas para a maioria dos individuos que o habi- tam ede frente para a Europa. O espaco curopeu é um espaco de mimesis, nao apenas de imitacao, mas também de drama: imita- do porque se tentam implantar habitos e cultura desejados, mas que, muitas vezes, nao deixam de ser mais do que maneirismos; drama porque 2 todo © momento se constata sua impossibili- dade, seu anacronismo, sua inadaptabilidade, mas, ainda assim, tentada implantar a todo custo porque permitia inscrever ¢ jus tificar fronteiras sociais e culturais no espago brasileiro e manter certas relac6es de forca e subalternidade. Sobretudo, a fala de Epitdcio Pessoa nao traduzia apenas uma imagem que a elite politica brasileira fazia de si mesma que, num jogo de espelhos coma figura do soberano belga, se amalgamava Renato Amado Peixoto 149 pitria” e que “nos momentos mais criticos deu ao mundo um atestado veemente de sua energia ¢ patriotismo”. Afinal, 0 Sao Paulo abrigaria aquele a quem a imprensa internacional havia cognominado de ‘Rei Herdi’, ‘Rei Cavaleiro’ Ainda, segundo Epitacio, outro aspecto aumentava a “delica- deza da misso”: cabia A guarnico do Séo Paulo “levar a longes terras e a estranhas gentes uma impresso de nossa cultura e de nossa educaco militar”. Ora, o Sao Paulo nao serviria simples- mente como o wansporte dos soberanos da Bélgica, mas deveria constituir-se também numa embaixada da patria, representando uma porcao de sua identidade, porventura a mais clevada. Assim, a tripulagdo do Sao Paulo deveria “demonstrat tudo de excelente € nobre”, 0 que, segundo Epitacio Pessoa, nao se resumia apenas aos tesouros de cultura e aos predicados morais, mas deveria incorporar também “o tato, a finura, as delicadezas do coracéo, os habitos da boa sociedade, uma prova de sua civili- zacdo e adiantamento” (UMA VISITA..., 1920, p. 13). Chegando a Zeerbruge no final de agosto de 1920, 0 coman- dante do Sao Paulo, Tancredo de Gomensoro, verifica que 0 navio, um dos maiores de sua 6poca, nao poderia atracar no porto devido ao seu grande calado. Portanto, seria necessério trans- portar os reis belgas de bote desde 0 cais até 0 Sao Paulo, j4 que se encontrava fundeado ao largo do porto, para depois fazé-los subir ao navio por meio de uma escada de cordas. Considerando que tal procedimento seria indigno da estatura do Rei Heréi, Tancredo de Gomensoro, reunido com a oficiali- dade, concebe outro esquema, uma verdadeira faganha: a0 custo de perder 0 préprio So Paulo, um dos navios mais caros de sua época, decide atracar de ré no porto para que assim se pucesse estender uma rampa desde o cais até a popa do navio, por onde © Rei Cavaleiro e sua consorte desfilariam: 148 Cortograjias Imaginérias disseminago/inscricao diferenciadas da produsio do espago na cultura erudita e popular etc. Quinto e iltimo, a investigagéo do pensamento ¢/ou pla- nejamentos a respeito de circunstancias tecnolégicas ¢ sociais que visem ao desenvolvimento e/ou usos do espago e/ou do ter- ritério, por exemplo, o planejamento da ligagdo entre espagos ou da incorporagao de espacos; o pensamento e atividades ligadas 2 centralizagao do poder, construgio e mudanga de capitais; a andlise das relagbes entre um centro e suas periferias; o estudo dos movimentos ¢ das descontinuidades estruturais sobre 0 espago (fluxos econémicos, fluxos demograficos, movimentagio de capitais, trafico de drogas, disseminacio de doengas, fluxo turistico) ete. Em defesa deste campo de investiga¢do do que gostariamos agora de chamar provisoriamente de Geopoder e de uma andlise critica do espaco que considere os pressupostos antes alinhados, repetindo, o discernimento de um saber sobre o espago, a exten- so desse discernimento as préticas derivadas deste e a sua arti culagao com a hipétese do Biopoder, buscaremos agora trabalhar um caso de estudo. Em 1920, o presidente do Brasil, Epitacio Pessoa, pronunciou um discurso de despedidas para a tripulacdo do encouragado Sao Paulo, dias antes deste zarpar para 0 porto belga de Zeerbruge, conde os soberanos desse pais seriam embarcados rumo ao Rio de Janeiro, Em sua fala, Epitcio destacou a importéncia fundamental da missao, salientando ser essa a primeira visita de um Chefe de Estado ao Brasil desde a Independencia e, ressaltava que nao se buscaria qualquer um, mas o Rei Alberto I “aquele que, nos momentos mais sombrios da histéria,” havia sabido “defen- der com brio e denodo a fé dos tratados e a integridade de sua Renato Amado Peixoto 147 influéncia, por exemplo, 0 estudo das praticas sobre 0 espago a partir de instiruig6es/organismos ligados ao governo ou Estado, como: as forcas armadas, os ministérios das relacdes exteriores, os partidos politicos, os institutos histéricos e geogrificos etc. Esse ponto, ainda, poderia ser mais afinado se considerado © discernimento das relagGes localizadas de produgao de um certo pensamento em relagao a uma dada performance, considerado seu recorte espacial ou contexto histérico. Por exemplo, a adogio de um pensamento sobre o espaco que possi- bilitou o plano naval dos grandes navios de batalha na Marinha do inicio do século; a constituicao do bindmio seguranga-desen- volvimento na ESG da década de 1950; as inflexdes na producao do plano diretor de Natal, em 2007, se examinadas as discussdes e voracées na sua Camara dos Vereadores etc, Terceiro, como uma investiga¢ao das praticas e estraté- gias de inscrigao das fronteiras e dos limites, englobando- se ai tanto as disputas por territério ou por uma territorializ: ao de determinados espagos geograficos quanto as politicas de delimitacao ou estabelecimento de fronteiras, limites, exclusdes ou inclus6es sociais ¢ culturais, o que permitiria estabelecer ou constituir cartografias dessas politicas, como, por exemplo, uma cartografia da pobreza, uma cartografia da discriminagao, uma cartografia da fome ete. Quarto, como a anilise critica de produgées plurais sobre