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LEITURAS 6:6 FILOSOFICAS BARBARA CASSIN ARISTOTELES E 0 LOGOS CONTOS DA FENOMENOLOGIA COMUM verunas QQ rrosorcas 1. A ordem do discurso Michel Foucault — 2. Sete ligdes sebre o ser Jacques Maritain 7 7 stoteles no século. Enrico Berti Tistoteles Enrico Berti 5. O que é a filosofia antiga? Pierre Hadot 6. Aristételes e 0 logos Barbara Cassin 7, O duplo oficio do filésofo estéico Rachel Gazolla 8. O saber dos antigos — terapia para os tempos atuais Giovanni Reale 9. O Niilismo Franco Volpi BarBarAa Cassin ae” OF cpl Boh ARISTOTELES E O LOGOS CONTOS DA FENOMENOLOGIA COMUM Tradugao: Luiz Paulo Rouanet Edigoes Loyola Titulo original: Aristote et le logos — contes de la phénoménologie ordinaire © Presses Universitaires de France, Paris, 1997 ISBN: 2-13-048851-X Edigaéo de texto Marcos Marcionilo Consultor clentifico Francisco Benjamin de Souza Netto Reviséo técnica e indicagao da bibliografia em portugués Dion Davi Macedo Revisiio Joseli Nunes Brito Diagramagio Telma dos 8. Custédio Edigées Loyola Rua 1822 n® 347 - Ipiranga 04216-000 Sio Paulo, SP Caixa Postal 42.335 — 04299-970 Sao Paulo, SP @ (011) 6914-1922 Fax: (011) 6163-4275 Home page e vendas: www.loyola.com.br email: loyola@ibm.net Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ow transmitida por qualquer forma efou quaisquer meios (eletrénico ou mecanico, incluindo fotocépia e gravacdo) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permisséo escrita da Editora. ISBN: 85-15-01831-4 © EDIGOES LOYOLA, Sao Paulo, Brasil, 1999 Agradecimentos Os capitulos deste livro foram objeto de uma comunicacéo ou de uma primeira publicacdo em revistas ou obras coletivas, sob forma ligeiramente diferente e com outras implicagdes quanto sofistica. Remeto, ao mesmo tempo que agradego aos editores, a: * “Parle si tu es um homme ou 1’exclusion transcentandale”, em Les Etudes philosophiques, Philosophie grecque/Aristote. Abril-ju- nho de 1988, pp. 145-155. * “Logos et politique. Politique, réthorique et sophistique chez Aristote”, em Aristote politique, études sur la Politique d'Aristote, editado por Pierre Aubenque e publicado por Alonso Tordesillas, Paris, Pur, 1993, pp. 367-398. ¢ Aristote avec et contre Kant”, em Penser avec Aristote, estudos reu- nidos sob a direcao de M. A. Sinaceur, Toulouse, Erés, 1991, pp- 341-366. * Dire ce qu’on voit, faire voire ce qu’on dit”, em Cahier de lEcole des sciences philosophiques et religieuses, Des lieux du Voir, Facultés universitaires Saint-Louis, 5-1989, pp. 7-37. * “Enquéte sur le logos dans le De Anima”, em Corps et dme, Sur le De Anima d’Aristote, Gilbert Romeyer Dherbey (ed.), estudos reunidos por Cristina Viano, Paris, Vrin, 1996, pp. 257-293. * “De l'objet de la sensation au sujet de la phrase”, Actas del Primer Congreso Internacional de Ontologia, Categorias e inteligibilidad global, coordenado por Victor Gomez Pin, Universidad Auténoma de Bacelona, Bellaterra, 1994, pp. 179-187. Sumario Apresentagao — Contos da fenomenologia comum ............ 9 Primeira Parte Falar como homem? I-Como a ética chega a linguagem, de Aristoteles a Habermas ... 25 Il - O homem, animal politico dotado de légos 43 III - Aristételes com e contra Kant: sobre a idéia de natureza humana..... 87 Segunda Parte Dizer o mundo? IV ~O mapa da fenomenologia .... V — Investigacao sobre o légos no De Anima . 149 Conclusdes ~ Do objeto da sensagao ao sujeito da frase .... 201 Anexo ~ Dossié textual: Da frase estética frase logica...... 