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| 85 LITURGIA CRISTA NOTA INTRODUTORIA Reunir-se para adorar a0 Deus Trino ¢ espiritual ¢ historicamente uma necessidade do humano que professa a fé crista. Diante dessa realidade fez-se benéfico criar ritos e formas litdrgicas para a adoracéo nestes encontros a que denominamos cultos na maioria das vezes. ‘A Liturgia ctista passa a ser o modelo ¢ forma das celebracées religiosas neste particular. No contetido aqui apresentado foram esposadas as principais manciras da realizagio linirgica das Igrejas Crists no mundo ocidental. A disciplina é importante no contexto teolégico porque nao sé informa, produz conhecimento e prepara o obreiro para a pritica ministerial didtia. Bons Estudos! 1. LITURGIA: CONCEITO Liturgia vem do grego “itourgia’, que significava 0 servigo ptiblico prestado por um cidadéo, Cristianizada, a palavra passou a expressar 0 servigo espiritual a Deus e, mais especificamente, 0 contetido e a sequéncia das partes do culto cristio, caracterizado por diferentes graus da formalidade Por que os cristios antigos elaboraram liturgias padronizadas para o culto? Em primeiro lugar, pela grande reveréncia que tinham por essa atividade tio sublime ¢ clevada da igreja. ‘A palavra liturgia soa estranha aos ouvidos de muitos evangélicos atuais. Para eles, esse termo sugere um culto excessivamente formal, rigido e sem vida, mero tradicionalismo herdado do passado. Dai, a preferéncia em muitas igrejas por um estilo de adoragéo mais espontineo ¢ participative, sem formulas pré-estabelecidas. No entanto, essa mancira de cultuar a Deus ndo esté isenta de sérios problemas nos dias de hoje O culo contemporineo tem se desviado a tal ponto dos padrées biblicos ¢ histéricos que muitos crentes estio comegando a sentir a falta de uma liturgia mais reverente e disciplinada. A experiéncia crista ao longo dos sécuilos é rica de ensinamentos sobre esse tema polémico. 86 | CURSO MEDIO EM TEOLOGIA | KARPOS © culto cristio encontra fundamento em varios aspectos de natureza cristolégica. Nao tendo como objetivo um tratamento exaustivo da Cristologia, esta parte do trabalho se limitard a abordar os aspectos da pessoa de Jesus Cristo que sio diretamente ligados & existéncia e valor do culto cristéo.4” Em primciro lugar é necessario destacar as declaragées acerca da presenca de Jesus em meio aos seus seguidores. O evangelho de Mateus oferece trés ocorréncias importantes.“ A primeira encontra-se na recordacao da profecia de Isafas em Mt 1:23 que diz que “o chamario de Emanuel o que traduzido significa: Deus esta conosco”. A segunda esté em Me 18:20 que declara que “onde dois ou trés estiverem reunidos em meu nome, ali estou eu no meio deles”. Ea terceira em Mt 28:20 que diz “eis que estou convosco todos os dias, até a consumagio dos séculos’. ‘A natureza divina de Jesus Cristo garante a possibilidade da participagao dele na assembléia dos figis; depois da glorificagéo e do derramamento do Espitito Santo, 0 Deus trino se faz presente onde quer que os cristios se retinam para ve celebré-lo. A partir das afirmagées dos Evangelhos pode-se inferir uma promessa que manifesta a disponibilidade e assegura a presenga dele em meio 4 comunidade celebrante. Segundo Kirst,’ Jesus coloca-se livre © generosamente & disposigao da comunidade, para que cla o encontre onde € quando quiser, bastando que invoque o seu nome. E gragas a essa irrestrita ¢ graciosa disponibilidade que uma comunidade crista pode marcar um horrio e um