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*Guilén, Claus. Eto uno 1 lo divers, Introduce 3 erator compara, Barcelona: Ei Tass, 2008. on Sob a égide do cavaleiro errante Tania Franco Carvalhal (UFRGS) Vinte anos depois de sua fundagiio na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, a Associagiio Brasileira de Literatura Comparada consolidou-se plenamente como entidade ca- paz de reunir estudiosos de Literaturae de areas afins, constituindo- .¢ em um polo convergente de inquietudes e discussdes intelectuais, no s6 no Brasil como em outros pafses da América Latina. partir da ABRALIC, 0 movimento associativo ganhou corpo na Argentina, no Unuguaic no Peru ¢ esta por alcangar outras egies sob 0 estimulo do Comité de Estudos Latino-americanos da Associagio Internacional de Literatura Comparada (ATLC/ICLA) que tem entre seus objeti- vos centrais a constituigdo de novas associagdes na drea que facilitem os contatos entre estudiosos eo intercmbio intelectual entre eles, A presenca de comparatistas brasileiros, sua contribuigao a estudos em dimensdio mundial t€m repercutido positivamente. A im- portante Revue de Littérature Comparée, fundada em 1921, dedica- rd um ntimero especial ao Brasil neste ano em que nosso pais é ho- menageado na Franga. Também Claudio Guillén, no preficio & re- cente reedigio de seu livro Bnire lo uno y lo diverso (2005), a0 aludir 3 expansdo do comparatismo literdrio em diferent na India, em Taiwan, Hong Kong, China continental e muito tem- po no Japio — além da América do Sul, assinala que, nesse tiltimo contexto, “é relevante o papel do Brasil”. Hi, pois, alguns aspectos a considerara partir dessas constatagoes. primero é de que a eriago de uma Associago como a Abralic, cuja vitalidade é erescente, respondeu niio s6 A necessicade cultural de um momento dado, mas continua a atender aos interesses de seus associa dos. O segundo, em decorréncia do que se aponta, € que a Abralic, para entender o comparatismo na variedade de suas priticas e no am- 12 Revista Brsilerade Literatura Compra, 8, 2006 plo campo interdisciplinar a que corresponde, acolheu diversos espe- cialistas, nao s6 de literatura mas de reas afins, favorecendo o desen- volvimento de miltiplas orientagGes teérico-criticas. Isso € de impor- tancia capital, pois seus congressos, a cada dois anos, se converteram em grandes encontros nos quis se manifestam essas orientagdes, de- senhando o quatdro de tendéneias erfticas mais recentes. Desse modo, 05 Anais desses eventos se convertem em documento indispensavel para se compreender e analisar o panorama intelectual no pais. E, por- tanto, em suas publicagdes que se hi de resgatar as diferentes indaga- ges que dominaram acena intelectual nesses vinte anos e a evolugio do pensamento no perfodo. Eles nos revelam que os trabalhos apre- sentados indicam a pluralidade de orientagées que caracteriza hoje os estudos comparatistas. Em lugar de significar atomizagao ou instabili- dade da disciplina, tal variedade é um sintoma de vitalidade e um desa- fio permanente & definigdo do comparatismo, género, enquanto congragamento de intelectuais, é local privilegiado io da critica e da livre expresso. Tenho perguntado, desde o VIII Congresso da Associagio, realizado em Belo Horizonte, sobre a natureza do institucional como mediugii e a Fungo de associ- agdes como a Abralic no ambiente cultural do pats. Ou seja, a da sua utilidade, ja que ela serve para assegurar a regularidade de funciona- mento da literatura comparada como pritica critica e campo de ensino € de investigag0, Além disso, convém acentuar o papel da entidade como instrumento “legitimador” da pritica comparatista, isto é, como meio de obtencao do “reconhecimento institucional” da disciplina. Naquela ocasitio, ressultei também que as priticas que organi zam a instituigao literéria cooperam para estabelecer o reconhecimen- tocritico e conferem legitimidade aos produtos da instituigzio na me- dida em que os identificam e discutem os limites dos estudos € os pardmetros para sta avaliagéio. E portanto no dimbito dos congresso: das associagdes que se expressam as tendéncias tebrico-metodolégicas de cada momento na sirea, que se manifestam os