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A “Dornca” E suas “Causas”™ Andras Zempléni (Tradugo de Solange Unti Cunha Pinto) Introdugao O tema mais antigo e o maior dossié da antropologia da doenga é, sem davida, a causalidade. Essa afirmagao baseia-se numa longa trajetéria que se estende de Taylor (1870) a Rivers (1924), de Cle- ments (1932) a Evans-Pritchard (1937), de Hallowell (1941) a Ackernecht (1942) e de Turner (1968) a um grande niamero de auto- res contemporaneos'. Ainda hoje, ctndlogos, médicos e “antropélogos da doenga” redes- cobrem ou confirmam a primazia das etiolo- gias sociais ou magico-religiosas nas medici- nas das sociedades sem escrita. Mesmo sem afirmar, como F, E. Clements (1932), que o estudo dos conceitos de doenga, nessas soci- edades, é a revisdo das nogées que “o primi- tivo tem da causa e da origem das “doengas”, este dossié merece ser divulgado. Seu conhe- cimento torna-se ainda mais necessario uma vez que as nogdes de “doenga” de “causa” “estdo longe de serem claras e simples”. A “doenga” e a triade: “disease”, “illness”, “sickness” Sob influéncia milenar do paradigma hipo- crtico, o objeto da etnomedicina ou da antro- pologia médica, continua sendo a doenga e menos 0 doente*. Mas 0 que é “doenga’”? Con- sistiria na realidade ecolégica amplamente inexplorada de um mecanismo de adaptagao biossocial do homem ao seu meio ambiente natural e cultural? Significaria a realidade biofisica de uma alteracdo objetivamente demonstravel do organismo, ou seja, a “doen- ga do médico”, ou antes da ciéncia biomédica? Implicaria na realidade psiquica de uma ex- periéncia individual de transformagao in- terna e involuntaria, mais ou menos desa- gradavel e insuficiente, isto é, a doenga do enfermo?! Seria a realidade intersubjetiva de uma trégua de reciprocidade imediata, im- posta por uma perturbagao que se faz passar por irredutivel a qualquer desejo ou estraté- gia? Seria ainda a realidade sociojuridica de * Titulo original: “La Maladie et ses causes — Introduction”. L’Ethnografie, 1985, vol. 2. pp13-44. 1. 0 leitor encontraré uma amostra numa recente e especial edicéio Social Science and Medicine (Jansen J.M. Prines eds), “Causality, classification in Africa Medicine and Health”, 1981, 15 B, 3, num artigo de A. Young (1982) e também numa obra editada por M. Augé et C. Herzlich (1984). 2, Segundo J. Clavreul (1978),considerando “os trés fatos separadamente: médico, doenga e homem” (Hipocrates), a medicina grega pdde isolar seu objetivo. A doenga definida, de acordo com o ideal democritico é semelhante em todos os homens e esté excluida radicalmente da influéncia de forgas sem objetivos, isto é, separadas do do- minio da religido e da magia. Dessa forma, a pratica da medicina ocidental é estabelecida as custas da negacao da singularidade tanto individual como social do individuo e consequentemente, beneficiando a afirmagao da uni- versalidade. 3. A distingdo entre disease e illness que a antropologia da medicina anglosaxénica elaborou em meados de 1972 Gf. infra)... e que considera como uma de suas maiores conquistas (ver,por exemplo, Kleinman 1978), recupera a que R. Leiche estabeleceu em 1936 (Encyclopédie francaise, 1936, t. VI entre a “doenga do médico”e a “doenga do doente”. Cadernos de Campo, Séo Paulo, n° 4, p. 137-163, 1994. ~ A “Doenga” e suas “Causas”, Cadernos de Campo, Sao Paulo, n° 4, p. 137-163, 1994. um mau comportamento justificavel e tran- sit6rio, cujo ato de legitimidade, o diagnésti- co, transfere a responsabilidade para qual- quer “causa” colocada fora da intengio do agente social, a partir deste momento quali. ficado de “doente”? Ou, entéo uma etiqueta sociopolitica reversivel que, por um lado, jus- tificaria e, por outro, invalidaria condutas e estratégias contestatorias e ilegitimas? Se- ria, antes, a realidade cultural de uma forma de conduta simbélica, estabelecida por e para um sistema simbélico que subentende a or- dem biolégica, social e do mundo indissoli- vel? Seria, finalmente a realidade histérica e ontogénica de um evento social indutor cuja interpretagao e tratado contextuais con- firmariam ou negariam, preservariam ou destruiriam os axiomas e as relagées consti- tuintes da ordem social? Poderiamos multiplicar tais aspectos ou tentativas de definigév, mas segundo a antropologia médica americana tentaremos simplificd-la. Como Fabrega (1972), Klein- man (1972, 1978), Eisenberg (1977), Young (1976,1982), Frankenberg (1976), Good (1977)... amplamente demonstraram, a no- ao ocidental de “doenga” compreende, pelo menos, trés realidades distintas:, disease, illness, sickness. A seqiiéncia introgenética que nos é mais familiar ilustra isto bem: minha experiéncia subjetiva de qualquer coisa angrmal, meu sofrimento, minhas do- res, minhas indisposigées... (minha illness) 6 considerada como sinal de alteragao bio- fisica, objetivamente comprovavel de meu or- ganismo (de minha disease), estado biofisico que 0 diagnéstico de meu médico enfatiza, com base legitima, no meu estado ou no meu papel social de “doente”, ou seja, de minha sickness que nao é a realidade psicolégica nem a realidade biomédica mas a realidade sociocultural de minha “doenga”. Neste pon- to, a definicio da “doenga” (como um todo) caracteriza-se por sua complexidade. A im- plicagao reciproca, co-ocorréncia, transi- tividade dessas trés realidades, psicolégica, biofisica e social estdo longe de serem evi- 138 dentes. Sao, de fato, de grande autonomia e todas as relagées interagem entre si. As- sim, posso estar biomedicamente “doente” ~ diseased (com