lugar de culto, ¢ confiar que 0 Senhor comparecerd ao encontro, Sobre a dimensio cristolégica do culto cristéo é necessétio relatar a afirmag: 9 de Von Allmen® segundo o qual a adoragio da Igreja “tem uma dupla fundamentagio cristolégica: o culto terreno celebrado pela vida, morte ¢ glorificagéo do Cristo encarnado, ¢ o culto celeste que, na gloria, Ele cclebra até 0 dia do mundo vindouro”. Isso implica uma reflexio que leve em conta duas realidades: por um lado, a obra do Jesus histérico e sua atitude ciltica, ¢ por outro o Cristo da gléria, ss primicia ¢ eterno sumo-s 347 RICCIARDI, 2009, 21 348 RICCIARDI, 2009, 21 349 RICCIARDI, 2009, 21 350 351 352 RICCIARDI, 2009, 21 Moputo 9 | Liturcia Crista | 87 A vida de Jesus pode ser concebida como uma vida litirgica. Von Allmen postula que “o culto cristo tem por fundamento o “culto messianico” celebrado por Jesus no perfodo que medeia entre sua encarnagdo e ascensio”. Os atos terrenos podem ser interpretados como fazendo parte de uma grande liturgia que tem como marcos principais os eventos fundantes da vida de Jesus Crist peculiar atitude do Deus-homem em relagio ao Pai ¢ a0 seu préximo. Os atos de Jesus Cristo revelam a sua natureza.? Hoon afirma que a pessoa de Cristo é conhecida pela obra de Cristo. E 0 que Jesus Cristo faz é sobretudo uma liturgia - um servigo. Nesta liturgia, sempre encarnagio, vida, morte, ressurreigo. Cada um deles expressa uma ¢ simultaneamente, Deus serve 0 homem, 0 homem serve o homem, ¢ o homem serve a Deus." ‘A igreja que se retine para celebrar encontra seu fundamento na obra de Jesus Cristo, pois a sua vida litdrgica “é ao mesmo tempo humana e divina’ ‘A humanidade de Jesus Cristo é inspiradora ¢ oferece a assembleia celebrante um modelo da relagio com o divino com o humano que é a esséncia do préprio cristianismo.** O relacionamento que Jesus experimentou com Deus durante a sua vida possui a mesma intensidade do que vivenciou para com 0 seu préximo; poderia-se até dizer que os dois estio diretamente ligados, na medida que o relacionamento com o Pai s6 encontra sua realizagao ¢ expresso no ato amoroso para com 0 outro ser humano.” E necessdrio ressaltar que jé que “ qual assumimos um compromisso com Jesus ¢ seus valores’, nunca pode se negligenciar uma compreensio da humanidade de Jesus Cristo em sua expressio no encontro do outro como modelo de préxis, tanto litirgica quanto vivencial.!** © evento cabal da obra de Cristo estende stias consequéncias para a culto é um processo continuo pelo cternidade c investe todos aqueles que se retinem para a adoragio do Deus trino. Cullman’ afirma que todo culto posterior centra-se neste acontecimento : a vida humana vivida de uma vez por todas por este sumo sacerdote, coroada de uma vez por todas pela morte expiat6ria que dé a esta vida sua plenitude e sua perfeigio. histéric 353 354 RDI, 2009, 30 apud HOON, 355 RICCIARDI, 2008, 32 356 RICCIARDI, 2008, 31 357 RICCIARDI, 2008, 22, 358 RICCIARDI, 2009, 22 859 RICCIARDI, 2009, 23 apud CULLMAN 88 | CURSO MEDIO EM TEOLOGIA | KARPOS A possibilidade que a Igreja tem de se reunir em comunidade para celebrar, reside na realidade celeste do Cristo que “assume para si a direcio do culto oferecido por toda a criagio.”