interesses sobre te- mas € corpus como encontro de inquietagdes intclectuai restringem a uma literatura mas que as ultrapassam e relacionam. Sabe-se que a natureza “mediadora” das associagGes nao funci ona apenas em uma tinica direeao, Como espago de legitimago, uma » Carvathal, Tania Franco. [Org] Litera compara Ino Muna: Questies ¢ Me tdaLitratara Comparids fn ef Mundo: Cuestiones ¥ Meta, Pono Alege: L&-PM. ICLA, Fondagao Vitae, 997 Hs também wma edigio dos meso texto aegis 997, "Bloch de Beha, Lisa (Org) Comparative Literanae Issues sind Methods/La literature rempurée. Questions <1 Methates Mostevideo,ICLA, 2000) “Rama, Angel. to: Ange! Rama Literatura € Caltara Ane ricu Lin, (Plivio Aguiae & Sendra Guaedini 7. Vas soncelos, Orgs). a0 Paulo Edusp, 2001, 4-110. Sob a égide do eavaleirw errance B associagiio niio é somente a mediagiio entre as determinagées sociais que operam sobre a literatura, mas também o espaco no qual a litera- tura se conforma segundo a légica das mediagdes. Em outras pala- vras, significa dizer que esse espago s6 se compreende integralmente através da andlise de sua situagio em relagdo a outros campos sociais. esse contexto, as associagdes estabelecem vinculos dos pesquisado- resentte si, favorecendo a circulagdo cientifica e os intercambios, re- lacionam as instituigdes a que pertencem e se articulam ainda com outras associagdes similares que atuam na mesma esfera de aco. Suas atividades, portanto, nio se restringem ao dominio académico, mas politica, de natureza integradora e de interagdo social € demais reafirmar que a instituigao literdria 6 0 ‘campo no qual se realiza toda e qualquer experiéncia literdria e, por extensio, cultural. Abarca, nesse sentido, duas priticas inseparaveis que cooperam para criar uma tenso nos modos de produgiio da lite- ratura. De um lado, as priticas de natureza organizacional reinem todos os materiais da infra-estrutura técnica e de organizagio da ins tuigdio, de outro, as praticas criativas e imaginativas rednem os mate- riais do fendmeno estético que se transmitiramem milénios~os cédi- 0s, normas, géneros, temas, estilos narrativos e todas as formas artis- ticas que permitem a expresso do contetido litersrio. As associagdes, por sua vez, se estruturam de forma a aglutinar diversas orientagdes de estudos que adotam como recurso sistemitico 0 método compara- tivo, como o comprovam os estudos reunidos nos volumes Literatura Comparada no Mundo: Questées e Métodos? , publicado em 1997, ¢ Comparative Literature. Issues and Methods *, em 2000. ‘A informagao que obtemos sobre contextos que nos sio em geral desconhecidos comprova, mais uma vez, que a nogio do litersrio, em sua conformagio ¢ em sua difusdo, varia consideravelmente segundo o lugar e a cultura e, portanto, cabe &s associagdes responder a essa vat- riantes € facilitar o conhecimento do Outro, préximo ou distante, Em se tratando do contexio latino-americano € natural que no Ambito da fungZo politica que as associagSes exercem nos venha & meméria a reflexdo de Ange! Rama sobre as “elites culturais” no antol6gico ensaio “Dez problemas para o romancista latino-ameri- cano™. Ali o erftico uruguaio ocupa-se com a incorporago social do escritor feita através do que ele designa como “confrarias” ou grupos que o inserem na hist6ria cultural, chamando a atengdo para a importincia “do conjunto dos intelectuais como grupo social” 14 Revista Brain de Literatura Compara 5,206 Relacionada com a formagiio de piiblico, processo que rompe com 0 cfrculo restrito evitando que os préprios intelectuais sejam simultaneamente produtores e consumidores da criagio literdria, a constituigdo de movimentos associativos vai colaborar para que essa ampliagio se efetive. A reflexdo sobre a fungdo das associagdes encontra, entio, sus fundamentos menos no campo literirio do que nos da antropo- logia ou da sociologia, porque trata sobretudo de relages sociais que nos levam a indagar sobre o sentido de nossas priticas em tem- pos € contextos determinados. Dito de outro modo, trata-se de en- tender que as praticas literdrias e culturais t¢m na esfera social seu lugar especifico de exercicio e formas particulares de organizagiio, No discurso de abertura do