uma dada espacialidade, no caso, privilegiando o estabele- cimento de raciocinios que articulem esta pluralidade ou que procurem entender as distingdes tedricas que considerem uma dada multiplicidade. Por exemplo, a andlise das diferencas entre as verses populares, praticas e formais de um mesmo espag a transposicao do erudito/formal para o popular; a divulgacio/ 146 Cartogrofias Imaginérias Cabe aqui uma observagio: este seria verdadeiramente um desdobramento da hipétese do Biopoder e que, por analogia, poderia ser chamado de Geopoder, ou seria apenas adensamento do Biopoder exercido a partir do governo e do Estado sobre os indivi- duos que se desdobra para uma ressignificacdo dos usos ¢ inven- gdes do cotidiano? De todo modo, permitimo-nos observar que um campo préptio de investigacéo poderia ser atribuido a este desdobra- mento ou adensamento da hipétese citada, no caso, 0 estudo de dinamicas de espaco desencadeadas a partir do governo, por agentes do Estado, por integrantes da coligacéo diplomatico- -militar ou por institutos, organizacées, grupos ou elemen- tos que articulam ou exercem politicas de poder baseadas nos saberes sobre 0 espago. Assim, primeiro, poder-se-ia investigar 0 saber sobre 0 espago em si, inquirindo 0 modo como este se legitima e se institui, no caso, procurando entender as praticas e estratégias por detrés da operacio € construgdo de uma narrativa mitolé- gica do Estado, do territério ou da identidade e que pode tam- bém desencadear suas contranarrativas. Caberia aqui discutir a construcdo/inscrigao do territério ¢ da identidade por meio de produgGes culturais e/ou instrumentos culturais, como a lite- ratura, a pintura, a poesia, etc.; a investigagao de sua operaco/ divulgacao por meio de praticas e politicas culturais, como, por exemplo, 0s monumentos, 0 cinema, as novelas de televiséo, os quadrinhos ete Segundo, a partir da investigacao das performances do Estado, das instituigdes ou dos organismos e grupos que lhe estio vinculados a estudar o que diz respeito 4 construcao e a operacao do espaco, ou seja, as praticas espaciais, materiais € representacionais operadas a partir do Estado ou sob sua Renato Amado Peixoto 145 poderes disciplinares cujo principal atributo seria remeter a égica da subalternidade continua a uma eperagéo da espacialidade. Discursos e narrativas mitico-histéricas serviriam entao para constituir uma subalternidade continuada dos habitantes e espa- 0s extraeuropeus e estadunidense, permitindo aos dispositivos diplomatico-militares, em cada um dos seus invélucros nacio- nais, constituir razdes de reprodugdo € disseminagao destes discursos sobre a prépria sociedade, Falamos aqui no apenas uma de uma nova reproducao, mas também de uma continuacio Gos mecanismos descritos por Foucault no curso ‘Em defesa da sociedade’. Se esta continuidade foi tornada factivel e operdvel no exterior da sociedade, também as novas raz6es espaciais da subalternidade seriam tornadas factiveis e operativas para o inte- rior da sociedade. Portanto, seria necessério, primeiro, entender a geopoli- tica além daquilo com que esta se define a si mesma, ou seja, é necessirio entendé-la como um saber sobre o espago ¢ fazer uma gencalogia desses saberes que comporte tanto a sua escrita como também sua inscrigdo. Segundo, é necessério estender o proprio entendimento da ‘geopolitica’ para que neste se comporte tam- bém as politicas de espago dela derivadas, ou seja, ¢ necessério entender uma geografia que comporte sua extensio. Terceiro, deve-se também procurar articular esse saberes sobre o espaco € essas politicas de espago com os elementos que Foucault tra- balha na hipétese do Biopoder. Quarto, é preciso constituir uma cartografia desses saberes e de suas politicas do espaco articula- dos que nio seja apenas uma superposiggo de seus mapas, mas que dé conta da cognicao e construgéo desses mesmos mapas € que os entenda enquanto composigdes independentemente engendradas por meio de uma linguagem original e com uma logica inerente a esta originalidade. M4 Cortogrefias Imagindrias lado, a andlise de Foucault ndo se pretendia geral nem instru- mental, por outro, ela se constituia estrategicamente em relacgo a0 contexto em que se inscrevia. Se desdobrada, a hipétese do Biopoder poderia se perder tanto por diluicZo quanto ao conte- ‘ido tanto por seu enquadramento em relagao as outras posi¢&es que ent4o se constituiam na década de 1970 como contrapode- res. Portanto, se este trabalho pretende aventar um desdobra- mento possivel da andlise foucaultiana, isso se faz porque acre- ditamos que ela possa ser titil para o trabalho com a hipétese do Biopoder, na medida que a investigago de uma funco continu- ada do politico de inscrever ¢ reinserir externamente & sociedade ocidental as relagdes de forga, permite discutir também uma genealogia desta funclo, inclusive, entendendo que se vio se constituir mecanismos, poderes disciplinares ¢ saberes que se dobram para o interior das sociedades ocidentais, articulando-se com aqueles expostos pela hipdtese do Biopoder. NoséculoXIX, a partirdosinsumos quegeramolmperialismo, come, por exemplo, o racismo, 0 nacionalismo e a dinamizagao dos dispositivos diplomético-militares, estabelecem-se sabe- res que permitem ao Estado produzir continuamente politicas de espaco. Genericamente denominados de Geopolitica, esses saberes distinguem novas espacialidades e escalas, redefinem territérios, articulam politicas de espago, constroem razées de convivéncia nfo apenas dos entes politicos, mas também dos coletivos populacionais que habitam os espacos distinguidos, inclusive, os instituindo ou eliminando enquanto atores. Constituir-se-ia, entdo, 0 que podemos definir grosscira- mente como uma coligagdo diplomatico-militar em cada um dos invélucros nacionais, ao mesmo tempo concorrente e aliada. Cada uma dessas se radicularia por instituig6es, corporages, agentes