® Neste mesmo assunto Allmen* também afirma que “importa ir mais a fundo e pereeber na adoragio da Igreja um reflexo da oferenda celestial perpétua da qual Jesus Cristo € 0 eterno e soberano sumo-sacerdote” Além disso a adoragio da igreja é possibilitada pelo fato “o sacrificio de Jesus tira os pecados e assegura o aperfeigoamento dos demais ministros para que oferecam um culto definitive a Deus’: todos os membros do corpo de Cristo sao clevados & dignidade de ministros ¢ sacerdotes pela obra cumprida em Jesus Cristo.5 1.1. Dimensao Salvificoescatolégica do culto cristao A segunda dimensio teolégica que fornece elementos para 0 culto cristio Ea salvificoescatolégica. Os dois aspectos sio tratados no mesmo tépico, pois “carismaticamente vivificado, 0 corpo de Cristo se entende como uma antecipagio € como o inicio da nova criagéo de todas as coisas” 2° © culto representa tanto a lembranga da salvago em Jesus Cristo, que a0 mesmo tempo projeta a prépria esperanga para o encontro definitivo da consumagio dos tempos, quanto caracteriza-se como instrumento da proclamacio perante 0 mundo desta mensagem. Consequentemente o presente pardgrafo abordard esta dimensio teolégica em relagio & Igreja, ao futuro ¢ ao antincio para o mundo. A comunidade que se retine para 0 culto tem como pressuposto a mesma £€ no evento salvifico de Cristo, que os torna iguais perante Deus ¢ os possibilita A adoragao. Allmen recupera 0 conceito da Igteja como Esposa de Cristo ao defini-la como comunidade nupcial: segundo dois pdlos esta € por um lado motivada pela fé no Salvador e, por outro, pela esperanga da sua vinda. Isso ¢ motivo para continuar a presente reflexao no horizonte escatolégico. Ao proclamar a salva¢io em Jesus Cristo, a comunidade ressalta uma dupla realidade: por um lado existe a lembranga do ato histérico cabal da morte € ressurreigao de Jesus; por outro, permanece a expectativa da sua volta. Desta 360 IDEM, 361 RICCIARDI, 362 RICCIARD! 363 RICCIARD! 364 RICCIARD! 2009, 23 apud ALLMEN, 2008, 23 2009, 23, 2009, 23, Moputo 9 | Liturcia Crista | 89 forma, “a adoragio da Igreja aponta para a consumagio futura que est sendo preparada no paraiso com Deus” , pois a Igteja é “a comunidade daqueles que em tario da ressurreigio de Cristo esperam o reino de Deus e sio determinados em sua vida por esta esperanga’ 2° Esta caracteristica esta presente desde as comunidades primitivas como denota Bosch ao descrever 0 trabalho missionério de Paulo, afirmando que “é justamente reunindo-se para celebrar liturgicamente a vit6ria jé alcangada e para orar para a vinda do Senhor, que estas pequenas ¢ frégeis comunidades paulinas se tornam conscientes da tensio entre o j4 € o ainda nao”. E pela agio do Espirito que é possivel esta dupla articulagio, que atua como uma ponte entre passado-presente-futuro; nas palavras de Moltmann** é a “pneumatologia que estabelece a unio entre a Cristologia e a Escatologia. Nele, (no Espirito) origem ¢ acabamento se encontram presente”. ‘Ao reunit-se como conjunto celebrante, as comunidades cristas so a0 mesmo tempo objeto ¢ agente da salvagao: objeto enquanto ja experimentaram a salvagio, que, como desctito acima, é razio da celebragao; agente, pelo fato que ao reunir-se como congregacéo dos salvos, definem a prépria identidade perante o mundo se tornam portadoras da mensagem evangélica*” 1.2. Dimens4o Antropolégica do Culto Cristao Parte-se do pressuposto que a comunidade que se retine para celebrar a Deus 0 faz com sua plena humanidade; entende-se aqui que caracteristica esta nao é problematica, mas é o propésito de Deus desde a criagao. A luz de Jesus Cristo, da afirmagao de ser humano, ser4 necessétia uma reavaliagio da concepgio de homem no seu relacionamento com Deus. As implicagées desta nova abordagem, que