223 Indice dos principais autores e das passagens citadas 241 Apresentacao Contos da fenomenologia comum “A seriedade ontoligica precisa de um humor diabélico ow fenomenolégico.” Gilles Deleuze, Foucault! ( /Aristételes sempre me pareceu (por mais presuncoso € ‘ingénuo que deva parecer tal juizo, e com razao) um fild- sofo de uma honestidade terrivel. Ele encara de frente ou com todas as forcas as questées mais completas e mais vio- lentamente dificeis (Metafisica Gama: “O principio que deve necessariamente possuir aquele que procura compreender um ente qualquer [...], que principio é este, podemos dizé- -lo agora”; Zeta: “O que € 0 dn, ou seja, o que é a ousia?”), sem que jamais sua inteligéncia, seu estilo, sua virtuosidade, sua exceléncia, ou o que quer que se queira, sirvam-lhe para escapar, para dizer com meias palavras, para esquivar- -representar, para deslocar-dar a entender, para intervir sem tocar nas questoes; em outros termos, diferentemente de Platéo e talvez como Kant, a escrita jamais o favorece. Do mesmo modo, isto é, enquanto homem de bem, sua relagao com o mundo, tanto no sentido de mundo 1, Foucault. Tradugao de Claudia Sant’Anna Martins. Sao Paulo: Editora Brasiliense, 1988, p. 118. Aristételes ¢ 0 ldgos fisico (a physis é pluralidade em movimento, o homem nao é€ nem um animal nem um deus), como no sentido de cultura, de organizagao humana ¢€ politica (todos os ho- mens desejam naturalmente saber, a cidade é uma plu- ralidade de cidadaos), ao mesmo tempo é € tornou-se estarrecedora de plenitude banal (no bom sentido, o mais bem partilhado, no qual Rimbaud dizia: “Desculpem-me se é banal”). Aristoteles viveu constantemente a déxa, repor- tando-se a ela (com a diaporética, a dialética, o justo meio- -termo, € to! essas espécies de justezas e de justigas fei- tas), constituindo-a em sua nobreza, a ponto de a prépria déxa ser, igualmente para nés, nao mais, certamente, como uma autoridade legiferante e legitimadora, mas antes como fonte, conhecida ou nao, das mais simples e das mais pe- renes constatagdes. gE parte integrante, salvo em cosmologia, sem divida, da qual saltamos para o universo infinito, de nossa vivéncia imediata e normal. Assim: “Tudo de que precisam aqueles que perguntam se se deve ou nao venerar os deuses e amar seus pais é de um bom corretivo, e tudo de que precisam aqueles que se perguntam se a neve é branca ou nao é olha-la” (Tépicos, I, 105 a 5-7). Com uma bela e boa frase desse género (que vale contra a impiedade de Protagoras, contra o Sobre a verdade, de Antifonte, contra o Sobre 0 ndo-ser, de Gérgias), encontramos a fenomenologia, ou antes os contos da feno- menologia comum. Maneira de dizer, de entrar em cena, que nao pretendo tratar aqui como “fenomenologia” em seu sentido de doutrina histérica e filosoficamente (histé- 2. Sobre 9 néo-ser ow sobre a natureza. Tradugio de Maria Cecilia Coelho, in Maria Cecilia Coelho, Gorgias: verdade e construgio discursiva, Dissertacio de Mestrado em Filosofia. Sio Paulo: USP, 1997, pp. 71-77. 10 Apresentagao rico-filosoficamente) datada, constituida, em modo critico € tético, com seus iniciadores e mestres. Tomarei “fenome- nologia” no sentido etimolégico, como relagao entre 0, ou do, fendmeno e 0, ou do, légos; portanto, igualmente no sentido grego dessa palavra que, em grego, nao existe ain- da; mas também, ao mesmo tempo, em um sentido de “fenomenologia” que Martin Heidegger, lendo e relendo incessantemente Aristételes, tera, 4 sua maneira grandiosa, aflorado as vezes como Obvio, tematizado as vezes em scus riscos e diferencas. Eis por que eu poderia dar uma epigrafe heideggeriana a cada momento deste livro. Ao todo, Aristételes e 0 légos: “A lingua é na medida em que é, como o Dasein, isto é&a lingua existe, ela é historial”; 4 parte Falar como homem?: “O desvelamento do presente — subsistindo encontra seu fun- damento no fato de que o Dasein enquanto existente diz respeito desde sempre a um mundo que esta aberto”, e, em refrao: “Quando um Dasein se comunica com outro Dasein...”; a parte Dizer 0 mundo?: “O enunciado é um fazer ver que evidencia o ente em questao”’, Nada mais justo do que isso em relagdo a trés pontos essenciais: 1) Trata-se, com a fenomenologia, em qualquer sentido que se a tome, e aqui com Aristételes, da “superacao da alternativa objetivo-subjetivo”*. 