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UNIVERSIDADE DE COIMBRA Boletim da Faculdade de Direito VOL. LXXIV COIMBRA 1998 Doutrina ENTRE O «LEGISLADOR», A «SOCIEDADE» E O JUIZ» OU ENTRE «SISTEMA», FUNCAO» E «PROBLEMA» — OS MODELOS ACTUALMENTE ALTERNATIVOS DA REALIZAGAO JURISDICIONAL DO DIREITO 1. a) O poder judicial, a fisngio judicial ow, sobretude € melhor, a jurisdigao tornaram-se um tema e um problema centrais no universo jueidico dos nossos dias. E nio certamente apenas no Ambito estrito desse universo, pois que 0 seu relevo se projecta com uma importincia aguda € a muitas dimens6es no mundo global da pritica comunitdria, E vocagio do judicium exorcisar 0 poder s6 como poder € mais ainda a forga atbitriria impondo razdes de validade e criticas & acgio na inter- -2¢¢40, © 0 nosto tempo, que tem feito experiéncias cruéis, ¢ regressi- vas, desse poder e dessa forga, sente profindo e urgente 0 apelo & razio contra a ativica irracionalidade, Depois, se 0 nosso tempo é também tempo de mutagdes em todos os domfnios, nio sendo as do diteito, no sett sentido ¢ problematico relevo, 2s menos extensas, nem de menor importincia, néo ha que esttanhar, por tudo isto, que a recompreensio — e valorizagio, diga-se desde ji — do poder jurisdicional, da juris digio € do papel do juiz, avulte no nécleo da ordem do dia e se diga, justificadamente, que ao juiz hi que «dar-se-Ihe o poder 0 papel que ‘exige a nossa modernidade> (LENOBLE). Mas sob que pressupostos, em atengio a que dimensdes, com que sentido e com que consequéncias? E ao que gostaria de responder nesta minha exposig¢io, mas a vastidio da problemitica ndo me permitira sendo propor algumas coordenadas, alguns t6picos de reflexdo, E comecemos por reconhecer que a situagio se nos oferece, como Jf geralmente se observa, em termos paradoxais, na sua aparente con- cradigio. Por um lado, alarga-se 0 dominio € sobe a importincia da intervengio institucionalizada, ou pretendida, das instincias judiciais nna sua fungio interpretativo-integradora — tenham-se presentes, desde 2 bourenn logo, a jurisdigao dos tribunais constitucionais internos ¢, para nbs europeus, do Tribunal de Justiga da Unio Europeia, jurisdicio a que, embora constitucionalmente vinculada, compete determinar 0 con- tetido decisivo dessa mesma vinculagio ¢ dos seus desenvolvimentos integrantes; por outro lado, dé-se conta de uma inegivel, e de gravi- dade no minimizavel, insatisfagio, inclusive de uma critica generalizada (hi quem fale mesmo de eressentimento») de que a fungio judicial se tornou objecto. Nem é dificil dizer porqué: revelar-se-ia ela normati- vamente inadequada (nas respostas ou solugdes pedidas por novas questdes a que € chamada, respostas ou solugdes que ela verdadei- ramente nio daria) ¢ nio menos institucionalmente ineficaz (na sua estrutural funcionalidade e na propria capacidade de resposta, na sua judicativa capacidade decisoria ou sequer de absorcio dos contlitos). Dai os «circuitos de derivacio» que progressivamente se formam i margem e em recusa da jurisdicio. E como se proprio apelo e im- portincia atribuidos a jurisdig30 em geral viesse a revelar na jurisdi¢io existente a falta da jurisdigao para que se apela. E entio, se sio diversos 0 problemas que assim se suscitam ¢ se multiplicam, agudos ¢ comple- 4x05, fundamental é reconhecer que, importantes embora os problemas estruturais, o decisivo é todavia o problema do sentido, do sentido da jurisdigao hoje. Por isso se fala, € bem, de «crise do juize, de scrise da justca». E bem, porque cabe 4 situagdo referida, com as implicages a que se acaba de aludir, correctamente a conceitualizagio de arse. Desse conceito se tém ocupado muitos: THOMAS KUHN na epistemologia, EDGAR MORIN na sociologia, eu proprio (se me é permitida a auto-invocagio) no pen- samento juridico. Também a reflexio pés-modema quanto 4 propria razio — de ja miltiplas expresses, dentre as quais recordarei o ciclo de conferéncias realizado em 1996, no Rio de Janeiro ¢ em Sao Paulo, sob o tema justamente «A crise da raziov. E numa palavra, dir-se~A que 2 crise no traduz apenas 0 negativo ircunstancial, a quebra anémica que se sofre ¢ lamenta, mas sobretudo a consumagio histérico-cultural de um sistema, a perda contextual de sentido das referéncias até entio regulativas — o paradigma que vigorava esgotou-se, um novo paradigma se exige. E 0 essencial dos sistemas ¢ dos paradigmas nao est na estrutura, mas no sentido: a estrutura orga- niza e permite o funcionamento, mas s6 0 sentido fonda e constitutiva- BED 74 (2998, p14 ENTRE © AEGISADOR, 4 SOCIEDADE: £0 $UI2» 3 mente sustenta. Dai também que uma crise s6 possa ser superada por uma critica, i, €, por uma reflexio refundadora de um novo sentido. Pois bem; se assim &, hi que diferenciar os problemas ¢ distinguir © que sobretudo importa, by Isto nos obriga a uma suméiria ¢ selectiva anilise da problema- tica em causa. Ha, com efeito, que considerar: de um lado, os problemas estruturais ou eexternos»; de outro lado, v problema intencional ou #iti- terno» — e a por este o problema do sentido. @) Sao problemas estruturais, em primciro lugar, 0s problemas di- rectamente politico-constitucionais, seja © problema institucional (de ‘organizagio, de «governor € este, enquanto tematiza o autogoverno do poder judicial, a provocar uma polémica que no nosso pais neste momento, como noutros também, esti vivamente aberta), Seja 0. pro- blema da legitimagio deciséria, nio menos discutido, Em segundo lugar, © problema estatutirio— a referir 0 eestatuto dos juizess e em que avulta no primeiro plano a indole ¢ as garantias da sua independéncia (deste problema me ocupei também noutra oportunidade), mas igualmente ‘0s no menos actuais problemas tanto do seu contrle como da sua responsabilidade especifica, nas suas modalidades (disciplinar, criminal ¢ civil, mesmo constitucional) e na sua extensio (refira-s¢ como im- portante contributo para estes pontos as reflexes comparativas de ALESSANDRO GIULIANI € NICOLA PICARDI, La responsabilitd del gindice, 1987; também RUDOLE WASSERMANN, Die richterliche Gewalt, Macht und Verantwonung des Richters in der modernen Gesellschaft, 1985, 22, 85.5 ¢ B.C. BACELAR DE VASCONCELOS, Teoria geral do controlo juridico do poder priblico, 182, ss., 194, ss.). Em terceiro lugar, o problema que direi “funcional ad hoc, e que tem a vet com o modo como os homens e a ‘sociedade do nosso tempo (os «consumidores de justigas) esperariam que of tribunais funcionassem, com as expectativas culturais, politicas ¢ técnicas a que 0s tribunais deveriam corresponder, p. €X., 10 uso soft da autoridade, na transparéncia, na abertura comunicativa e 4 comu- nicagdo, Deste problema se ocupam preferentemente, como bem se compreende, os jornalistas, posto que cle exorbite sem divida esse nivel (v. R. WASSERMANN, ob. cit, 23, s8.; dele tem tratado também o nosso Procurador Geral da Repiiblica). De novo direi, contudo, que, se todos estes problemas sio eviden- temente de importancia relevante, nio deixam de ser externos 20 exer- BED 749908), p. 1-46 cicio da fangio jurisdicional qua tale: consideram 0 fe « poder, a organiza- sio, a responsabilidade e © modo desse exercicio, mas tia referem a intencionalidade material da propria jurisdigio como jurisdi¢io ¢ 0 sentido que ela assume ¢ realiza. Dizem-nos do poder, da responsabi- Saad, do sod a fae jurisdicional, nio nos dizem o que é esse fazer © que nele se faz. Pelo que, na verdade, s6 o problema i € do sentido é 0 problema sinterno». Seen E se quisermos considerar a relagio entre estes dois re estes dois tipos ou gru- pos de problemas, ter-se-4 de concluir que os primeiros So conde, condigSes de possibilidade da jurisdigio que se pretenda, mas no segundo estio os préprios momentos constitutives. Por isso reitero 0 que disce antes: $6 este dltimo € 0 decisivo, toca a easéncia io a forma. Assim como se havers também de reconhecer que, se a reilizagdo desa esséncia esti condicionada pela correcta ou adequada solugio dadas 20s primis problemas, esa solugio correcta ou adequada serd um correlato funcional do que seja ou se pret i ceaage que sej pretenda que seja a jurisdigao ‘Compreende-se assim uma opgio pelo problema interno, dei- xando em suspenso os outros, os externas. Jusificado fica, poit, que s6 daquele se va ocupar a minha exposigao a seguir, Nao poderia tratar de todos ¢ este é afinal o mais importante, aquele de que tudo, também os outros, dependerio. : 2. Ora, pensar o sentido da jurisdigio € pensar a sua relag diseito (iurisedicio): um diferente sentide do dreito implicaré correla. ‘tivamente um diferente sentido da jurisdi¢ao chamada a realiza-lo. Pelo gue é fundamental ter presente'a impossibilidade de compreendermos hhoje 0 direito pela perspectiva exclusiva de tum estrito legalismo, Nao ue 0 legalismo esteja de todo abandonado e nio se mantenha como uma referéncia comum ¢ vm modo da juridicidade ainda concorrente ou alternativo, como veremios, mas sio também j muitos os fenéme- nos juridicos da sua superagio ¢ com directa repercuso nas tarefas da fangio jurisdicional. Se dermos uma projecgao global a eses fen6= ‘menos na revisio critica do sentido actualmente pensivel do dieito no seri exagerada esta conclusdo, que tantos fazem sua: «0 positivismo juridico esta definitivamente morto devemos dar substincia a uma razio juridica alargadae (LENOBLE). BED 74 (1998), 1-44 Sgt gS regan ess RE perny © ALEGIADOR., A SOCUDADE £0 AU 5 a) Consideremos, efectivamente, ¢ num elenco sumirio, dentre esses fendmenos superadores, os seguintes: a) A recuperagio da autonomia normativo-intencional do direito perante a legalidode (a mera legalidade), através de uma renovada dis tingdo entre ius ¢ lex, referida a dois pélos principais. ‘Um primeiro polo € 0 actual reconhecimento da separagio dos direitos» (direitos fundamentais, especificamente) em relagao 4 lei ¢ da preferéncia juridica daqueles perante esta. Se 0 contratualismo moderno~ PTaminista n3o deixava de proclamar «direitos naturaise como pressu- posto ¢ ponto de partida fandamentante do mesmo contratualsmo, ¢ 2 perolucionsria eDédlaration des droits de Uhomme et du ctoyen» de 1789 cxpressamente of enunciava, 0 certo é que, além do seu relevo no asie~ tgurat a participagio na represeniagdo politica (que 0 voto censitério fio debearia todavia, uma vez ou outra, também de limitar), esses direi- tos se persavam assegurados attavés da lei (do direito-legalidade) con tratualisticamente constituida, Numa sua