melhor seria definida como uma mudanga de paradigma, sio fruto da discussio do século XX e continuam objeto de pesquisa.’” A obra de Jesus Cristo, entre outras peculiaridades, apresentou a Histéria © homem. Na sua propria vida, comum, simples, mas ao mesmo tempo tinica ¢ extraordindtia revelou aquilo que era o plano de Deus para a humanidade. Jesus “realiza em si mesmo a determinagio inicial do homem para a comunhio com Deus. Ele, portanto, ¢ 0 homem novo pela maneira especial como se apresentou 365 IDEM 4366 RICCIARDI, 2009, 28 apud BOSCH. 367 RICCIARDI, 2009, 23, 368 RICCIARDI, 2009, 24 apd MOLTMAND 369 RICCIARDI, 2008, 24, 370 RICCIARDI, 2008, 25, 90 | CURSO MEDIO EM TEOLOGIA | KARPOS enquanto homem comum’. Nio um super-homem, com caracteristicas angelicais ¢ supra-naturais, mas uma pessoa que no set agit apresentou a possibilidade do relacionamento com Deus e com seu préximo. “Na pessoa de Jesus Cristo viu-se o verdadeiro ser humano, encarnado ¢ tornado possibilidade para todos os outros homens”. A conexio que isso tem com a dimensio antropolégica do culto é que no fato do novo ser humano estar presente e real em Jesus Cristo - por forga do seu significado, poder ¢ agio dessa pessoa como “cabega” ¢ “Senhor” - também esti presente ¢ real para o seu “corpo”, a igteja e, por intermédio do servigo de sua igreja, para o mundo inteito A prépria condigao de ser do culto deve-se & realidade do novo ser humano E esta nova humanidade que se retine para oferecer culto 0 Deus Salvador que a restaurou para a sua adoragao. Esta nova condigao, uma re-criagdo, a recapitulacao segundo o novo Adio é obra do préprio Deus que neste ato a “reveste de toda a gloria de sua propria natureza divina, com seu poder, dignidade, justiga ¢ santidade” Ainda que colocado nestes termos, seria uma presungio ¢ uma cnorme desconsideragio achar que a comunidade atual expresse estas qualidades em plenitude; existe uma expectativa escatoldgica na qual o presente estado de humanidade sera exaltado, assim como aconteceu com Jesus Cristo, para revestir incorruptibilidade e imortalidade (1 Corintios 15:45-53) Nas palavras de Pannenberg’” “aquilo, porém, que sé futuramente se revelaré nos cristos como a nova vida da ressurreicéo jé age presentemente neles pelo espirito da fé, da ressurreigio e do amor”; esperanga de uma salvagio no além pode (e deve) dar contetido e sentido & vida terrestre. Para o presente estudo 0 que ¢ interessante realcar é que a humanidade, entendida nas suas formas de corporeidade e finitude, € uma dadiva do Criador. O ser humano como um todo, integral, é criagao de Deus, sua imagem. Nesse viés, ao tratar do conceito de imago Dei. Moltmann®” afirma que a imagem de Deus designa primeiramente um relacionamento de Deus com o homem e somente depois um relacionamento do homem com Deus. Deus entra num relacionamento com 0 homem tal que este se torna a stia imagem ea sua honra na tera. Partindo do relacionamento de Deus com os homens, se concordaré que a imago Dei nao consiste nesta ou naquela propriedade, que diferenciam o homem ¥7 DEM 372 RICCIARDI, 2009, 26 apud ANNENBERG. 