3. Todas estas citagdes foram extraidas de Les problémes fondameniaux de la phénoménologie. Trad. J-F. Courtine, Paris: Gallimard, 1985 (= GA, XXIV, Klostermann, 1975), curso do semestre de verao de 1927, respectivamente pp- 251, 260, 253 ¢ 264. 4, Retomo a formula de J.F. Lyotard em seu muito antigo e significa tivo, pois ainda “quente”, “Que saisje?” in Za phénoménoiogie. Paris: PUR, i Aristételer eo logos 2) O Aristoteles que leio ja foi lido por Heidegger (ja, desde sempre?, “desde sempre” sendo um sinal bem firme, como nota o préprio Heidegger, do “método fenomenolé- gico da ontologia” [ibid., p. 388]); é um Aristételes as vol- tas com o desvelamento, o apofantico, a co-pertinéncia. 3) £ também um Arisiételes em luta com, as voltas com, tomado na ou pela lingua, a lingua grega. Como o resume Jean-Frangois Courtine para caracterizar, em seu princfpio, a vertente regularmente positiva da interpreta- ¢ao fenomenolégica de Aristételes: “Aristételes teve acesso ‘ingenuamente’ — mas isto também em virtude de um privilégio da lingua grega — as coisas mesmas”. Eu poderia fornecer essas epigrafes, mas em sentido aproximado. 1954 (por exemplo, p. 70 da 6* edicgdo, 1967). [A fenomenologia. Sio Paulo: Martins Fontes, 1954; A fenomenologia. Tradugao de Mary Amazonas Leite de Barros. Sio Paulo: Difel, 1967] 5. “Une difficile wansaction: Heidegger, entre Aristote et Luther", in Nos Grecs et leurs modernes. Paris: Seuil, 1992, pp. 337-362, aqui p. 348. Terse-i comprecndido que nio posso nem quero, neste work in progress, nem fazer justiga a toda a leitura heideggeriana de Aristételes, nem explorar © caminho fenomenolégico percorrido por Heidegger. Para fazer uma ¢ outra coisa seria preciso apoiarse, por um lado, em F. Volpi. Heidegger « Aristotele, Padova: Daphne, 1984, e, em titimo lugar, em “La question du ligos chez le jeune Heidegger”, in Heidegger 1919-1929. De Cherméneutique de la facticité & la métaphysique du Dascin. Ed. JF. Courtine. Paris: Vrin, 1996, pp. 38-65, ¢ in J. Taminiaux. Lectures de Uontologie fondamentale, Essais sur Heidegger. Grenoble: Millon, 1989, cap. III (“La réapropriation de I'Lthique ¢ Nicomaque”); por outro lado, in J-F. Courtine. Heidegger et la phénoménologie. Paris: Vrin, 1990, em especial II, 4 (“Le préconcept de la phénoménologie et le probléme de ta vérité dans Sein und Zeit’). E partir novamente de Questions IV, “Mon chemin de pensée et la phénoménologie”: “Nela descobri [ao fazer um seminario sobre as Investigagées ligicas de Husserl] — antes conduzido por um pressentimento do que orientado por uma compreensiio bem fundada — o seguinte: o que para a fenomenologia 12 Apresentacgio Que significa isso? Ha um Aristételes, grego entre os gregos, modelo de uma fenomenologia realizada e feliz. Ouso dizer: um Aristételes paradigma do fenomenologicamente correto. Pois correto nao somente no a yontade, digamos ontoldgico e sapiencial, em dizer o mundo tal como ele é: fenomeno- logia na qual, segundo o grande mapa do De Interpretatione, as coisas, as afeccdes da alma e os sons da voz coincidem naturalmente. Mas correto também, de manecira mais deli- cada de definir e alcangar, quanto a relagao com outrem, digamos pratica e fronética, na qual os homens coincidem nao menos naturalmente em um mundo comum, vivivel e, inclusive poética e politicamente, apresentavel, no sentido, desta vez, de respcitavel. Ora, 0 efeito sofistico ressalta isto: como cada uma des- sas felicidades 6 uma pedra de tropeco. Por “efeito sofistico” pretendo designar o modo pelo qual uma histéria sofistica da filosofia provoca arrepios na histéria da filosofia. Este pequeno livro é, na verdade, o relevo aristotélico do Efeito sofistico. Parménides, Platao, dos atos conscientes se realiza como o automostrar-se dos fenémenos