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Doi 10.4025ipsicolestuds2213 35354 CLINICA PSICANALITICA IMPLICADA: CONEXOES COM A CULTURA, A SOCIEDADE E A POLITICA Miriam Debioux Rosa’ Ivan Ramos Estévao Ana Paula Musatti Braga Universidade de So Paulo (USP), Sao Paulo-SP, Brasil RESUMO. Este artigo aborda os dilemas do avango da psicandlise quando leva em conta certas problematicas, ais como exclusdo social, raciemos e situagbes outras desse género. Essas questoes ‘emergem quando o psicanalista oferece sua escuta na polis: em instiluigdes de satide, de asistencia ou de educacao, em comunidades. Tais praticas psicanaliticas que denominamos aqui de clinico-politicas se dao nos limites do campo psicanalitico e incitam ao didlogo necessario com outros campos de conhecimento, Também convecam 20 aprofundamento dos conceitos e a criagao de dispositivos clinicos condizentes com a dimensao sociopolitica do sofrimento. Na primeira parte do artigo, abordamos 0 avanco tedrico da psicandlise em relagao a teoria da cultura. Na construgao da psicandlise, Freud articula clinica, teoria e questées sociais. A partir dele, no entanto, o avango teérico da psicandlise na sua interface com a cultura aparentemente privilegiou os fatos artisticos e religiosos, em detrimento da dimensdo politica, econémica e social. Na segunda parte, apresentamos nossa concapcao de psicanalise clinico-politica ou a de psicandlise implicada Palavras-chave: Psicandlise ¢ politica; cultura; sofrimento, PSYCHOANALYTIC CLINIC IMPLICATED: CONNECTIONS WITH CULTURE, SOCIETY AND POLITICS ABSTRACT. This article addresses the dilemmas of the advancement of psychoanalysis when taking into account certain problems, such as social exclusion, racism and others. These issues emerge when the psychoanalyst offers his or her listening in the polis: in heaith care, assistance or education institutions, in communities. Such clinical-political psychoanalytic practices find the limits of its field and encourage the necessary dialogue with other fields of knowledge. On the other hand, they encourage the deepening of concepts and the creation of clinical devices compatible with the sociopolitical dimension of suffering. In the first part of the article, we discuss present the way that Freud articulates clinical practice, theory and social issues. Since then, however, the theoretical advance of psychoanalysis in its interface with culture has privileged artistic and religious facts, at the expense of the political, economic and social dimension. In the second part, we present our conception of clinical-political psychoanalytic or implicated psychoanalysis, Keywords: Psychoanalysis and poles; culture; suffering, CLINICA PSICOANALITICA IMPLICADA: CONEXIONES CON LA CULTURA, LA SOCIEDAD Y LA POLITICA RESUMEN. En este articulo se analiza los dilemas del avance del psicoandiisis que, se tiene en cuenta ciertas ‘cuestiones como la exclusién social, e! racismo entre otras. Estas preguntas surgen cuando el psicoanaiista offece su ‘escucha en la ciudad: en las insfituciones de salud, educacién o asistencia, en las comunidades. Tales practicas psicoanaliticas clnico poliicas encuentran los limites de su campo y fomentanel dialogo nécesario con otros campos, del conocimiento. Instan, por el contrario, a la profundizacién de los conceptos y a la creaciin de dispositivos compatibles con la dimension sociopalitica del sufimiento. En la primera parte del articulo se discute el avance de la teorla del psicoandlisis en su interrelacién con la cultura. En la construccién del psicoandlisis, Freud articula clinica, twoorta y problemas sociales. A partir de olla, sin embargo, el avance tedrico del psicoanalisis en su interfaz con las " E-mail: debieux@terra.com.br Pacol ested, Macngl, «22, a 3, p 359-369, sulle 2017 360 Rosa eal manifestaciones aristicas de la cultura y la dimensi6n religiosa son privilegiadas mas que las dimensiones politicas, e0ondmicas y sociales. En la segunda parte preseniamos nuestra concepcién del psicoanalisis dlinico politica o el psicoandlisisimplicado. Palabras-clave: Psychoanalysis and politics; cultura; sufrimiento. Parte 1: Contextualizacdo da articulacdo entre psicanilise e sociedade Este artigo tem como objetivo abordar os dilemas do avango da psicanélise a partir dos problemas que a atualidade incita. A complexidade de tais problemas estimula o didlogo necessario com outros ‘campos de conhecimento diante dos limites de cada campo teérico para aborda-los isoladamente. A psicanélise depara-se também com certas problematicas que nao chegam aos consultorios particulares, mas que sao frequentes em instituigdes ou outros lugares da cidade onde o psicanalista oferece sua escuta. Nesses novos espagos comparece com maior nitidez a dimensao sociopolitica do sofrimento e faz-se necessério debrugar-se sobre os conceltos psicanaliticos ¢ as suas extensdes, para criar dispositivos clinicos condizentes as questées do sujeito enredadas as institucionais, sociais, e politicas, Em uma primeira aproximago do problema, abordamos 0 avango teérico da psicandlise em relagao a construgao de uma teoria da cultura, mas constantemente apartado da dimensao politica. Na segunda parte do artigo, tratamos da nossa concepgio de clinica-politica e da psicandlise implicada. A articulagdo da teoria psicanalitica com outros campos como a sociologia, a economia, a antropologia € a histéria € notéria. Na verdade, assumimos que a psicandlise n&o se sustenta enguanto um campo de saber se néo houver