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5, TRAJETORIAS DO LUTO 5.1. Luto integrado No proceso de luto hi uma possibilidade de amadurecimento que faz com que 0 enlutado, ao tocar no fundo da sua dor, possa emergir, renascido ¢ trans- formado para a vida, isto é com a perda integrada, podendo entao voltar a viver de modo saudivel num mundo onde ja niio esté o falecido, Através de um per- curso de muito sofrimento e da sua elaborago, 0 enlutado pode crescer e sair mais fortalecido tanto psiquica como espiritualmente. Lute integrado * y Perda | __/ Luto \er significativa \agudo a —_—\ /Betturbacao +) 7 delute complexes persistente pene Figura 18 - Evolugio do luto agudo. Pode considerar-se que 0 processo de luto esta integrado quando os sete cri- térios seguintes estdo presente (Fig. 19). Irreversibilidade assumida Alusividade sinténica Recordagao valorativa Luto Integrado Critérios Existéncia fluida Conexao tranquila Ressonéncia significativa Legado incorporado Figura 19 - Critérios de luto integrado. FAZER O. WTO, 6s a 1, Irreversibilidade assumida: Aceitagio clara, direta ¢ expressa de que o que se perdeu nao pode voltar ~ «principio do fimy-, nem influir jé imperativa- mente na nossa vida, exceto através da nossa recordagao afetuosa. 2, Alusividade sinténica; Capacidade de falar com qualquer pessoa, com uma emogao sinténica, sobre todos os aspetos relacionados com a perda ¢ a pessoa falecida. 3. Recordagiio valorativa: O falecido nao é esquecido, pode pensar-se nele sem dor intensa e sem desprazer acentuado e ha uma predominancia das boas recordagées — «fica qualquer coisa de bom». 4, Conexio tranquila: A dor é substituida pela saudade — «sentimento agri- doce» — do que se perdeu. 5, Legado incorporado: A recordagio do que o falecido humanamente «deu, ajudou, proporcionou, enriqueceu, legow pode ser incorporado pacifica- mente na vida atual. 6. Existéncia fluida: Os sentimentos ¢ os afetos sio mais determinados pelos acontecimentos relacionais e mentais da existéncia atual do que pela perda. 7. RessonAncia significativa: Ha capacidade de voltar a interessar-se ¢ a dedi- car emogées a vida e aos vivos, com alegria e prazer, sem sentir culpa, re~ ‘compondo os lagos com 0 mundo intemo, extemo € 0 cosmos com novos significados, 5.2. Complicagées do luto Mas nem sempre o processo de luto decorre progressiva e harmoniosamente nesta diregio, HA situagdes em que 0 processo de luto se pode complicar, tor- nar-se crénico ou até ganhar uma dimensio psicopatolégica. Desde os primeiros trabalhos de Freud (1917) que se tem vindo a falar de formas de complicago do luto, que foram assumindo designagdes. diversas (Quadro 23) e que hoje se procuram «uniformizar» através da introdugio desta rubrica nas classificagdes internacionais (Barbosa, 2014a). Quadro 23 - Tipologias de complicagies do luto. Parkes (1965) Retardado Tnibido Grénico Bowlby (1880) ‘Ausente* Crénico Mascarado Worden (1982) Retardado foes rénico Jacobs (1986) Retardado Distorcido tribido Retardado Distorcido , Rando (1982) peta — Crénico Nao antecipado Retardado Inibido Jacobs (1993) era ose Crénico * Auséncia prolongada de consciéncia de estar em luto [ANTONIO BARBOSA A maioria dos autores das décadas de 70 a 90 tipifica clinicamente os lutos | complicados em trés tipos fundamentais: /ufo retardado, luto inibido ¢ luto crénico. Alguns autores, como Bonanno (1999, 2001a,b, 2002, 2004a,b, 2005, 2008, 2009), partindo de estudos epidemioldgicos e nio-clinicos, tém vindo a identificar outras trajet fundamentais: /ufo resiliente, sem manifestagdes evidentes (35-60%), luto comum/habitual, que passa pelas varias fases descritas ¢, a0 fim de um ano, verifica-se recuperagiio (15-25%), luto retardado (5-10%), que se mantém pelo menos ao fim de dois anos, ¢ 0 /ufo crénico (5-30%). uw Depressze Crénica (7-8) Lute Crénico (15.6) Deprssio(C#S0) = Depressso meinorada (10.2) {Lato comurn (20.7) Resitientes (45.9) depolsda pera Figura 20 - Trajetorias do luto (Bonnano). A vantagem destes estudos tem sido a de chamar a atengo para que a maior parte dos enlutados faz um trajeto de luto adaptativo; sé cerca de 20% desen- volve lutos complicados (para além dos lutos psicopatolégicos que se consti- tuem como quadros tipicos psicopatolégicos que se seguem a uma perda signi- ficativa) (Fig. 20). Na pratica clinica, tal como na vida, nem sempre podemos delimitar com ri- gor absoluto os varios tipos de luto. De facto, eles entrecruzam-se, sobrepdem- se, ou seja, mantém a possibilidade de uma relagdo entre si que, nas zonas de intersegdo, podem ter um efeito positive (potenciador) ou negativo (inibidor) (Fig. 21). Figura 21 - Tipos de luto, i FAZER OLUTO 67 Das situagdes mais frequentes de complicagdes de luto, como reagdes de ma adaptagdo, destacaremos as seguintes modalidades de complicagées de Iuto: traumatico, inibido ¢ crénico (Quadro 24). Quadro 24- Modalidades de complicagdes de Iuto Traumatico Thibido Complicagées de tuto Nive 1 Interpessoal weet rbados» | Tanspessoal Intrapessoal nese Dor daineerteza ‘Dorda perda Dor da auséncia Preocupagio | DesorganizacSo‘intuséo | Dor mental, vulnerabiidade | No reconhecimento da perante arealidade da perda | perda da relaeao : Dissociarao ‘Control, minimizagso, Desesper, vitimizagao, con ideaizagao fidelizacdo Foco de coping —_| Paralsia de avdade Distracao_ ‘Objeto da perda Relagdo objeto _ [WA “Ambivalent| Dependent Estilo vinculagdo_| Desorganizado, todos Evitante ‘Ansioso/Preacupado Seguranga, proteao Aceitagao gradual ‘Acetagao gradual See da dor da perda da realdade da perda eda ta autonomia ‘Objetivo da | Manterintegridade Dissolverdefesa, protegao | Gerarrepresentagées do intervengao objeto PTSD, dssociativa, pare- | Somatoforme, febica, obses- | Depressiva