paludismo, com parasitas e hipertenso) ~ sem ter a consciéncia de es- tar -ill- ou sem ter o direito a etiqueta sociocultural de “doente” — sick —, como ter a conviccao e experiéncias intimas de estar doente sem poder obter o reconhecimento legitimo, biomédico ou cultural de minha “doenga”. Posso até adquirir os direitos soci- ais ligados ao papel social da “doonga”- com a isengao — depois de ter simulado ou mostra- do (ou mesmo sem isso) as provas biomédicas ou culturais de minha “doenga”, assim como sofrer os constrangimentos segregativos ou as obrigagdes terapéuticas inerentes a esse mesmo papel social sem poder provar a nu- lidade dos motivos usados para ser estigma- tizado como “doente”. Posso ficar subjetiva- mente, depois objetivamente “doente”, ¢ até morrer apés ter sido vitima desta etiqueta genérica ou de uma denominagao etnoldgica especifica, como por exemplo, portador do “virus da AIDS”, “esquizofrénico”, oposicao soviética, vitima ou suposto agente de tal agressio de feiticaria ou magia, ete. A antropologia médica surge com o inicio da divisdo e da decompusigao da “doen- ¢a” em sua triplice realidade (subjetiva, biofisica e sociocultural): trés Shientas rea- lidade diferenciadas cuja interacdo — cons tante, eficaz e atestada — é 0 objeto em si dessa disciplina tao irredutivel A biome- dicina quanto psicologia ou a etnologia. O etnélogo, geralmente, aborda esta interacdo a partir das representagées socio- culturais da doenga. E conveniente lembrar que para a maioria dos autores anglo-saxé- nicos o termo sickness nao designa uma re- presentagio mas um processo: “a process for socializing disease and illness”, 4. Plus précisément, dit A. Young (1982, 11:270), “the process through which worrisome behavioral signs, particularly ones originating in disease, are given Uma definicao transcultural da “doenga”? Causalidade e justificagao Passemos aos conceitos de “causa”. Por que a causalidade é um tema central na antro- pologia da médica? A resposta teérica a esta pergunta nasce com T. Person (1957), passa por E. Freidson (1974), depois por A. Young (1978:14) que se inspira, evidente- mente, em dois autores anterivres e na so- ciologia do desvio para tentar formular uma definicdo antropoldgica universal da doenca: “what distinguishes sickness from other kinds of deviant behavior are the special tecniques by which society offers to exculpate the sick person, and the fact that social accountability for his behavior can always he transfered into some agency beyond the sick person's will” Traduzamos. A referéncia a uma “cau- sa’, situada fora como dentro da intengio socially recognizable meaning, i.e, they are made into symptoms and socially significant outcomes” Car, ajoute le méme auteur, “every culture has rules for translating signs into symptoms, for linking simpto- matologies to etiologies and interventions, and for using evidence provided by interventions to confirm translations and legitimize outcomes. The path a person follows from translation to socially significant ‘outcomes constitutes his sickness’. NT: Mais precisamente, diz A. Young (1982, 11:270), “o processo pelo qual sinais de comportamento preo- cupantes, especialmente os que resultam em doenca, recebem significados socialmente reconhecidos, i.6, re- sultam em sintomas e consequéncias socialmente significantes”. Porque, acresenta 0 mesmo autor, cada cultura tem regras para diagnosticar sinais em sintomas, ligando sintomatologias a etiologias e inter- vengées, e usando evidéncia dada pelas intervengoes para confirmar diagnésticos e legitimar resultados. O caminho percorrido por uma pessoa, do diagnéstico até resultados socialmente significantes constituem a sua doenga. 5. Sou eu quem destaco. NT: O que distingue a doen- a das outras formas de comportamento anormal so as técnicas especiais que a sociedade estabelece para 139 A “Doenga”e suas “Causas”. presente do agente social, seria, entao, cons- titutivo da realidade social e da nogao em si de “doenga”. No caso de se tratar de uma md conduta justificada c isonta de sangées, esta se diferenciaria das outras condutas sociais excepcionais quando sua responsabilidade 6 transferida ou mutével em qualquer “causa” colocada fora da vontade efetiva do agente denominado “doente”. Quer seja atribuida a uma invasfo de um virus ou a um ato de magia, a um desequilibrio de temperamen- to ow a qualquer proceso biofisico, a referén- cia a uma causa involuntaria seria a tinica condigiio de validade e de justificativa dessa forma universal de mau comportamento. Certamente, esta definigao levanta trés tipos de objegdes. A mais comum é que uma simples constatagio nosolgica ou sin- tomatica seja comumente suficiente para homologar uma “doenga”. Tanto na Africa como na Europa, o meu mal quase sempre exige apenas um diagnéstico nosol6gico e um tratamento sintomatico que nao é, necessa- riamente, seguido de uma investigagao etio- l6gica. Mas esta objegao é pouco comum: di- zer que 0 que acontece comigo é uma gripe ou uma crise de figado, ou até mesmo um cAncer ou qualquer espécie de patologia africana, 6 atribuir meu estado a uma causalidade localizada fora de minha in- tengao presente. Uma segunda objegao, mais plausivel, diz respeito A definigio social da “doenga” pela especificidade de sua legitimidade e de sua justificagao e A transferéncia de sua res- ponsabilidade sobre qualquer “causa” afetiva ou externa da vontade do individuo. Essa forma de legitimidade seria propria da “do- enca”? Basta consultar um pajé moundang ou senoufo para entender claramente que a sociedade nao