Coléquio “A partir de Venise: Héritages, Passages, Horizons — Cinquante Ans de L’ AILC”, reali- zado na Universidade Ca’ Foscari daquela cidade, de 22 a 25 de setembro de 2005, procurei igualmente recuperar 0 sentido da exis- tGncia de associagdes literdrias em um mundo globalizado. O mo- mento era oportuno, pois comemorava-se o Jubileu da Associagao no mesmo local que acolhera o seu primeiro congresso em 1955. O confronto entre o programa do encontro inicial e 0 deste ano torna- va claro as modificagdes por que passou a literatura comparada nes- se periodo. Se antes havia uma concentrago de estudos no fimbito europeu, atualmente, 0 comparatismo atinge expressive ntimero de regides e sobretudo a programagio do evento procurou questionar as grandes linhas do comparatismo através de trés mesas-redondas institucionais. A primeira delas centrou-se na literatura comparada e suas transformagdes; a segunda enfatizou os estudos regionais interculturais; ea terceira, as perspectivas futuras da literatura com- parada, Paralelamente, houve sessdes temiticas que examinaram as relagGes entre literatura e cinema, questdes de género, literatura € tradugio, literatura € cigncia, identidade/alteridade, cultural/ transcultural, problemas de poética. Enfim, procurou-se analisar a literatura comparada em transigdo, seus métodos, aproximagdes € conceitos que contribuiram para a disciplina consolidar-se e evo- luir em estreita relagIo com outras formas de estudo e de compre- ensio do litersrio. Percebe-se entio que a importincia do Col6quio nio estava apenas no resgate de um lugar da meméria, o do primeiro congres- so, mas na possibilidade de retomar 0 passado para programar 0 Sob a égide do eave futuro. © Coléquio Veneza 2005 foi uma etapa significativa na construgao da meméria coletiva. Daf a necessidade de reexaminar a evolugio dos conceitos ¢ a articulagdo da literatura comparada com outras disciplinas literdrias ‘ou no. Um ponto central de nossa reflexo nos dias atuais €, segur mente, o da renovagiio dos métodos comparativos diante das modifi cages introduzidas nos estudos literdrios nos dltimos cingiienta anos, De um lado, as novas configuragdes de mundializagio levam a iferentes concepgdes de literatura universal, integrando os concei- tosde local, nacional, regional, marginal, institucional e mundial. De outro, as contribuigdes da teoria literaria, sobretudo o desenvolvi- mento dat nogio de texto e de sua produgiio, modificam nossa ma- neira de considerar 0 literdrio ¢ seus procedimentos de construgio. Aléin disso, as nogdes de difusdo, circulagdo e recepedo das literatu- ras nos permitem perceber de forma diferente os processos de apro- priagiio e de transformagiio que estiio na base desses movimentos. Se o reconhecimento do Outro se torna um dos fatos mais significa- tivos nas relagdes sociais e humanas, também os estudos da tradu- io e das priticas mediadoras ganham em importncia, pois facili- tam os conhecimentos € os intercimbios. A construgio de uma meméria compartilhada Se pensarmos na hist6ria de nossa disciplina, faz sublinhar que ela adquiriu um funcionamento sistemitico e tornou- se muito mais do que uma atividade académica discreta e por vezes marginal. Hoje, a literatura comparada tem seu espaco préprio no mundo universitério de varios pafses e agrada-nos pensar que as as- sociagées literdrias, como a Abralic e a AILC/ICLA, tiveram um papel fundamental para o seu reconhecimento institucional. O movi mento associativo, certamente, ajudou o funcionamento da literatu- ra comparada em sua condigio de pritica critica e de instrumento legitimador, 0 que facilitou a difusao da disciplina. Gragas a Abralic, a associagdes similares e 1 AILC/ICLA se favorecem os contatos, consolidam-se trabalhos em conjunto e efe- tuam-se trocas de conhecimento, constituindo-se uma comunidade que se organiza e que atua de acordo com aquilo a que a cada etapa ssociagdes literdrias, € uma ques- 16 Revista Brasirade Litera Compara 8.2006 {do que nos acompanha ao longo do tempo. Sempre cabe examinar como essas associagdes podem colaborar ao desenvolvimento do campo de estudos ¢ ao estabelecimento de politicas culturais que favoregam sua expansiio. Como podem