Comorbiidade | noide siva,caracterial ‘Ansiosa 5.2.1. Luto traumatic Este tipo de luto resulta de uma exposigiio a um acontecimento traumatico inescapavel (perdas intensas, inesperadas, incompreensiveis e/ou inexplicéveis - trauma psicoldgico) que confronta a pessoa com a morte ou a sua ameaga, lesdo grave ou ameaca a integridade fisica do préprio ou de outros (Quadro 25). Quadro 25 - Respostas normais versus respostas patolégicas ao stress (Horowitz, 1999) Resposta ao stress Patolégica Equilibrio ou turbuléncia pré- Resiliente_[ Normal Equilibrio | Equilibrio Depois | Equilbri pols | Equilibrio | Fase de elaboragao com negacao | sdo sem redugao ao longo do reduzida e equilbrio da intruséo. | tempo. Reesquematizagao num equilibria. patol6gico (por exemplo, distore#0 de carater) Antes 2 acontecimento, § | Durante | Perturbagao | Explosao Explosio intensa ou prolongada g emacional & Fase de Negacao Negago excessiva e prolongada, 8 repressio, dissociacao. 2 Fase da Intrusao Intrusdo excessiva e prolongada £ Combinagao negacao/intrusto. | Gombinacao da negagao e intru- 2 § < 68 ANTONIO BARBOSA Jo a este acontecimento ultrapassa as capacidades de adaptagiio € ca~ racteriza-se por uma resposta que envolv + Rotura da «visio assumida do mundo» (lanoff-Bulman, 1985, 1989, 1992, 1997; Kaufman, 2002; Landsman, 2002; Neimeyer, 20014; Parkes, 1971), criando um sentimento de desprotegio e ameaga a integridade, Por «visio as- sumida do mundo» consideram-se os esquemas de pensamento sobre o self, 0 agdes produzidas com base em outro ¢ a vida, que tém origem em gen experiéncias de infincia transferidas para a vivéncia do adulto sob a forma de 10 acerea do que é a realidade: ordem, pertenga, pre~ fantasias, ou pressupos visibilidade. + Medo, horror e ansiedade intensos (ataques de panico), com rotura do sistema de vinculagio, gerando inseguranga e desorganizagao, com sentimento de falta de ajuda, desamparo (por falta de controlo do curso dos acontecimentos) € comportamentos (primitivos) de luta/fuga e/ou paralisia/medo «paralisante» (impoténcia — base do trauma —reconhecimento de uma ameaca impossivel de modificar). + Atordoamento/choque devido aos mecanismos de defesa: incredulidade e negacdo, dissociagdo (compartimentalizagfio da experiéncia). O enlutado esta confuso ou desligado, despersonalizado, com um embotamento afetivo e au- séncia de resposta emocional (como fungiio adaptativa anestésica e de preser- vagao do aparelho psiquico, de modo a poder dar uma resposta as exigéncias minimas da vida). + Grave comprometimento funcional, disrupgo do fimcionamento didrio, dos recursos pessoais e de conviccdes proprias, com anulago do Eu devido a uma ameaca a integridade fisica e psicolégica (sensagdo de nao conseguir sobrevi- ver 4 perda), com consequente evitamento de atividades. + Ruminagdes obsessivas, recordagdes repetitivas ¢ intrusivas do acontecimento (até poderem ser integrados), sonhos recorrentes, comportamentos ou estados emocionais, como se 0 acontecimento estivesse a ocorrer naquele momento, mal-estar psicolégico intenso face a estimulos que simbolizam ou recordam o acontecimento. Estes aspetos so pertinentemente elucidados pelo Modelo de Processamento Cognitivo do Trauma (Horowitz, 1975, 1976, 1982, 1984), que se refere a clis- sica triade (Quadros 26 e 27). FALERO LTO o examen psasio so cor. ora ce serio sles Separate 128) ima Raps coins rats esa rnp "erga Triad pana loaned ogee inevas ao modelo de process jr cam acon pete). desea, eepormentarSes sOmAlCas,fsposias erage ia, aursinento,iolamento, Pensamento fantasioso, 27- Lato normale patolgeo sent cognitive do trauma, tecmento (até poder 86 ntegrada) com (Horowitz, 2003). — remover Intensificago patotgica i seclabasipocoees igioa even oma a [Pc wan Satocavas rents [sac mate rope pr: ser Exrlose ota pesoxs ov auocaresio con aera. Taman Ge reardojis om | EWamerios Ado adaplvos de cnlonta cmmenamccenme, anne ce re eet romedimet enact {dopa cu dco, wrenesime coi, Evtamente | sopesarnasmplcazoes | promiscuiade, estados de fuga, tamenta Meese ee potncecercetemas. {bio sense mero ou ireal Experts uhasinhindo | erandepo» da mente com imagens @ rears: de experencas ngat- [emeorzesnepaivas,ieapdo descontoads, ascome ale pera, din |atos compulsvos atlesves, terores nmato {isc concertos com |oticros,pesadeosrecoenies,petubs- ve. eto pela insta ce temas deriva, asi famenoterausiao fila pela hiperexc- tag. Recor; do falco eetocon- | Sonimenta de que nooo pode integer a teroaes com edua mote com um sentido do proprio ede cant- oma demensiasetertasias, | rudade de vida, Rejido persistent do leatorgio |atrriode cattoracora,_|temas que pode manfestar-s come humor especie evtameno reds. |ansios, depressive, intado, envergonhede es, mai covicoepono de en-_ouculpaco,e sindromes psicofsioegea. tigers ge recrorses um eri ova de abr Resi as - rerun. aan tet else won| Fah de um io amples (ue pode 5 vos. | ode auacorénciae | associa a neapaciade para taba acto | orenlee pars rovos reac. _| car, sen emogoes ou estas de ese etiaton de armen ce Perenciar | positives), Em casos extremos, pode ocorer L__|} pots, Persia de delice ou Weis izaras premencel ge tees pi ier » rom sos + Racionalizagdo (como uma primeira forma de atribuigdo de significado), es- forgo para atribuir um sentido a experiéncia, de modo a tom-la mais perceti- vel (Neimeyer, 2001) com a «criagion de uma histéria congruente, com uma explicagio plausivel (causa e efeito). Por exemplo, a formulagio «A culpa é dele», em que a identificagao de um culpado desvia 0 pensamento do questio- rnamento do Eu (de que todos somos igualmente vulneriveis); ou, pelo contri rio, com a assungio de «4 culpa for toda minha», em que ha