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Isso coloca o direito na posigao de assumir a “responsal rocesso de planificacio global”, com verdadeiras de politica social, o que exige uma competéncia cognitiva que esté além do instrumental juridico existente. Nesse contexto, o direito deve assumir-se como apenas um sistema dentro de um complexo ambiente, passando a se servir dos saberes das outras ciéncias so- ciais e principalmente autolimitando-se. E assim que se deve con- figurar 0 direito do Estado Regulador para dar conta dos imperati- vos de integracdo sistemica em que sistemas, com 0 econdmico e 0 politico-burocratico, devem ser articulados de forma reflexiva e coordenada, assim como o direito deve reorganizar ¢ refletir sobre si préprio, construindo autolimitagdes e fluxos comunicatives por canais principiol6gicos que Ihe deem consisténcia, fundamentacio ¢ permitam contrafaticamente a existéncia de uma esfera indi- vidual indevassdvel pela economia e pelo sistema politico-buro- exitico. 222 Idem. Ibidem, p. 49. Capitulo 3 A génese da regulagio A abordagem conjuntamente politica e juridica pode oferecer ‘uma perspectiva com elevado potencial de rendimento para a criti- ca de fendmenos jurfdicos, especialmente a regulacio. E um legado da Modernidade a simbiose entre os fenémenos sociais de natureza juridica e politica’. Daf que seja valida uma forma de enfrenta- mento critico do tema, em que nao procure aparté-los. A questo que se coloca neste momento do trabalho é qual abordagem adotar. Enfrentar a regulacao sé a partir de cada uma de suas facetas traz 0 risco de um possfvel excessivo fracionamento do tema. Explica-se, assim, a opgio por adentrar na regulacdo, enca- rando-a como tum jogo discursivo que deita raizes na definicao con- flituosa do local socialmente privilegiado para a produgio normati- va. E uma perspectiva genealdgica, de formacao do discurso sobre a regulacdo, com base em Foucault. Nesse sentido, a regulacdo € fruto de um deslocamento discur- ‘0. E preciso, de antemio, fugir de uma ingenuidade. Nao ha sen- tido algum em procurar a origem exata da regulagio, o momento fundante do seu aparecimento. Nas palavras de Foucault, “a genea- logia € cinza; ela é meticulosa e pacientemente documentéria. Ela trabalha com pergaminhos embaralhados, riscados, varias vezes reescritos” Com base em Nietzche, Foucault fala na recusa da pesquisa de origem (Ursprung), Procurar a esséncia exata da coisa, sua apresen- taco na mais pura possibilidade, sua identidade imutével e ante- rior a tudo que é acidente e externo € acreditar na metafisica, endo 223 Ver LUHMANN, Ni GREBELSKY, Gustavo et 1996, pp. 85 ¢ 86. 224 FOUCAULT, Mi de Janeiro: Ediies Gr La costituzione come acquiszione evo AH futuro della costituzione. Tei Microfsica do poder. Org e trad. Roberta Machado, Rio 1979, p15, na histéria. A esséncias é construfda pega por peca com elemen- ‘os originariamente estranhos. Na raiz das coisas nao esté a identi- dade, mas a disc6rdia e o disparate. Por isso, “a histéria ensina tam- bém a rir das solenidades da origem””®, alta origem reside no conforto de acreditar que as coisas na ‘sua aurora se encontravam em estado de perfeicio. O drama é que ‘0 comeco histérico é irdnico, ao se desfazerem todas as cadeias fac~ ‘uais. Nao esti af uma sede de verdade, que remete a um nao poder ser refutada pela longa maturagdo da histéria com a sua inalterabi- lidade. Dai que o "genealogista necessite da histéria para conjurar a quimera da origem, ‘A genealogia se entende melhor a partir de termos como prove- niéncia (Herkunft) e emergéncia (Entestehung). Proveniéncia (Herkunfi) remete ao tronco de uma raca. Nao se trata, no entanto, de encontrar um individuo que expresse esse pertencimento. Ao contrério, cuida-se de desvelar sutilezas e singularidades que for- mam uma rede de dificil desembaragamento. Assim, li onde se pretende a unificacio, a construcdo de uma identidade ou coerén- cia, 0 que aparece é uma miriade de acontecimentos entrelagados. Caracteriza-se uma inversio do sentido tradicional de hist6ria, € esta ndo é a Gnica, E 0 que assinala Foucault: Em certo sentido a genealogia retormia as trés modalidades da histéria que Nietzsche reconhecia em 1874. Retorna a elas superando obje- «goes que ele Ihes fazia em nome da vida, de seu poder de afirmar € ‘metamorfoseando-as: a veneragao dos mo- © respeito as antigas continuidades torna- se dissociacio sistemstica; a critica das injusticas do passado pela ver- dade que o homem detém hoje torna-se destruigio do sujeito de co- anhecimento pela injustica prépria da vontade de saber. Recusa-se uma evolugio da espécie ou de um povo. Na genea- logia, no se pode deixar de demarcar os acidentes, os desvios, as inversées, os erros e as falhas que casualmente deram nascimento duracio (HEIDEGGER, Martin. Ensaios ¢ 33), 226 FOUCAULT (Op, 227 Idem. Ibiber,p. 19. 