assimilagio pela lei que convertia 0 esubjectivismo» juridico em cobjectivismo» juridico ¢ assim de modo a, por um lado, o direito se identificar pura e simplesmente com 2 Iei €, por outro lado, 0 subjectivismo originirio se transformar fm aditeitos subjectivose que a propria lei, e apenas ela, reconheceria fe garantiria, Ora, 0 que hoje se verifica € a reafirmario de direitos jfundamentais, como projectio de proclamados direitos do homem» (na Declaragio Universal dos Direitos do Homem, de 1948, ¢ em todas as Declaragdes € Convengdes, quer gerais, quer regionais que se The seguiram), antes e acima da lei, em todas as constituigBes contem= porineas ¢ no pensamento juridico em geral. Nio € jé a ei a dar vali- Jade juridica a direitos, enguanto direitos subjectivos, sio os direitos, fs reconhecidos como fandamentais, a imporem-se 4 lei € a condicio- frarem a sua validade juridica (cfr, desde logo, 0 art. 18.° da Constitui- (Go da Republica Pormuguesa). Com 0 que nio fica certamente escla- Fecido o sentido, auténtico e-fltimo, desses direitos ¢ que se procura hoje atingir de duas perspectivas contrarias: a perspectiva originiria do individualismo liberal (do «liberalismo+ radical) que ainda persiste, que se pode mesmo dines em actual restauragio, e a perspectiva de wma ‘compreensio comunitiria, ou mediante uma dialéctica em que uma das dimensbes & a integrario comunitéria e segunde 2 qual os «direitos» tém adeveress como cortelatos de sentido ¢, isto, se no necessaria- 6 DOUTRINA mente nos termos da actualmente tio invocada antitese «comuni- tarismo» vs. dliberalismos, a exigir todavia a superagio do «individuo», como titular dos mesmos direitos, j4 por um «ujeitor que s6 poder assumi-fos no quadro de uma cidadania vinculante, ja pela «pessoa» com a sua constitutiva ¢ indefectivel responsabilidade comunitaria, coma veremos melhor sc devera sustentar. Um outro pélo temo-io no actual reconhecimento de princpios normativos a transcendetem também a lei, a legulidade, convacados ‘como fundamentos normativos da juridicidade e que a propria lei teri de respeitar € cumprit. Principios estes que se distinguem decisiva- mente dos «principios gerais de direito» que o positivismo normati- vistico-sistemitico via como axiomas jutidico-racionais do seu sistema juridico, pois sio agora principios normativamente materiais fonda~ mentantes de prépria jaridicidade (eprincipios de justigay), expresses normativas de +0 direitor em que o sistema juridico positive cobra © seu sentido € no apenas a sua racionalidade. £ assim que esses prin- cipios se impéem como um tema generalizado e insistente, e a suscitar ‘uma vasta problemitica, no pensamento juridico contemporineo. E se é certo que um problema de solugao nao linear se teri de por aqui, 0 do sentido dtimo da relacio juridica entre os direitos funda- mentais ¢ os principios, € esse um problema que agora deixaremos de Jado, pata chamar a atengio para um outro ponto em que a jurisdig3o & directamente convocada. EB que este outro sentido da juridicidade translegal implica uma intencionalidade concreta a sua normatividade teri de assumir-se de modo concretamente realizando na praxis hist6- rico-social, pois 0 seu sentido auténtico s6 se atinge realizando-se © na sua realizacao. A legalidade, com 0 normativismo que assimilow ¢ por gue doutrinalmente acabou por ser pensada, afirma uma juridicidade que subsiste no proprio sistema dogmatico-normativo da sua definigio — vé-lo-emos melhor adiante. O que justamente nio pode ser admi- tido pelo sentido axjolégico-normativo e material da juridicidade que se exprima nos direitos e nos principios: a titularidade daqueles ¢ os regulativos compromissos axiolégico-normativos destes postulam, res- pectivamente, ji uma titularidade efectiva, uma titularidade real no contexto social, jf uma projeccio determinante na pritica histbrica. Os direitos serio meros votos pios, se nio se afirmarem como efectivas condigdes da realizacio pessoal; os principios serio aspiragies vis, s¢ BED 76,1998), 9.146 ENTIRE 0 RGHLADORY, A SOCEDADE: EO que 7 nio impregnarem constitutivamente a praxis e nio obtiverem assim a sua decisiva determinacio mormativa, como referéncias axiolgico- ~Normativas para a pritica e fandamentos normativos para 0 juizo que esencialmente sio. A indole e a estrutura légico-formal das normas ‘enquanto tais — uma hipétese categorial-representativa implica certos tipos de efeitos, ou uma previsio hipotética implica uma definivel estatuigao, ma condicionalidade normativa se, entiorv — a admitizem in- lusive uma enunciagio apofintica e com esta um operar simplesmente ogico, possbilitam-thes ama autonomia que a si mesma se basta, € por isso a permitir que elas se tornem objecto de um conhecimento, jé her- menéutico (a «interpretagio da lei»), j4 dogmatico (que se manifesta no construtivismo juridico), jf sistemético (o que obteve uma expressio acabada no sistematicismo da eteoria pura do direitos). Enquanto que a auséncia de hipotese-previsio nos principios ou a sua indeterminacio referencial, ji que essencial para eles é 56 0 seu regulativo compromisso axiolégico ¢ pritico, nio impée apenas que a sua normatividade se de~ termine realizando-se, solicita ainda uma compreensio pritica (nio