essa intersecgéo. Dai que, desde o principio, a psicanalise esta aberta a esse didlogo de fronteiras, podendo-se dizer que, a0 mesmo tempo em que se sustenta a partir disso (mas no sé al), também oferece elementos fundamentais no ponto onde ‘outros campos oscilam, Pode-se citar a apropriacéo que a teoria critica faz da psicandlise, por exemplo, presente no debate constante de Claude Lévi-Strauss com a psicandlise freudiana; no caso de Marcuse, Adorno, Habermas e Honneth; nas leituras atuais que Zizek e Badiou fazem do campo social com ample utlizago da psicandlise; na influéncia da psicanélise na arte surrealista; no uso da psicandlise pelos educadores, entre outros intercémbios. Para néo deixar as referéncias muito amplas, indicamos a interessante coleténea de artigos intitulada A Invenedo Da Vida (Souza, Tessier, & Slavutzky, 2001) que da a medida dessa interligacao ao apresentar diversos ensaios de arte e psicanalise escritos por autores que nao sao psicanalistas, mas fotdgrafos, criticos de arte, historiadores, educadores, artistas plasticos, criticos lterérios e poetas. Freud A fronteira entre psicandlise e sociologia é ténue, ainda que delimitada. A incurséo da primeira em relagdo & segunda acontece por exigéncia da prética psicanalitica no momento em que Freud se dé conta de que a problematica neurdtica que leva ao sintoma inclui um componente que no se pode denominar de outra coisa que ndo moral. Se considerarmos 0 caso Dora, por exemplo, veremos que esto em jogo em sua neurose os desejos sexuais (homossexuais, edipicos, masturbatérios, entre outros) que conflitam com sua imagem de “boa moca’, imagem essa constituida como tentativa de se adeguar aos parémetros sociais (e, portanto, a partir de certos preceitos morais) (Freud, 1905/1998, p. 20). Varios outros casos também esto assentados nessa premissa. A problematica moral se toma téo fundamental na teoria e clinica freudiana que inicialmente ele pensa a teoria pulsional a partir dai (pulsdes sexuais em conflito com pulsdes do Eu), e mais tarde postularé uma instancia psiquica para a fungéo moral, o Supereu Logo, quando Freud se depara com 0 desejo em jogo nos processos neuréticos e, portanto, na clinica, avangando da teoria da sedugdo para a teoria da fantasia, também se vé as voltas com ter de lidar com esse componente moral que se opbe ao desejo em cada caso clinico. Isso 0 conduz a toda Pacol ested, Macngl, «22, a 3, p 359-369, sulle 2017 (Ginea psicoonatiica implicada 361 uma elaboragao que o leva a pensar: a) uma teoria da cultura; b) uma teoria da sociabilidade e; c) instrumentos conceituais de andlise social Conforme nos ensina Estevao (no prelo), hd, assim, uma mao dupla: ao mesmo tempo em que a psicandlise se vale de fendmenos culturais para dar suporte as suas descobertas e conceituacées, a psicanélise também se torna um instrumento valoroso de compreenséo de fenémenos sociais e culturais. Isso se revela nos conhecidos textos sociais de Freud, mas o fato que se propaga para diversos outros escritos, sempre em um triplo movimento de conjungéo entre clinicalmetapsicologia/cultura e sociedade. A ideia do complexo de Edipo foi abordada por Freud de diversas formas e aquela que mais nos interessa aqui é a que aparece no A interpretacéo dos Sonhos (1900/2008). A sequéncia é a seguinte: ‘como dar consisténcia tedrica a tese de que os sonhos séo realizacdes alucinadas de desejos frente ao sonho comum da morte de um ente quetido e préximo? Para isso, Freud se volta para o mito do Edipo e sua perpetuagao; ou seja, porque uma histéria que foi pensada em outra cultura e um tempo distante ainda hoje possui efeitos dramaticos em nés? Ali Freud langa a ideia de um complexo universal de representacées interligado a afetos (ainda néo denominado de Edipo), em que a crianca é tomada por desejos amorosos e hostis com relacdo aos seus pais. Edipo-Rei, como pega da cultura (e também Hamlet), é convocado para dar conta da universalidade do complexo de Edipo em um movimento que vai da clinica para a metapsicologia e que se universaliza na cultura (Freud, 1900/2005). Treze anos depois, em Totem e Tabu, Freud (1913/1997) localiza 0 Edipo e o tabu do incesto como 0 ponto inicial da propria cultura e Sociedade Isso toma claro, a nosso ver, a Importancia dos pontos de interseccao entre psicandlise e outros saberes, que vai muito além de uma apropriagéo intelectual ou ainda de exercicios de erudi¢éo comuns a uma época. Esses pontos se tornam formas de alicercar a teoria e a clinica psicanalitica. Nesse sentido, Freud tratou como “aplicagdes" da psicanalise a outros campos do saber, as probleméticas que relacionavam 0 sujeito a um fenémeno social ou politico. Esse exercicio era Praticado desde a Sociedade Psicologica das Quartas-feiras, criada em 1902, na qual transitavam discussées sobre a articulacdo da psicandlise no somente com a arte, mas também com a literatura, a mitologia e a histéria. O mesmo ocorreu partir de 1908, na Sociedade Psicanalitica de Viena e em diversos de seus estudos. Tais propostas nos permite entender que Freud sempre avangou a teoria implicando as quest6es sociais e marcando sua constante recusa em opor individuo e sociedade, isto 6, reafirmando a indissocidvel relacdo entre um e outro. Essa posig&o € marcada de forma enfatica na conhecida citagao do Psicologia das Massas e Anélise do Eu: “A psicologia individual é também, desde @ inicio, psicologia social” (Freud, 1921/2001, p. 87). Psicandlise, So dade e Capitalismo No que tange a problematica politica