prevé as técnicas especiais de justificar a pessoa doente e o fato que a responsabili- dade social desse comportamento pode sempre ser transferido para alguma causa, além da vontade da pessoa doente. Cadernos de Campo, Séo Paulo, n° 4, p. 137-168, 1994. justificagdo para comportamentos que ela denomina “doencas” e que ela nfo chama “doenga” todos os comportamentos anormais ou incomuns que atribui a um agente ou a um processo que escapa a vontade efetiva do individuo. No caso, por exemplo, em que o diagnéstico de uma agressao ou de uma san- ao mistica (feitigaria ou quebra de tabus), é a forma dominante de legitimar certas doen- cas’, essas formas de legitimidade aplicam- se igualmente as condutas do homem, impe- dido de arcar com suas responsabilidades sociais usuais, decorrentes de seus sucess vos fracassos comerciais, seus interminaveis conflitos com vizinhos ou a sua persistente ma sorte. Como as palavras enigmaticas de um anciao que se supée que transmitam as aspiragoes dos mortos de sua familia ou ain- da as cenas extravagantes de alguém possu- ido, essas condutas “desviantes” sao atribu- idas a aav efetiva de um agente ou de uma “causa” externa a vontade do individuo e, nao por isso etiquetadas como “doencas”, Mal, infortinio, doenga. A polivaléncia etiolégica das entidades causais. Em suma, levando em conta as reservas anteriores, cabe aqui lembrar um antigo e conhecido testemunho africano: uma vez vencido o limite da angistia social, certas doengas graves, agudas, atipicas, crénicas, repetitivas sfo explicadas, legitimadas e justificadas da mesma forma que outros in- fortinios que afetam os corpos, os bens e a vida social dos individuos (Zempléni 1982). 6. Dois casos que podem, respectivamente ilustrar: a obra cléssica de Evans-Pritchard (1937) e um traba- Iho recente de D. Sperber (1980) relative aos dorzé do sudeste da Etidpia. 140 Esta 6 uma propriedade freqiientemente evocada mas pouco explorada do pensamen- to selvagem, obscurecida pela angustia em encadear os acontecimentus nefastos — indi- viduais ou coletivos — os mais disparates. “Uma desgraca nunca vem s6”: existe sempre algo que a precede, a acompanha e a segue. O reumatismo agudo de meu tio, a perda do nosso gado, minhas dores de barriga, o abor- to de minha tia, meu revés profissional ou sentimental, a morte de meu primo, meus “pensamentos bizarros”, todos esses fatos podem repercutir uns nos outros como efei- tos do mesmo encadeamento causal ou como golpes sofridos pela integridade do proprio corpo, ou usando as palavras de J. Favret- Saada (1977), pelo mesmo campo social. E, se todos esses acontecimentos nefastos sao conexos e encadeados, significa que sao inter- pretaveis gragas aos mesmos esquemas etio- logicos tais como por exemplo a feitigaria. Em suma, é a polivaléncia etiolégica da maioria dos esquemas ou entidades tra- dicionais causais (divindades, feiticaria, mortes, poderes magicos...) que proibe o etndlogo de reservar a doenga “técnicas espe- ciais” de justificacao e legitimidade. Num texto classico, R. Hortin (1967, 1970) procu- rou mostrar que a substituigdo ou a comuta- edo dessas causas “magico-religiosas” pelo mesmo efeito, como por exemplo uma doen- ¢a, seria um dos postulados implicitos do pensamento tradicional africano, diferente do pensamento cientifico fundamentado nos lagos de causa e efeito biunivocos. Veremos que esta proposicio é bastante discutivel mas sua forma invertida 0 6 hem menos: a pluralidade e a permutabilidade dos efeitos possiveis da mesma “causa” invisivel é em alguns limites’ um vestigio comprovavel das concepgoes causais africanas’. 7. Aquelas onde os cédigos etiolégicos a priori (cf. infra) impdem a permutagao das causas e efeitos Qualquer que seja a extensdo dos conceitos de causa — esquemas ou entidades etiolégicas — “tradicionais” A doenga como sangao das con- dutas sociais proibidas - Usos sociais da doenga - O diagnésti- co como recurso judiciario inver- tido. Finalmente, a definig&io universal da doenga como mau-comportamento justificado em razao da transferéncia de responsabilidade para uma “causa” exterior a intengio do in- dividuo que sofre, levanta uma terceira ob- jecao etnoldgica. Diz respeito a prépria no- do de justificagao. Desde Rivers (1924), Hallowell (1941), Ackernecht (1945) até os dias de hoje, os etnélogos nao cessaram de privilegiar as mtiltiplas representacdes etio- légicas que caracterizam certos sintomas ou doengas, como sangdo de certas condutas so- ciais pruibidas ou inadequadas aos individu- os. Ficou evidente que estas representagdes s6cio-etiolégicas constituem uma forga pode- rosa do “controle social”, notadamente nas (por exemplo da feitigaria), os efeitos nao so atribui- dos a qualquer “causa magico-religiosa”. Para os Wolof do Senegal, por exemplo, a crise de angiistia, a agita- go psicomotora brutal, as sensagées de anormalida- de abrupta e outros sintomas agudos sao atribuidos a feitigaria (ndemm) ou ao ataque de jinne, enquanto que a perda gradual das capacidades fisicas ou inte- ectuais, a histeria, anorexia, malogros sucessivos, a insistente volta das mesmas “idéias bizarras’... e ou tros sintomas progressivos periddicos ou crénicos so atribuidos aco continua da magia (liggéy) ou dos espiritos ancestrais (rab.). Ver sobre este assunto: Zempléni (1968, 69, 83). 