habitualmente uma necessidade de controlo pessoal, num grande esforgo de controlo narei- sico bascado na ilustio de omnipoténcia e de controlo megalomaniaco (mas ‘quando essas fantasias inconscientes so invalidadas perante a incapacidade do Eu, a autoestima & significativamente lesada e redunda em pesados senti- _mentos de culpa e vergonha). Veja-se 0 seguinte exemplo de Tuto traumatico: «Passe toda a minka vida a tentar manter a minha mae viva, desde os meus 19 an em que ela fez a primeira tentativa grave de suicidio. Sempre com um oils acta ¢ outro a tentar fazer tudo 0 que ela queria, para que nao fi- casse aborrecida. Agora que ela realmente se suicidou, e ainda por cima da- quela forma, & como se eu tivesse sé aquele trabalho ¢ ndo 0 pude fazer bem... por culpa minha que ela morreu!» +BY ss fingSes cognitivas com ineapacidade de processamento da foray, que assenta num fracasso no processamento do trauma, com in- capacidade de diferenciagio das emogGes, impossibilitando, assim, a sua utili= zagio como guia pata a realizacdo de agies apropriadas. Este problema € particularmente bem explicado pelo Modelo Neurobiolégico do ‘Trauma (van der Kolk, 1995; LeDoux,1996) (Fig. 22). A informagdo da amigdala, aps uma primeira valorizagio emocional em funglo da ‘meméria implicita, alerta 0 hipocampo; este procede a uma segunda valorizacao, ‘organizando a informagio num mapa cognitive ¢ atribuind um significado (pessoal, social, existencial) em fungo da meméria explicita, tomando, assim, possivel nomear a experiéncia e compreender o seu significado individual especi fico, Através do cértex pré-frontal & entdo possivel assimilar e, sobretudo, acomo- dar a experiéncia, bem como desencadear decisdes e mudangas intemas, ao nivel do seu sistema de crengas ¢ valores, e extemas, nas mudangas de vida, 0 Modelo Newrobiotégico do Trauma considera que aforga da ativasdo do hipocampo 4 diretamente proporcional & inensidade da atvaedo da amigdala (mais significado emocional + mais memirias de detalhes + mais sensagdes corporis: (wshoro a re- cordictoo que faz com que orecorde mais, effcoansioso e, em estado de alertacapto ‘mais detathes que me permitirao entrar em aedo»). No entanto, uma sobreestimula0 dla amigdala imterfore com a attvagdo do hipocampo, que fracassa ma integra da Informagao ~ determinando fragmentagdo eriagdo de defesas de paras. O hipo- campo torna-se incapaz de atribuir uma referéncia espdcio-temporal e um significado cognitivo a experiéncia traumitica sob a forma de meméria explicita, 0 que faz com que estas recordagdes sejam armazenadas na forma de sensagdes corporais, imagens cons). O trauma é fundamental. isoladas do contexto, meras sensorialidades (cheiros, ‘mente um assunto corporal: «os sobreviventes do trauma tém simomas em vez de me. mérias.» O sistema fica saturado com informagao sensério-motora excessiva, nao pro cessada, pois a incapacidade de criar uma meméria semédntica (por palavras) gera um predominio de reagdes somdticas e de escalada emocional. A memdria fica dissociada, ‘com uma parte isolada em relagdo @ totalidade da pessoa, e desenvolve-se de forma difereme, sem comtrolo. Para que se possa pensar calma e claramente é preciso que 0 cérebro emocional esteja a funcionar dentro de um certo balango/equilibrio. Para que este se concretize, é pre- ciso que o sistema fisiolégico nao esteja muito ativado, Muitas vezes a pessoa nao tem consciéncia que esté traumatizada e, por exemplo nos casos em que ha desenvolvimen- tos para uma Perturbagdo de Stress Pés-Traumético (PSPT), & porque o hipocampo ndo é capaz de assinalar o «fim do traumay, nao é capaz de «comunicar ao cortex» que 0 trauma acabou (que entdo «comunicariay & amigdala esse término e que esta altera- ria a sua resposta de alarme «comunicando» ao corpo que nao precisa de mais hiper- vigilancia bem como os consequentes comportamentos de luta/fuga ou paralisia). Este aspeto s6 desaparece quando for possivel integrar esses elementos se res no conjunto de memérias do individuo, diluindo assim os seus efeit -moto~ Por conse- uinte, ao ser integrada e sintetizada, passa a fazer parte da individualidacle da pessoa. Acontecimento Perda Taélamo (Centro de viagem de informagées) Big nt ae, ~~ } “ry + Inemoe Amigdala { s {_._Slanificagoemocional », [+ _\_-, Sintomatologia Pr, \(Centro de tiagemdeinformagées) ‘Sométicalemocional NO Meméria impicita 7 Hipocampo~ Estrutura cognitiva ‘Significagao cognitva [> Significado, alteragao de Meméria explicta esquemas ; \ ragndeonnebens 5, itis + Madanya de esqumas(ctenas, las) Cértex pré-frontal Assimitagso ‘sito ‘Comportamento-a¢0 [> Regulagdo do contotoex 4 Mionga conportamertal ‘comedogio Figura 22 - Processamento neurobiolégico do processo de luto. rR [ANTONIO BARBOSA das perdas traumdticas mais frequent verifies Estas podem assumir varios tipos que importa No dimbito da clinica, um em situagdes de morte stibi contextualiz: + Imediata (por exemplo, um ataque cardiaco fulminantey; -se + Stibita, depois de um certo periodo de tempo (ao fim de 40 minutos de manobras de ress ago); + Situagiio intermédia (por exemplo, remover os drgiios para transplante); + No contexto de uma doenga crénica prolongada ou de uma situagio mé- dica que estava a melhorar («parecia que estava preparada, ¢ néo es- tava»). Podemos também ter de lidar com diferentes niveis de associagdo entre o Tuto e o trauma: + Luto agudo com sintomatologia traumatica minima. Exemplo: O marido da Sr." X esta internado no hospital devido a um enfarte do miocérdio, onde teve todo 0 apoio durante trés semanas e veio a falecer como ti- nha sido prognosticado. + Sintomatologia mais intensa que a habitual de stress traumatico, secunda- ria A presenga de um ou mais fatores de grande risco (pode ou nao preen- cher critérios de PSPT). Exemplo: Quando estavam no restaurante, 0 marido da Sr.