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© cuidado ¢ um acontecimento ¢ nio um ato Emerson Blias Merhy ~ médico santarsta Professor colaborador na Unicamp e na UFRJ Oferego como imagem, para poder conversar sobre cuidado ¢ subjetividade, a figura do brincante, Todos, quando estamos cantando efou dangando uma maisica qualquer, em particular matchinhas, cantigas, etre outras, 0 fazemos em um n6 de passagem. Hs, por ali, forgas que se repetem em todos que cantam e dangam aquela mvsica em particular; também hé forgas que marcam o lugar do cantar do dangar na cultura da sociedade que constituimos; porém, hé um acontecer que s6 ocorre ali, em ato, com aquele dangante © cantador especifico, como um manejo do momento, como um fabricar, ali no catdiano do acontecimento, a danga eo canto, que nenhum outro itd fabricar igual. HA, por ali, no né um passar para o dentro e do deateo para © fora daquele que danga canta. O seu interior ¢ seu exterior, no aconteeimento, si0 inseparaveis, se constituem, se ddobram. Este ali em ato é 0 puro brincante. Ble 6 a sintese em produsio no ato de todas as forgas que passam pelo né. No seu acontecer é que as forgas, de fat, existem Imagina, agora. que dois brincantes se encontram, coma pares de dangarinos, mesmo que tenham momentos de compassos, passos, eantas, .., nos nés de seu enconteo, come uma rmicropolitica, cada um mantém as caractersticas deseritas, anteriormente. Entetant, ‘come micropolitiea, um intervém no outro. © brineante a dois é um processo, que mesmo ccontendo todas as repetigdes particulaes e gesis, s6 existe no ato do seu acontecimento, [Estas figuras dos brincantes, tirada das falas de Suatsuna e Nébrega, para mim, € a que melhor tra a imagem que gostaria de ofertar para poder falar do cuidado em sate Vejamos esta sitapio considerando um encontro entre um trabalhador de satide ¢ um uusuério de seu servigo; mas, esta imagem pode ser ampliada para uma equipe de twabalhadores e um grupo de usuérios, que areflexdo que se segue continua pertnente Associo os dois a brincantes, porém em recortes sitacionais bem distintos. Agora, & ‘matcante do encontto 0 que caracteriaa a “alma” da campo da said: a promessa de que ali € um Iugar de encontro de atores socias / sujeitos, no qual uma parte esté ali como lexpressio e portador de necessidade de saide (que emerge sob a figura de qualquer tipo de ddemanda) e uma outraesté ali por ser identificada como portadora de um certo saber-fazer Aqui, como ha presenga de linhas de forgas que si0 muito particulares © gerais, mas hé a6 muito cespecificas que garantem, que o encontso no ato traz dentro de si a expressio de que: faz diferenga quem est se encontrando. © cuidado € um acontecimento produtivo (Quando um trabalhador de sade encontra-se com um usuéti, no interior de um processo de teabatho, em panicularclinicamente dirigido para a produgdo do euidado, estabelece-e entre cles um espago intercessor que sempre existiri nos seus encontros, mas s6 nos seus encontros, em alo. A imagem desse espago & semelhante 3 da consugio de um espaco comum, no dual um intervém sobre © outro, por isso écaracterizado como processo intercessor € nio uma simples interseceio, pois contém na sua constituividade a légica da maiva produgio em ato mictopoltic, que supée a produgde de um no out. 1.0 esquemas mais comuns em processos de trabalho como os da sate, que realizam atos imediatamente de assistincia com usuirio, apresentam-se como o do diagrama abaixo, que cchamo de uma “intersecsio parilhada” 2. Os que se constituem nos casos mais tpicos de processos de trabalho, como o de um ‘marceneiro que produz uma cadeira, mostram que 0 usuétio € extemo ao processo, pois 0 momento intercessor se dé com a “mmadeita’, que € plenamente contida pelo espago do = (= \ No jogo de necessidades que se coloca para o processo de trabalho é possivelentio se pensar 1, que no processo de trabalho em sade ha tm encontto do agente produtor, com suas {erramentas (conhecimentos, equipamentes, eenologias de um modo gera), com © agente consumidor tomando-o, parcialmente, objeto da ago daquele produlor, mas sem que com isso deixe de ser também um agente que, em ato, coloca suas intenciosalidades, coshecimentos ¢ representagdes, expressos como umn modo de sentir e elaborar necesidades de sabde, para 0 snomento do wabalho: 2, que