8, O esquema I representa a “sequéncia causal conver- gente” de Horton (1967:169) e o esquema II a forma inversa: 2 ape gt ti = 3 Weer rm pe 5 tenes x sre 3 Cait ae 3 eer omens Som Decker Esquema 1 Esquema 2 ‘141 A “Doenga”e suas “Causas”. sociedades desprovidas de organizagao poli- tica centralizada’. O que pensar hoje, deste axioma pro- veniente das primeiras pesquisas sobre “me- dicinas primitivas”? A antropologia da doen- (a se aproveitou e, se aproveita ainda do beneficio heuristico de uma reversio de pers- pectiva em relagao ao paradigma hipocratico. Sabemos que todas as medicinas so artes de cura dos individuos quando empregadas si- multaneamente dentro das regras sociais de suas respectivas “doengas”. O desprezo pelo conhecimento das representagées e das pra- ticas “médicas” que submetem o destino do individuo que sofre ao destino do grupo, é uma das maiores conseqiiéncias da profunda amnésia humanistica na qual o paradigma hipocrdtico de nossa medicina oficial enter- rou—e enterra ainda hoje —o sentido social da doenga. Em suma, a antropologia da do- enga nos leva a inverter o sentido sucial de nossas indagagées, questionando nao como o individuo usa dos meios oferecidos pela soci- edade para fazer frente aos problemas de satide mas como a sociedade ou a cultura aproveita-se das “doengas” para assegurar sua propria reprodugao ou fazer frente as suas proprias mutagées; como e em que me- 9. Depois Hallowell (1941), E. A. Ackernecht (1945) formula assim “a mensagem fundamental da medici- na primitiva”:—“Seja pacifica e a doenga polparé vocé e sua familia, ou eto desapareceré” ~ Ackernecht acrescenta: “os fundamentos mdgico-religiosos da medicina primitiva Ihe permitem ultrapassar sua fi- nalidade essencialmente médica. No seu universo a ducuyas Wrna-se a mais importante sangao da condu- ta social. Na sociedade primitiva, essa medicina mé- gico-religiosa presta de uma forma econémica, os mesmos servigos que, dentro de nossa sociedade, siio asseguradas pelos tribunais, policias, professores de escolas, padres ou soldados. O diagndstico da medici: na é um ato de justiga social!” Embora a leitura des- ses conceitos rudimentares possam, atualmente, apre- sentar certa estranheza, o premincio das pesquisas antropolégicas de hoje sustentam que as representa- goes e as prativas “da medicina” sdo constitutivas da organizacao sécio-politica. Cadernos de Campo, Séo Paulo, n° 4, p. 137-163, 1994. dida as fungées e a eficacia sociais das reso- lugGes “médicas” condicionam a sua escolha, o seu modo de agao e a sua eficdcia estrita- mente terapéutica; e, finalmente, em que consiste exatamente esses “usos sociais da doenga” e como se criam neles ou por meio deles as experiéncias patologicas dos indivi- duos (Zempléni 1982, 1983). Para voltarmos ao conceito de justifi- cacao, a forma mais elementar do uso da “do- enga” consiste em interpretar esta conduta social, involuntaria e isenta de sangao, pre- cisamente como a sangdo de uma conduta social anterior — indesejavel ou “desviante” — que se trata de reconstituir, estigmatizar e reparar por intermédio de qualquer pena convencional, por exemplo um rito de sacri- ficio (como também o exemplo simples e ci- tado da transgressao do proibido). Eis um caso observado pelo Dr. Sper- ber (1980). Maté, uma mulher dorzé (tribo africana) esta com os olhos inchados ha mui- tos dias. O curandeiro que ela consulta diz: “8 0 gome (0 proibido)"” do mel que o seu ma- rido guarda para as oferendas”. Maté admi- te ter comido dessa matéria oblatéria que Ihe 6 proibida e confessa ao esposo. O marido, entiio, procede a uma oferenda de mel, pres- crito pelo curandeiro, em recolhimento & transgressio do “gome” uma vez que para os “dorzé”, tal transgressao 6 condigao sine qua non de reparagio". Ele diz: “gome, doenca 10. Segundo Dr. Sperber, na comunidade dos dorzé a transgressio do proibido é uma forma de interpreta- cio to arraigada quanto da feiticaria na comunida- de Zande, segundo Evans Pritchard. Certamente os profanos conhecem varias centenas, os curandeiros experientes mais de um milhao de gome, atos proibi- dos de toda espécie, desde os atos essencialmente sim- bélicos (p. ex., montar um cachorro ou deixar cair lei- te no alimento cozido) até proibigies maiores, o incesto € 0 perjirio. Na concepgdo dorzé hé uma passagem imediata e circular da transgressio 4 sancao, diferen- te de outros sistemas. A sangao é automatica e “gome” pode ser traduzido tanto por “proibido” como por “transgressio” e “sangao. 11, Condigao, ao que parece, excepcional e e, em todo caso, inexistente nos casos analisados ou evocados 142 desapareca! Minha mulher e eu esquecemos que era proibida. Eu, chefe de familia, lider, derramo este mel dizendo: desaparega!”. Sem entrar nas implicagées familiarcs o sociais deste assunto, ressaltemos nesse comporta- mento trés momentos: a) a constatagéio do sintoma: Maté esta com os olhos doentes, e isto é justificavel porque ela nao tinha a menor intengao de desobedecer; b) o diagnos- tico etiolégico do curandeiro inverte o valor social do sintoma que acontece na sangiio de uma ma conduta social: em vez de “justificar” Maté, ele a culpa de transgressfio do gome de mel; c) finalmente a prescrigéio divinatéria consiste em fixar uma pena convencional (confissao e depois oferenda) que substitui a sangao-doenca. Se associarmos a este caso simples as varias formas etiolégicas que evidenciam, de um modo ou de outro, a responsabilidade do individuo na origem ou na persisténcia da doenga, a nogiio de “justificacao” parece im- propria para defini-la universalmente. No caso analisado, como em muitos outros, 0 diagnéstico se apresenta como um processo judicial inverso. Consiste no que se classifi- ca “delito” que provoca a sangao: ao invés de partir de um delito estabelecido para deter- minar a punigao