* X sentin uma dor aguda no peito. Os socorristas iniciaram no local a ressi-scitagdo cardiopulmo- nar, & qual a Sr.*X assistiu, sendo 0 marido transportaiio de imediato para o hos- pital. No transporte, 0 senhor acaba por falecer, sendo 9 jacto anunciado quando ela, entretanto, chega ao hospital. + Nivel suficiente de sintomatologia de stress traumatico para ter critérios de PTSD e sobrepor-se ao luto. Exemplo: Situagio semelhante & anterior mas, agora, a Sr.*X acompanha o ma- rido na ambuldncia e assiste @ sua morte (revirar dos olhos, etc.) no meio da «maquinariay, Tem flashbacks constantes com o rosto do marido, ouve os bip-bip dos aparelhos, vé 0 marido no chao do restaurante, na maca da ambuléncia, tem tremores. Nesta associaco entre luto e trauma podemos encontrar diferentes modali- dades de problemas: 1. Traumatizagao pessoal (requer dominio do trauma): - Aumenta os problemas ¢ 0 mal-estar; ~ Diminui as capacidades de superagao ¢ o funcionamento psicolégico. 2. Perda em condigdes traumaticas (requer elaboragio do luto): - Complica 0 processo de luto ¢ a adaptagao. FazeRoWro 73 se e/ou potenciam-se mutuamente (re. 0s € selegio das respetivas es. 3. O trauma ¢ 0 luto comprometem-: quer 0 reconhecimento de problemas ‘ini tratégias): = Comprometem-se mutuamente; ~ O stress traumitico interfere com 0 proc tado, como um robb, nao posso trabalhar 0 = O lidar com os sentimentos da perda interfere com 0 dominio do trauma = Potenciam-se mutuamente (intensificam os sintomas de cada um e esca lam os sintomas comuns aos dois); Perante estes diversi 10 de luto («se estou embo- s sentimentos»y; ados cendrios, as principais tarefas na ajuda a estes enlutados traumatizados passa por: + Gerir o trauma; + Elaborar a perda, Na Figura 23 sintetizam-se as principais manifestagdes e preocupagses dife- renciais entre situagdes de trauma, luto ¢ luto traumatico. aaa aes - me ae i ‘Reexperiéncia Descrenca ene Sea Sn. one es ce ee || Fame igen (goer |e = Reagées somdticas sintomas do falecido eae, ne - Amnésia = Sentimento de vida Desespero Incapacidade de resposta i Reminiscéncias. scsi Ramer / ae Ee: Dificudade de compreensdio da morte Figura 23 - Diagndstico diferencial entre tuto, trauma ¢ luto traumiitico, Um dos prolemas fundamentais do luto traumatico, nos seus varios graus e modalidades, prende-se com a intensidade das emogdes que 0 acontecimento traumatico desperta e com o facto de as emogées e sentimentos estarem habitual- mente associados a experiéncias corporais. Memérias desagradaveis «armaze- Ud ANTONIO BARBOSA nadas» em partes especificas do corpo induzem sensagéew/sentimentos desagra- diveis numa certa localizagio e is vezes estendemse a pessoa inteira, Quando a experigneia & muito dolorosa, a resposta natural é suprimir a sensagio ou o sene timento e nio deixar, consciente ou inconscientemente, que aquela parte do corpo” sinta ou se movimente” (0 movimento relaciona-s ow intengdes, influenciando a expa xe com mudangas de sentimentos. miso da energia € a temporalidade da ago). Neste caso, 0 bloqueio psicolégico manifesta-se sob a forma de bloqueio fisico. Quando o enlutado softe de uma série de bloqueios, ambivaléncias, confusdes jinternas e restrigdes, os varios mecanismos envolvidos impedirao o fluxo livre do dinamismo emocional. Por exemplo, «paralisan» 0 corpo para no sentirem dor ou ansiedade, mecanismo que, apesar de eficaz no evitamento da dor, pode, ao mesmo tempo, alhear de todos os sentimentos, incluindo a alegria e a felicidade. Exemplificaremos algumas destes mecanismos através de uma situagdo de complicagao traumética de luto numa mulher de 40 anos de idade, funcionaria piblica que perdeu subitamente 0 marido por enfarte de miocérdio agudo macigo. Na sequéncia desta perda stibita e inesperada, para além do cuidado a ter com os dois filhos menores (sem ‘apoio consistente da avé, tinico apoio familiar existente jé que a escassa familia do ‘marido se “retirou” com algumas acusagdes desvalorativas), teve de enfrentar dividas (que desconhecia) do marido e, ao mesmo tempo, a inquietarte suspeitalcerteza de que ele ndo teria sido convenientemente acompanhado no servizo de urgéncia pelas infor- magées contraditérias fornecidas quando se dirigiu ao Hospital. O seu discurso é ré- pido, ansioso, salvas de palpitagdes e irritagdo ruborizada quando fala da companhia de seguros, do presumido mau atendimento hospitalar mas também do advogado, ja que iniciou processo litigioso que se vai arrastando sem qualquer vislumbre de indemi- nizagdo que aliviasse uma situagdo econdmica deteriorada, Mantém insénia perma- nente, sempre sobreocupada, hiperativada, hiperpreocupada e est sempre a beira de ‘exaustdo, solicitando internamento para descansar (como alternativa ao «desapare- cer») que depois acaba por recusar. Sente as méos sempre frias e no consegue elevar 0s bracos acima da cabega, de tdo fracos que os sente. Durante a sesso terapéutica, a0 realizar um curto exercicio com as méaos (de puxar e empurrar), parou e revela que dhe apareceram uns rostos», sentiu-se muito aborrecida e zangada. Foi convidada a repetir esses movimentos de empurrar (que imaginariamente empurrasse essas ima- gens), 0 que realizou varias vezes e de forma agressiva, com muita forca, apesar das anteriores queixas recorrentes de fraqueza nos bragos. As méos ficaram quentes & acalmou. Compreendeu como se sentiu desamparada no exercicio e, por associagdo, na vida, na «luta com as pessoas & sua volta». Quis varias vezes, mas nunca feve coragent de se retirar das situagdes que the desagradavam ou sentia injustas. Uma enorme quantidade de raiva estava suprimida e fechada no seu interior. Com 0 exercicio, parte ‘foi libertada e relaxou. Também aprendeu que podia ter a coragem de encarar e lidar com 0 problema diretamente em vez de 0 evitar, como tinha acontecido com 0 marido (comportamentos que ndo percebia — despesas, agora reveladas) e depo a pel panhia de seguros e 0 advogado (que ndo consegue ‘substituir), mas também ‘acontecimentos relevantes na sua infancia precoce. 