em Freud, quatro textos se tomam centrais, a saber, Psicologia das Massas e Analise do Eu (1921/2001), O Futuro de uma iluséo (1927/2044), O Mal- Estar na Cultura (1929/2004c) e Porque a Guerra? (1933/2004b), No primeiro, Freud traga um panorama do ponto de vista libidinal de como se organizam os lacos sociais e da relagao dos grupos e massas com os lideres, a partir do conceito de ideal do Eu, libido, identificagao e narcisismo. Ali estao construldas as bases de uma concepedo politica, que depois 6 ampliada no segundo texto. Em O Futuro de uma /lus&o, 0 que nos importa é a concepcao freudiana de que a constituicdo psiquica esta marcada por uma relagao de poder, tal como aparece na vivéncia religiosa. O religioso restitui a perda da seguranca infantil suposta no pai, no Edipo, transferindo essa mesma seguranga para outro tipo de pai, endeusado. O problema é que essa seguranca detém um prego: a submisséo as exigéncias desse outro, supostamente protetor. Seguem-se as regras € o outro Ihe oferece garantia e amparo (Freud, 1927/2004d). Trata-se aqui de uma teoria da submisséo do ponto de vista psiquico e inconsciente que serd retomada no texto do Mal-Ester. O Mal-Estar na Cultura € 0 texto principal de Freud sobre sua teoria da cultura e as formas da sociabilidade a partir da conceituago psicanalitica. La esta presente uma série de teses fundamentais do ponto de vista sociolégico, assim como comparecem os elementos que seréio cruciais como operadores de andlises sociais. Até mesmo esboca um progndstico da Revolugao Russa a luz da esta, Maing, v.23, 3, p 359.369, julbet 2017 3a Rosa eal teoria da pulsdo de morte. O que mais nos importa aqui é que nesse texto aparece uma concepeao de poder e de desamparo. O prognéstico sombrio de Freud sobre a Revolugao Russa remete ao fato de que ele pouco tratou do capitalismo, ainda que tangenciasse o tema algumas vezes, como em seu texto sobre a Weltanschauung (Freud, 1933/2004a). Mas as contribuigées freudianas para tefletir sobre @ sociabilidade articulada as probleméticas do capitalismo néo passaram despercebidas pelos seus seguidores, tais como 0 grupo dos denominados freudomarxistas, Bernfeld, Fenichel, Reich e Fromm, marcados, inclusive, pelo desfecho da Segunda Guerra Mundial e suas consequéncias. Tornam-se frequentes as teorizagbes em que os psicanalistas buscam construir instrumentos que serve como operadores para pensar nao sé a sociedade e a cultura, mas o modo de producdo capitalista. Entra em cena a dimenséo politica muitas vezes silenciada na psicandlise. Realizam-se debates, néo sem polémicas, no préprio campo psicanalitico sobre a pertinéncia desta discusséo. Excluir a presenga da politica na clinica, na andlise social ou na andlise das instituigdes, inclusive das instituigSes psicanaliticas, teve consequéncias para a psicandlise. Os argumentos dessa excluséo so de que a psicandlise néo tem recursos tedricos para tal andlise, 0 que jd contestamos acima, ou de que a abrangéncia do termo cultura 6 exclusiva ao campo das artes, o que passamos a discutir. Em 0 Futuro de uma ilusdo, Freud (1927/2004d) expressa sua recusa em distinguir Kultur de Zivilisation. Tal recusa aponta um posicionamento fundamental do criador da psicandlise, cujo sentido € elucidado por Mezan(1997): Tradicionaimente opdam-se os termos de cultura ¢ civilizacao, este designando a dimensao material da vida social (produgao dos bens essenciais & sobrevivéncia do grupo) e aquele a dimensao espirtual, que se manifesta na religiao, na arte, na ciéncia, na fiosofia, como outras grandes formacoes culturais. Ao recusar-se a rafficar esta divisao artificial, Freud entende situar-se numa perspectiva em que ambas se articulam entie si, pois em conjunto constituem 0 indice que diferencia os homens dos animais (p. 482-3) Descritivamente, os ‘dois aspectos’ da civilizacéo, a organizagéo social e 0 universo das representagdes coletivas, apresentam-se como diferentes, mas, na verdade, estao intimamente relacionados. Ou seja, o modo como os homens organizam sua vida social, a maneira como produzem 08 bens para viver, tudo isso esté articulado & forma como representam a si mesmos e aos outros. Seré na superacéo da dicotomia entre o social e 0 psiquico e na recusa em patologizar determinados processos psiquicos que Freud avanga na proposicao da construgao de um novo campo de conhecimento. Um exemplo de como tais concepgoes se articulam de modo bastante particular quando 0 autor se arrisca a falar da guerra sem se limitar a relacionar a questéo “aos impulsos" de um 56 sujeito, como o convite de Einstein sugere em Por que a Guerra?. Ele debate o tema como uma questo que reflete tanto as puls6es de todos os homens, quanto a politica de um Estado (Freud, 1933/2004b, pp. 187-198). Destacamos esses momentos, entre outros da obra de Freud, para demonstrar que a articulagdo entre suieito e sociedade faz parte da trama tedrica e clinica da psicanalise. Consideramos, com Plon (1999), que, apesar das oscilagdes de Freud quanto a pertinéncia dessas andlises, ele visava, de um lado, desenvolver pontos obscuros em sua teoria e, de outro, testemunhar o seu conhesimento da irredutibilidade epistemolégica da psicandlise a outras ciéncias, como também, evitar restringir 0 seu aleance. Lacan Tudo indica que essas mesmas posiges so sustentadas pelos pés-freudianos, e principalmente por Lacan, Roudinesco (1994) destaca trés dispositivos utilizados por Lacan em sua critica da sociedade, distribuidos nos registros do simbilico, imaginario