é pensado mais originariamente por Aristételes ¢ por todo o pensamento e existéncia dos gregos como Alétheia, como o desvelamento do que se apresen- ta, seu desocultamento e seu mostrar-se. Aquilo que as Frvestigasées redes- cobriram como a atitude basica do pensamento revela-se como o trago fun- damental do pensamento grego, quando nao da filosofia como tal “Quanto mais decisivamente esta convicgao se definia, tanto mais insis- tente tornava-se a questio: De onde e de que maneira se determina aquilo que, de acordo com o principio da fenomenologia, deve ser experimentado como ‘a coisa mesma’ (die Sacke selbst)? E ela a consciéncia e sua objetividade, ou € 0 ser do ente em seu desvelamento € ocultagao?” (texto publicado em 1963, trad. Beaufret, Fédier, Lauxerois, Roéls. Paris: Gallimard, 1976). 13 Aristételes ¢ 0 tégos Aristételes haviam sido os grandes destaques, indispensd- veis 4 constituigaéo do objeto sofistico; a contrapelo, a sofistica permitiu cerca-los, delimita-los, apreendé-los cada um de modo um pouco diferente. No entanto, o caso de Aristételes é¢ 0 mais complex: é ele, com efcito, que defi- ne a linguagem de forma a que a sofistica seja definitiva- mente privada de palavra (de filosofia, de humanidade); ao mesmo tempo, a diferenga de Platéo, mais exatamente porque existe Platio, a sua margem de manobra é das mais reduzidas: Arist6teles — seu sistema ou suas doutrinas — aparece como 0 resultado de uma dificil negociagao entre Platao e¢ a sofistica que permite, por exemplo, a expulsao bem-sucedida da sofistica para a literatura, mas que 0 obri- ga a partilhar, teses com ela, notadamente sobre o consen- so. Relevo deve scr entendido no sentido de resto: o que de Aristételes se desenha a partir de uma reflexao sobre a sofistica, mas que um livro sobre a sofistica nao teria neces- sariamente de dizer. Deve, desde logo, ser entendido tam- bém no sentido de eminéncia e de geografia: o que, em uma Antiguidade repovoada de maneira um pouco distin- ta, tendo como pano de fundo essa violenta critica da ontologia que constitui a sofistica, se vé de Aristételes dian- te de questées atuais. Como, pois, o efeito sofistico faz cada uma dessas bea- titudes fenomenolégicas parecer tanto abébora como car- ruagem (“a fenomenologia é pacificadora demais, ela aben- goou as coisas demais”, diz ainda Deleuze, Foucault, p. 120°), obstaculo aristotélico 4 fenomenologia’? 6. Deleuze, Foucaull, p. 120 da traducdo brasileira citada 7. Apéio, deste modo, a maneira pela qual as questées de nossos dias se deixam reunir no relato de Eric Alliez sob o titulo, de acordo com esta 14 Apresentacgio Nao é, mesmo que haja confluéncia, porque, ao modo heideggeriano e em conformidade com as criticas mais fenomenolégicas que Heidegger pode lhe dirigir, Aristételes também seria moderno, mesmo que as interpretagdes que fazem da verdade uma adequacao e do ldgos uma seqiién- cia de palavras fossem interpretagdes distorcidas historial- mente bem valorizadas. E antes porque Aristételes honesto, e sempre “sob a coercdo dos fendmenos” e “sob a coercgao da verdade”, nunca conseguiu se esconder, nem nos esconder, as dificul- dades constitutivas dessa fenomenologia feliz, nem deixou de constatar as aporias e tentar filosoficamente — isto é, afinando ou forjando conceitos —, dar-Thes remédio. Por vezes as dificuldades sao plenas, objetivadas, escan- caradas e tratadas tanto quanto se pode: 0 escravo por natureza tem e nao tem o légos em partilha, € e nao é um homem — pensa-se isto e, tudo somado, se 0 resolve bem ou mal, conceitual e realmente, pela educacao e pela noutética, que sao uma maneira de conduzir ao légos pe- lo logos, Mas, as vezes, a dificuldade é tao principial, tao cons- titutiva da “estrutura do mundo” que, mesmo. que ela nao se esconda, que nao seja objeto de truque algum, ou mes- mo salte aos olhos (eu diria: aos de Aristételes, que expri-_ me seu embaraco ou muda de registro, e aos nossos), nessa _ medida, ela s6 se administra ou regula por meio de uma apresentagio, De Vinpossibilité de la phénoménologie, Sur ta philosophie francaise contemporaine, Paris: Vrin, 1995. [Da impossibitidade da fenomenologia: sobre a filosofia francesa contemporénea, Traducio de Raquel de Almeida Prado e Ben- to Prado Jr. Sao Paulo: Editora 34, 1996]. 