75 néutico, tendo nesta sesstio, como porta de en. “ al porque o sistema sensérig. soriais “tém meméria” © «lem. Nesta enlutada 0 trabalho te aan it er isto trada 0 corpo permitiu, aceder 4 sua his » recetores 8 motor (misculos, pele, nervos ¢ recetore: papi yp aa bram-se» de inpuis sensoriais (temperatura de p* : : forma, cheiro) muito tempo depois do contacto. Este tipo de ae ser Muito agradivel (abrago de pessoa intima) ou horrivel como no ca abusos fisicos ou sexuais, Esta memoria implicita (diferente da explicita, Sonselente e declarativa que envolve ja processamento concetual, factual, ie © comeca Pelos trés anos de idade) é processada através da amigdala, fazendo um bypass NO processo cognitivo, e fica «armazenada» no corpo, podendo ser dificil de verbalizar ou aceder. 7 7 Mas trabalhar a nivel do corpo (envolvendo, sobretudo, o sistema sensério- Motor) no é o mesmo que trabalhar com a mente, porque as respostas corporais Sao mais imediatas e inconscientes. O terapeuta tem de estar particularmente atento As subtis mudangas que acontecem de momento a momento e tem que ter 9s olhos, a mente e 0 coracdo abertos, pronto para fazer ajustamentos instanta- neos. Porque est a trabalhar com a pessoa integral, deve também usar a sua Pessoa integral e toda a sua sensibilidade. trabalho orientado para © corpo é mais focado no processo do que no resultado. E imperativo que o ‘erapeuta tenha uma atitude de ndo juizo de valor durante 0 processo para dar espaco a que o enlutado explore a nova experiéncia, prestando atenciio as sensages interiores ‘e aos sentimentos e descobrindo meios alternativos préprios de Perceber e interpretar os aspetos que vai encontrando, Quando 0 bloqueio é de emogdes intensas, como a raiva ea zanga, uma tre- menda energia pode ser «armazenada» e, em alguns casos, a Pessoa sabe desse Potencial energético que pode explodir. A tinica forma de evitar a explosio é suprimir-se a si proprio de expressar essa energia. Nesse caso o bloqueio psi- coldgico pode levar a um bloqueio fisico, Libertar os bloqueios e deixar a ener- gia fluir beneficiard a Pessoa inteira. Ao trabalhar Corporalmente pode aceder-se a estas memérias que ajudam certamente a compreender o pano de fundo de muitos problemas psicolégicos ¢ comportamentais, 76 | | 5.2.2, Luto inibido vitamento dos aspetos dolorosos da perda como protecao contra a dor ¢ a frag- mentacao. Quando o softimento provocado pela perda ultrapassa as capacidades de ela- horagio, ocorre um adiamento do processo de futo (retardaclo, adiado, conge- ado), Pode parecer um lito normal, funcional a curto prazo (para repelir rea- oes disféricas), mas que & ativado muito mais tarde devido a perdas reais ou _ Byita-se falar na realidade da perda, para no se ativar emocional- negando-se nalgumas situagdes a dor mental provoeada pela perda, im- simboli mente, pedindo o enlutado de revisitar 0 seu esquema de vineulagio ao falecide, com prometendo a acomodagiio a permanéncia da perda (Horowitz, 1997, 2003). As expresses de luto sfio suprimidas ou inibidas, mas pequenos acontecimentos podem desencadear reagées intensas (Fig. 24). Mesmo ao fim de alguns anos, as respostas a uma perda recente parecem ser desproporcionadas em relacio 20 rau da perda, Os enlutados néio conseguem falar sobre 0 falecido sem expres- sdes francas de luto (Bowlby, 1980; Horowitz, 1984). Na pratica clinica, 0 contexto mais frequente desta forma de luto complicado surge como resultado de uma relag#o marcadamente perdido, como a que apresentamos no seguinte caso ivalente com o objeto C. 48 anos de idade, porteiro numa repartigdo piiblica, com hébitos alcodlicos tabagicos acentuados desde hd 30 anos, encontra-se em fase terminal no contexto de ‘um carcinoma hepatico com metastizacao cerebral. Tem dois filhos de 11 e 13 anos de idade, estudantes e saudéveis, mas marcados pelos frequentes excessos agressivos do pai sobre a mae (que a obrigou a dois interna- mentos para a resolucao de fraturas) e sobre eles préprios (precipitando varias vezes a ‘sua fuga para casa dos vizinhos). 4 mulher trabatha a dias em duas casas de familia, desde hé cerca de 7 anos, com satisfagao minua, Por varias vezes pensou em separar-se do marido. Chegou mesmo a cempurrivlo para casa da sogra, Os tiltimos anos da sua vida foram marcados por sentimentos alternados de pena ¢ de raiva pelos maus-tratos fisicos ¢ psiquicos a que era sujeita, bem como os seus flhos, nos periods dle alcoolizagdo excessiva do mario. Em alguns momentos chegou a imaginar que 0 marido poderia ser atropelado. Apis a morte brusca por avidente de C., a vitiva retira-se da vida ativa, conmraria- mente ao afirmado, enche 0 apartamento com fotografias “felizes” do marido e impede sistematicamente que filhos, familiares ou vizinhos the tegam comentarios negatives em relagao ao falecido. FAZER OWTO Ll O que acaba por acontecer neste tipo de situagdo, ¢ por uma que: fio de «economia» emocional interna, é 0 enlutado fazer uma clivagem entre 0s aspe- tos positivos ¢ os mais negativos do falecido, idealizando 0s p imeiros ¢ recal- cando ou negando os segundos. Por exemplo, no caso clinico que descreve uma relagdo ambivalente da mulher com o mari ido alcodlico, agressor violento, veri- ficou-se que, por morte brusca do marido, a vittva s6 exprimia sentimentos