apropriada, ele parte da “doenga-sangao” que identifica os comporta- mentos sociais proibidos ou indesejaveis. Veremos, entretanto, que todos os sistemas adivinhatérios nao provém da reconstituicao histérica de tais comportamentos ou delitos, coletivos ou individuais. mais abaixo por C.H. Pradelles de Latour (Bangwa), R. Detour Bangwa), R. Devish (Yuka) e pur mim mes- mo (Moundang, Senufo). A pluralidade causal: causas agentes, origens da doenga — Uma terminologia etiolégica. Uma vez apresentadas tais reservas, con- cluiu-se que a “causa” é, de fato, constitutiva da nogao de doenga. Na medicina e, portan- to, na antropologia da doenca, como em “Di- reito”, a causalidade nao é “uma reliquia do tempo” como dizia B. Russel. Nos trabalhos etioldgicos reina uma certa confusiio quanto ao uso e a definigao desses conceitos. Confu- sfio que reflete as controvérsias seculares da filosofia e trazem os seguintes problemas. O préprio conceito de “causa” seria desnecess4- rio e substituivel por outras nogées ? “Cau- sa” e “efeito” seriam necessariamente acon- tecimentos ou estados persistentes? Uma “causa” produziria um “efeito” em virtude de um poder ou de uma eficdcia que lhe é intrin- seca? A idéia do “poder ativo” da causa ou da eficacia causal seria indispensavel para a definicao das relagées, essencialmente, cau- sais? Poderiamos reduzir a diferenga entre a causalidade dos acontecimentos do mundo inorginico e a causalidade intencional que supde um agente”? Seria a relagao “causa- efeito” uma conexao necessdria ou somente uma “conjungio constante”? A relagao causal teria uma diregao temporal: as causas prece- deriam e careceriam de seus efeitos ¢ os efei- tos poderiam preceder e necessitar de suas causas? Se aponto esses problemas classicos é porque reaparecerao, na grande maioria, nos estudos de varios conceitos de causalidade da doenga. Conceitos que se caracterizam pela pluralidade das causas que a determina apesar da aparéncia, as etiologias raramen- te atribuem A doenca a uma tnica condigao 12. Ver sobre o assunto na obra recente de J.R. Searle, Intentiionality. An Essay in the Philosophy of Mind, Cambridge University Press, 1983. 143 A"Doenga”e suas “Causas”. antecedente que seria necessdria e suficien- te para produzi-la. Comecemos, entio, por sugerir uma terminologia rudimentar que evite, se possivel, os epitetos heteréclitos encontrados na literatura (causa “inicial”, “empirica”, “eficiente”, “sensivel”, “altima”, “final”, “terminal”, “varidvel”, etc). Mostra- mos, anteriormente (Sindzingre & Zempléni 1981-280) que o diagnéstico admite, quando muito, quatro operagdes e questionamentos correspondentes: 1) O reconhecimento do sintoma ou do esta- do da doenga e de sua eventual denominagao: de que sintoma ou doenga se trata? 2) A percepcao ou a representagiio de sua causa instrumental: como ela acontece? 3) A identificagao eventual do agente que é responsavel: quem ou o que a produziu? 4) A reconstituigado de sua origem: porque acontece nesse momento sob esta forma e nesse individuo? Nessa terminologia equivalente a ou- tras, a causa 6, ento, 0 meio ou o mecanis- mo — empirico ou nao — da criagao da doen- ca. O agente é aquele que detém a forga eficaz que a produz. A origem 6 0 acontecimento ou a conjuntura hist6rica cuja eventual recons- tituigdo torna inteligivel o aparecimento da doenga na vida dos individuos. Esquematizemos: atone? wat err eran? Tate Toga iene ‘erminoloias featranetal “iment “etana Esse quadro recompée a pluralidade causal que caracteriza a maioria das etio- logias. Eis trés exemplos bem diferentes. O paludismo tem como “causas” tanto a acdo bioquimica do plasmodium no sangue (cau- sa segundo nossa terminologia) quanto o hematozo4rio (seu agente) e a picada do anéfeles que o transmitiu — origem. Poderi- Cadernos de Campo, Séo Paulo, n° 4, p. 137-163, 1994. amos dizer que a AIDS tem uma triplice cau- salidade: a destruigao bioquimica do linfécito T4 seria a causa e o virus HTLVIII-LAV se- ria seu agente; certas relagdes homossoxuais, transfusdes sangiiineas, contatos intimos e outros... seriam a origem obscura onde se fundam os atuais costumes sociais — vito- rianos ou quase medievais — dessa doenca. Embora alguns colegas discordem, fagamos a analogia entre esses dois casos e 0 de um ataque de feitigaria identificado pelo curan- deiro Wolof, que aparece sob a forma de uma crise aguda de angustia (Zempléni 1968: cap. V). A causa dessa crise, na concepcdo Wolof, & a subtracao do principio vital — fit- locali- zado no figado da vitima. Seu agente é 0 fei- ticeiro-antropéfago (démm) e seu principio inato de feitigaria (ndémm), ou seja, uma espécie de par compardvel lato sensu ao por- tador do “virus da AIDS”. Sua origem é a si- tuagao vu avunlecimento (como por exemplo conflito de heranga) que suscitou a inveja desse feiticeiro e que o “inflamou”. Como no caso do paludismo ou da AIDS essas trés con- digdes causais sao, em tese, igualmente ne- cessdrias para explicar os sintomas do doen- te. Dai a necessidade de distinguir causa, agente e origem da doenga. Etiologias nao-sociais ou impessoais e causalidade social ou “intencional” - Medicinas letradas, medicinas sem escrita e medicina cosmopolita. Os artigos reunidos nesse volume testemu- nham que para enunciar o diagnéstico de uma doenga, na Africa como em qualquer outro lugar, nao ha a menor necessidade de identificar ao mesmo tempo, a causa, 0 agen- te, a origem — de que modo, quem, porque e o que. Em alguns casos, a dificuldade somen 144 te exige uma identificacdo nosolégica e um tratamento sintomatico, que nem