no seu interior hi uma busca de realizagio de um produtofinaidede. Como, por exemplo, a sate que o usuério representa como algo wil, por the permit estar no mundo © poder vivé-lo, de um modo autodeterminado, conforme o seu universo de representagdes, © ssimilado como um procesco distinto pelos agentes envolvides, podendo alécoinciit (© que revela que a andise do processo intercessor que se efetiva no cotidiano dos enconttos pode evidenciar a maneira como os agentes se colocam enquanto “portadoresfelaboradores ‘de necessidades, no interior desse processo de "inerseego parihada”. Os agentes produtores f consumidores sio “portadores” de necessidades macro e micropoliticamente constituidas, bem como sia insituidores de necessidades singulazes, que alravessam o modelo instituido no {ogo do trabalho vivo e mero ao qual esto vinculados A conformagao das necessidades, portanto, dé-se em processos socials ¢ histticos definidos pelos agentes em ato, como positividades, endo exelusivamtente como caréncas, determinadas de fora para dentro. Aqui, nio interessa 0 julgamento de valor acerca de qual necessidade & ‘mais legtima, este € um posicionamento necessro para a ago, mas ndo pode ser um a priori para a andlise, porque o importante ¢ perceber que lado o processo de trabalho € aravessado por distintas légicas, que se apresentam para 0 processo em alo como necessidades, que Aisputam, como forgs instituintes, suas insiuigdes. Como os brincantes. ‘Uma andse mais detalhada das interfaces entre 0s sujetosinstituides, seus métodos de gia © ‘© modo como esses sujetos se interseccionam, permite realizar uma nova compreensio sobre ‘tema da teenologia em saide, a0 se tomar como cixo norteador o trabalho vivo em ato, que & cexsencialmente tum tipo de forga que opera permanentemente em proceso e em relagbes © cuidado € um acontecimento no qual hé a presenga de vases teenoldgicas miltiplas Para faciltar 0 entendimenta das questdes que trato, agora, proponho como imagem 0 fencontro entre um trabalhador de sade, como am médica ow um enfermeiro ou um Psicélogo ou um outro qualquer, e um usuério, olhando este encontro sob a nogéo das “teenologias duras”; outa que esté na sua cabega e na qual cabem sabezes bem estruturados como a clinica ou a epidemiologia ou a pedagogia, que expressam uma caixa formada por “reenologias leve-duras";¢,finalmente, uma outra que esta presente no espaco relacional Wabalhador-usuério © que contém ‘tecnologias leves” implicadas com a produgio das relagoes entte dois sujitos, que s6 tem existéncia em ato. COthando esas valises e procurando entendé-las sob a ética da micropoitica dos processos de abalbo, pode-se afirmar que todas expressam processos produtives singulares implicados com cettos tipos de produtos. Por exemplo, a vaise das més, das tecnologias duras permite processar com os seus equipamentos: imagens, dados fisicos, exames laboratoriais, registos, entte outros. Porém, estes produtos para serem realizados, consomem, além do trabalho morto das coisas que opera o trabalho vivo de seu “operador”™ com os seus saberes tecnol6gicos. Mas, de tal modo, que hi uma captura predominante do momento vivo pela Iégica produtiva insttuida no equipamento, por exemple. A coutra valise, a da cabera, permite processar 0 recorteeentrado no olhar do tabalhador sobre 0 usvsrio, enquanta abjeto de sua intervengzo, em um proceso de captura do mundo ddaquele © de suas necessidades sob uma forma particular de significélo, Esse olhar & consiruido a partir de certos saberes bem definidos, expressando-se como trabalho mort, af o seu lado duro. Mas, nos momentos de sua coneretude no agir sobre 0 usuério, através de seu trabalho vivo em alo, € “contaminado” no seu provessar produtive, dando-ihe uma certa incertera no produto a ser realizado ¢ desviande-o de sua dureza pela relagio cenizalmente leve que o ustio real impae para 0 raciocinio elinico, Mesmo que armado, 0 olhar vai se singularizar no ato. Porém, por mais que softa essa “contaminagia”, dando-the ‘uma certaJeveza pelo agir em ato do trabalho vivo - que nao é plenamente capturado pelo saber tecnol6gica bem definido, pois tal captura também é dispstada pelo wsudrio presente fm alo nesie procesto -, of produtot realizados nesta situagio produtiva podem ser cizcunseritos pela imposigio do lado mais duro desse processo sobze o