po- sitivos, enaltecendo sistematicamente todas as suas qualidades, nao deixando expressar, reprimindo mesmo severamente, a mengdo de aspetos negativos (al- coolismo, desrespeito, agressdo) do marido face a ela € aos filhos. proceso de luto fica, portanto, inibido, nfio pode avangar, desavolvendo- se mecanismos protetores, como a mascara de luto, a mumificacao, « sublima- ¢d0, conduzindo a isolamento, desgaste fisico ¢ animico com tristeza ¢ depres- so e, por vezes, assomos de comportamento litigioso, quando so ativados miicleos reprimidos inconscientes de raiva em relagdo ao objeto perdido. E dessa natureza o trabalho a desenvolver em todas as situages em que as estratégias de evitamento ou negagdo so exageradamente instaladas, tais como: fantasiar que 0 falecido esta vivo, distorcer o significado emocional ¢/ou cognitivo da morte (apesar de a no negar), alterar a importéncia da relagao, minimizando-a «todos temos que morrer um dia», ou negar a aceitagio do significado da morte e das suas consequéncias (uma forma de manter a esperanga e de ndo esquecer). O sentimento de ambivaléncia tem uma forte componente inconsciente (Fenichel, 1981). Nas situagdes de luto, essa ambivaléncia néo esta relacionada meramente com a qualidade de relagao conjugal perdida, mas sim com a repre- sentagdo que o enlutado faz dessa relagdo. Numa relagio francamente ambiva- lente (indicando um estado pré-existente no qual um conjunto de crengas orga- nizadas nfo est adaptada ao corpo de informagio que com ele se relaciona), 0 processo de luto, através da revistio das representagdes da relagdo, pela sua dis- BARBOSA 78 ‘ANTON _ att crepancia, estimula esses esquemas contraditérios, desencadeando a ativagio de uma avalanche de emogdes de angistia e de pesar muito dolorosas, ¢ que tor- nam mais dificil uma flexivel e gradual tentativa de assimilagiio. $6 depois desses aspetos negativos serem acedidos e ad los ¢ indagada a fungdo de cada um dos aspetos & que, se forem devidamente relativizados com mm duas pessoas numa $6: 0s aspetos positivos («o meu marido era como se fos eu ndo compreendia em quem ele se tornava quando estava bébado, mas eu ‘amava a outra pessoa dele e ele, afinal, também me amavan), sera possivel fazer uma integracdo harmoniosa do objeto perdido, num processo paulatino de diluigdo dos mecanismos protetores, deixando assim espago mental disponivel para novos investimentos. Perante o medo da dor e da vulnerabilidade, e em sintonia respeitosa com as defesas, a tarefa consiste em dissolver paulatinamente as estratégias protetoras/ defensivas, 4 medida que aumenta a tolerancia 4 dor necesséria, monitorizando minuciosamente a janela terapéutica, com vista a aceitagao gradual da realidade da morte, sem estratégias de distorgao. Uma modalidade desse tipo de luto podera ser denominada de luto latente — reagdes que surgem muito tempo depois da perda (pelo que é designado também de tardio) e que parte da consideragao de que um proceso de Iuto nunca acaba verdadeiramente, deixando sempre uma marca indelével na pessoa, que se pode reativar em qualquer altura ou no contexto de perdas signit icativas. 5.2.3. Luto crénico Diélogo interno com a pessoa falecida, para evitar 0 reconhecimento da perda. O vineulo é mantido através da geracdo constante de representagdes internas/externas do falecido, Nesta modalidade, crénico/dependente, 0 processo de luto encontra-se esti- tico e prolonga-se, com intensa dor mental e pesar, sentimentos de anseio, mas também de amargura e revolta, irritabilidade, culpa, vida insatisfatoria, vazia sem significado. O enlutado mantém-se nestas condigdes durante meses € até anos, as vezes com dificuldade em prosseguir as suas rotinas (retirada social profissional), verificando-se uma dificuldade paradoxal em investir numa nova relago e numa incapacidade para confiar nos outros. Chega mesmo a haver uma certa confusdo quanto a sua propria identidade e ao seu papel na vida (« ds vezes parece que estou a desempenhar 0 papel do meu pai»). Subsiste uma dificuldade em lembrar e aceitar a realidade da perda da relagio, que se manifesta por: ansiedade de separaco constante, reminiscéncias frequentes, Tituais de recordagio, manifestagdes excessivas de tristeza ¢ saudade. Este contacto assiduo com a dor, que & mais um mecanismo de manutengaio da relagdo, FAZER O WTO i icaz na evolugio do processo de luto. Haé quase sempre uma cambivalénciay fac so de arecuperayio», podtendo levar o enlutado a uma depressiio crénica com comportamento ansioso levante, por vezes com disrupgao social ou ocupacional (por insolvéncia de necessidades relacionais) e podendo também ocorrer frequentes somatizagdes ¢ doenga fisica (Prigerson, 1997, Tabela 1. nao se revela efi 1s em saiide em individuos com luto compli- meses aps a perda, ses Risco _Intervalo de con- Tabela 1 - Risco relativo de resultados negal Resultado de satide (incidéncia) rolativo _fianga (95%) Tensdo arterial sistdlica elevada aos 13 meses apés aperda 1,11 1,02-1,20 Depress aos 13 meses apés a perda 2,72 0,84-8,81 Mudangas no fumar aos 13 meses apés a perda 16,7 0,86-320,4 Mudangas na alimentagdo aos 13 meses apés a perda 7.02 1,62-30,8 Problemas de coragdo aos 25 meses apés a perda 4,15 1,04-1,27 Problemas com dlcool aos 25 meses apés a perda 1,25 0,98-1,83 O luto crénico ocorre mais frequentemente em enlutados muito dependentes em relago ao falecido como forma de autorregulagdo e manutengiio da autoes- tima (Hagman, 1995) («Fui sempre insegura, com medo que me abcndonassem, mas sabia que ele estava ali para tudo o que eu precisasse, estow aqui para te proteger, ele estava presente em tudo»). CO © Figura 25 - Processo de luto erénico/dependente. A atividade sera, perante 0 medo de perder a relagao, a