373 RICCIARDI, 2009, 26 apud MOLTMANN Moputo 9 | LiturGia Crista | 91 das outras criaturas, mas na sua inteira existéncia. ‘A mudanga de perspectiva é tanta que a prépria possibilidade de ter relacio com Deus é reavaliada; no relacionamento de Deus com o homem, aquele é para este Criador ¢, portanto garante esta unio. O pecado, ainda que possa atrapalhar, néo tem poder de destruir este vinculo, pois s6 Deus tem autoridade para suprimir e suspender. A dimensio antropolégica, exposta aqui nestes termos, apresenta a sua importincia no fato de que a comunidade cristé que se retine tem como pressuposto a possibilidade de comunhio com Deus; isso ¢ possivel pois quem cré no Cristo, se torna imagem do Cristo, do Deus que se fez homem, do ‘Verbo que se tornou carne, portanto também o sett corpo se torna templo do Espirito Santo. Ao longo do processo de redengio ¢ aperfeigoamento, 0 homem se torna imago Dei ‘am in corpore quam in anima’, E a partir desta nova concepgio antropolégica que ser4 possivel ressaltar € incorporar & liturgia do culto cristéo elementos expressivos da humanidade, derivantes da cultura e do contexto onde o ser humano se encontra. Seria dilacerante conceber um culto no qual se pega ao fiis para deixar de ser humano para ser tornar algo diferente para adorar. A luz de quanto exposto até aqui, manifestou-se como o Evangelho nio possui cardter normativo nas questées livdrgicas, mas permite uma rica gama de possibilidades ¢ diretrizes (ou dimensées como até aqui conceituadas) que norteiam a pratica da comunidade. 1.3. O Culto Cristéo ¢ a Igreja antiga ¢ medieval Os primeiros cristéos eram judeus ¢ por isso 0 culto da igreja primitiva inspirou-se na liturgia das sinagogas. Nestas, apés uma invocacio inicial, eram recitados 0 “Shema” (credo baseado em Dt 6.4-9 e outros textos) e 0 “Téphilah” (conjunto de oragées) A seguit, cram lidas passagens do Pentateuco ¢ dos Profetas, seguindo-se uma exposigéo do texto. Também eram cantados salmos, especialmente 0 “Hallel” (113-118). Seguindo esse modelo, o culto cristéo original foi extremamente simples, constando de oragées, canticos, leituras do Antigo Testamento ¢ das “memérias dos apéstolos’, exortagdes pelo dirigente, coletas em prol dos carentes e celebragio dos sacramentos, em especial a Ceia do Senhor, ou Eucaristia, © Novo Testamento néo apresenta uma descrigéo detalhada do culto (At 2.42-47), mas os estudiosos acreditam ter identificado materiais livdirgicos 92 | CURSO MEDIO EM TEOLOGIA | KARPOS em diversas passagens. Um valioso relato do culto cristio no segundo século é encontrado na “I Apologia’, de Justino Martir (c. 150). Nessa época, ja haviam surgido fSrmulas para certos elementos da liturgia, como as belas oragées eucaristicas existentes em um antigo manual eclesidstico -- a “Didaqué”. Com o passar do tempo, a liturgia foi se tornando cada vez mais padronizada, sendo usada com pequenas variagdes em todas as igrejas. O culto tinha duas partes distintas: a Liturgia da Palavra, aberta a todos, ¢ a Liturgia do Cenaculo, somente para os batizados, Na Idade Média, 0 culto cristéo tornou-se ritualistico e aparatoso, perdendo a simplicidade original. Surgiram préticas desconhecidas dos primeiros cristios, como 0 uso de incenso, velas, oragées pelos mortos ¢ invocacio dos santos ¢ de Maria, A lingua utilizada era o latim ¢ o celebrante dava as costas para © povo, 0 que dificultava a comunicacéo ¢ a compreensio do culto, © impacto sensorial ¢ emocional da missa era profundo, sendo intensificado pela rica arquitetura ¢ decoragio dos templos. No entanto, havia pouca instrugio biblica ¢ limitada cdificacao espiritual. 