e real: 0 mito edipiano, como o fundador das sociedades modernas; a funcao da identificacao, como presente na Psicologia das Massas, para andlise da formacao dos grupos, instituigdes e sociedades; por fim, neste século, 0 advento do sujeito da ciéncia, fendmeno fundamental, segundo Lacan, cuja irrup¢ao foi evidenciada no nazismo. De forma sucinta, podemos entender que Lacan avanga nesse sentido quando nos indica que 0 sujeito € efeito do significante e do campo simbolico, De certo modo, coloca-nos diante do cuidado em Prico ested, Maing, v2, 3, p 359-369, julbet 2017 (Ginea psicoonatiica implicada 363 no nos alienarmos, enquanto psicanalistas, naquilo que se insere no contexto sdcio-histérico. Em Fungao € campo da fala e da linguagem em Psicandlise, Lacan (1953/1998) nos diz: "Como poderia fazer seu ser 0 eixo de tantas vidas, quem nada soubesse da dialética que compromete com essas vidas num movimento simbélico?" (p. 322). E preciso, pois, atentar para a subjetividade de seu tempo ou para que "se conheca bem a espiral a que o arrasta sua época na obra continua de Babel, e que conheca sua funcao de intérprete na discérdia das linguas" (p. 322). Para ele, “o inconsciente é a parte do discurso concreto, como transindividual, que falta a disposigao do sujeito para restabelecer a continuidade do seu discurso consciente" (p. 260). Assim, ha uma extrapolag&o do conceito de discurso para além da fala, algo que viria nao s6 do sujeito, mas também do social. Nesse texto, 2 ideia de discurso ¢ tratada como algo que influencia tanto a economia psiquica do sujeito (sua fantasia, seu desejo e as formagées de seu inconsciente), como a relacdo com os outros suieitos. Na Proposiggo de 9 de outubro de 1967, ele nomeia de psicanalise em extensdo “tudo o que resume a fungéo de nossa Escola como presentificadora da psicandlise no mundo" (Lacan, 1967/2003a, p. 251) e de psicandlise em intensdo "a didatica, como no fazendo mais do que preparar operadores para ela”. Em 1971, em Ato de fundagéo, Lacan (1971/2003b) destaca @ importancia necesséria em articular psicandlise e ciéncias afins. Enfatiza a possibilidade de trocas entre os campos de conhecimento, tanto no que diz respeito a algumas ciéncias servirem ao esclarecimento da psicanélise, como naquilo que a psicandlise pode servir como inspiragéo complementar a estas mesmas ciéncias, Portanto, 0 discurso pode ser considerado como correspondente aquilo que possibilta o lago social @ que se dé dentro do campo da linguagem. Afinal, sendo o inconsciente estruturado como uma linguagem, tal como Lacan conceitua em 1953, podemos dizer que a consequéncia € que o lago social também o seria. Assim, a logica do significante ordena tanto 0 sujeito como as relagdes entre sujeitos, ou seja, 0 social No ‘seminério © Avesso Da Psicanélise, Lacan (1970/1996a) passa a priorizar a definigéo de discursos como aparelhos de linguagem que estruturam 0 campo do gozo. Os lagos sociais so lagos discursivos que dizem respeito a relagao do sujeito com o semelhante, com 0 Outro e com seu goz0. Ou seja, trata-se de incluir na relagao entre sujeltos o que escapa a especularizag&o, o que escapa & intersubjetividade. Essas modalidades de lago discursivo se articulam as trés impossibilidades jé apontadas anteriormente por Freud: governar, educar e psicanalisar. A elas, Lacan acrescenta uma quarta: a impossivel complementaridade na relacdo sexual entre homens e mulheres, evidenciada pelas histéricas. ‘A pretendida posigéo de subverso da psicandlise néo € algo intrinseco a sua teoria ou a sua clinica e por isso requer constante reflexao sobre suas implicagdes sociais e politicas. A psicandlise fol transgressora ao escutar como softimento, e n&o como loucura, 0s sintomas histéricos das mulheres que @ época encontravam seu destino final nos hospicios. Teve, para isso, que confrontar 0 seu discurso com os discursos morais e cientificos predominantes na época, Entendemos que continuar confrontando os discursos atuais é essential. No entanto, esse caminho s6 sera legitimo se utilizarmos 08 recursos da psicandlise e, para ler criticamente esses discursos, partirmos da escuta e interpelagdo daqueles que encontramos nas instituig6es de satide, de assisténcia ou de justiga, nas ruas e nas comunidades marginalizadas. A partir destas margens é que pensamos ser possivel continuar a avangar na psicandlise. Parte 2- 0 sofrimento sociopol Na primeira parte realgamos brevemente as orlentagdes de Freud e de Lacan na articulagdo da psicandlise com a dimensao sociopolitica e mapeamos algumas concepcdes do que se entende pela dimenséo social na psicanélise. Nesta parte vamos apontar o desdobramento dessas concepgdes na clinica psicanalitica, Aclinica-politica Trabalhar as questées referentes as intervencSes psicanaliticas decorrentes de tais elaboragdes, ‘embora nos pareca fundamental, nem sempre ¢ levado a cabo. Pensamos ser indispensavel situar o reconhecimento da clinica em sua vertente politica, reconhecendo a politica onde se faz clinica Pacol ested, Macngl, «22, a 3, p 359-369, sulle 2017 364 Rosa eal Como nos lembra Caterina Koltai (2012), @ concepedo lacaniana de que o inconsciente ¢ social teria permitido explicitar ainda mais o que ja estava no texto freudiano: ou seja, que o sujeito é, por definigao, marcado pela histéria, e nao pode ser pensado apenas a partir da relago com seus pais. A autora defende que a psicandlise no é s6 uma terapéutica do sujeito, mas uma teorizacdo da relacéo dele com 0 mundo, 0 que faz com que as