de elaborar os aspe- tos relacionais da perda e gerar representagées internas simbélicas do falecido (Fig. 25). Deverd ser desenvolvida em sintonia com 0 diilogo interno com a pessoa falecida (para facilitar a sua integragao harmoniosa) e, prestando parti- cular atengo ao contacto com a dor, ir detetando padrdes de desespero (com hiperativages do sistema de vinculagao) ou padrdes de raiva e caos que podem ser desorganizantes. Estas situagdes devem ser diferenciadas do que se designa «ligagdes conti- nuas/lagos continuados (continuing bonds)» (Klass, 2001), que representam um 2 ANTONIO BARBOSA yinculo continuo («continuar os lagos de vinculagiio) ao falecido como aspeto normativo do ajustamento ao luto, como parte da adaptagio integral bem-suce- dida & perda. Este contributo concetual decorre de uma alternativa a afirmagiio freudiana segundo a qual para completar 0 processo de luto é requerida uma reniincia 4 ligagio com o falecido (descatexizagio, que, contudo, nao é o mesmo de desvinculagdo). Se alguns autores tm chamado a atengio para a necessidade de intervengdes que promovam um vinculo interior com 0 falecido (Neimeyer, 2000c), outros previnem para a identificagao de lagos continuados nao-adaptativos em que ha na realidade falha na integragdio da morte de um ente querido (Bowlby, 1980). Esta condigio pode evidenciar-se através varias mat festagdes: = Comportamentos de procura disfuncional (apesar de normais no pe imediatamente pés-morte, jé 0 nfo serdo quando se prolongam muito e sao usados de forma defensiva); - Situagdes em que a ilusdo de um contacto continuo se mantém no sentido mais literal (iluso de contacto externo com morto, as vezes rigidamente ritualizado); ~ Investimento «personificado» num objeto de ligago que representa a totalidade do falecido numa forma ndo-modificada (estes objetos sao dife- rentes dos que funcionam para preservar a meméria do falecido), = Projegdo da representago personificada em outra pessoa, respondendo as~ sim a perda como se a separagao fosse reversivel (Shaver, 2001, 2008) jodo Todos estes desenvolvimentos sao motivados pelo evitamento de revisitar 0 inculagdo com o falecido. Sdo também formas inadequadas de esquema de v expresses negativas e desadaptadas manutengo do lago continuo e, portanto, para ultrapassar o luto. Efetivamente, a acomor falecido de acordo com a realidade (Horowitz, 1984), que pode envolver mu- dangas na representagao do self através da internalizagiio de atributos apreciados do falecido. Estas representagdes internas podem continuar a providenciar asustento» emocional ¢ evocar a representagaio do falecido como um «porto seguro» (Field, 2006), fazendo uso da relagao interna como base segura. O luto saudavel através de ligagdes continuas acontece quando o individuo aceita que ocorreu uma mudanga no seu mundo externo e consegue fazer alteragdes no seu interior, isto é, na representagao interna que faz desta mudanga (a natureza do vinculo deve ser exclusivamente interna ¢ fruto de lagos de afetos internos, no envolvendo a existéncia fisica do outro). Este processo ¢ particularmente util madas de Para a manutengdo da identidade e para a resolucio de problemas ¢ to1 ddagio a perda requer a revisiio do esquema mental do FRR OLWTO = desis, fazendo recurso a relagHo interior, 20 poder «imaginar 0 ponto dg Ving do falecido» relativo a diversos assuntos ¢ tomadas de decisio (Field, 2006), mantendo um sentido de continuidade como meio para um fuxo de mug necessaria para acomodar a nova situagdo, reorganizando-se e reorientan, (Bowlby, 1980). Oestabelecimento da diferenga entre uma ligagdo continua saudtivel e um tuto oy, nico seré exemplificada com a situagdo de uma mulher de 66 anos de idade, funciong, ria piiblica na sequéncia de morte do marido hd quatro anos por cancro do estémag, metastizado, diagnosticado trés meses antes da morte. Tinha uma relagéo estivel ye submissdo e dependéncia mantida, sendo 0 marido a sua principal fonte de «recarga narcisica». Para além do caracter stibito e inesperado da doenga do marido, no fim do ultimo internamento o filho tinico impediu que a mde visitasse o pai, alegando os aspe- tos traumaticos do desfiguramento acentuado, limitou a sua presenga na totalidade do ritual funeréirio e decidiu a cremagdo sem 0 conhecimento da enlutada. Apds um per. odo prolongado de baixa, mantem acentuada irregularidade laboral com auséncias varias por incapacidade cognitiva nas tarefas de que & responséivel. Sempre «muito, muito triste, nunca mais consegui dormir descansada. O cabelo ficou téo SFraquinho, se ndo tivesse muito, jé estaria careca. Devia ter sido eu a ir! Nao faco cé falta nenhuma, Ele sim, era um excelente pai e av6. Eu ndo sirvo para ninguém. Sé ele me aceitava assim. Se pudesse trocava com ele e jd Id estava! Penso tanto nisso... Nao me apetece ver ninguém. Vazio. Escuriddo. O meu filho nao me deixa estar com as minhas duas netas por estar sempre de negro e néo conseguir parar de chorar. Nao me ouves? Estés bem? Tive um dia dificil...Quando chego a casa pego na méquina de barbear. Ainda tem restos de pé da iiltima barba... Encosto 4 cara, Estds tao frio.... Ea tinica coisa que me acalma verdadeiramente. Nao vens hoje...». anga ose Estas referéncias simbilicas a possibilidade do falecido voltar, desenvolvendo até comportamentos nesse sentido, so muitas vezes acompanhadas de ansiedade, como se uma parte da pessoa o temesse, paradoxalmente. Esta «fusion quase obsessiva com a maquina de barbear (nfo a lavando) pode constituir mais uma tentativa de controlar a ligacdo com o falecido, assim como referir-se a ele como Se estivesse ali presente, utilizando os verbos no presente, so formas de expressar a introje¢ao do falecido que, mais do que