15 Aristételes ¢ 0 légas decisio arbitraria® ou um salto. Assim, o sofista que “fala pelo prazer de falar”, é ¢ nao um homem: se ele persevera, é uma planta, ¢ é necessario nao 86 decidir de uma vez por todas que falar é significar, mas fazer um enxerto ético, inserir na retorica um suplemento de boa inten¢ao, para que a retérica pe a sofistica e para que a politica seja preservada. Falar como homem? Que falar como homem nao seja evidente para todos os homens pode atormentar (assuma- mos 08 anacronismos) a natureza humana ou © serno- -mundo a titulo nao de declinio, mas de um mal radical. Todavia, a dificuldade propriamente impossivel de ser gerida é aquela que se poderia considerar fenomenologi- camente inscrita no préprio nticleo da fenomenologia. E € cla que tento explicitar aristotelicamente. O De Anima vem substituir e preencher o mapa do De Interpretatione: a alma é a consisténcia das reticéncias entre fenédmeno e légos, € o lugar entre coisas e palavras — lugar de coincidéncia, de co-pertinéncia, de descerramento —, lugar de troca, de ciframento, da transformacao (existem apenas derivagoes metaféricas, em um ou outro sentido). A alternativa objetivo-subjetivo encontra-se, dir-se-ia, desde sempre superada. Como um indicio bem certo, s6 e preci- so dizer: aisthésis, A aisthésis diz ao mesmo tempo a faculda- de de perceber (a sensibilidade), o exercicio dessa faculdade (a percep¢ao), sua distribuicdo ligada e nao ligada aos 6r gaos dos sentidos (os cinco sentidos, mas também o famoso senso comum), e as afeccdes, os patemas, produzidos pelos 8. A expressio “decisio arbitréria” traduz oukase, do russo ouliazai, edito pu- blicado pelo czar, mas também decisio arbitraria, ordem imperiosa [N. do R.]. 16 Apresentagio objetos dos sentidos (as sensagdes). Aristotcles a define cons- tantemente como uma coincidéncia em ato entre o érgao do sentido (aisthétérion) e 0 objeto sensivel sentido (aisthéton), e afirma a identidade sensagio-sentido “ao quase-ser™’. Essa definicao e a de alma (“enteléquia primeira de um corpo natural que possui a vida em poténcia”, H, 1, 412 a), que fazem intervir a poténcia e o alo, transporlam-nos a um mundo de outra evidéncia, ¢ bastam para passar a limpo os termos modernos da problematica da uniado da alma e do corpo (“Assim, nao cabe perguntar se a alma e 0 corpo constituem um s6, nao mais do que para a cera e a figura”, 412 6), juntamente com a do estatuto do objeto no sujeito (‘A quem ocorreria perguntar se ha na alma uma pedra ou um homem?”, I, 5, 410 @ 10 s.). De acordo. Mas 0 ponto de nao-passagem, de nao-poro- sidade, nao é mais do que singularmente circunscrito. Gaso se parta do que se faz sentir e que nao decepciona jamais, o “préprio”, por exemplo o visivel-visto (éo oraton) pelo olho — do amarelo —, chega-se, nao sem muita dificuldade ted- rica, notadamente gracas a possibilidade de sentir pelo menos dois préprios juntos, em comum (como efeito desse dunt que é justamente o “senso comum”), a perceber um algo que se mantenha — no cruzamento entre 0 amarelo € 0 amargo, veja, ha o fel! Mas esse reconhecimento estético (como se reconhece em uma tragédia)!° nao forma ainda, 9, Il, 2, 425 6 26-28, “O ato do sentido ¢ 0 da aisthésis sio uma ¢ a mesma coisa, mas seu ser nao é 0 mesmo”; 426 @ 16-17, “Na medida em que 9 ato do que sente (fou aisthétikou) ¢ do que é sentido (tow aisthétou) € um, mas que o ser difere...”. 