1.4. Atuagio dos reformadores As novas convicsses teolégicas introduzidas pela Reforma Protestante resultaram em uma profunda reformulagio do culto ¢ sua respectiva liturgia. O principio da “sola Scriptura’ fez com que a Biblia passasse a ocupar um lugar muito mais destacado do que antes. O novo cntendimento da salvagio pela graca mediantea fé foi acompanhado de uma reinterpretagao do sacramento da Ceia, visto nao mais como um sacrificio oferecido pela igreja, mas como uma dadiva de Cristo ao seu povo. Por fim, a énfase no “sacerdécio de todos os crentes” implicou maior participagio dos figis no culto a Deus. Agora, os pontos focais da liturgia eram o ptilpito ¢ a mesa da comunhio. Foi interessante ¢ até mesmo surpreendente a atitude dos reformadores com relagio & antiga tradigio litdirgica da igreja. Levando-se cm conta as grandes rupturas que eles promoveram em relagio & igreja medieval, seria de se esperar que também descartassem por completo a liturgia tradicional. Todavia, nio foi 0 que fizeram. Os reformadores sabiam que eram herdeiros de quinze séculos de histéria crista, Essa histéria nao podia ser simplesmente esquecida como se nao tivesse ocorrido. Por isso, cles reconsideraram somente aquilo que entendiam estar em Moputo 9 | Lirurcia Crista | 93 conflito com as Escrituras, preservando tudo o que era bom e vilido na heranca do pasado. Martinho Lutero inicialmente apenas revisou a missa latina, nao desejando “abolir completamente © servigo livirgico de Deus", ¢ sim purificé-lo dos (1526), na lingua do povo, para ser utilizada principalmente em regides rurais. Ulrico Zuinglio (Zurique), Martin Butzer (Estrasburgo) ¢ Jodo Calvino (Genebra) também escreveram ricas liturgias para suas respectivas igrejas, nas quais a Ceia do Senhor ocupava um lugar proeminente. Sua énfase no canto congregacional resultou em diversos saltérios — acréscimos indevidos. Mais tarde, claborou a “Missa alem: colegées de salmos metrificados ¢ musicados. Na liturgia de Genebra, Calvino buscou 0 equilibrio entre oracées extemporaneas ¢ fSrmulas litirgicas. 1.5. Reflexao sobre o culto Por culto entende-se 0 ato piblico de adoracio a Deus realizado pela igreja. Como tal, tem um valor incalculavel para os cristios, sendo a manifestagio mais visivel e concreta da comunidade crista O culto a Deus tinha de ser harmonioso ¢ ordeito, ¢ a liturgia servia a esses dois propésitos, Nao se podia permitir que 0 culto a Deus fosse improvisado 20 bel-prazer dos dirigentes, Outro motivo foi a preocupasio com a unidade da igreja. De que maneira a igreja poderia ter um senso de coesio se cada comunidade crista cultuasse a Deus de um modo diferente? O fato de que todas as igrejas locais seguiam essencialmente os mesmos padrées de culto contribusfa para esse valioso senso de comunhio ¢ fraternidade. Hoje, muitos evangélicos abandonaram por completo formas lieirgicas de culto, Talver isso fosse ineviravel, por causa das transformagées do protestantismo e da sociedade. ‘Todavia, chegou-se a uma situagio em que, em nome da liberdade e da espontaneidade, 0 culto se desvirtuou em miuitas igrejas, sendo marcado pela irreveréncia, superficialidade ¢ preocupagio prioritéria com as necessidades humanas, ¢ néo com a gléria de Deus. Com isso, muitos crentes estéo buscando igrejas que valorizam os padrées biblicos do culto e seguem a recomendagio paulina a igreja de Corinto: “Fido, porém, seja feito com decéncia e ordem” (1Co 14.40). Assim, os principios propostos pelos reformadores suigos no que diz respeito a0 culto: a) precedente biblico: sendo 0 culto uma atividade téo importante, Deus 94 | CURSO MEDIO EM TEOLOGIA | KARPOS nao deixaria de dar instrugées precisas sobre ele em sua Palavra; nada deve ser feito no servigo divino que nio tenha