simplesmente dogmatica ou l6gica) dessa sua normatividade s6 possivel de atingir-se assumindo a dialéctica entre o seu regulativo, que convoca 4 realizagio, e a pratica (de acco e judicativa) em que encame € a ma~ nifeste realizada, Se as normas sio auto-suficientes no critério abstracto que hipoteticamente prescrevem, os princfpios sio fundamentos «para tomar posigio perante situacdes 4 priori indeterminadas, que venham a determinar-se concretamente» (G. ZAGREBELSKY). Em sintese: a8 nor- mas legais esperam a sa aplicacio e em dltimo termo visam-na, mas podem compreender-se e determinar-se sem ela, ou seja, na sua subsis- téncia abstracta; no assim os princfpios, j4 que 0 seu Verdadeiro sen- tido nio é determinavel em abstracto, ¢ s6 em concreto, porque s6 em concreto logram a sua determinagio ¢ se lhes pode atingir o sew aucén- tico relevo. E decerto que a essa sua determinagio em concreto seri chamada, numa responsabilidade iniludivel, a jurisdigao nos seus juizos decisérios em solugio das controvérsias priticas suscitadas pela invo- cagio dagueles mesmos direitos e destes principios. 8) De consequéncia aniloga, para 0 que sobretudo nos importa, io 0S limites normativo-jurfdices da lei, a abrirem um espago que 56 a jurisdigao na sua realizagio concreta do dircito, em necessiria intengio normativamente constituenda, pode preencher. Desde logo, limites fabs seek eo 8 ouTRINA normativos objeativas, de que damos conta quando reconhecemos que © direito legalmente positivado fica sempre aquém do dominio hjst6rico-sociaimente problemiético (na extensio e ma indole concreta dos problemas) a que se tera de responder juridico-normativamente —i. & quando reconhecemos, € a prOpria dinimica social o goma evi- dente, que o sistema juridico s6 pode: ser normativo-funcionalmente adequado 2 essa sua problematica social afirmando-se como um sistema Aaberto, que nenhuma legalidade pode fechar (posto fosve essa a preten- sao do legalismo sistematicamente axiomitico), ¢ concluimos assim pela necessidade, para além mesmo da integragio das lacunas no seu sentido tradicional, do auténomo desenvolvimento do diteito através da sua propria realizagio (através da sua jurisprudencial realizasio) ‘Uma segunda categoria de limites normativos, agora intencionais, impu- seram-se logo que a realizagio do direito assumiu um sentido norma- tivamente material (que nio apenas légico-dedutivo e formal). E que a redlizagio do digeito com este sentido, utilize embora como seu cri- tério a norma legal, teri de mostrar-se concretamente-adequada a0 mérito problemitico dos casos decidendos ¢ mio menos normati- vamente justificada em referéncia aos fundamentos axiclégico-norma- tivos (aos valores e principios) que dio sentido normative material 20 proprio direito. Porquanto, nio podendo deixar de ser essa normativo- ~problemitica realizagio pelo menos uma «coneretizacZox, com o espe- fico actus constituinte que esta exige, a insuficiéncia que ja por isso sempre se verificari nos disponiveis critérios juridico-formais que se utilizem obriga 2 ir normativamente para além deles, convocando os fundamentos normativos que déem sentido 4 juridicidade ¢ possam assim orientar constitutivamente essa problematica conctetizacio. E com maior evidéncia quando as proprias normas juridicas in- cluam acliusplas geraiss, enormas em brancor, conceitos indetermi- nados e de valor, etc. & deste modo € tendo tudo isto em conta que @ propria interpretag3o em fung5o concretizadora € sempre — digamo- -lo com ESSER ~ «uma conexio de lex sripta ¢ ins non scriptum», € toda a realizag3o do direito uma monodinimica constitutivo-inte- gradora que nio pode prescindir de elementos normativos translegais ¢ transpositivos — 0 que, contra 6 forrmal legalismo ¢ 0 seu unidimen- sional e pré-determinado normativismo, se pode considerar adquirido pelo actual pensamento juridico. Que tanto € dizer que, por urt lado, BPD) 74 (99, 9. 1h ENTE © dct DORs, A SOCIEDADES EO U2 9 2 comcreta € material reaizasio do direito faz com que as normas legais se vejam duplamente transcendidas, relativamente is possibilidades nor- mativas que objectivam, pela simnltinea € constitutiva referencia aos principios fandamentantes do direito enquanto tal (do normativamente incegral sistema do direito) e 20 comcretwn problemitico dessa tealizacio, € que, por outro lado, 0 direito que legalmente se realiza é ele proprio tum continuum constituende em fargo de uma dialéctica normativa que articula 0s principios normativo-juridicos com 0 mérito juridico do problema concreto através di mediagio das normas legais. Acresce que 1 autonomizacao, perante as normas legais, tanto dos principios nor- mativo-juridicos, como da tealidade juridica normacivamente inten- cionada (Normbereich, na expressio € conceito de F MOLLER), tem como corolério outros limites normativos para a normatividade fegal, 8 limites temporais. Também estes limites foram ignorados pelo tra- dicional legalismo normativista — 0 qual, 20 operar unicamente no plano de uma racionalidade logico-abstracta, revestia o normativo legal de uma subsisténcia atemporal a que unicamente um acto exterior {0 acto da revogasio formal) poderia pér fim. S6 que, sendo a norma legal apenas um critério que se insere, € como