do governo que reverberariam saberes, mecanismos, Renato Amado Peixoto 143 desigualdades econémicas, na linguagem, até nos corpos de uns e outros”. Sobre essa consideragao paira aquilo que para Foucault seria essencial, a constatagao que, 2 partir do século XVIII, essas mesmas sociedades “volcaram a levar em conta o fato biolégico fundamental que o ser humano constitui uma espécie humana” (FOUCAULT, 2008). Por conseguinte, embora esta andlise parta do pressuposto da instituigao de subalternidades ¢ para explica-la busque tra- balhar a construgio histérica de discursos ¢ narrativas de um racismo biolégico-social e a constitui¢do da politica como uma forma de guerra continuada por meio da construgao de um dis- positivo diplomético-militar concomitante ao da policia, ela nao considera uma fungao continuada do politico de inscrever e rein- serir externamente 3 sociedade ocidental as relagdes de forca esta- belecidas. Nesse sentido, o desdobramento da anilise a partir de certa relagio de forca estabelecida, em dado momento, his- toricamente precisdvel, na guerra e pela guerra, o Imperialismo, simplesmente nao era relevante para 0 constructo analitico de Foucault, Note-se que esta funcdo da inscrig&o ¢ reinsergao externa das relagdes de forca pode ser pensada enquanto lagica se observarmos que a mesma andlise considera elementos como: a racionalidade governamental; a ideia da conservagao do Estado numa ordem geral; a concorréncia entre Estados; uma estraté- gia da concorréncia; a ideia da busca de uma posi¢go dominante dentre os Estados; de uma nogdo de forga do Estado; de técni- cas de tipo diplomatico-militares, ou seja, o emprego de elemen- tos que rratam de dar sentidos a concorrércia ¢ ao equiltbrio espacial dos Estados(FOUCAULT, 2008). Nesse ponto e, em beneficio da justificativa deste traba- tho, acreditamos que tal op¢4o (ou ‘esquecimento’) tenha sido devido justamente ao que jé foi anteriormente colocado: por um 142 Cortegrafes Imaginérios & questo do liberalismo ou da passagem ¢ articulagio com este, sero bem ressaltadas nesta andlise questes como as das resis- téncias e dos processos de producio do poder. Este cratamento da questao do poder possibilitou a Foucault constituir a hipétese do Biopoder como a insinuagdo de um contra-poder possivel em meio ea despeito de posi¢des que se enunciavam no mesmo dié- logo, como, por exemplo, 2quelas defendidas por Gilles Deleuze. Por conseguinte, 0s trabalhos de Foucault nfo pretendiam compreender uma andlise geral das estratégias de poder, mas antes perscrutar condigées e problemas que teriam engendrado mecanismos ¢ que teriam possibilitado a sociedade instituir cer~ tas espécies e relagdes de poder. No que isto diz respeito a hip6- tese do Biopoder, Foucault o faz a partir de um trabalho no qual procuraria reconstituir, minimamente, uma histéria das tecnolo- gias de seguranca e uma historia da governabilidade. Poder-se-ia entender mesmo que a hipétese do Biopoder surgiria como um deslizamento ¢ consequente desraizamento de uma analise do poder que se voltaria cada vez mais para um exame das suas, relagdes com 0 sujeito e sua ética. Nesse raciocinio, fazia sen- tido buscar entender um discurso histérico e politico das lutas das racas e um discurso hist6rico-politico diplomético-militar, no qual se salientava que “o poder seria essencialmente o que reprime” — aquilo que reprime as classes, os instintos, mas tam- bémos individuos ea natureza.!” Nesse ponto, entendo que deva situar este trabalho: a hip6- tese do Biopoder de Foucault constitui-se por meio de uma anilise sobre 0 poder que explicita a ideia da relacdo de forca e de uma fungio continuada do politico de reinseri-la interna: mente nas sociedades ocidentais, ou seja, “nas instituicdes, nas 107 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Sao Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 21. Renate Amado Peixoto 141 Por uma anilise critica das politicas de espaco: isto pode ser chamado de estudo do ‘Geopoder’? Em meados da década de 1970, Michel Foucault enveredaria por uma série de investigagSes que tinham como fim compreen- der as formas de experiéncia ¢ de racionalidade a partir das quais se teria organizado, no Ocidente, um poder sobre a vida, sobre a populagao ¢ os vives, que denominaria de Biopoder e que corres- ponderia, mais diretamente, aos scus trabalhos sobre a historia da sexualidade. Contudo, cabia naquele momento situar e arti- cular este novo esforco em respeito avs seus estudos anteriores acerca das técnicas ¢ tecnologias de vigilancia e puni¢ao que Ihe haviam permitido enunciar um ‘poder disciplinar’ que se apli- cava sobre os corpos e sobre eles se afirmava. Nesse sentido, os cursos ‘Em defesa da sociedade’ e ‘Seguranga, tertitério e popu- lacao’, respectivamente lecionados no Collége de France em 1975-76 € 1977-78, teriam sido trabalhados por Foucault com 0 fim de permitir a constituiggo de uma ‘genealogia do Biopoder’. Ao mesmo tempo, a questio do poder seré tratada por Foucault por meio de uma anilise que se remete ao didlogo com Freud e Marx, dado © contexte histérico em que foi escrita. Assim, se nos cursos citados a genealogia do Biopoder é traba- Ihada por sobre uma anilise do governo e do Estado relacionada 140 Cartogrofias imeginérias piiblicos ~ a operaco conjugada destes sentidos somente se tor- nou possivel porque os interesses envolvidos estavam harmoni- zados num saber sobre o espaco que definia dominios nitidos, estabelecia suas fronteiras ¢ definia suas responsabilidades - um Saber construido a partir da verdadeira tensio entre a inscri ao dos lugares do acordo e a territorializacao dos lugares da subalternidade. Renato Amado Peixoto 139 Particularmente is mulheres, ne se olvidar apanhar a forma geral © constante dos mésculos texternos que revestem sacro e a bacia, porque na forma dos ghiteos hé diferengas notdveis nas ragas, assim como na dos seios ¢ sua colocacio mais aproximada go externo, ¢ mais visinha das claviculas: cumpre estudar as mudancas destes Orgies, que tém to intima relagio com todos os fenomenos de sua vida fisica (AS BASES... 