elas servir ao progresso des se dominio cientifico? Cada vez, mais se impde o interesse em realizar uma espécie de “histéria comparativa das associugdes nacionais de literatura com- parada” na qual se examine, em profundidade, a efetiva contribuigao gue elas tém dado para o desenvolvimento da drea ¢ 0 estabelec mento de politicas culturais que favoregam a sua expansiio. Nao es- tarfamos longe do que propée Pierre Bourdicu para as disciplinas de éncias sociais em “La cause de la science. Comment des sciences sociales peut servir le progrés de ces sciences’ Igualmente, se torna relevante para a construgiio da meméria de nossa atuagio no tempo a constituigio de acervos, com docu- mentagio digitalizada, onde seja possivel recuperar os percursos associativos. No caso da Abralic, a historia da entidade jd esta sendo resguardada através do Nticleo de Mem ¢ Documer Abralic, constitufdo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, enquan- toa AILC/ICLA tem seus arquivos sediados na Stanford University, nos Estados Unidos. A natureza “errante” do comparatismo O XVII Congresso da AILC/ICLA, realizado em Hong Kong, em agosto de 2004, cujo tema foi “At the Edge: Borders, Fromtiers, Initiatives”, representou a segunda vez que a entidade se fez presen- te na Asia, sendo a primeira em Téquio em 1991. Nada melhor do que esta longa travessia fora dos locais habituais para que fosse evo- cado, na ceriménia de transigiio de Diretoria, simbolicamente, a per- sonagem de D. Quixote, de Miguel de Cervantes, da qual se feste} va o 4° centendrio*. Procurou-se celebrar a natureza “errante” do waleiro que concentra a idéia de uma vida em transformag’o com ‘uma associagao literéria que se tem construido nes destocamentos. A busca infatigavel do sonho e a luta pela sua realizagdo, caracterts tica do livro de Cervantes, justificam o seu emprego para ilustrar a ‘rente, o de assinalar as transfor- mages ocorridas no tempo e no espago, evoquei um outro cavale * Bourtiw, Pim In Arte ta recherche en sciences sahaes. 106-107, Pats as 1995, p3-10 * CARVALHAL, Tania F“Le AILEMTRC ICLA's Div e rant tiple de ity an ts Kineran Chaco ICLA BULLETIN, bighew ‘Young Universi ¥ XXH. 0.2 1824, 2004 Sob a dgide do eavalito errante v7 10, HI cavaliere inesistente, de {talo Calvino (1959), herdeiro do an- terior, com uma particularidade: a de nao existir. A partir dessa situ- real, Calvino constrsi um romance de cavalaria ao avesso. Nele a epopéia cede lugar 4 comédia burlesca. Os mitos de cavalaria se decompéem e as tropas do Imperador Carlos Magno se transfor- mam em uma Armata Brancaleone. E nesse aspecto que o relato de Calvino encontra o de Cervantes, que criou um mito contra os mitos e, como observou Augusto Meyer, “um corretor de mitos”. O proximo congresso da Associagdo Internacional de Literatu- ra Comparada ocorreri, em 2007, no Rio de Janeiro, com o tema geral “Beyond Binarisms: Discontinuities and Displacement i Comparative Literature”. Pela primeira vez, desloca-se a Associagiio paraa América do Sul, dando continuidade a sua errancia na valori io de outros espagos € no reconhecimento do trabalho comparatista que vem sendo realizado pela Abralic nos diltimos 20 anos Sera certamente a oportunidade de evocar um outro cavalei- ro, também aludido no romance de Calvino, o Riobaldo, de Grande Sertdo: Veredas. No texto italiano, a figura de Rambaldo remete & personagem de Jodo Guimardes Rosa no apenas no parentesco do nome, mas no fato de que todos os dois se apaixonam por um outro cavaleiro que somente ao final desvendari ser do sexo feminino. Do mesmo modo como as associagdes se articulam € favore- cem as aproximages, 0 comparatismo contrasta os textos e as per- sonagens em uma reflexio que permite a releitura dos mitos e das lendas, dos géneros e da idéia de romance até 0 ponto de se interro- gar sobre o que mudou no mundo e nas relagdes humanas para que uum cavaleiro passe de uma presenga que se impde a sua propria invisibilidade. Sob a égide do cavaleiro errante, em suas miltiplas variagdes, a literatura comparada vive a aventura dos tempos e enfrenta, na formulagio de perguntas, a sua permanente validagio.

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