limitado mediador nor- ‘mative, num sistema de juridicidade em que concorrem, com 2 sua relativa autonomia constitutiva, aqueles principios e aquela realidade, a historicidade que & propria de uns e de outra ¢ assim a sua possivel alteragio, evolug3o ou mutagio, pode fazer com que a norma legal se veja ou perante uma realidade juridica que j@ no corresponde 20 seu objectivo intencional — 0 caso extremo desta hipétese serio da norma obsoleta — ou ultrapassada pelos Kundamtentos normativos que 2 devem sustentar — 0 caso extremo desta hipétese sera, por sua ver, 0 de caducidade normativa da norma {egal por altera¢io decisiva nos princfpios fundamentais do sistema. No primeiro caso, a norma vé © seu objecto modificado, pelo que deveri corrigit-se em conformi- dade, ou deixa sequer de ter objecto ou deixari mesmo de ter sentido a sua aplicagio; no segundo caso, & o proprio sentido de juridicidade da norma que se altera ou gue Ihe fica subtraido, pelo que haverd ela igualmente de corvigit-se ou de considerar-se de todo sem funda- mento — hipéteses que sempre justificario um decidir contra legem, invocando uma critica intengdo secundum ius (cfr. JORG NEUNER, Die Rechisfindung contza legem, 1992). E este o resultado afinal da dimensio BED 78,199,948 10 poureiva historica do direito e do seu sistema normativo relativamente 2 ele- mentos que neles 8m ama subsisténcia formal — como é 0 caso das normas formakmente prescritas e, portanto, da lei. E daqui somos remetidos ainda a um outro ponto. Com efeito, 4 medida que o sistema normativo histérico, ow a ordem juridica, se vai manifestando com os seus elementos normativos translegais transpositivos, manifesta-se também o seu fundamental sentido axio- logico-normativo € vemos dese modo a adguirir um determinado contetido intencional a «consciéncia juridica geral», nos seus valores, ptincipios e critérios normativos decisivos — jé gue ess consciéncia, se é uma pressuposigo, é simultaneamente um resultado constituido pela prética da sua hist6rico-social realizacio. Simultaneidade esta entre Pressuposigio € resultado intencionais que bem compreendemos se tivermos presente a invocivel analogia do scirculo hermenéuticor. E entio, nesta intencionalidade juridica fundamental, em que o sistema juridico € o direito cobram o seu verdadeiro sentido, encontra também a lei um dltimo limite normativo, um normativo limite de validade. Pois ssa intencionalidade com ser fundamental ¢ igualmente fundamen- tante, € em referéncia a ela é nio s6 possivel, mas licite ajuizar e con- trolar, em aome do direito ou de uma essencial intencio 20 dieito, © conteédo normativo-juridico das normas prescritas legislativamente. ‘Ons, se tivermos presentes todos estes limites normatives das normas legais e se reconhecermos que nesses limites vai implicado uma intengo de direito que as transcende, cambém compreendemios que s6 pela supe- ragio constitutiva desses limites, na concreta realizagio juridica, a propria legislagio e as suas normas concorrem afinal para a constituicio do direito enquanto tal. Constituigio que se revela na dinimica normativa da sua propria realizagio judicativa ¢ impée como necessérias duas conclusdes: Por um lado, que a lei continuari a ter decerto uma eprerrogativa, mas io ji 0 monopélio» (M. KRuELE) da criacio do direito, e ainda que essa prerrogativa se haja de entender também como «primado»; por outro lado, que para essa criago concorre a manifestagio € a objectivagio ine- aveis de um Ridhterrecht. A jurisdigao, afinal, nio cumpre apenas ¢ tio- ~36 uma estrita aplicagio da lei deverd antes considerar-se, para © dizer- mos com R. WASSERMANN (Die richtdiche Gewalt,cit., I), que uma sua actividade juridicamente criadora é uma situagdo evolutiva que nas sociedades modernas teri de ver-se como itreversivel BED 74 19) 9. 186 [BET © VLECISLADOR, A SOCIEDADE EO GUNZ " y) E a convocagio, neste sentido protagonista, da jurisdigio, da fungio judicial, impe-se ainda de outros modos. Chamaremos a aten- «io para mais dois, Desde logo, 0 que se oferece no particular relevo da jurisdi¢ao ‘constitucional ¢ nio menos no alargamento ¢ aprofundamento do con- ‘réle judicial da actividade administrativa, em que a referéncia & consti- tuigio est igualmente presente. Pode dizer-se que nestes termos se afirma com importincia especificidade crescentes 0 canine jutidice dos poderes politico © executivo ¢ que a palavra decisiva desse contrdle @ ado poder judicial, da fungio jurisdicional. E uma das dimensdes capitais, nada menos do que a dimensio realizanda, do que jé se afirma 2 passagem do «Estado-de-legislacao» (Gesetzgebungsstaat) para um Estado~de-Constituigio» (Verfassungsstaat). Com duas referencias: se cabe ao juiz, como acaba de dizer-se, decidir quanto 3 validade ou invalidade juridico-constitucional das leis, também a intencionalidade Juridica que assim se exige deixa de ser a intencionalidade de uma juri- dicidade formal (aquela que corresponde fundamentalmente 4 juridi- cidade legal) para ser a da juridicidade material do prindpio de justiga que a constituigéo assume, nos direitos fundamentais ¢ nos principios normativos expressos ou implicitos. © que suscita um problema iiltimo, um dos mais importantes ¢ capitais, que hoje se poem 20 pensimento juridico, mas que aqui ficara inconsiderado: referimo-nos 4 questio de saber se esse «principio de justigas ou a normatividade juridica material em que ele se traduz tem © seu fundamento normativo na constituigao politica — € nesse caso a juridicidade identificar-se-ia com a constitucionalidade — ou se +2 constituigo € dele simplesmente declarativa, a implicar entio que © fundamento sera transconstitucional, numa intengio de autonomia constitutivo-fundamentante ao direito como dircito. S6 acrescentarei que tenho tentado justificar a opgéo por esta segunda hipotese. 