1856). ‘Ao mesmo tempo, como vimos, uma das principais orienta- ges da Comissio dizia respeito & escrita de uma corografia que pudesse ser contraposta aos relatos dos viajantes estrangeiros. Nesse sentido, dever-se-ia avaliar a prosperidade ou decadéncia das povoagées e terrenos, recolher cépias de documentos, com- pilar dados de cartérios, arquivos, secretarias e de parciculares, atividades que somadas as medig6es topograficas realizadas pela Segao de Geografia, provavelmente provocaram a desconfianga, local em rela¢ao aos verdadeiros interesses da expedi¢ao, Yoltando com 0 nosso argumento inicial, podemos perceber que nao havia propriamente uma oposicéo entre as diferentes ‘perspectivacées sobre a regiao, mas uma tensdo capaz de possibili- tara composi¢o em torno dos interesses comuns € que se expli- citava por meio de uma linguagem que se buscava compartilhar e pelo discurso dela originado. Assim, se argumentos como a metifora da seca ou o sentido para a inser¢ao diferenciada no ‘espago nacional foram utilizados na elaboracdo do discurso nor tista, foi justamente porque estes argumentos ja estavam dispo- nibilizados desde a década de 1850. ‘Mesmo 0 discurso das desventuras da Comiss4o possui uma unidade metaférica que 6 delimitagao de dominios, veja-se bem, dominios que nao se excluem e se revelam na medida em que convergem para a condenacéo da Comissio. Perversdo, corrup- do, incompeténcia, malicia, malversagao dos bens e interesses 138 Cartografia: Imagindrias Essa questio fica mais clara na medida em que sabemos que © preambulo de Goncalves Dias fora anteriormente censurado por conter varias criticas 4 Pasta do Império. A partir da leitura dos relatérios das varias Secdes da Comissao, podemes aventar ‘em que diregao a tesoura da censura havia cortado: praticamente todos os relatérios apontam o problema politico como o fato amplificador dos problemas atribuidos 4 seca - descaso piblico, mau emprego dos recursos técnicos ~ estes eram os verdadeiros problemas da regio. Tais criticas aos polfticos provinciais e ao governo imperial provinham de uma casa, o IHGB, que h4 poucos anos havia dis- cutido a contingéncia de se manter ou ndo atrelada 4 politica imperial e que finalmente optara por buscar se conformar aos moldes de um instituto cientifico. Fora desse palco, os que se julgavam atingidos, buscaram desqualificar moral e intelectual- mente os integrantes da Comissao. Por sua vez, a metéfora da borboleta foi constituida a partir de figuras que participam o logro perpetrado pelos integrantes da Comissao, um sentido que busca dar conta da tentativa des- tes de transgredir ou subverter os lugares aos quais no se con- formavam, afinal, as borboletas esvoagam sem rumo, sugam 0 pélen das flores em que pousam, maculam e defloram. Se buscar- mos aproximar esta metafora dos discursos acerca da Comissio, veremos que a alcunha de ‘Expedi¢io Defloradora’ pode ter se originado dos mesmos preceitos cientificos que orientaram os integrantes da Comissao a coletar espécimes de insetos. A ins- trugSo principal da segao encarregada da etnografia dizia res- peito A coleta de dados para distinguir as diferentes ragas ou individuos que habitavam a area: Renato Amado Peixoto 137 deveria também investigar as causas da seca, estabelecendo uma regularidade do fenémeno e, inclusive, estudando a viabilidade do reflorestamento de certas areas. Assim, podemos entender que o saber sobre a regiio com- preendia duas leituras, a primeira, concatenando 0 problema da seca com a compreensio de um territério cujo centro era 0 Ceard; a segunda, perspectivando o problema da seca a partir de uma dimensto externa, 0 norte da Africa. Portanto, duas dina- micas de territorializacao se sobrepunham, a primeira, depreen- dencio-se de uma perspectivapdo, por assim dizer, local, garantinda que a Comissao ja estivesse, desde sua origem, destinada a per- correr 0 itinerério do “flagelo da seca devastadora”. Por sua vez, a segunda dinamica decortia de uma perspectivasdo do centro, que trai uma visao quase ultramarina ou colonial do territério, com- preensio esta que se adensa quando é sabida a preocupagao dos exploradores em armar e municiar a expedicao, providéncia que inclusive Ihe valeu Acidas criticas da imprensa cearense, que se referindo a Expedicao, insinuava: “a Comissio vem de cangaco” (RELATORIO..., 1962). Entretanto, se pensarmos que havia uma tensSo entre as duas perspectivacdes, como explicar que o discurso das desven- turas da Comissio fosse acreditado tanto na provincia como na Corte? Para entendermos esse problema é necessétio considerar 05 relatérios da Expedicao. Curiosamente, Goncalves Dias, 0 responsavel pela reda- ¢éo de seus predmbulos, escreve que inicialmente nao havia a intencfo de dirigir a expedi¢ao para o Cearé e que, quando a decisdo foi tomada, essa teria se devido, pasmem, a vontade de buscar naquela provincia os grandes depésitos de metais pre- ciosos que nela se julgavam existir! A questo da seca foi com- pletamente omitidal 136 Cortografias imoginérios distancia entre a letra do texto ¢ seu sentido virtual, conotando- -se assim todo um regime cultural, pois os desvios do discurso traem-se nessas metaforas e revelam seu sentido, “tal como 0 inconsciente se revelaria num sonho ou num lapso”, como Paul Ricocur assinalou. A metéfora do dromedario foi constituida a partir de figuras que evocam 0 desconhecimento e a inadaptacao dos integrantes da Comissio ao espago que buscam explorar, num sentido que destitui de razo suas agées, remetendo-as ao dominio do desa- tino, da loucura. Afinal, 0 dromedério era mesmo um animal desconhecido nessa regiao ¢ agredia a compreensio