10. Essa comparacdo com a Poética, que me foi sugerida por Monique Dixsaut, inclui-se entre os fios que faltam ser puxados, vinculando os dois sentidos de “estética”, o antigo ¢ o moderno. Anagnérixomen, "procedemos & W7 Aristételes € 0 légos de uma vez por todas, uma frase comum: permanece 0 hiato entre a ordem estética (eis o amarelo, trata-se de fel) e a ordem predicativa (o fel é amarclo). No enunciado normal, é ao sentido por acidente (0 fel e nao o amarelo) que cabe ser propriamente sujeito. Sem falar da diferenga entre esse fel bem fisico, que sentimos, de qualquer forma, por si, mesmo que ele se limite a produzir acidente no amarelo € no amargo, e “o filho de Diares”, esse outro tipo de sentido por acidente, que de fato nao tem nada a ver com a aisthésis, mas que constitui, quase, um bom sujcito légico. Em toda incorregao fenomenolégica, nao se cessa de cair, de texto em texto, 4 forcga de distincdes, arruma- y6es e ajustes, na discordaficia entre o objeto da sensagdo € 0 sujeito da frase, a sensacdo e sua expressio, o fendme- no € a gramatica. E verdade que bastaria.encadearse com as Categorias para que os sentidos acidentais fizessem esquecer para sem- pre sua acidentalidade,‘e para que eles se tornassem real- mente sujeitos, isto é, sujeitos por duas vezes em toda coin- um reconhecimento” (IH, 1, 425 @ 24, texto dos manuscritos L Ha P, retido por Barbotin, por exemplo, mas nao por Ross), quando sentimos dois préprios ao mesmo tempo (e por isso mesmo, de maneira acidental, sentidos “comuns” a varios préprios, como o movimento, por exemplo). De qual(is) tipo(s) de anagndnisis se trata — do pior, forjado pelo poeta, ou antes de um reconhecimento por signos distintivos, pouco melhores (Ulisses ¢ sua cicatriz), por lembranga (uma olhada sobre o quadro), por raciocinio (alguém parecido chegou, ou ninguém é parecido exceto Ores tes, logo foi Orestes quem chegou), ou ainda do melhor, pelos pragmata propriamente ditos (pelas vias do verossimil, a tinica a prescindir de sig- nos forjados ¢ de colares)?, cf. Poética, cap. 17. {Poética. Tradugao, comen- tarios € indices analitico ¢ onomdstico de Eudoro de Souza. So Paulo: Abril Cultural, 1984. (Os Pensadores); Arle poética. Traducio de Jaime Bruna, in Aristételes, Horacio, Longino. A poética cldssica. Sio Paulo: Cultrix/Edusp, 1981} 18 Apresentacao cidéncia entre a fisica e a légica, Como no primeiro dia, com éfeito, tudo pode doravante ser fenomenologicamente evidente, o fel € amarelo e o fel é amarelo: enquanto hypoketmenon, “sujeito” da proposicao, genitivo do qual. se” dizem os predicados, ¢ enquanto hypokeimenon, “substrato” da mudanga, dativo no qual sao os acidentes (“ E ousia, dita no primeiro sentido, soberana e maxima, aquela que, ao mesmo tempo, nao é dita em relagao a um sujeito e tampouco esta em um sujeito”; hé méte hath’hypoheimenon ti- nos legetai méle en hypokeimendi tini estin, 5, 2a 11-13), A sere- nidade desta definicaos constitutiva e principial, unindo | definitvamente, na nascefite ou na foz, conforme a pers- pectiva, as disjuncGes que fazem do De Anima uma tortura. Mas a inalteravel propriedade do préprio, do qual é, portanto, pelo menos enquanto costeamos Aristételes, tio dificil de sair sem se expulsar para fora do paraiso fenome- nolégico, e que constitui, contudo, uma das tematicas ca- racteristicas da fenomenologia na longa duragao, é final- mente, talvez, a mais perversa e menos questionada das “herangas da sofisiica. O tratado Sobre o ndo-ser (“Assim como a visio ndo chega a conhecer os sons da voz, a audicao tampouco ouve as cores...”) tera mostrado, em todo caso, segundo seu viés catastréfico habitual,;como, colado 4 idiotia dos préprios, um excesso de feniomenologia interdita a fenomenologia. Em tudo isso de nada mais se. trata senao de légos. De duas maneiras bem previsiveis. Primeiramente, por que todas essas dificuldades ligam-se 4s temAticas aristotélicas do logos