mais leve. Mas 0 contrério também pode ocarrer. Nao hi s6 una forma de se realizar a clinica. Essa situagio incerta da finalidade que seré cumprida nesse tipo de processo produtivo inserito na valise da cabega contaminaré a valise da mio, pois se relaciona com ela em um processo de dominancia.H a parr deste terreno, o da valise da cabeca e de seus processos produtivos, que os produtos da valise da mio adguicem significados como atos de sade. E ‘© maior endurecimento dos processos produtivos em tomo de saberes tecnol6gicos muito bbem definidos, dard uma maior ou menor interdigio 3 possibilidade do mundo do ususrio penetra também como capturador das finalidades dos processos produtivos em saide E esse encontro que dé, em hima instineia, um dos momentos mais singulares do processo de trabalho em sade enquanto produtor de cuidado, Entretanto, € um encontzo que o abalhador também procura caplurar. E x6 verficar para esse momento produtive a importancia que as regras sobre a élica do exereicio profissional © 08 saberes sobre a elagdo teabalhador-usuitio adquitem, para se ter nogio do quanto © trabalho vivo em ato do trabalhador também esté aperando sabre esse espago, tentando, ‘com a valise da eabesa, impor set modo de significar esse encontro, e ampliando-a com saberes além dos da clinica, Lembra as vinaslinhas de forga atuando no canto e danga dos brincantes Esse € um espago acupado por processos produtivos que s6 so realizados na agdo entre 0s sujeltos que se encontram. Por isso, esses processos sio regidos por tecnologias leves que permitem produrirrelagdes, expressando como seus produtos, por exemplo, a construgio fou nao de acolhimentos, vinculos e responsabilizagées, jogos tanslerencias, ene outros A presenga de situagdes mais duras nesse espago produtivo & praticamente insignificante pois mesmo que para o encontro também tenha que se ter uma certa matrialidade dura, ele ‘do € dependente dela, E como se pudesse dizer que o processo de produgio de un certo avolbimento resliza-se até na rua, ou ent qualquer outo lugat Esse momento produtivo, essencialmente do trabalho vivo em ato, & aberto 2 disputa de capturas por vrias I6gicas sociais, que procuram tomar a produsao das ages de saide de acordo com certosinteresses e interditar outros. Nao perde nunca sua tensio de espago de disputa, e mais que isso, néo perde nunca a demonstragdo de que as forgas. mesmo inerditadas, estdo operando em ato com sua presenga, serupre. E nese espago que a busca capturante do usuario apresenta maior chance de conquistas para impor “finalidades” 20 trabalho vivo do trabalhador, A relagdo particular que essa vase adquire com as outras duas, define 0 sentido social ¢ contemporaneo do agit em said: a producto do cuidado, como uma certa modelagem tecnol6gica (de sade) de realizar 0 enconizo entte 0 usuéto e seu mundo de necessidades, como expressio do “seu modo de andar na vide", e as distintas formas produtivas (Gecnolégicas) de capturar e tomar aquele mundo sew objeto de trabalho, As diferentes formas de realizar 0s modelos de atengio & sade, sob a ética do trabalho em sade, definindo reesteuturagées produtivas no setor, mostram que os atranjos entee essas valises so estratégicos, © mesmo definidores do sentido dos modelos, a partir das confguagies que adgurem inerament,¢ente sia vases do cabora ¢ do esago Por exemplo, na medicina tecnolégica hé um empobrecimento da valise das tecnologias profissional, com os quais os profissionas estabelecem os seus verdadeiros viaculos, & ‘través dos quais capturam os usudrios e seu mundo, Mesmo assira, nfo elimina a tensio conslitaiva do conjunto dos ator de sade enquanto produgio do cuidado, e muito menos conseguem apagar 0 fato de que © conjunto dos procederes em saide sto situagdes que buscam a captura do trabalho vivo em aio © tabalho médico, para se realizar como uma forma do cuidado em saide, tem que consiir competéncia de agio em duss dimensées bésicas das intervengdes em sade uma, a da dimensio propriamente cuidadora, perinente a todos os tipos de trabalhos de satide, ¢ 4 outra, a dimensio profissional centrada, prépria de seu recorte tecnolégico espectfico- para compor o seu lugar na organizagao e esiruturago dos modelos de atengio, ‘A construgio destas competincias sio conseguidas nos possiveis arranjos que as trés valises permitem, produrindo