dos seus naturais, sinuoso, espalhafatoso, estrangeiro. Se aproximarmos essa metéfora aos discursos acerca da constituica0 da Comissao, yeremos que no IHGB, em 1856, quando se procuraram esta- belecer os seus objetivos, acordou-se que estes deveriam girar essencialmente em torno do problema da seca. A t6nica da discussio no IHGB era que a “desertificagio” de certas areas do Norte tornava-as compariveis & Argélia ¢ a0 Egito, daf ser possivel explicar o recurso da Expedi¢a0 a expe- rimentagSes j4 testadas nesses locais, uma delas a utilizagao de dromedarios como meio de transporte. Explicava-se que 0 Cearé era a area mais atingida por esse fendmeno, deplorando-se a decadéncia provocada pelo abandono da lavoura nessa provincia ¢ esperava-se que a Comissio fosse capaz trazer subsidios para seu restabelecimento, pesquisando um melhor aproveitamento dos recursos hidricos, identificando as areas onde melhor conviesse 0 recurso a construcdo de gran- des agudes, represas, sistemas de pogos artesianos ou canais destinados a irrigagao dos campos. Entendia-se que a Comissio TOSRICOEUR, Paul. A metifora viva. Sio Paulo: Edicdes Loyola, 2000, p. 228-228 Renato Amado Pevxoto 135 Nao faz parte de nosso objetivo reconstituir 0 cotidiano da Comissio Exploradora, mesmo porque as fontes disponiveis para tal so muito exiguas, mas cotejar 0 discurso de suas des- venturas por meio das suas metéforas dominantes, com outros, discursos acerca da Comissdo feitos antes e apés sua expedi- Observe-se, como chave de compreensao que, mesmo sendo cobrada a responsabilidade de seus integrantes, metade dos rela~ térios cientificos da Comissao jamais foi publicada, enquanto a parte restante acabaria sendo censurada. Do mesmo modo que, apesar de se alardear o custo da Expedicdo ou a exiguidade de seus resultados, quase todos os espécimes coletados ficaram abandonados no Museu Nacional, todo o material geogrifico foi disperso e mesmo no THGB, a Comissao passaria como que despercebida. Ao analisarmos discurso das desventuras da Comissio, podemos notar duas metaforas centrais construidas a0 redor das figuras dos dromedarios e das borboletas, as quais denotam a TOAReferimo-nes aes seyulnees documentos: AS BASES DAS inscrujbes para a ‘Comissio Cientifa de Exploragio In: Revista do THGB, Rio de Jancro; Tomo XIX, 1856, p_ 42-84, Suplementa; CONTRIBUIGOES para a8 instrugSer da Comistio Gientifica de Exploracio. in: Revista do IHGB, Rio de Jancit Tomo XIX, 1855, p. 76-82. Suplemento.; TRABALHOS DA Comissio Cicntifia de Expiocio. In. BRAGA, Renazo. Historia da Comissio Cientifica de Exploragio. [51 |:lmprensa Universitaria do Ceara, 1962. INSTRUCOES gerais para 2 Comissio Cientiica ‘eacacreyada de explora o interior de algumas provincias do lmpério menos conlie- ‘das. Ins BRAGA, Renato. Histbria da Comissio Cientifiea de Exploragao. (S1.]: Imprenca Universtiria do Cears, 1962; RELATORIOS da Comissio Cicnciica Explorafora In: BRAGA, Kenato. Histéria da Comissao Clentifica de Exploracio. {S1.]:Tmpreasa Universiiria do Ceari, 1962. 105A respeita da defirigao de falantes ideas, ver CHOMSKY, Noam. Rules and repee- ‘sentations. Now Yorke Columbia University Press, 1978 134 Cortografis Imaginérias durante as discussées de 1853 e 1854 haviam tornado os che- fes da Comissio desafetos dos que se encontravam a frente do Ministério dos Negécios do Império, problema este que se refletiu no corte de suas verbas, causando os sucessivos adia- mentos dos preparativos para a viagem. "2 Por conta disso, a Comissao Cientifica de Exploracao somente conseguiria chegar a Fortaleza em 1859, quando inauguraria uma atuagao que seria depois lembrada pelos episédios escandalosos ou cOmicos, os quais, tornando-se destague nos mexericos da Provincia e da Corte, acabariam por Ihe indispor 0 Governo e 0 Parlamento. No Senado, referia-se a cla como a ‘Comissao das Borboletas’, lamentando-se a insensatez de se gastar tanto dinheiro publico apenas para que se juntassem tais insetos. Em Fortaleza apeli- daram-na de ‘Expedi¢o Defloradora’, entendendo ser o desre- gramento a objetivo central de seus membros. Salientava-se 0 despudor de seus membros ao circular pela cidade de bermudas e em fraldas de camisa, Falar-se-ia também do desatino de seus integrantes, capazes de, em suas viagens pelo interior da pro- vincia, usar chapéus cujo prego equivalia ao de dez bois. Ficaria registrado no folclore da cidade o dia em que a populacio assistiu embasbacada 20 desembarque de quatorze dromedarios junto com seus tratadores argelinos, providéncia que, comentava-se, no teve nenhuma serventia, Dir-se-ia, ainda, que os chefes da Comissao teriam afundado propositalmente o navio que levava parte do material coletado de modo que nao thes pudesse ser cobrada a falta de resultados,” To2Cerrespondincie entre Guilherme Sehich de Capanema e Gonsalves Dias, GD, Lata 216, Pasta 50, 103 BRAGA, Renato. Histéria da Comissao Cientifica de Exploragao. [S| Imprensa Universitria do Ceard, 1962 Renato Amado Peixoto 133 numa leitura condizente com o entendimento de que a corogra- fia do tertitério passava a ser entdo uma das prerrogativas do Instituto e que esse deveria passar a assumir uma participagao mais ativa em relacio & questao.” Assim, em 1856, no bojo de mais um debate a respeito dos trabalhos dos viajantes estrangeiros, seria possivel formular- -se a proposta da formagao de uma “comissao de engenheiros ¢ de naturalistas nacionais” que deveria ser destinada a explo- rar “algumas das provincias menos conhecidas do Brasil”, tendo ainda a miss4o complementar de formar uma colecao de espéci- mes da fauna, da flora ¢ da cultura indigena para enriquecer as cole¢des do Museu Nacional. Por conseguinte, a proposta de formacao da Comissio Cientifica Exploradora se amparava num entendimento comum & maioria de seus membros, mas como essa iniciativa dependia dos recursos do Estado para efetivar-se, a busca de um estatuto cientifico por parte do THGB passou a depender das reviravoltas da politica. Embora 0 aceite do Governo e a nomea¢ao dos membros da Comissio pelo Ministro dos Negécios do Império tenham sido comunicados 20 IHGB jé na sessdo de 25 de julho de 1856," a Comiss4o somente comegaria seus trabalhos trés anos depois. Isto pode ser explicado por meio de um remeti- mento ao prdprio carater da composigao do Insticuto que, por conta de seus principios de recrutamento, fazia reunir, muitas vezes na mesma Se¢do, aqueles que se revezavam numa sé fun- do do aparelho de Estado. O fato é que as desavencas surgidas 59” Vejarse, por exemplo,o atague de Manoel Ferrcira Lagos & obra de Catelnaus Revista de IGE, Rio de Janciro, Tomo XVII, 1855. p28 Suplemento, 1OOREVISTA DO IHGE, Rio de Janeiro: Tomo XIX, 1886, . 