como discurso dotado de sentido. Logo, e proprio do homem, que faz dele um animal mais politico do que os outros, mais perfectivel e tal que sua natureza seja a cultu- 19 Aristételes ¢ 0 légos ra, faculdade-poder clos animais racionais (dizer algo que tenha um sentido para si mesmo ¢ para outrem). E (a defini- cao do sentido esti igualmente nesse duplo e) abertura do/ao mundo como ele é, isto é, mesmo como ele nao é (dizer algo que tenha um sentido para si mesmo e para outrem). Estas tcmiaticas, que podem ser retomadas até a exaustao, tento detecté-las, como se faz com o barulho do motor, nos momentos em que elas giram fora do ponto. F entio que deparo a outra questio do légos. Aristételes honesto: a escrila jamais o favorece. Mas sua lingua, o grego, o favorece, Nao falemos mais de aisthésis, de hypoketmenon, pois o logos basta! Ainda até a exaustao, estamos no terreno do quem da mais, de Heliodoro a Heidegger'!, pleno de amplitude retrégrada, percebida como centrifuga ou como centripeta, da palavra diante da qual nossos discursos, lin- guagem, lingua, palavra, racionalidade, razao, inteligéncia, fundamento, motivo, propor¢ao, calculo, conta, valor, rela- tério, relacao, relato, tese, raciocinio, argumento, explica- cao, enunciado, proposicao, definigao, termo e nao sei mais © qué, prestam-se a rir e a chorar. Aristoteles entende as amplitudes e pondera-as no primeiro dos léxicos filosdficos que constitui o livro Della, mas nao temos éégos imediata- mente. Entretanto, em toda a sua obra, ¢ especialmente no 11. Heliodoro. Scholia in Dionysii Thrucis artem grammaticam. A. Hilgard (ed.). 1901 (= Grammatici Greci, I, 3), p. 353, 29, citado em part. por J Lallot, “Lordre de Ia langue. Observations sur la théorie grammaticale d’Apol- Jonius Dyscole”, in Philosophie du langage el grammaire dans U'Antiquité. Bruxelles/Grenoble, 1986, p. 418. De Heidegger, diremos passim, evidente- mente assinalando “Logos (Héraclite, fragment 50)", Essais et conférences. Tr. fr. 6# edi¢do. Paris: Gallimard, 1958, pp. 249-278, e Acheminement vers la pavole. Tr, fr. Paris: Gallimard, 1976. [Heidegger. Logos (Herdclito, fragmento 50). Traducao de Ernildo Stein. 2 edigio. Sio Paulo: Nova Cultural, 1978 (Os Pensadores)] 20 Apresentago De Anima, ele exp6e distintamente seus sentidos e, por unitaria que seja sua consisténcia, ele homonimiza ao ma- ximo. Ele joga contra sua lingua, ausculta-a e vigia-a para tentar evitar que ela caminhe sem ele, e considera que nisso reside seu officio de filésofo. Ainda ai, tento deter as ocasides em que as forcas concorrentes da lingua-mae e do filésofo, arrastado mas subindo na contracorrente, produ- zam bolhas fervilhantes de texto e prendam a interpreta- ¢4o numa armadilha. Uma sensacao é, assim, um logos de sentidos contrarios (vejo o cinza, e é uma soma de branco ¢ preto), ¢ ela lege: que se trata de cinza: que honesto so- bressalto de lado ou para tras pode, entao, avariar esse dito de modo indizivel, desde sempre sobredito? Veremos a noz e alguns pontos de fuga. Ou porque nao ha, nunca houve, fenomenologia feliz. 21 _ Priwetra Parte Falar como homem? Capitulo I Como a ética chega a linguagem, de Aristoteles a Habermas “Como a €tica chega a linguagem? A resposta, de Aristoteles até hoje, seria: com a exigéncia de sentido. A mesma estrutura: sentido, consenso, exclusdo, nao faria senao se repetir, desde a cena originaria criada por Aris- tételes, no livro Gama de sua Metafisica, como maquina de guerra contra os sofistas, semelhantes a plantas, esses pscudo-homens que pretendem falar por (pelo prazer de) falar; até as filosofias do consenso, éticas da comuni- cacao, pragmaticas da conversacao: Apel, Habermas, Rorty, cujas exigéncias decrescentes se chocam, contudo, com 0 mesmo tipo de maus outros, para serem excluidos, para fazer com que se excluam da humanidade. Assim o sen- tido, compreendido como exigéncia transcendental, isto é, como condicao de possibilidade da linguagem huma- na, sustém-se, e s6 se sustém, com uma exclusao nao menos transcendental que a prépria exigéncia. Ou, sim- plesmente, 0 senso comum, para ser senso e comum, produto do contra-senso, dos insensatos, e do nao-co- mum, do inumano. 