transformagées sociais interessem tanto & teoria psicanalitica, quanto a sua prattica (Koltai, 2012). Desde Freud sabe-se que @ psicandlise lida com a relag&o tensa entre individuo e sociedade. Trata-se de resgatar a radicalidade da proposta psicanalitica e ressaltar o caréter ético e politico dessa escuta, trazendo contribuig6es @ clinica e elucidando aspectos referentes ao sujeito em desamparo social e discursivo (Rosa, 2002). Sob esta perspectiva é necessdrio pensar, de um lado, nas formas de alienac&o do sujeito que se situa nas bordas do funcionamento social e, de outro, no impasse ético- politico do psicanalista nessa cena, ou seja, como ele se posiciona na cena politica que produz a desigualdade social (Alencar, 2011). Localizamos aqui o cerne da resisténcia do psicanalista escuta do sujeito. Essa escuta esbarra no horror do confronto com 0 estranho [Unheimiichl, tal como tematizado por Freud (1919/2006), como © encontro com algo estranhamente familiar e conhecido do proprio sujeito, que se alienou pelo recalque. O efeito de estranhamento é provocado quando o recalcado retorna e sua presenca se faz avisar pelo afeto de angistia [Angst]. Confrontado com sua propria estrutura fantasmatica ¢ com os impasses frente ao sotrimento de origem sociopolitica, sobrevém a resistencia do analista, tal como apontado por Rosa (2002) Tomar esse outro como um sujelto do desejo, atravessado pelo inconsciente e confrontado com situagdes de extremo desamparo, dor e humilhagao, situacSes geradas pela ordem social da qual 0 Psicanalista usufrui ~ é levantar 0 recalque que promove a distancia social e nos permite conviver, alegres, surdos, indiferentes ou paranoicos, com o outro miseravel.... Nessas situacoes, a escuta supe romper com 0 pacto de siléncio do grupo social a que pertencemos e do qual usufrulmos; Usufruto que supde a inocéncia, a ignorancia sobre as determinagdes da miséria do outro © 2 Teflexao sobre a igualdade entre os homens, quando, de fato, o que fazemas é exclul-os (p. 44), Esse entrelagamento do psiquico e do social, assim como a posigéo do analista, propicia a condigo de escuta dessas pessoas. Entendemos que se trata da clinica-politica, pois aborda duas faces: a face do sujeito no contexto sociopolitico e a do questionamento da ética desse contexto que gera no sé sintoma, mas a desarticulacdo subjetiva impeditiva da construgao do sintoma Pode-se dizer que o psicanalista escuta 0 sujeito quando néo 0 confunde com o modo, muitas vezes degradado, no qual ele & apresentado no lao social. Lago, nesse caso, marcado por preconceitos de classe, raga, género e cultura, Tais preconceitos levam ao sofrimento para além da dor de existir, ou dos padecimentos neuroticos ou psicctices. Ainda, esses preconceltos langam o sujeito ao desamparo discursivo, como veremos a seguir. Sofrimento sociopolitico e desamparo discursivo: as artimanhas do poder e a alienacao estrutural ao discurso do Outro As intervencdes psicanaliticas desenvolvidas junto a sujeitos submetidos a violéncias em suas diversas formas (exclusdo social, pobreza, racismo, indiferenca, humilhacdio, imigragao forcada, exilio) remetem ao cenério social, politico e cultural em que os sujeitos se canstituem e dos quais sofrem as incidéncias. Incidéncias presentes tanto na constituigao do sujeito, como nas estratégias politicas de destituigao do sujeito. Nesse cenario, nem todos pagam o mesmo prego pela civilizagéo. Na perspectiva psicanalitica, os lagos sociais tém seu fundamento na linguagem que inaugura @ entrada do homem na cultura e remete @ condicao constitutiva do homem e da civilizagdo. A partir desse ponto sao lagos discursivos (Lacan, 1964/1996b), ou seja, materializam-se nos modos de relacéio em um dado tempo e lugar. Lagos que inserem o sujeito simultaneamente no jogo relacional, afetivo, libidinal e também no jogo politico, pautando a construcao da histéria de cada um, inserida no ‘campo discursive de seu tempo. Os discursos que circulam num dado tempo indicam os modos de pertencimento possiveis para cada sujeito, atribuindo, a cada um, valores, lugares e posigdes no ago. Prico ested, Maing, v2, 3, p 359-369, julbet 2017 (Ginea psicoonatiica implicada 365 A tese desenvolvida por Rosa (2016) é de que esses discursos procuram equiparar-se ao campo simbélico da cultura e da linguagem, naturalizando essas atribuigdes e evitando dar visibilidade aos ‘embates socials e politicos presentes na sua base. A invisibilidade dos conflitos gerados no e pelo ago social recai sobre 0 sujeito, individualizando seus impasses, patologizando ou criminalizando suas saidas. Os efeitos alienantes baseiam-se na sustentagéo de um equivoco na relac&o social, na relacéo com 0 outro, que autoriza a veracidade e relevancia do que ¢ dito sobre o sujeito. Referimos aqui a0 poder que insténcias como o poder juridico, religioso ou politico tem para legitimar ou negar a experiéncia e 0 testemunho de cada um. Como esclarecem Cerrutti e Rosa (2008), 0 campo juridico estabelece posigdes definidas — muitas vezes definindo a priori vitimas e culpados — em um discurso que opera na gramattica do registro do imagindrio, no qual as palavras so tratadas como imagem e assim fixadas em uma certeza absoluta. Ao supor que detém as ferramentas necessdrias para que o sujeito alcance o seu bem-estar, o discurso juridico acaba por excluir 0 cardter enigmadtico do desejo. E isso por sua conduta se pautar no corolario de um eu ideal, isto &, corolério desse outro imaginario Este discurso social apresenta-se como