8) © outro dos dois modos a que aludimos tem a ver com o facto de 4 fangio judicial, ao juiz, se ter vindo progressivamente a imputar a responsabilidade da diltima palavra num espectro alargado de questdes. de validade quanto a comportamentos e interesses sociais. Este € justa- mente um dos pontos em que se reconhece que a «criatividade da Jurisprudéncia (da jurisdigao) se tomou mais necessiria e mais acen- BED 74 9998) p46 2 ounuNa tuada na sociedade contemporinear (CAPPELLET!). Se um dos factores desse fendmeno foi a Rewlt Against Formalism (MoRTON G. Write), de que vimos manifestacées relevantes nos pontos anteriores, 0 que agota queremos sobretudo convocar tem a ver com a transformacio do proprio sentido do direito no que se designa por direito social (F EwaLp) — aquele que tem na sociedade, no desenvolvimento social em todos 05 aspectos, © seu sueito reivindicativo e © seu partenaire de intervengio —, direito esse que esth ligado 20 Welfare State, sem toda~ via se esgotar nele, e que solicita a indispensivel participaggo da fungio Jurisdicional por formas diversas, Consideremos 56 algumas. Acrescentando esse direito social 208 objectivos juridicos tradicionais de garantia ¢ de repressio um objectivo promocional, © qual pela sua referéncia programitica ao futuro pouco pode ic além de prescrigzo de Sins e principios (como que num Zueck- programm), j& por isso mesmo exigira uma controlada determinagio concretizadora de que se desempenharé a fian¢0 judicial numa irre- ‘cusive) discricionariedade decisbria exigida pot uma necessiria flexi- bilizagio concreta do proprio direito — no dominio do diteito econé- mico, na concretizarao das cliusulas gerais dos contratos, na defesa dos direitos de personalidade, na integrario do direito do trabalho, etc A cla competira também de modo especial o juizo da responsa- bilidade no dominio das extemaliies, asim como a tutela des interesses colectivos, difusos, etc. E & a propria sociedade que reivindica essa inter- vengio judicial nas «acgdes populares», nas cactions collectivesr, nas «public interest litigations, nas eVerbandsklagen» (obre todos estes pon- tos, ¥. CAPPELLETTI, Giudici legislator; R. WASSERMANN, 0b, cit, 7, 5.) ¥) As implicagdes a sublinhar, neste diagnéstico sumario da actual situagio juridico-jurisdicional, sio varias e cada uma delas nio menos importante do que as outras. Sublinharei, em primeiro lugar e apenas numa alusio, a necessiria revisio dos problemas das fontes do direito ¢ da separagio dos poderes, Aquela, pela impossibilidade de continuar a identificar 0 direito com a legislagio; esta, pela superagio definitiva do poder judicial entendido como ede quelque fagon nulle», © a actuae como «la bouche de la loi» e os juizes «Etres inaniméss ernquanto apenas servidores da lei e aqui n'en peuvent modérer ni la force ni la rigueur» (MoNTESQUIEU), numa estrita tarefa exegético-aplicadora. A revisio BED 74 (198,146 DTRE © LEGILADORY A SOCIEDANE £0 JURE B esses problemas ¢ ainda a consideragao daquele que impGem o reco- ahecimento ¢ a definig3o de uma ordem juridica translegal». Ordem essa que © referido poder normativo-juridicamente criador da jurisdicao concorre a constituir € a manifestar, posto que também s6 desse modo no figue ela totalmente dilucidada em todas as suas dimensdes € na sta indole decisiva, e que acaba por nos remeter ao proprio sentido actual do Estado-de-Direito, longe jé de poder pensar-se nos termos s6 normativisticos ¢ garantisticos tradicionais. Em segundo lugar, ¢ neste momento o mais relevante, implica problema do sentido actual da fungio judicial, da jurisdigio e do Juiz. E 0 problema do sentido que comegamos por privilegiar e que ‘agora melhor compteendemos ter-se-nos tornado inevitavel. 3. E quanto a ele, hoje uma alternativa inelutivel se nos pe, que podemos enunciar mediante duas interrogagdes fundamentais, em que a perspectiva de uma evolugio possivel se abre a uma impositiva opgio. Acrescentemos, com efeito, & situagio que ficou descrita duas circuns- téncias particularmente caracterizadoras da nossa praxis actual, a saber: a tansformagio irreversivel do sentido das leis e a assunc3o delibera- damente programética de uma estratégia politico-social no todo da realidade social. Se a Jei iluminista (¢ revoluciondria) se podia identi- ficar com 0 direito porque nas suas racionalidade e universalidade os valores da liberdade e da igualdade se assimilariam ¢ garantiriam, e dese modo definia um status normative formal que enquadrava 0 comportamento social mas dele se descomprometia, hoje as leis no sio mais do que prescrigdes de certas forcas politicas, mesmo par- tidérias, que no