25 Falar como homem? RESUMO DA CENA ORIGINARIA Aristételes ‘aba de enunciar o primeiro principio da ciéncia do ser enquanto ser, passado a posteridade sob o nome de principio de nao-contradigao. Tal principio, “o mais firme de todos”, é ao mesmo tempo “o mais conhe- cido” ¢, como o Bem de Platao, “nao depende de nada mais” (Metafisica, D 3, 1005 6 13-14). Ha porém quem o recuse, afirmando, ¢ afirmando sustentar, “que é possivel que a mesma coisa seja e nao seja” (4, 1005 6 35 — 1006 a 1): esses mal-educados obrigam Aristételes a demonstrar um principio, contudo, duas vezes indemonstravel, por que formalmente primeiro e por conter a propria possibilidade de todas as demonstragées. Arist6teles, apesar de tudo, 0 executa: “Mas pode-se demonstrar por refulagado Lambém a impossibili- dade disto (isto é, que 0 mesmo seja e ndo seja), desde que 0 adversdrio diga algo; e se nao diz nada, é ridiculo procurar dizer algo a alguém que néo lem nada a dizer, na medida em que ndo tem discurso alguin, pois tal homem, enquanto tal, é por isso semelhante a uma planta, E digo que demonstrar ¢ demonstrar por refutagéo diferem, pois aquele que fizesse uma demonstragdo retvindicaria visivelmente 0 que estava em ques- tdo no inicio, enquanto, se um outro fosse responsével por uma reivindicacao desse género, haveria refutagéo endo de- monstracao. Ora, 0 ponto de partida em todos os casos desse género ndo consisle em exigir que se diga que algo é ou nao é (pois néo tardaria a que se dissesse que se trata de uma peticao de principio), mas que pelo menos se signifique algo, para sie para tum outro; pois isso é necessdrio, a partir do momento em que se diz algo. Pois, para que nao signifique, 26 Gomo a ética chega A Tinguagem, de Aristételes a Habermas seria necessdrio ndo haver discurso, nem dirigido a si mesmo nem dirigido a outro. E, se alguém aceita significar, haverd demonstracdo: dai por diante haverd algo determinado. Mas 0 responsdvel ndo é aquele que demonstra, é aquele que se defende: pois, destruindo o discurso, ele mantém um discurso” (4, 1006 a 11-26)}. A estratégia de Arist6teles consiste em substituir a de- monstracao impossivel por outro tipo de demonstragao que, nao podendo evitar a peti¢ao inevitavel, joga todo o peso da responsabilidade sobre o outro. A demonstragao torna-se refutagao: ela evidencia que, ao negar o princi- pio, o proprio adversario o supds desde sempre; ela de- duz o principio de sua prépria negacao, por um “foi vocé quem disse”, Dois cenarios insuficientemente radicais devem ser re- jeitados. A refutagao nao é, como ocorre com frequéncia em Platao, a evidéncia de uma autocontradigao légica, por aplicagao da tese a si mesma; é claro, se o mesmo é e nao é, ele € ao mesmo tempo verdadeiro e falso; pela propria confisséo que a sustenta, essa tese nado ¢ menos falsa do que verdadeira: mas, precisamente, pouco importa, ja que o adversario exige o direito 4 contradigao. A refutagao tam- pouco funciona por autocontradig4o pragmatica; é claro que, a partir do momento em que o adversario aceita ter uma tese e defendé-la, ele faz pragmaticamente a peti¢ao de principio que combate: mas ele pode, mais uma vez, recusar-se a ler sua derrota em uma contradicao, mesmo 1. Tradugao publicada in La Décision du sens, em colaboracio com Michel Narcy. Paris: Vrin, 1988. [Traduzimos do francés em cotejo com a edigio trilingite (grego, latim ¢ espanbol) Metafisica. 2 ed. Trad. esp. de Valentin Garcia Yebra., Madri: Editorial Gredos, 1987. (N. do T).] 27

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