mera modelagao de uma identificagio mimeética, promove a continuidade de relagdo no mundo interior, Parece haver uma perturbaciio do teste de realidade sob a forma da situagio paradoxal em que a enlutada sabe Conscientemente que perdeu o marido, mas, 20 ¢Go de confronto com © corpo morto. Por outro mbolizagio de objetos que pertenceram ao falecido procura controlar © manter uma relagio com ele. Foram designados objetos de ligagdo (linking objects) por Volkan (1968, 1970, 1971), Podem assumir varias modal pegas usadas pelo falecido, objetos considerados extensdes do corpo, objetos lembrando real (fotografia) ou simbol lo, a camente 0 falecido ou objetos que estavam 4 mio quando se soube da noticia da morte ou na altura do funeral ou que esteve com o falecido até aos iiltimos ins- tantes antes da morte. Estes objetos devem ser distinguidos dos objetos transitivos e dos fetichistas. Este psicanalista utilizou-os numa forma de psicoterapia breve (re-grief work). Depois de uma fase de demarcagdo em que se pede ao enlutado para cognitivamente estabelecer (através de uma minuciosa hi: storia da relagao) os limites entre 0 enlutado € 0 falecido (0 que pertence a um e ao outro), segue-se- Ihe uma segunda fase de externalizagdo em que é pedido que fale agora sobre 0 significado da sua experiéncia com 0 falecido, estabelecendo limites, desta feita, nao intelectuais mas afetivos, e desencadeando habitualmente abreagdes que 0 terapeuta ajuda a dirigir para o objeto que se torna entiio externalizado. Para este efeito pode pedir ao enlutado para trazer um desses objetos para a sessdo. Na terceira fase re-grief work é feito um enfoque, de modo segurizante, no facto de realidade de que 0 falecido efetivamente morren, que nao voltaré e que a expe- riéncia com o falecido real cessou. O doente faz entZo o luto e sente uma tris- teza «natural» na fase final da abordagem, sendo agora capaz de sentir, experi- enciar e verbalizar impulsos até ai tabu. Apercebe-se, ento, ao ficar consciente das memorias do falecido e do afeto relativo 4 respetiva experiéncia relacional com ele, de que queria algo especifico do falecido ou que o falecido represen tava uma parte de si (introjetada) e ao qual tinha feito uma identificagao cons- tritiva (e ndo construtiva), permitindo-se, agora, estabelecer um teste de reali- dade e a sequente «emancipagao» harmoniosa. Esta modalidade de terapia, ao trabalhar de forma continua e repetitiva com as memérias do falecido, aproxima-se de algumas modalidades de terapias comportamentais de dessensibilizagao (até que o enlutado sinta menos ansie- dade em relagiio As emogées ligadas ao falecido), mas, diversamente, toma em devida consideragaio todo o processo dinamico (endo 0 encara como a «caixa negra da abordagem comportamental) que se desenvolve (mobilizagio de de- fesas, sentimentos de culpa, transferéncia). O tempo e o modo de ajuda sio muito importantes nestas situagdes que estdio ja wcristalizadas» devendo ser acautelado que poderd acontecer que, depois da externalizagao, 0 alivio da de- Pressio (quando o material conflitual nfo foi resolvido: zanga © culpa por 33 FARRER OWT exemplo) pode eriar um desenvolvimento paranoide, ou, se a externalizagao fap por outro lado, muito ripida, pode surgir uma reagiio hipomaniforme, eo em que existe uma esperanga crénica ou umg Estas situagdes de luto © tentativa erénica de recuperar o objeto perdido, com 0 esforgo a que obrigy através do «gasto energético» para manter este processo a funcionar contra a pressio da realidade e dos repetidos falhangos nas tentativas de qjuntary (recy. Perat) 0 falecido, podem conduzir a sentimentos de franco desamparo e deses. Pero que, quando sao prolongados ¢ se generalizam, determinam quadros de. Pressivos, psicopatologizando, assim, 0 processo de luto. Uma modalidade que se poder integrar nesta rubrica ¢ 0 da designada perda nio-finita (Bruce & Schultz, 2001), em que o processo de reconciliagao com a perda nio-linear se torna quase impossivel. E a situagao paradigmatica de morte contranatura de filhos, particularmente na infancia, inviabilizando expe- tativas perante um futuro de que eles eram promessa (crescimento, realizagdes académicas, afetivas, sociais, desportivas), mas também do futuro da familia. 0 processo de adaptagdo/transformagao requer uma dialética a longo prazo entre «travessia de pontes» ¢ «construgao de abrigos» (Martins, 2013). Para além destes trés tipos fundamentais de luto complicado, poderemos considerar outras especificidades, também frequentes na pratica clinica, relacio- nadas com a realidade extema quer na fuga para atividades do exterior (luto exagerado), quer na presso exterior perante certo tipo de perdas (luto desauto- rizado). 5.2.4. Outras modali Luto exagerado Manifesta-se por hiperativacdo, nomeadamente por comportamentos auto- destrutivos em que o sobrevivente tenta aliviar a dor emocional e espiritual através de estratégias adaptativas lesivas (consumo de alcool e drogas, priticas sexuais ndo seguras, tentativas de suicidio, acidentes sequenciais), mantendo uma atividade quase constante como protegao contra a dor da separagiio, desvi- ando o foco para outros problemas inclusive para a dor fisica autoprovocada. Luto desautorizado (indizivel, privado de direito, afastado) Refere-se ao pesar ¢ ao desgosto escondido da pessoa «marginalizada» em que nao ha «permissio social» (ou é muito reduzida) para exprimir as suas ge- nuinas reagdes a perda. O sobrevivente nao pode anunciar, aberta ou publica- mente, a perda de uma pessoa préxima, porque a relagdo é culturalmente ina- ceitével ou marginalizada (homossexuais, companheiros anteriores, amantes 84 ANTONIO BARBOSA

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