por isso qualificariamos de “empirico”. Em outros casos, cla admite uma investigagao adivi- nhatéria e um tratamento etiolégico que re- integre os sintomas A causalidade invisivel, sem eliminar, no entanto, o tratamento sin- tomatico nem suas premissas simbélicas”. Por outro lado, os trés tipos de medi- cina no mundo (medicina ocidental ou cosmo- polita, as medicinas letradas ou sabias do Velho Mundo e as medicinas das sociedades sem escritas) nao privilegiam os mesmos ele- mentos do quadro etiolégico que acabamos de apresentar. Bem esquematicamente, a biomedici- na classica tem uma concepgao interiorizante da doenga. Ela privilegia, ainda hoje, o estu- do dos processos internos (0 como) e conside- ra como contingentes tanto a origem indivi- dual (0 porqué) da doenga quanto a situagao de seus agentes eventuais que cercam o do- ente, contrariamente ao que acreditam os epidemiologistas e os especialistas da medi- cina preventiva', Em termos globais, ao contrastar com a medicina cosmopolita, as artes de cura das sociedades sem escrita tendem para as con- copgdes exteriorizantes da doenga, para as quais conferem, muitas vezes, um sentido 13. Para lembrar uma observagao de Ackernecht (1946), desenvolvida recentemente por Augé (1984), se as medicinas africanas conhecem uma linha divi- séria, esta, por um lado, nao passa pelo “empirismo”, pelo “natural” ou pelo “objetivamente eficaz” e, por outro lado, ndo passa pelo “magico-religioso”, pelo “so- brenatural” ou “simbélico”. Apresentar por exemplo a priori as listagens mutuamente exclusivas das doen- as “naturais” e “sobrenaturais” que seriam estabe- lecidas a priori e respectivamente aos tratamentos “empiricos” e as curas magico-religiosas, é um erro analitico recorrente na maioria das monografias da atualidade. 14. A excegdo mais recente e a mais surpreendente & justamente a AIDS social. Sao essenciais a relagdo do doente com o meio social, a condigao desse meio e a dis- posigao dos agentes humanos e extra-huma- nos que nele residem. Essas medicinas ten- dem, portanto, a privilegiar o agente (0 que) a origem (0 por qué especifico) da “doenga”. Dissemos varias vezes que 0s agentes sao antropomérficos ou zoomérficos e as causas, de natureza social. Cabe ao diagnéstico etio- l6gico e divinatério identificd-los e prescrever os meios de restabelecimento das relagées do doente com seu meio social: um axioma co- mum dessas medicinas é que o tratamento do estado dos proprios corpos dos individuos passe pelo tratamento apropriado do estado dos corpos sociais aos quais pertencem'®. Para a medicina letrada do Velho Mundo — China, {ndia, Grécia Antiga,...—a doenga é um estado de desequilibrio dos prin- cipios ou dos temperamentos constituintes da pessoa e do cosmo: a maior preocupagao do médico é 0 restabelecimento desse equili- brio. A exemplo das artes de cura de trans- missao oral, essas medicinas letradas tam- bém sao centradas nos agentes (principios ou humores) mas estes sdo impessoais, univer- sais e a-sociais. A relagdo do doente com seu meio 6, igualmente, essencial uma vez que 0 equilibrio temperamental interno é funcao do estado de todo o sistema fisico (clima, es- tacéio, meio geografico, etc.). Em compensa- ao, como para a biomedicina classica, a ori- gem (0 porque do acontecimento) da doenga 6 contingente: o que provocou o desequilibrio, 15. Uma das maiores tarefas da antropologia da do- enga é mostrar os processos e os mecanismos de arti- culagio do social na origem, no desenvolvimento e na resolugo dos episédios da doenca. Num préximo ar- tigo procuramos analisar alguns aspectos desses processos e mecanismos. Ver Zempléni, A., “Entre ‘sickness’ et ‘illness’: de la socialisation l'indi- vidualisation de la maladie”, a ser publicado em So- cial Science and Medicine, em 1986. 145 A “Doenca”e suas “Causas”, nesse momento e nesse individuo em parti- cular, é de pouca importancia™, Que os especialistas das medicinas ci- tadas nos desculpem por esta colocacéo um pouco audaciosa: ela sé é valida para formu- lar questées gerais e restritas ao campo bas- tante complexo da causalidade. O que pensar da idéia tao criticada de Foster (1976), propondo que as medicinas no mundo sejam classificadas em dois blocos segundo o tipo de sua etiologia, “naturalista” ou “personalista”? Ser preciso rejeité-la to- talmente ou considerar que as medicinas le- tradas privilegiam as etiologias nao “natura- listas” mas impessoais e nAo-sociais e, as. medicinas sem escrita nao privilegiam as etiologias “personalistas” mas antes a causa- lidade social e intencional? Contudo, volta- mos a encontrar ai a questiio filos6fica, colo- cada muitas vezes, porém, sempre pendente, da distingiio entre causalidade intencional e causalidade impessoal do mundo inorganico. “Pessoal e impessoal” Em toda medicina, essa diferenca esconde a coexisténcia dos dois tipos de causalidade. E possivel mostrar que a incidéncia da causa- lidade intencional, quer pela imputagao da doenga instAncias antropomorfas, quer pe- las causas humanas, nao exclui a concepcaio simultanea dos estados patolégicos em ter- mos de desequilibrio de qualidades ou de principios impessoais, tais como o calor e 0 16. Como observa Foster (1976), mesmo que seja pos- sivel dizer que foi determinada pessoa ou individuo que transtornou, por negligéncia ou mA intengio, 0 equilibrio dos principios constitutivos do corpo, estas representagdes tém pouco valor analitico e pouca consequéncia prética. Cadernos de Campo, Sdo Paulo, n° 4, p. 137-163, 1994. frio. A situagao simétrica e inversa 6, deta- Thadamente, ilustrada