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Quarenta e DoiS Mais Vinte e Um e outras histérias AS Trés Fortunas do Lobo Feroz Rru-rru-rru... Rru-rru-ru... Assim ressona o lobo. Fosse de um raio de luz, que se atreveu pela caverna dentro, ou de um fio de aranha, que lhe comichou o nariz, enfim, fosse do que fosse, © lobo feroz acordou, finalmente. Tinha dormido, de seguida, quarenta e oito horas, imaginem! Estava cansado de tanto dormir. Espreguicou-se 0 lobo. Esticou bem a espinha, ericou os pélos do bigode, rangeu os dentes e trincou em seco, como que a experimentar a rijeza da dentigio. Depois, afiou as unhas numa pedra de amolar, deu dois grandes uivos e saiu para o ar livre. Estava um dia lindo, embora um pouco fresco, Entéo o lobo espirrou: ~ Atchim! Mal refeito ainda do primeiro espirro, outro se seguiu: ~ Atchim! E mais outro: ~ Atchim! O lobo, perfilado a saida do covil, ficou A espera de mais espirros, o que seria sinal de constipacao. Nao vieram os espirros e o lobo riu-se. Terrivel riso 0 do lobo. ~ “Trés espirros ao levantar sao trés fortunas a ganhar”, costumava dizer o meu avd. Vamos a elas! Eo lobo trotou, montanha abaixo, de focinho no ar, fariscando a sorte. Ia.a passar 4 sombra de um onteiro, quando ouviu carneiros a barregarem, que éa voz dos carneiros quando esta zangados. Que seria, que nao seria... Foi ver. “Ou me engano muito ou a primeira fortuna anda por aqui aos saltos” pensava o lobo, com a agua a erescer-Ihe na boca que nem a fonte de Canegas, Realmente, no estava mé a sorte para o labo. Dois carneiros roligos guerreavam-se, lascando os chifres e berrando raivas antigas. ~ Entao que ¢ lA isso? ~ quis saber 0 lobo, pondo-se no meio deles. - 1 Nestas terras jd ndo ha respeito? Pelos vistos, tenho de castigar-vos por esta desordem, Os carneiros sabiam bem qual era o castigo do lobo... E como lhe nao podiam fugir, responderam: —O senhor lobo, antes de nos dar a sentenca, tire-nos de uma divida que nos pés nesta zanga. Ja agora, queriamos saber quem tem raz4o. = Do que se trata? - perguntou 0 lobo. ~ Negécio de pastagens ~ respondeu um deles. ~ Deste lado, eu digo que é propriedade do meu dono, e daquele lado, do dono do meu camarada. Ora, como parece que estes marcos, que dividem as duas propriedades, nao esto certos, nds ndo chegdmos a acordo e demos em medir forcas. © lobo pés-se a olhar com muita atengao para os marcos, a ver se estavam na mesma linha. Depois foi medir passo a passo, fazendo contas de cabega. Quando ia a voltar-se para dizer de sua justica, levou duas valentes marradas no traseiro que o fizeram ir de cabeca f a um dos calhaus. Atordoou-se o lobo e fugiram os carneiros. ao fim da histéria chego - comentou 0 lobo, ainda de olhos ~ Singular fortuna esta! Se as outras forem da mesma forga, nem revolvidos da cabecada. / Continuando o seu caminho, foi ter a um vale onde pastava uma égua velha e magra com a filha, uma eguazinha de muito born parecer. “Serd esta a tal fortuna?”, perguntou o lobo de si para si. ~ “Uma ¢ velha, outra é nova. Se a uma jé faltam forcas, a outra ainda as nao tem... Mas, em todo 0 caso, toda a cautela ¢ pouca” E foi-se chegando para a égua velha. ~ Olé, amiga! ~ cumprimentou o lobo. - ‘Tu desculpa, mas quando um lobo tem fome, nao ha nada que lhe resista. Percebes? ‘A égua percebia. ‘Nao me importo de o servir, senhor lobo, mas tenho a carne tio dura e tio pouca... Se me fizesse um favor, dava-lhe antes a minha filha de presente. Sempre é mais tenrinha... ~ Seja, entio ~ concordou o lobo. ~ E que favor me pedes? = Coisa pouca, senhor lobo. Um espinho cravado numa das minhas patas traseiras mal me deixa andar. Era um alivio para mim se o senhor lobo conseguisse arrancé-lo, ‘A égua mostrou 0 casco ¢ o lobo preparou-se para a operagao. .. Depois, nao viti mais nada. Uma parelha de coices tinha-o deitado ao chio, de barriga pera o ar. a Acordou, passado tempo, muito zonzo ainda. Da égua ¢ da eguazinha, nem rasto nem cheiro... — Excelente fortuna, nao haja diivida ~ suspirou o lobo. ~ Pudesse eu pedir contas ao meu avo... Mordido de dores, dores na cabega ¢ pelo corpo todo, © lobo prosseguiu a caminhada. Junto a um lameiro, encontrou uma porca com os seus bacorinhos. “Estes nao escapam’, disse, de si para si, o lobo. E, em voz alta: — Olha lé, amiguinha! Importas-te de me oferecer os teus leit6ezinhos para o meu almogo? A mae porca importava-se e muito, mas que hayia ela de fazer? ~ Ai, senhor lobo ~ lamentava-se ela - 0 que me custa é vé-los irem-se sem serem batizados ~ E quem os hé de batizar, a uma hora destas? ~ preocupou-se 0 lobo feroz. = Talvez.o senhor lobo pudesse... ~ Bu? Nao sou cura, nao sou sacristdo nem entendo dessa fungi. Mas a mae porca insistia: ~ Antes mal batizados do que por batizaz. E 0 senhor lobo, com um bocadinho de boa vontade, fazia-me esse jeito, ‘Temos de ser uns para os outros... ~ Entao, seja. Como nao quero dar-te desgostos, tratemos disso e depressa ~ transigiu o lobo. ~ E que estou com uma fome... — Que bom coragio o seu, senhor lobo! Suba entao para a borda daquele pogo, que eu fico em baixo para lhos ir dando, um por um. O senhor lobo mergulha-os e, depois come os que tiver na vontade. © lobo subiu para a borda do pogo. Assim que Id 0 viu, a porca deu-the uma tremenda focinhada que o atirou de cabega para dentro do abismo. De lé do fundo nunca mais sairia se nio estivesse no pogo um balde preso a ‘uma corda, por onde, gemendo, conseguiu trepar. Ele a chegar com a cabeca ao rebordo do pogo e uma vaca a passar. © lobo hesitou: “Atiro-me a ela? Nao me atiro? Em que fico?” Nao se atirou. Sacudindo a agua e lambendo as nédoas negras das cagadas perdidas, o lobo feroz, o lobo terrivel e carniceiro, resmungou: ~ ‘Trés fortunas chegam para um dia, Quem te manda a ti, lobo, ser marcador de terras, curandeiro de bestas e batizador de porcos? Mais te valia nao teres acordado. Eo lobo afastou-se de vez, virando as costas a esta histéria que, como estd a vista, acaba aqui.

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