quadto do sistema politico-estadual ou constitucional adquirem legitimidade para tanto e pelas quais se impSe um programa de acgio politico-social, em que uma politica se afirma e concreta- ‘mente se compromete com fins particulares — muma palavra, se as leis, de estrito estatuto juridico, passaram a «instrumento politico» (ego- verna-se com as leiss) —; também, por outro lado e numa evidente coeréncia com 0 ponto anterior, a praxis social radicalmente se proli- tizou, tomando-se objecto, o campo € 0 objectiva do que se diz 0 «Big Government» globalmente interventor ¢ transformador. Pelo que tudo converge neste problema: o problema da autonomia do direito ¢ da possibilidade institucional da sua afirmagio. BRD 74 (1998),p. 144 ut BOUTIN (Ou nio se renuncia 4 universaidade de certos valores e principios ormativos em que todos se reconhegam, contra a selectividade estra- tégica de certos fins © relativamente 4 qual necesariamente a partida- tizagio se manifesta em apoio ou em oposicio, e um poder eficaz se cer de mobilizat — ¢ sem que com isto se pretendam esclarecidos em toda a sua complexidade quer o sentido auténtico, quer o conceito do politico —, e entio, pata se garantir aquela universaidade axiclégico- normative em que se traduz a autonomia do direito, tera de reconhe- cer-se neste a «medida do poder, i. é, a sua validade critica perante © politico, e de imputar-se institucionalmente a sua possbilidade a uma instincia chamada exclusivamemte 2 iss0 niesmo, como contraponto 4 tendente unidimensionalidade, s¢ ndo totalitarismo, do politico, E instincia no poderi ser hoje, pelo que jf se disse, o poder legislative com a sua legislagio, dado 0 teu directo compromisso politico — impée-se hoje uma distingao, pelo menos uma tensfo, entre a lei e 0 direito, j6 porque a lei nao € s6 em si o diteito, jf porque pode mani- festar-se em contradigao com ele. Tera de ser esta insincia o poder ju- dicial, a jurisdicao: a indole politica (comprometidamente politica) ca fancio legislativa hi-de ter © seu contrapélo na indole juridica (auto- nomamente jutidica) da fangio jurisdicional. Neste sentido, mas apenas neste sentido, se poder falar da ewolugio «Vim Gesetzessiat zum Richter staat (R. MARIC). O que, desde que assim entendido, esta para além da uestio da legitimagio (democritica) da fiangfo jurisdicional, quanto 3s suas manifestagdes juridicamente criadoras, pois no se crata da disputa entre poderes, inclusive de atribuir «Alle Macht den Richtern» © assim da eventual emergéncia do «governo dos juizess, mas de afirmar o dircito a0 poder, da possibilidade em dltimo termo de reconhecer o direito como dimensio constitutivamente indefectivel do Estado ¢ assim 0 Estado verdadeiramente como Estado~de-Direito. ‘Ou se sobrevaloriza a estratégia politico-social, se assume o poli tico como © tinico protagonista — e & 0 outro termo da alternativa —, € ceramente que nesse caso a funcio judicial nfo lhe poders ser estra- ‘nha, numa qualquer autonomia intencional, ¢ converter-se-A no ope- ador tictico no terreno, com os meios insticucionais € normativo- -decisorios que Ihe caibam, da estratégia global praticamente definida Hipétese em que a jurisdigéo se funcionalizard a esta estratégia como seu instrumento ou longa manus. BED 76 (1998), 91-44 ENTAE © AEGISIADORG, A SOCHDADE: 0 Ju 15 E se € esta a alternativa, hi, na verdade, que perguntar: em que ‘ras queimaremos incenso, onde estio 0s nossos deuses? ‘0 que vai seguir-se estd Jonge de se propor uma resposta acabada, tentara oferecer apenas os modelos de juridicidade, com os correlativos modelos de jurisdicio, hoje possiveis ¢ entre os quais, assim penso, estari 0 caminho para a resposta. 4, A diferenciagio entre esses modelos que iremos oferecer nio se limitaré a ser descritiva, quer ser compreensiva. Pelo que nao se poderd prescindir da perspectiva e do horizonte regulativo de cada um deles Seri, pois, esse 0 primeiro ponto a considerar 4) Os modelos em causz so erés — julgo nio errar muito nesta conclusio. Sio eles 0 normativismo legalista, o funcionalismo jurtdico e 0 jurisprudencialismo. Dir-se-4, € certo, que quanto 20 primeiro deles te- mos falado na sua actual superago ¢ expusemos alguns elementos que ‘© comprovam. Mas nem por isso deixa de set urna referéncia indis- pensivel, como imediato antecedente historico que & nem se poderio ignorar 28 linhas de uma sua tentada recuperasio, jé pela atrés aludide restauragio do liberalismo radical, j4 pelo pensamento juridico analitico ¢ em alguns pontos pelo proprio funcionalismo sistémico. Por isso no 0 deixaremos de lado, comegande mesmo por éle 1) Trata-se de um modelo de juridicidade-jurisdigso perspecti- vado pelo individualismo moderno-liberal ¢ iluminista, Anotemo-to em duas palavras, jé que este é um terreno de todos bem conhecido. No fando de tudo esteve uma determinante antropolégica, jé que a com- preensio que’ ao tempo o homem de si mesmo teve levava implicito tudo o resto. E essa compreensio, que se constituiu do séc. XVI a0 séc. XXVIII, radicava na autonomia humana, em rupturs com 2 ordem (ou a presuposi¢io da ordem) teolbgico-metafisico-cultural transcendente, € para aceitar como fandamentos dnicos do seu saber e da sua accio, respectivamente, a razio (a