fundamento explicito nas Escrituras; b) simplicidade: quanto mais complicado e espetaculoso for o culto, mais facilmente a atensao das pessoas sera desviada de Deus para outros interessess ) reveréncia: é preciso cultivar atitudes de respeito, atencao ¢ meditagio diante de Deus; d) teocentricidade: 0s objetivos principais do culto sio a gléria de Deus e a edificagio dos figis, nessa ordem. Que Deus nos conceda sabedoria ¢ discernimento a fim de ordenarmos o culto a ele atentando para as Escrituras ¢ para os bons exemplos da histéria crista 2. CULTO: CONCEITO © culo ¢ um dos principais clementos litirgicos da fé evangélica. Mas a0 longo do tempo, em virtude da pecaminosidade humana, ¢ da busca pela satisfagao propria, esse tem sofrido uma série de deturpacées. Inicialmente, definiremos biblico-teologicamente o que significa cultuas, em seguida, a fim de evitar o antropocentrismo no culto, destacaremos sett caréter teocéntrico, ¢ a0 final, apontaremos os aspectos do genuino culto pentecostal. O termo culto, tanto no hebraico quanto no grego, dé a ideia de servico, por isso, na lingua inglesa, quando alguém vai a0 culto, usa 0 termo “service” Na lingua portuguesa, a ideia de culto, infelizmente, costuma ser associada a0 simples lato de frequentare asistir a uma celebrasio religiosa, costumeiramente evangélica. Os dicionérios definem “culo” como um “conjunto das praticas religiosas usadas para prestar homenagem ao divino; liturgia” No hebraico, as palavras para culto séo as seguint 1) Sharath que significa, a principio, “frequenta:” algum lugar enquanto servo ou adorador ¢ ocorte trés vezes em Ex 35.19; 39.1; 39.41; 2) Tsabha pode ser encontrada sete vezes, ¢ é usada em conexio com 0s servigos executados no tabernéculo, seu sentido primério aponta para ajuntamento para guerrear, dentre as referéncias biblicas, destacamos: Nm 4.30, 35, 39, 43, 8.24; 3) Yadh que significa literalmente “abrir a mio, indic com poder”, se encontra em I Cr 6.31 ¢ 29.5; 4) abhidhah que significa negécio ¢ trabalho: Ed 6.18; ¢ 5) polchan, da raiz de adorar, ministrar: Ed 7.19. diregio, ministrar Moputo 9 | Liruria Crista | 95 No Novo Testamento, os termos gregos para cultuar sio os seguintes: 1) douleuo, que significa, literalmente, ser escravo, estar atado a um servigo: G1 4.8; EF 6.7; Tm 6.2); 2) latrcia, cujo sentido € o de render uma homenagem religiosa, manejar o servigo para Deus, ¢ adorar: Jo 16.2; Rm 9.4; 12.1 e servigo espiritual: Hb 9.1,6; ¢ 3) Icitourgia que significa desempenhar fungées religiosas na adoragio, ministracio, dessa palavra vem o termo portugués liturgia, pode ser encontrada em Ep 2.17,30. A palavra “culta’, comumente utilizada em portugués, veio do latim, cujo sentido também é 0 de “adoragio ou homenagem que se presta a uma divindade’ Na acepsio crist4, o culto é uma disposi¢ao humana integral para adorar 0 Deus Todo-Poderoso, Criador do Céu e da Terra, que se revelou em Jesus Cristo, © Verbo que se fez carne. 2.1. O Culto ao Senhor O culto cristéo deve ser dirigido ao Senhor, somente Ele é digno de toda honra, gléria ¢ louvor (SI 29.2; 96.9). Em virtude da natureza pecaminosa do ser humano, este tem uma tendéncia & egolatria, isto é a adoragio de si mesmo. A sociedade moderna escolheu os seus deuses, ¢ a eles presta 0 seu culto, dentre os quais destacamos: 0 dinheiro, 0 corpo ¢ as celebridades. Mamom tem sido amplamente adorado, o préprio Jesus destacou o perigo do culto ao dinheiro, comumente conhecido entre nés por Mercado (Le. 16.13). A