neste mesmo volume pelo artigo de C. Friedberg sobre a medicina balinesa e as representagoes analisadas por C. Bougerol que testemunham nao apenas uma simples coexisténcia, mas uma verda- deira divisio do campo patolégico entre os dois tipos de causalidade. Por outro lado, um principio meto- dolégico, ao nosso ver crucial, é distinguir bem o suporte ou manipulador humano da forga eficaz,— do “poder ativo — que ele carre- ga ou manipula. Nao 6 o homossexual Du- pont mas seu virus HTLV III-LAV que o faz aidético. Se sou wolof, nao é 0 feiticeiro Ndiaye, mas “sua” feitigaria inata ou adqui- rida -“seu” ndémm- que me derruba. Nao é minha co-esposa Awa nem seu édio, mas “sua magia”- “seu” ligééy- que me torna esté- ril. Nao é 0 olhar mortifero de Aissa nem sua inveja mas “seu” mau-olhado — “seu” bét bu aay — que me desvitaliza, etc. Apesar da apa- réncia (que tem muito bem sua funcio), os referentes, propriamente, etiolégicos dessas interpretagdes pretensamente “personalis- tas” sao, de fato, entidades ou forgas impes- soais, preenchendo certas funcées terapéuti- cas e sociais provadas e necessdrias nas curas tradicionais (Zempléni 1985). Duas concepg¢ées concorrentes da doenga Se os dois tipos de causalidade, evocadas aci- ma, coexislem em toda medicina, significa uma provavel correlagdo entre as duas con- cepeées concorrentes da doenca, entre a quais a propria biomedicina nao tem deixado de oscilar no decorrer de sua histéria. C. Can- guilhem (1966) analisou estas duas concep- gdes de maneira profunda: uma concepedo ontolégica e pontual pela qual a doenga 6 um estado, para no dizer um ser, qualitativa- * 146 mente diferente da satide e, uma concepgio dinamista e funcional que reconhece uma diferenga de grau entre satide e doenca. A teoria dos germes, a descoberta progressiva das diversas doengas infecciosas ou parasita. rias reacendem, regularmente, a antiga con- cepgao ontolégica enquanto que os progres- sos da fisiopatologia, da bioquimica e da endocrinologia — todas as doencas com pre- fixos “dys”- reforgam, periodicamente, a con- cepgao dinamistae funcional. Basta pensar, por exemplo, na concorréncia entre as teori- as virol6gicas e bioquimicas do cancer, para se constatar a remanescéncia destas duas concepges milendrias da doenca na medici- na contemporanea, Etiologia da conjungaéo e etiologia da consecugao — A questao da temporalidade causal. Cabe ao antropélogo questionar se esses dois padrées nao corresponderiam a duas logicas etiolégicas ou, para simplificar, a duas etiolo- gias igualmente concorrentes. A filosofia oci- dental legou aos etndlogos uma concepcio particular de causalidade que os orienta quando abordam as etiologias indigenas. Em geral, concebe-se a doenga como aconteci- mento, quer dizer, uma mudanga que seria —na mente de seus interlocutores — o efeito de um outro acontecimento ou mudanga, isto 6, 0 efeito de uma “causa” mais ou me- nos pontual e complexa que lhe é anteceden- te, Em poucas palavras, como diz L. Van- dermeersch (1974:29), pressupdem-se que essas concepgoes indigenas obedegam a nos- sa légica de consecusdo causal. Ainda de acordo com 0 autor e outros sindlogos ou etndlogos, tal etiologia da consecugdo é, pro- vavelmente, oposta a uma etiologia da con- jungdo onde a doenga 6 apenas um estado de desarmonia momentanea dos diversos prin- cipios ou fatores cuja contribuicdo correspon- de ao estado de satide. Dentro de que para- metros as etiologias impessoais tanto das medicinas escritas — chinesa ou ayurvédica — quanto da cosmopolita, seriam regidas por essa légica de conjungao que em nossa con- cepciio da seqiiéncia causal seria, em circuns- tancias extremas, despojada de sentido"? Inversamente, até que ponto, as etiolo- gias “intencionais” de muitas sociedades sem escrita obedeceriam a nossa légica consecu- tiva que considera a doenca e sua suposta causa, acontecimentos e mudangas separa- das e situadas no tempo? Muitos autores desse volume questionam a dificuldade sobre a temporalidade etiolégica: uns a respeito das concepgées da contaminagiio (M. Perrim e Dupire); outros a propésito da distingao entre causalidade “linear” e “estrutural” (R. Devisch); outros ainda na busca das “causas da doenga num futuro anterior” (Ch. H. Pradelles de Latour) ou de sua origem his- térica no passado do doente (S. Fainzang). Fagamos uma dupla digressao antes de voltarmos a esta importante questo da tem- poralidade causal. 17. Como escreve Vandermeersch (1974: 29), “para uma mentalidade como a chinesa, na qual o prinefpio da ordem das coisas representa uma categoria funda- mental as nogdes de causa e efeito que conduzem a idéia de relagoes unilineares, segmentdrias e pobres de referéncias totalizantes parecem bem menos pertinen- tes que as de agenciamento e de organizagdo. Apliea- das, nas infimeras disposigdes orientadas e classifica- ses hierarquicas, sobrepondo-se ou alterando-se de vérias formas, terminam em séries, certamente, me- nos coerentes mas representando para a satisfacao do espirito serem superiores a superioridade ao corres- ponderem todas entre si por meio de uma identidade estrutural manifesta na unidade ordenada do univer- so. Através dessas inesgotaveis correspondéncias, os fenémenos nao aparecem cada um em particular como consequéncia de seus antecedentes mas, aa contrério, todos como indicios uns dos outros” (grifos meus). 