uma intervensio médica tanto focada nos procedimentos, quanto em certas formas cuidadoras. © cuidado ¢ um acontecimento autopoistico HA nos processas relacionais entre sujeitos- individuais efou coletivas - uma micropoltica ddos encontros, expressa por virios mgpas, ou melhor, por uma efervescente cartogralia daqueles processos relacionais, que os sueitos do encontro operam. Para compreender partes desta cartografla lango mio da nogio de autopoiese, que me ajuda a compreender um pouco mais 0s virios processos consttutives das agdes nos encontros, ‘como no caso da relagdo entre aquele que euida e aquele que & cuidado, Dimensio tpica do campo da sade, Por isso, antes de entrar nesta micropolitica do cuidado como encontro, suas tensbes Uesatios, retorno a um ecko do texto “A loueura ea cidade, outros mapas”, para paribar dda conceituagio de autapoiese, que tizo proveito, ‘Apés descrever situagdes de encomtros, nas quais o que se mostrava eram processos relacionais de dominagio, exclusio, eliminasio, entte outros processos de interdig cescrevi, naguee texto “Cried, para mim, desta maneiga, uma terevira imagem: pensei (nas } cenas, sob a ‘perspectiva de uma micropolitica de encontros, De posse desta idéia, da micropolitica de ‘categotias para miré- los © para pensar o que acontecia, ou poderia acontecer, nesta micropolitca dos encontros ‘A primeira nolo, que adotei, era que, ali, aconteciam vérias coisas ao mesmo tempo & ‘que nio, necessariamente, se exclufam. A segunda era que isso permitiria ter uma outra ‘have para ver “portadares de futuro”. tanto quanto a redengdo ou mudanga radical do fenconito, A terceira era de que. na micropoltica dos encontros, que ocoztiam nas cena, hhavia vias relagdes de interdigdese fugas [Nesta micropolitica dos encontros tersitorializam- se, dentso das loucuras que la ‘contém, relagses onde leritrios ¢ sujelos intrditam outta teri6rios ¢ sujilos. Os ‘enconitos explodem como uma revelacde de que agrupamentos de sujeitos se colocam. dante de outtos agrupamentos, com a vontade ea agio de interditae 0 aut, inclusive no seu pensamento, Parece que 0 outo, come estrangeiz, 6, para ele, um grande incomodo, ni suportando a possbilidade deste existir nem como imaginador. Movimento que s° diem todos os lados, de um a outro, sem par, Estas cenas continham estes pontos, s6 que continham também outros processos de ‘encontzos, ourassituagbes ocorrendo no mesmo tempo do processo de interdigio, como futras formas, destes mesmos agrupamentos sujeitas processarem suas mictopolitias, ¢ {que chamei, para minha nova leitura, de encontros autopoigticos. Como um acontecer no otro acontecimento-interdigio, (© que 6, entio, este encontro avtopoiico, que opera na relagdo culdador - cuidado? Seria aguele no qual ocorte, micropolitcamente, encontzo de duas Vidas, de wes vides, de quatro vidas, de m vidas, em mituas produgGes. Esta palavra, autopoitico, tomo emprestada da biologia, que a utiliza para falar do movimento de uma ameba, por expressar e significar ‘uma imagem de que o caminhar de um vivovida, que se produz em vida, Expressando um ‘movimento que fem que construir o sentide de um viver, de modo continuo, seno a sua caracteristica de ser vivo se extingue. Tem a forga de representar 0 movimento da vida que produz vida A awtopoiese, portano, 6 iss, um movimento da vida produzindo Vida, 0 que me permite ressighificar as cenas dos encontros na produgio do cuidado em satide, que passam a ter 1ovos entdos, para mim: 0 mesmo lugar, ocupado pela interdiedo, é também espago de encontro autopoistico, 14 uma micropolitica insta dentro da outra ,€ iso que permite a por exemplo, de em uma cena que wansmite a angistia da morte, que pode esejantes estarem implicadas com outtas, em possiveis processos cooperatives ¢ contratualizados, em um movimento em que o agir vivo de um dispara producio de vida no tro. Este 60 sentido mais intenso do cuidado como um acontecer brincante. Os conceitos chaves deste texto esto elaborados nos testos indicados abaixo, producidos elo autor Capitulos 2 © 4 do livro Saide: a cartografia do trabalho vivo, publicado pela editora Hiucitec, SP, nova edigdo de 2006. Texto Cuidado com 0 cuidado, escrito em 2004, que pode ser obtido no enderego letrénico: bp “paginas terra. com br/saude/merh

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