101 REVISTA DO IHGB, Rio de Janeio; Tomo XIX, 1856, p. 21, Suplement. 132 Cartografias tmagindrias ‘operagao que também os instituia como operadores junto a uma simbolizagdo das representagGes j4 constituidas.** Examinaremos com o objetivo de articular esta operacéo com 2 construcio do territério e da identidade nortista os discursos acerca da instalagao e dos resultados da ‘Comissao Cientifica de Exploragéo do IHGB’, que percorreu as provincias do Ceara, Piauf, Pernambuco, Paraiba ¢ Rio Grande do Norte entre 1859 € 1861. O exame desses discursos se torna relevante na medida em que nos permite observar as transformagdes da semantica e da retérica que constituiram as metéforas utilizadas na inscri- go da Regido em meio 4 operacao da territorializagio de seus dominios na construgao do espaco nacional, j4 que os discursos foram emitidos em meio a sua produgiio por meio dessa produjdo, © que nos permite inferir que a transformasao metaférica foi uma resultante do acordo entre as partes. ‘A Comissio Cientifica de Exploracéo nasceu das discussées que dividiram o Instituto entre 1853 ¢ 1854, e que consistiram essencialmente na disputa acerca da delimitaclo das atribui- Ges do THGB, no caso, opondo aqueles que entendiam que o Instituto deveria manter-se enquanto um mero aparclho legi mador do Estado e os que pensavam que o IHGB deveria assumir na integra suas fungOes enquanto sociedade cientifica. Embora o segundo grupo vencesse a disputa, ele acabaria convergindo, por conta dos argumentos nacionalistas esgrimidos na querela, para uma posi¢ao comum de rejeicao aos relatos dos viajantes estran- geiros, acusados de falsificar e distorcer a verdade sobre o pais, ‘58 Quanto ica de simbolizagio, representa ¢ operaglo Ver CASSIRER, Ernst. A Filosofia das formas simbélicas. Il -O pensamento mitico, Sz0 Paslo: Martine Fontes, 2004. Em relagio conexio destasiceias cam a construcao do expaca nicio- nal brasileiro ver PEIXOTO, Renato Amado. A mascara da Medusa: a constracao do espago nacional brasileiro através das corografiase da cartografia no século XIX. 2005, Tese ~ (Dottarado er Fistia) ~ UFRJ Rio ce Janeiro, 2005 Renato Amado Peixoto 131 relacdo ao tema do espaco, por exemplo, as metaforas através das quais o Norte é descrito enquanto uma regidio superior as demais, seja em cultura seja em produgio, convivem com meti- foras que o identificam como um territério abandonado ou per- manentemente vitimado por acontecimentos naturais fora do seu controle, Do mesmo modo, o tema da identidade se com- poe tanto por metéforas que fazem referéncia a valentia, capa- cidade de luta e a vontade de independéncia contra 0 coloni- zador, contra Palmares, contra 0 Governo Central, quanto pela uma generosidade e capacidade de convivencia com as chamadas ‘Provincias irmas’. Portanto, a semantica do discurso nortisia ou pernambucanista evidenciaria uma retérica que conjuga a Inser¢do diferenciada no espago nacional com um sentido de arrumagao regional preciso. Neste estudo, pretendemos observar que o sucesso do dis- curso regional nao se deu a despeito dessa tensio evidente na estrutura narrativa, mas porque essa tensio foi capaz de se arti- cular com outras metaforas mais antigas que compunham um saber sobre 0 espaco cuja semantica era partilhada ¢ compre- cendida tanto pelas elites que organizavam um espaco nacional centralizado no Rio de Janeiro quanto por aquelas elites que se tornariam agentes e recipientes da construgao regional. Nesse sentido, entendemos que varios dos elementos utilizados na ela- boragao do discurso regionalista, na década de 1870, j4 eram de uso corrente na linguagem sobre o espaco desde pelo menos vinte anos antes ¢ serviam entdo para constituir certas represen- tagoes que inscreviam o territério e seus habitantes no espago nacional. Contudo, essa inscri¢do ndo deve ser compreendida como tendo sido feita do centro do espago contra sua periferia, mas pela receppdo da periferia no centro do espaco e pela coadu- naco de interesses e demandas. A inscrigao da regio e de seus habitantes no espago nacional se deu, portanto, em meio de uma 130 Crtegrofas Imagindrias tanto ao centro quanto as elites regionais ¢ acabariam expondo os limites entre a tensdo e o entendimento. Alguns autores tém apontado os anos setenta do século XIX como 0 inicio da chamada diferenciagdo regional no Brasil, quando se teria constituido uma argumentacdo que passava a dissociar claramente os espagos norte e sul do Brasil. Evaldo Cabral de Mello scursos das elites politicas do final do Império, entendendo que teria sido motivada pela modificacéo do equilibrio inter-regional e intrarregional.”