147 A "Doenga”e suas “Causas”. Etiologias escritas e orais O leitar terd, certamente, percebido que a escrita 6 para nés uma hipotética e aproxi- mada linha diviséria entre as etiologias, es- sencialmente, nao-social ou impessoal e so- cial ou “intencional”. Com o risco de repetir 0 ébvio detenhamo-nos sobre este fato. E re- lativamente claro que a “razao grafica” (Goody, 1979) e a transmissao escrita favo- recem a confrontagao, a sistematizacao, a pa- dronizagao e também a dissocializagaio ou a despersonalizagio das teorias etiolégicas. Os primeiros tratados médicos — que traduzem apenas uma imagem deformada das medicinas das sociedades das quais elas provém ~ sao repertérios e associam-se a casuistica: os tratados ayurvédicos consis- tem, essencialmente, em listas de casos (sintomas ou sindromes) acompanhados de suas “causas” (impessoais) e suas solugées (Zimmermann 1978). A memorizagio destas listas, é facilitada por processos estilisticos particulares — como a versificagio — que de- terminam seus contetidos. Na tradigao indo- européia — como assinala Benveniste (1969, II, cap.4) — 0 papel do “médico” nao é 0 de “curar”, nem de “inovar” mas normalizar uma perturbagao definida, aplicando com autoridade uma “medida”- med" -“escolhida 18. Vejamos 0 explendoroso resumo de Benveniste (2969. II; 123): “o marco histérco, a raiz mod.- desig- na nogées muito diferentes — ‘governar’, pensar’, ‘tra- tar de medir’. A significacao original... pode-se definir por ‘medida’ nao de mensuragdo mas moderagio (lat. modus - modestas) propria para assegurar ou para restabelecer a ordem num corpo doente (lat. medeor, ‘tratar de’, médicas) no universo (....Zeus moderados)) nos procesos humanos dos mais graves como a guer- a, aos mais quotidianos como uma refeigio. Enfim, 0 homem que ‘sabe os medea’ (...) nao é um pensador, um fildsofo ~ 6 um desses chefes e moderadores (...) que em qualquer circunstancia sabem tomar as me- didas provadas que sdo necessérias. *Med ~ provém Cadernos de Campo, Sdo Paulo, n° 4, p. 137-163, 1994. num repertério de técnicas, receitas, formu- las, previamente estabelecidas e de eficacia jé comprovada”. O inventario sistematico dos casos — o repertério — é igualmente a forma caracteristica dos tratados médicos dos cal- deus. Leiamos 0 estudo de J. Bottero (1974) sobre adivinhagdo, na antiga Mesopotamia, no qual sao organizados segundo as mesmas regras de tratados divinatérios dos quais provavelmente sao provenientes. Portanto as formulas divinatérias, propriamente ditas, sao compostas de uma prétese imutavel pre- cedida de “se” — que indica um estado de fato observado: o pressdgio — e de uma apédose que marca, futuramente, 0 prognéstico — 0 ordculo -: “se um homem tem os pelos do pei- to virados para cima (entao) tornar-se-4 es- cravo”. Nas formulas médicas, 0 sintoma substitui o pressagio e sua causa postulada substitui o oraculo, também chamada ordem temporal invertida: “se um homem é vesgo dos dois olhos significa que seu cranio sofreu um choque e seu ‘raciocinio’ encontra-se (no) mesmo (estado) que seu cranio” (p.192). Mesmo sendo um truismo, a listagem sistematica e a aprendizagem mecanica de tais corpus de formulas — associando sinto- ma, causa e tratamento especifico — sao rarissimas nas sociedades sem escrita. Con- tudo, as nosologias e as etiologias orais sao freqiientemente descritas sob formas de pe- quenas listas ou quadros fechados, como se fossem totalizantes e assimilaveis aos corpus escrito. Nos ser feito a objeciio de que talvez as receitas de curas coletadas por alguns etndgrafos (Mallart, 1977) prestam-se mui- tissimo bem a este tipo de descrig&o. No en- tanto, estas receitas veiculam apenas uma categoria de conhecimentos etiolégicos: aque- les cuja aplicagao pressupde mas nao impli- ca, necessariamente, as qualidades ontold- ent&o do mesmo registro que ius e diré: é aregra estabelecida, n&o pela justiga mas pela ordem que o moderador tem por fungio, formular”. 148 gicas do curandeirismo que as aplica, nem do doente a quem elas se aplicam. Ora, essas qualidades ontolégicas — diversas formas de poderes inatos ou adquiridos — fazem parte integrante da maioria dos tratamentos etiolégicos. Além disso, a comunicagiio oral e inconsciente desses conhecimentos 6, geralmente, restrita, secreta e pontual: nao favorece sua sistematizagao e sua difusio. Seja como for, conhecemos mal os efeitos es- pecificos da transmissao oral a respeito das nogées etiolégicas. Tomando apenas dois exemplos, sua transmissao narrativa sob for- ma de histérias de casos ou de discurso tera- péuticos tem evidentes vantagens mnemo- técnicas, porém, o corolario, bem claro, é a particularizagdo e a personalizagdo dos co- nhecimentos etiolégicos. Pode-se dizer tanto e mais de sua transmissao no decorrer da agdo terapéutica: segundo Turner (1972), as curas tradicionais associam-se a verdadeiros “dramas sociais” que articulam, sincrénica e diacronicamente, uma multiplicidade de en- tidades invisiveis de princfpios e processos simbélicos, de atores, de relagées, de apostas, de regras e de axiomas sociais. O etndlogo é 0 tinico a procurar extrair disso um padrao aplicdvel de um caso a outro, de um curan- deiro a outro e no conjunto da sociedade. O aprendiz do local, “profissional” ou profano, no encontra nem conhece senéio conjunturas etiolégicas e terapéuticas variaveis segundo os casos. A transmissio oral, mecanica e contextual dos conhecimentos etiologicos confere, quase necessariamente a estes, um certo grau de inconsisténcia, de contradigao e de pluralidade. Por isso, 6, no minimo, um risco pressupor que as sociedades sem escri- ta totalizam estes “conhecimentos” em qual- quer “taxinomia”, “teoria” ou “sistema” etio- légico unico.

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