emissério de uma verdade e de um valor a-historico e apolitico. No entanto é carregado de interesses politicos e econémicos, pautados na manutencao da ordem social especifica que representa. O discurso social predominante na atualidade é aquele referido 4 lei do mercado, regio por uma voracidade obscena e interessado na manutengao sociopolitica, e convertido em praticas sociais e em politicas publices. Pois bem, 0 equivoco alienante que provoca é apresentar-se como se fosse 0 discurso do Outro. Este discurso, composto no campo da linguagem pelo conjunto dos significantes, poderia alojar no sujeito varias significagées, interpretagées da realidade, versdes de sociedade, valores e incluir seu desejo e singularidade (Rosa, 2016). O discurso social pretende, para aumentar a sua eficdcia, recabrir por inteiro 0 real, apresentando-se ao sujeito como Outro consistenteinao-castrado, sem espaco para enigma, para a singularidade, para a polissemia da palavra. Com a poténcia adquirida por passar-se por discurso do Outro e por sua pretensa dimenséo simbdlica, 0 discurso social captura 0 sujelto em suas malhas, seja na constituigéo subjetiva, seja nas circunstancias que promovem a destituicgo subjetiva ‘Apresentado como discurso do Outro, um discurso hegeménico e universalizado desaloja 0 sujeito da sua historia pessoal, sociocultural e politica, desarvorando-o de seu lugar discursivo, do lugar a partir do qual ele fala. Constatamos 0 apagamento da forca discursiva dos que estéo submetidos a0 discurso social hegeménico, Aliado ao desamparo social deparamo-nos com 0 desamparo discursivo a que so langados aqueles que ocupam lugar de dejeto no campo social e sobre os quais incidem discursos alienantes e identitarios que os criminalizam e os patologizam. Desamparo [Hiffosigkeit], em Freud, ganha centralidade na segunda teoria da angtstia, na Conferéncia XXXII, Angustia e Vida Pulsional (1933/2004a), em que se articula com a angustia e com a dimensao do traumatico. O conceito trata da experiéncia estruturante do sujeito, relacionada a auséncia ou falta de amparo, referida primeiramente aos primérdios da existéncia humana. O bebé por sua imaturidade orgénica e psiquica é inteiramente dependente dos cuidados de outrem e incapaz de sobreviver sozinho, 0 que ocasiona a entrada do sujeito na linguagem pela via do desejo do Outro. Na sua constituigao © sujeito tece bordas em tomo do real, tecidas a partir do desejo do Outro e da transmissao da cultura pela via da linguagem. Bordas que protegem da angiistia e do trauma. Mas a marca do desamparo esta sempre presente remetendo a dimensao tragica da existéncia, ao vazio estrutural que habita 0 sujeito, ao real de sua falta-a-ser e se evidencia quando sao retiradas as coordenadas simbélicas que sustentam o sujeito. A dimensdo traumatica refere-se aquela experimentada como um excesso de tensao vindo do exterior, aliado a uma falta de recurso do sujeito para responder a tal excesso ‘Além desta dimenséo da constituicéo do sujeito, a violencia e a excluséo politica e social caracterizam situages de precariedade e desprotegdo sociopolitica. Mario Pujé (2000) nomeia de desamparo discursivo @ fragilizacao das estruturas discursivas que do suporte ao laco social, lago esse que rege a circulacdo dos valores, ideais e tradigSes de uma cultura, resguardando o sujeito do real. O conceito desamparo discursivo € retomado por Miriam Debieux Rosa (2002) para articular o sujeito a modalidades de discurso social e politico que promovem o seu desamparo. Quando hé Pacol ested, Macngl, «22, a 3, p 359-369, sulle 2017 36 Rosa eal desqualficagao de seu discurso, soma-se ao desamparo social do sujeito, o desamparo discursivo; ou seja, ele é inteiramente culpabilizado por sua condi¢éo social-pluri-determinada. Sem enderecamento possivel a0 Outro, o sujeito silencia e é langado ao nao senso e a dificuldade de reconhecer, ele mesmo, seu sofrimento, sua verdade, seu lugar no lago social e no discurso. Esta condicéo desarticula © Sujeito de sua ficgdo fantasméttca, afeta seu narcisismo e o remete & angUstia frente ao desamparo que perpetua a condicéo traumattica. © apagamento da forga discursiva incide sobre o sujeito. Os seus softimentos s&0 administrados politicamente, discursivamente, como apresentamos, com repercussdes sobre 0 narcisismo, as identificagdes, 0 Iuto afetos tais como 0 amor, 0 édio, a ignoréncia e a culpa. Produz-se o silenciamento, muitas vezes advindo do abalo narcisico que langa 0 sujeito & angustia, a0 vazio € a0 furo constitutive que o habita. Processa-se a perda do laco identificatério com o semelhante @ a desarticulagéo de sua ficgdo fantasmatica. Sem lugar no discurso, desprovide da fungao polissémica da linguagem, o sujeito vé-se impossibilitado de dar contorno simbélico ao furo, a0 trou que © habita, sem poder construir 0 sintoma e uma demanda (Rosa, 2016). E nesse sentido que podemos falar em uma clinica psicanalitica advertida da incidéncia dos discursos politicos, que estabelecem relagdes de poder e de governanca especialmente devastadores sobre 0s excluidos. Nessas circunstancias, a clinica encontra uma primeira diregéo: separar a alienacao estrutural do sujeito ao discurso do Outro, da alienacao ao discurso social e ideolégico. Essa alienagao e enredamento podem ser elucidados pela via da historicizagao dos lagos socials em certos grupos sociais, 0 que se dé pelo resgate da meméria na e pela experiéncia compartilhada Nesse resgate, a psicanélise tem muito a contribuir, construindo ou