* Rosa Maria Godoy entenderia, por sua vez, que, a partir desta argumentagio, fun- damentar-se-ia uma identidade regional ¢ uma narrativa territo- rial nortista que se consolidaria a partir dos acontecimentos que desencadearam 0 Congresso Agricola do Recife de 1878.7 Nesse raciocinio, a identidade nortista seria entio caracterizada pela perspectiva que a classe dominante teria do processo como um todo, o que teria levado a elaboragao de uma narrativa que articu- lava o discurso regional a narrativa da unidade nacional enquanto parte de uma estratégia que visava & manutengao de seus pri- vilégios. Por sua vez, os elementos que constitufam o discurso da regionalidade resultariam de uma perspectiva¢ao do espaco regional como um dom{nio das antigas praticas ¢ lugares sociais. Por meio do raciocini dos dois autores, poderiamos enten- der que 0 espaco nortista foi constituido numa tensdo entre a estratégia inter-regional ¢ a reafirmagao da inscrigao intrarregio- nal, tensZo essa que teria se inflectido na elaboragao do discurso nortista, uma vez que sua estrutura narrativa articulou metaforas claramente opostas na busca de uma unidade de sentido. Em 95 MELLO, Evaldo Cabral de. O Norte Agri Janeite: Topbooks, 1999, 97 SILVEIRA, Rosa Maria Godoy. © Regionalisme Nordesting: Existencla ‘Conscigncia da Desigualdade Regional. Sio Paulo: Ecitora Moderns, 1984. joe o tmpério, 1871-1889.2. ed. Rio de Renato Amado Pevvoro 129 Os dromedarios e as borboletas: uma andlise da consirucdo do territério e da identidade no espaco regional por meio de um exame dos discursos acerca da 'Comissao Cientifica de Exploracdo’ do IHGB (1855-1862) Uma das caracteristicas da construgao do espa¢o nacional, no século XIX, é que ela propicia as condigdes para a integracao das elites num sistema institucional central, uma vez que o reconhe- cimento mesmo da existéncia do centro dependia da manuten- cao da afinidade entre os varios grupos que residiam no territ6- tio, Assim, 0 projeto histérico caminhou, num jogo de tensdes € contratens6es, pari passu com a constituicio de um saber sobre 0 espago que possibilitava 0 estabelecimento do consenso acerca da identidade. Este processo descontinuo e heterogeneo pode ser revelado pelo exame das iniciativas e da producao sobre o espago do periodo, uma vez que sua discussao mesma seria estratégica para as partes envolvidas. Um dos lugares estrarégicos para esta investigacao é o IHGB, uma vez que seus mecanismos internos estimularam a manutengao continuada de elos entre o centro e as partes, numa colaboragdo acentuada pelo pertencimento de seus membros a outras instituigdes. O exame de uma de suas iniciati- vas, a Comissio Cientifica de Exploracao, se torna estratégico na medida em que seus resultados interessavam simultancamente 128 Cartografias imogindrias experimentado todo tipo de dificuldade: 14 se tornaria ainda mais infeliz, perdendo o que Ihe havia sobrado da familia e os liltimos recursos conseguidos. Fm seu leit de agonia, desani mado, resolveu batizar a localidade de Remate de Males."* Apés a reinvengo do espaco nacional e depois de finalmente se haver descoberto que o rio Javari nao estivera onde se acredi tara houvesse existido, Remate de Males mudaria de nome: passa- ria.a se chamar Benjamim Constant, um dos patronos da Repiiblica —do Brasil. 55 BITTENCOURT, Agnelo. A psicologia nos nomes geogrificos do Amazonas. In: ‘Mosaicos do Amazonas - Fisiografia e demografla da reglao. Manaus: EAicoes Governo de Estado do Amazonas, 1966. p. 128, Renato Amado Pebeo10 127 de ‘Tefé: “[...] escondia-se a fonte desse rio misterioso, quase encantado” (VIANA FILHO, 1959). A confusao se transformaria ainda numa questao da campa- nha presidencial capaz de mudar os rumos da clei¢o: acompa- nhando a tendéncia do eleitorado, Rodrigues Alves passaria a demonstrar simpatia pelos chamados “combatentes do Acre” Eleito, este reconstruiria a articulagao do centro com a periferia designando para 0 Ministério das Relagdes Exteriores um indivi- duo jé reconhecido por suas ligagSes com as questdes de limites: Rio Branco. Este, em 18 de Janciro de 1903, faria um comuni- cado 4 Bolivia no qual se informava que o Brasil passaria a sus- tentar © que considerava a verdadeira interpretag4o do Tratado de Ayacucho: a fronteira brasileira era 0 mitico nascedouro do Javari, “o paralelo de dez graus ¢ vinte minutos’. Remate de Males Depois da compra do Acre, o Javari ja estava aberto & nave ‘ga¢do comercial até a sua principal povoacao, denominada entao Remate de Males, localizada na confluéncia com o rio Itecuai e ainda em vapores e lanchas até a confluéncia com o rio Curugé. A companhia de navegacao que prestava esse servico era inglesa, a The Amazon Steamship N. Company, Ltd. e navegava uma vez por més esse percurso. Remate de Males possuia naquele ano mais de 1.000 habitantes e contava com uma escola piblica mantida pelo governo do estado do Amazonas." Consta que o nordestino que langou os fundamentos dessa povoacdo chegou a Amazénia fugindo da seca depois de haver 55 GORGALVES, Lopes. © Amazonas -Esboso histérico, corogrifico estatistico até 0 ano de 1903. New York: Hugo. Hanf, 1904. p.72°73, 126 Cortografios Imaginérias de Manaus, onde 0 ex-ministro das RelagSes Exteriores tentaria negar autoridade a visio local de espago: 1 festa] questdo que nao existe [.] esta ques- tio [a do Acre] que nasceu nas pragas comercial Ge Belém e Manaus, de Ia subiu ao paécio do govern do Amazonas, dai se propagou aos serin- tals do Act, fosse agitada na imprensa didvia, a ‘Que vieram momrer suas ondas na outra casa do Congresso (CERQUEIRA, 1801) No centro de toda a controvérsia, encontrar-se-ia de nove © rio Javari: de supetdo, as discussdes se encaminhariam nos melos geogrificos até que se tornasse majoritéria a ideia que rio explorado por Hoonholtz ndo era o Javari, mas apenas um brago deste, o Jaquirana, sendo necessario, portanto, prosseguir no esforca de encontrar o fugidio rio. Sob tais circunstancias, Dionysio Cerqueira, o ministro das Relagdes Exteriores, enunciaria a posigo do Governo em um pronunciamento estranho e, no minimo, enigmatico: Vou demonstrar que a fronteira do Brasil com a Bolivia, entre os rios Madeira e Javari, é a linha geodesic que liga @ foz do Beni & nascente do Javari, € no uma linha, que nio € linha, mas