cultura do corpo, como consequéncia do materialismo cientifico, tem enfatizado unicamente 0 bem-cstar fisico, em detrimento do espiritual. Evidentemente, 0 corpo é templo ¢ morada do Espirito Santo (I Co 6.19), mas nao pode ser objeto de culto, mesmo 0 conceito de satide precisa estender-se a dimensio espiritual, pois o exercicio fisico tem algum proveito, mas a piedade serve muito mais (I Tm 4.8). Ao invés de adorar a Deus, muitos atualmente clegeram seus icones para se debrusarem diante deles cult as celebridades também é praticado no contexto evangélico, ha quem adore mais aos adoradores do que a Deus, aos pregadores da Palavra que © Deus da Palavra. Influenciadas pela modernidade, muitas igrejas valorizam demasiadamente a aparéncia do culto, ao invés de centrar-se no principal, a adoragio a Deus (S1 95.6). Em Jo 4.23 ¢ 24, ao responder a indagagao da mulher samaritana sobre o lugar certo de cultuas, Jesus afirma que é Deus quem busca os adoradores, ¢ que somente esto aptos & adoragio os que o fazem em espirito ¢ em verdade, porque 96 | CURSO MEDIO EM TEOLOGIA | KARPOS Deus é Espirito, por isso, deve ser adorado como tal, em conformidade com a revelacio de Cristo, que é a Verdade (Jo 14.6). Portanto, mais importante do que o lugar, é a disposigao espiritual, a reveréncia, redengéo ¢ amor a Deus, Sujeito e Objeto da adoragio. Muitos cultos supostamente evangélicos atualmente servem apenas para cumprir um mero diversos, exceto pelo principal: a adoragio a0 Pai em espirito e verdade, conforme Jesus ensinou. ritual, as pessoas se retinem pelos motivos mai 3. A PRATICA DA ADORACAO NO CONTEXTO BIBLICO Deus mandou que seu povo, sob a Antiga Alianga, cumprisse ao pé da letra todas as stias instrucées a respeito da adoragio. Ele advertitt Mois a sobre a construgio do Taberndculo. “Tinha de ser “segundo a tudo 0 que eu te mostrar para modelo do taberndculo, ¢ ‘para modelo de todos 0; seus méveis, asim mesmo o fareis” (Ex 25:9). Os detalhes que Deus comunicou ao chefe da nagio foram dados para que o povo nio se desviasse em nenhum ponto da vontade estipulada por Deus. O temor de Deus arraigado no coragio do piedoso israclita, néo permitia que cle desobedecesse conscientemente qualquer regrinha que regulamentava o ritual dos cultos (Dt 6:1,2)..”* Foi Deus quem planejou a participagio dos sacerdotes ¢ levitas no culto que Ele mandou que oferecessem (Nm 8:1 1 Cr. 9:33 23:5 II Cr. 29:25, ete.) ‘Apés a leitura do Antigo Testamento, estranhamos o fato de nao descobrirmos no Novo Testamento regras explicitas para nos informar que tipo de culto Deus quer. Numerosas pesquisas, feitas com o intuito de descobrir as diretrizes que devem reger a forma de adoracéo realmente neotestamentiria, criam pouca conviesio além daquela formada na cabeca do estudioso. Ele descobre, geralmente, © que procura. ‘Tudo isto poderia levar-nos a desvalorizar a pratica nos cultos da igreja primitiva. Mesmo assim, cremos que é vilido examinar as indicagées sobre as formas de adoragio nos esctitos dos apdstolos.2”6 Apés 0 derramamento do Espirito Santo no dia de Pentecoste, a igreja de Jerusalém ‘perseverava na doutrina dos apéstolos ¢ na comunhdo, no partir do pao ¢ nas oragées” (At 2:42). Este verso nos traz um breve esboco dos componentes do culto primitivo."7 As praticas sob a tutela dos apéstolos fornecem-nos um fundamento geral, 374 SCHELLING, 2020, sp. 375 SCHELLING, 2010, 53. 376 SCHELLING, 2010, 5. 377 SCHELLING, 2010, sp.

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