razio em didlogo com a experiéncia empf- rica) € 2 liberdade. Em concomitincia, se nio como consequéncia, afirma-se a seculariza¢i0 (posto que ainda nio como secularismo) ¢ 2 emancipagio do econémico, ou a sua libertagio dos quadros ético- -religiosos (qualquer que tivesse sido a influéncia refigiosa para a for- magio do capitalismo) e que nio tardou a significar decisivamente BeD 74 1958), p. 1-44 16 ouTRINA ENTRE 0 sOSLADORs. A SOCHDADE: £0 SUR. 7 a emancipagao dos interesses, nos quais se via aliiés a condigao efectiva da realizaggo da liberdade reivindicada — 0 dominio da praxis social era o dominio dos interesses. Disse~o HELVETIUS nestes termos: «si univers physique est soumis 4 loi du mouvement, l'univers moral ne Test moins 4 celle de Vintéréts. Posto que a esses interesses, expressio Pratica da liberdade, se dissessem «direitos naturaiss. E se esses factores convergentes tiveram como consequéncia o individualismo (0 indivi- dualismo niodemo-iluminista), um outro factor se afirmou ainda com relevo nio menos fundamental. Aludimos 20 racionalismo, a expressig da ratio moderna que deixa de ser ontoligico-metafisico-hermenéutica como a razao clissica ¢ se volve na razio autofundamentante nos seus ‘axiomas (as suas evidéncias racionais) e sistematicamente dedutiva nos seus desenvolvimentos — a razio cartesiana. A razio como sistema, tal € a razio moderna. Todos estes factores, que uns aos outros se con- dicionavam ¢ potenciavam, postulavam uma particular consequéncia politica — exigiam a institucionalizagdo de um novo poder que estivesse na sua coeréncia. Sabe-se qual foi o sentido fandante desse novo poder que homens livres ¢ racionais, ¢ nessa sua liberdade tam- bém iguais, unicamente admitiriam — 0 que um contrato (contrato social) constituisse. E se desse modo se resolveria 0 problema posto por HoBBES — a preservagio da liberdade ¢ a atirmagio dos interesses individuais numa forma vinculante da vida em comam —, as regras dessa vinculacio, ou o direito a admit, s6 poderia ter um de dois fun- damentos, ou a volonté générale que 0 proprio contrato constituiria tsolugio de ROUssEAU) ou a universalizagio racional das liberdades (olugio de KANT). Sendo certo que a consequéncia para ambas as solugées seria 4 mesma, a constituigio de uma legalidade — 0 direito seria a lei, unicamente a lei. Da liberdade, a igualdade © os interesses, que se postulavam racionais € elevados a editeitos naturaise, chegava~ ~se pela mediagio do contrato social & legalidade, que convertia, nos termos ji antes aludidos, esses direitos naturais em direitos subjectivos. 2) J4 2 perspectiva do fincionalismo juridico é outra. O seu refe- Femte nio € 0 individuo, mas a sociedade como fendmeno especifico, sfenémeno social global» na formula de GURVITCH, ou a pensar nio simplesmente como uma associagio atomistica de individuos, mas com ‘uma estrutura, componentes e uma dinimica proprios. Heteronomia mactoscépica que se viris a teorizar como sistema socal — sistema de BRD 74,1998, 9144 uma indole particular que nem ComTe, nem DURKHEIM, nem mesmo Max WEBER haviam ainda pensado e se comecou a pensar com PARSONS ¢ LUHMANN. Tiata-se de am sistema funcional ou pen- sado funcionalmente que funcionaliza todos os seus elementos € as suas dimensées. E nestas 0 préprio direito — também ele funcionalizado @ estruturacio, a regulario e 4 organizagao operatoria global da socie- dade, numa consequente perda de autonomia intencional < material, pois que se converte num instrumento, de particulates caracteristicas prescritivas ¢ institucionais, a0 servigo das exigncias provindas das ins tancias e das forgas politicas ou simplesmente sociais, culturais, eco- nomicas, ete ‘Trats-se da politico-socializagio do direito que teve as suas mais proximas dererminagdes em duas linhas diferentes, mas também con- vergentes. Una delas politica, e refere certamente 0 aparecimento do Welfare State, do Estado-providéncia, a outra directamente social e tem a ver com a emergéncia do social enquanto o campo € © critério de todos os problemas humanos — e justamente pela conversio desses problemas em especificos problemas sociajs. Postula-se que todos os problemas humanos, do nascimento 3 sobrevivéncia, da educagio 20 ensino, da satide 3 habitagio, do emprego ao nivel de vida, etc., sio problemas que a sociedade devera assumir, de que seri respon- savel e a que € chamada a resolver, E assim, inclusive por corolirio final, que © Estado se volve em «Estado de direitos sociaise, que o desent- volvimento econémico-social hé-de garantir e a que tudo se fun- cionaliza ‘Um dos meios juridicos mobilizados continua a ser decerto a legis- lagio, 96 que também com uma outra indole. Deixou ela de se esgotar nas fungdes normativas j4 de garantia dos direitos e da seguranga Juridica, j4 de quadro e limite dos poderes — fungdes do tradicional principio da legalidade — ¢ tornou-se instrumento da propria accio politica, JA o dissemos: passou-a governar-se com leis. E assim fun- cionalizada politico-socialmente, nio tatdou que a lei assumisse outros tipos prescritivos, bem diferentes do tipo estrito de «norma juridica» (i. é, norma racionalmente geral e abstracta), tais como o da

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