um. “Angulo formado de duas linhas, ou uma linha que & constituida por dois lados de um angulo, cujo vértice 0 ponto de intercessio do meridiano que passa pela cabeceira do Javari, ¢ pelo para- Telo que passa pela boca da Beni, © cujos extze- ‘mos S20 as caheceiras do Javari e a boca do Beni (CERQUEIRA, 1901) A partir desse momento, toda a questao fora remetida ao marco zero, uma vez que 0 rio Javari, o qual balizara as frontei 1s do Brasil desde 0 século XVIII, simplesmente desaparecera, permitindo-nos parodiar 0 que certa vez disse 0 préprio Bario Renato Amado Peixoto 125 A reagao do governo amazonense e dos comerciantes locais, contando com o apoio popular, foi incentivar a desobediéncia as diretrizes do Rio de Janeiro e apoiar a guerrilha contra as auto- ridades boli janas: [uJ aquela porgio de brasileiros, que em zona longingua, regam com seu sagrado sangue a ideia patriotica de fazer permanecer brasileira a larga faixa de terra ora ocupada pelo estrangeiro, a0 sul da chamada linha Cunha Gemes, que governo vé-se obrigado a respeitar por forga de um tra- tado. Por mais ilegal que pareca este procecer dos insurretos, raduz um belo movimento de patrio- tismio e 0s sentimentos apurados do ditcito de propriedade que, no dizer de von Thering, é um prolongamento da personslidacle mesma, parte imcegrante do individuo, porque é 2 sua condi¢ga0 de coexisténcia social. Homens que, arriscando a vida, conseguiram construir habitagio, consti- tuir um lar, fundar uma propriedade em tertité- tics inexplorados, que possufam como pedegos dda patria, 2 cujas leis cram obedientes, néo se podem conformar a ver, de um momento para 0 ‘outro, perdidos todos os seus esforcos inceligen- tes, passando a leis diversas em estranha patria (GONCALVES, 1804) Jem 1900, aeleigao para o governo do Amazonas seria ganha or Silvério Nery, cuja principal plataforma de governo era 4 ideia de despertar, por todos os meios justos ¢ legais, a atengao dos poderes publicos da Unio ppara uma agio comum, tendente a reivindicagao do Acre [onde] oestrangeiro, tendo invadido, com ‘ assentimento do governo federal, uma parte do territrio amazonense, parecia zomibar de nossos direitos (GONCALYES, 1904). Iniciar-se-ia, em seguida, uma campanhade imprensa e inten- sas presses no Congresso com vistas a defender os interesses 124 Cartogrofias Imagingrias anteriores a expedigao de Hoonholtz, ultrapassando muito © paralelo de 10° 20’. No entanto, essa divergencia nao se limitava a regiao do Javari. Segundo uma corografia divulgada no Estado, que inclu- sive ainda mantinha inclusa a carta oficial do Brasil, o limite do Amazonas com a Colombia seria 0 antigo rio dos Enganos, © que permitia estender o espaco local até os contrafortes da Cordilheira dos Andes. A prépria exploragao comercial da regiao que o Javari delimitava passou a ser incentivada pelo governo estadual, apoiada na ldgica de que a metade da sua producio de borracha provinha daquela area. Concomitantemente, diversos gedgrafos e militares no Rio de Janeiro passaram a contestar a perspectiva de espaco central, posicionando-se contra a cessao do territério do Javari com argu mentos que reinventavam os padrées de limites, no caso, argu- mentando que as nascentes do Javari s6 poderiam estar onde sempre estiveram: “pelo menos, na altura de 10° 20’, isto é no paralelo do Madeira.” A luta de representagdes se intensificaria com a Repiiblica, estendendo-se entio ao proprio Ministério das Relagoes Exteriores, que emprestaria credibilidade a estas suposig6es a0 constituir duas novas expedicdes com o propésito explicito de determinar as nascentes do Javari, nos anos de 1897 € 1902. Contraditoriamente, entre os anos de 1895 ¢ 1899, também seriam tomadas uma série de providéncias destinadas a defender a soberania da Bolivia sobre a area pretendida pelo Amazonas, reconhecendo-se como ilegais os decretos de Manaus, autorizan- do-se a criaco de uma alfandega e demais reparticées bolivianas na regido e instalando-se um consulado brasileiro na povoacdo de Porto Alonso, centro do territério disputado. Renate Amado Peixoto 123 Por circunstancias especiais da sua situacio nos confins do litoral maritime ¢ da metépole, a riqueza espontinea de seu imenso territério, a ‘opuléncia das numerosas artérias fluviais e @ pro ximidade dos muitos estados e colénias estranigei- 1as, hio de necessariamente dar-lhe um impulso vigoroso e constituir uma nagio rica, forte e calos- salmente grandiosa."* Esta identidade divergiria da construgio historiografica idea- lizada no IHGB, uma vez que nao era construida em relagao com a tradig4o, mas com © novo, comprometendo-se com a abertura a outras culturas e a uma conexdo com outros paises que quase substituia a liga¢do com o centro. O Amazonas, segundo essa construcio, seria o pais do futuro, uma terra de oportunidades, habitado em sua grande maioria por migrantes ¢ estrangeiros, ‘aos quais os naturais j4 estavam integrados, preenchido por uma natureza prestes a ser submetida pelo progresso e pela civiliza- fo trazida pela opuléncia: As febres intermitentes, que podem ser contrai= das por impureza cas aguas, nao sio endémicas ¢ {quase nunca atacam as pessoas que fram o pre- oso liguido para bebé-lo, andam calgadas e con- fortavelmente vestidas, evicando os banhos fora ddas horas matinais (GONCALVES, 1904). Nesse contexto, também a nocao dos limites territoriais dessa nova identidade nao coincidiria mais com as cartas ofi- ciais que, cada vez mais desacreditadas, ndo impediram que em Manaus se passasse a conceder lotes de terras com titulos defini- tivos de posse no tio Acre, muito ao sul da fronteira estabelecida pelo governo central, por exemplo, a constituigio da comarca amazonense de Antimary excederia até os padrées de limites 55 SILVA, Virato Augusto da, Corografia do Brasil. Lisboa: D. Corazz, 1882. p. 38,

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