realgando téticas clinicas que remetem tanto & posicdo desejante do sujeito, como &s modalidades de resisténcia a tais processos de alienacdéo. Para tanto, torna-se imperativo atentar para os processos de produgéo de esquecimentos & apagamento da meméria com os quais, muitas vezes, a comunidade psicanalitica compactua. Nesse sentido, o siléncio @ a escassez de pesquisas psicanaliticas sobre a negritude e 0 racismo @ um caso emblematico. Tanto pela quase inexisténcia de pesquisas sobre um tema relacionado a vida de mais de 70 milhdes de brasileiros com ascendéncia africana (Munanga, 2004), como pelas diversas modalidades de apagamento dos poucos escritos sobre @ subjetividade articulada @ desigualdade racial (Musatti-Braga, 2015). Aescuta psicanalitica e a dimensao sociopolitica do sofrimento ‘A preocupagao em construir uma clinica com os sujeitos desamparados do ponto de vista discursivo, para usar as palavras de Pujé (2000) ou de Rosa (2002) se faz indispensavel, ainda mais num pals pautado pela desigualdade social e racial como € 0 nosso. Embore tal preocupagao esteja muito longe de ter se constituido como predominante na psicanalise brasileira, ela foi sustentada por alguns grupos de psicanalistas. Mas 0 seu avango foi alavancado pela psicologia institucional a partir das reflexdes da reforma psiquidtrica que apresentou a modalidade clinico-politica que avangou na diregdo da circulagao do sujeito na cidade, a0 seu modo singular. Um dos debates na psicanalise importantes nese campo foi promovido pelo grupo Sexto Lobo, sobre 0 que denominava de clinica do social, que visava criar condigdes para quem pretendia intervir discursivamente no sintoma social, segundo a ética da psicanalise. Em 1969, 0 grupo realizou 0 seu primeiro encontro na clinica de atendimento psicolégico da Universidade Federal do Rio Grande do Sul @ apresentou esta consigna, resultando em uma publicacéio de suma importancia em que se defendia a possibilidade de uma intervengéo clinica que seria compativel com a ética da psicandlise na abordagem do sintomna social. Nessa publicagao 0 grupo Sexto Lobo nos apresenta a concepeao de sintoma social em que se ancora: "No existe uma psicandlise do individual e outra ‘aplicada’ ao sintoma social. Pois 0 sintoma 6 sempre social... 0 que chamamos de individual, a singularidade, € sempre © efeito de uma rede discursiva, que é a rede mesma do coletivo" (Calligaris, 1991, p. 12). Pacol ested, Macngl, «22, a 3, p 359-369, sulle 2017 (Ginea psicoonatiica implicada 367 Para Souza (1991), 0 sintoma social, assim como o sintoma do sujeito, é sustentado por uma fantasia. Importantes debates se travaram sobre as dificuldades de um trabalho nesta dimenséo. Embora 0 grupo tenha se dissolvido, 0 debate gerou frutos. ‘A psicandlise expandiu seu campo de intervengao e entrou nas instituicées de saide mental mesmo de satide em geral, geridas pelo Estado ou por ONGs, e ocupou espacos diferentes dos consult6rios particulares, como SUS, SUAS, CAPS e hospitais-dia. Diferencas que se devem tanto pela ligago destas instituigdes ao discurso das politicas publicas de satide, como por atenderem outro seguimento da populacéio, No Brasil, diferentemente de outros paises onde a utiizagdo desses servigos se dé de maneira ampla, 0 servico publico esté associado @ parcela pauperizada da populago que néio tem acesso aos servicos particulares, considerados de melhor qualidade ‘Alem das experigncias de atendimento psicanalitico articuladas a area da satide, outros campos se abriram. © saber da psicologia ¢ convocado a articular-se com 0 discurso juridico para resolver impasses de varias ordens, tais como a assisténcia as familias em situagSes de litigio ou violencia ou outras questées como as adogdes e a assisténcia as criangas institucionalizas. Também & chamado a intervir juntos aos adolescentes em conflito com a lei e aos impasses educativos e criminais nesse campo. As instituigdes educacionais demandam ao psicélogo au psicanalista 0 seu saber — como educar, como ensinar, como disciplinar... Além disso, ele é demandado em situagdes de violéncia, em acidentes naturais ou gerados por descaso piblico, ou, atualmente no Brasil, na questo da imigragao @ refigio. Foram desenhadas varias experiéncias de intervengao junto as comunidades nas quais 0 oder puiblico esta ausente — Id onde o sofrimento do sujeito se da a ver, Ia estdo os psicdlogos, muitos deles psicanalistes, Foi preciso avangar na proposi¢ao para ousar construir um modo préprio de fazer clinica diante das questées e dos pacientes que se apresentavam. Avangar na proposigao tedrica e nas estratégias técnicas. E 0 avango no seria possivel sem superar, como j4 adiantamos, uma dicotomia e um recalque: a questéo da politica na psicandlise Os casos que se apresentam para os psicanalistas na clinica-politica sao diferentes, em varios aspectos, daqueles de pacientes encontrados nos consultérios. Distintos, particularmente, quanto a face sociopolitica do sofrimento e, algumas vezes, quanto @ falta de uma demanda de intervengao psicanalitica ou mesmo psicolégica, substituida por aparentes demandas objetivas voltadas para as caréncias materiais, Nessas circunstancias, consideramos importante ressaltar 0 que entendemos por psicanélise implicada: aquela que escuta o sujeito ali onde sé aparecem inicialmente os modos de alienacéio em que ele € capturado e enredado pela maquinaria do poder. A perspectiva que apresentamos é de que nos mantemos na esfera da clinica, no sendo nem psicanélise aplicada, nem clinica do social, nem psicandlise em extensdo, mas uma clinica do sujeito no laco social, uma pratica psicanalitica clinico- politica (Rosa, 2016). Consideracées finais Entendemos que a escuta psicanalitica dos sujeitos que ocupam lugar de dejeto no campo social seja por exclusdo econémica, por etnia, por género, por religiéo etc., deve considerar os efeitos dos discursos sociais e 0 modo como operam nas relacdes de poder e de governanca sobre esses “excluidos”. Nessas circunstancias a direcdo da escuta sera separar a alienagao estrutural do sujeito ao discurso do Outro, da alienacao ao discurso social e ideolégico. Assim, ela constréi ou realca taticas clinicas que remetem tanto a posicao desejante, como as modalidades de resisténcia a tals processos de alienagao. Dentre os efeitos destes discursos esta o desamparo discursivo em que se processa a perda do iago identificatério com 0 semelhante e @ desarticulagao de sua fic¢ao fantasmatca, A pratica clinico-politica depara-se com a questo da anguistia e do luto em sua face politica (Alencar, 2011). A angiistia nestes casos apresenta-se no como manifestaggo sintomética (caso da angiistia neurética em Freud), tampouco como fuga, mas como um tempo no qual o sujeito custa a se localizar e que, por esta razéo, é vinculado ao sentimento de estranheza, 0 Unheimlich freudiano (Rosa, 2016). A anglistia surge justamente quando no hd distancia entre a demanda inconsciente e a resposta do Outro. O psicanalista opera na produgéo desse distanciamento e em barrar 0 gozo do Pacol ested, Macngl, «22, a 3, p 359-369, sulle 2017 368 Rosa eal discurso sem furo, mesmo e principalmente nos casos em que o sujeito no construiu uma resposta metaforica, um sintoma por meio do qual possa falar de seu sofrimento e enderegar uma demanda (Rosa, 2016). © siléncio, a dor e a falta de uma demanda so as vicissitudes do psicanalista nesta clinica A direc&o possivel de tratamento, a sua ética e politica nestas circunsténcias baseia-se em restituir um campo minimo de significantes. Deste modo 0 sujeito pode localizar-se e dar sentido a sua experiéncia de dor, articulando um apelo que o retire do silenciamento. Baseia-se também em transformar 0 emudecimento traumético em experiéncia compartihada © em tomar possivel a construgo da posigéo de testemunha, transmissor da cultura, da historia de sua terra (Benjamin, 1996; Hassoun, 1996). De outro lado a diregao do tratamento visa barrar 0 gozo contido no discurso violento e identitario, que se apresenta como simbélico, e marcar a supressdo de qualquer participacdo neste gozo. ‘clinica convoca o analista a tensioner, com sua presenga estrangeira, 0 espago entre enunciado enunciagao, abrindo espago para a falta e a fala, No entanto, essa é uma meta e n&o ponto de partida. Meta que pode ser constituida de intervengdes a partir do modo em que esse sujeito esta inserido no laco social, na relagao com o outro; a partir da sua posi¢do discursiva, da modalidade de angiistia que apresenta. Dependendo disto, algumas vezes falamos com ele, outras 0 acompanhamos nas trajetérias pela cidade, outras procuramos com ele seus pares e apoios afetivos, outras 0 escutamos no diva. Estas so algumas entre muitas estratégias que visam provocar 0 rompimento da alienagao e Possibilitam 20 sujeito redesenhar uma ficcdo de si mesmo e do outro, na produgéo de um lugar discursivo que promova uma posigao de fala. Tais estratégias de intervencao so modes de enlacar uma palavra perdida, a deriva, para a recomposi¢ao de uma trama ficcional que protege da dificil presenga do real. Deste angulo, ha situagSes em que o espaco puiblico, seja na rua ou nas instituicbes, €0 lugar privilegiado de um trabalho analttico onde se pode autenticar outra posic&o para o sujeito. A pratica psicanalitica clinico-politica exige intervengdes no convencionais e uma posigéo de invengéo do psicanalista na dirego da polissemia da palavra Concluindo, por mais que se considere o sintoma como social, nem sempre a clinica ¢ politica, Para que ela 0 seja, na nossa perspectiva, é preciso escutar 0 sujeito e interrogar a modalidade de lago social que o enreda (Martins, 2015). ‘A questo que se coloca para o psicanalista refere-se @ poder sustentar a perda da iluséo e do gozo de usufruir acriticamente da cultura recebida, convicto de que ela garante a protegao de todos, negando a presenga cotidiana da violéncia. © psicanalista de seu tempo esta devidamente prevenido sobre as politicas da felicidade e sobre as artimanhas do gozo em imiscuir-se acriticamente na historia eno lago social. Referéncias ‘Alencar, S. L. S, (2011) A experi6ncis do luto emsituacdo de violéncia: entre duasmortes Tese de Doutorado, Faculdade de Psicologia, Pontificia Universidade Catdlica de Sao Paulo. 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Profassora titular da Pontificia Universidade Catdica de Sao Paulo na Pos-graduagao de Psicologia Social Ivan Ramos Estévéo: Professor Doutor da Escola do Aries, Ciéncias © Humanidades 0 da Pés-graduagao de Psicologia Clinica da Universidade de S20 Paulo. Membro do Forum do Campo Lacaniano de Sao Paulo, Membro do Laboratorio de Psicanalise © Sociedade do IPUSP. Ana Paula Musatti Braga: graduada om psicologia pelo IPUSP om 1900, mestra em psicologia clinica pelo IPUSP em 2001, doutor em psicologia clinica pelo IPUSP em 2016, membro do Laboratério de Psicanalise e Sociedade do IPUSP, desde 2004. Prico ested, Maing, v2, 3, p 359-369, julbet 2017

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