120 ao que existe e tem importincia para nés. E preciso pér em suspen- so avvontade de verdade do conhecimento e encarar a exterioridade do acidente. Trata-se de enxergar na histéria as fissuras e as cama- das heterogeneas. Recusa-se um ato fundacional, optando-se por mobilidade e fragmentacio. © acontecimento na hist6ria no é uma simples batalha, um tratado, uma decisio etc. E, de fato, uma relacao de forcas que se inverte, um poder confiscado, uma dominacio que se enfraquece ¢ outra que se apresenta. A marca do acontecimento nao est4 numa unidade teleolégica, racional ou num destino. Esté no acaso do jogo, na sua unicidade e na sua agudeza, ‘De outro lado, a emergéncia (Entestehung) nao pode ser toma- da por um termo final. Ela é a entrada em cena das forcas, sta ir- rupgio, ‘0 salto pelo qual elas passam dos bastidores para 0 teatro, cada uma com seu vigor e sua prépria juventude"=. Vinculado a ela esté um lugar, ou melhor, um “nao lugar”, j4 que o enfrenta- mento dos adversirios nao ocorre no mesmo espaco. A emergéncia ocorre no intersticio. Para o fil6sofo francés, a peca que se representa nesse teatro, que € um no lugar, é sempre a mesma. Nas suas palavras: Em certo sentido, a peca representada nesse teatro sem lugar & sem- prea mesma: é aquela que repetem indefinidamente os dominadores © 0s dominados. Homens dominam outros homens e & assim que nas- ‘ce a diferenca de valores; classes dominam clases e€ assim que nasce a ideia de liberdade; homens se apoderam de coisas das quais eles ‘em necessidade para viver, eles Ihes impéem uma duragdo que elas no tém, ou eles as assimilam pela forca ~e é 0 nascimento da légica, .cio € mais uma‘ Nem mesmo as regras inibem esse jogo. As regras se estabele- cem num cendrio de poder e violéncia potencial. Ha uma disputa pelo apoderamento das regras, em que aquele que se introduzir nos aparelhos complexos da sociedade possa fazé-los funcionar, de modo que “os dominadores encontrar-se-do dominados por suas 228 Idem. Ibidem, p. 24 229 Idem. Tbidem, p25, préprias regras”. E o que se percebe claramente no poder de pro- ducio normativa, em que a funcio de legislar, produzindo normas auténomas e com sentido primério, desloca-se na distribuicdo esta~ tal dos poderes para os entes reguladores que operaram incessante- mente e acabam tendo como problema relevante o vinculo com a inconsisténcia e com a incoeréncia de suas normas. Ocorre que o direito no pode abordar a sociedade a partir de uma perspectiva de mera dominagio. A coercio juridica no pode operar como mera forca, objeto de disputas. A andlise aqui em- preendida denuncia uma relevante preocupacio. O deslocamento de um poder de produgio normativa levanta questées. Nao pode ‘um ente estatal deter competéncias com indagacées que deixam. sua legitimidade numa zona cinzenta. Por isso, uma preocupacio central em relacdo a regulacio é a busca de canais de justificacao e limitagio efetiva de seus amplos poderes. 3.1. A Soberania e o poder disciplinar E possfvel entender a regulacdo a partir de duas categorias den- tro das quais se reinem séries de acontecimentos que permitem vislumbrar um iter na distribuicio de poderes pretensamente legi- ‘timos na sociedade. Na visio de Foucault, opéem-se dois grandes sistemas de estudos do poder. Um primeiro tem raizes nos siste- ‘mas dos filésofos do século XVIII. O contrato seria a matriz.do po- der politico, em que os individuos o cederiam para consti Soberania®', A opressio estava no rompimento de um acordo, na uultrapassagem de seus limites. Uma segunda forma de exercicio de poder baseava-se na repressio néo mais como desrespeito a um contrato, mas, ao contrario, como simples continuagdo de domina- a0” pelo poder dise 251 Nas palavras de Jelinek: no mundo antigo faltava, com eet, a nica coisa que poderialevar essa nog de serum: a ops entre opoder patio « ‘ures poders [grea Impéro e grandes corporagdes no Estado) JELLINEK, Geor- “ibtat moderne et son droit. Trad. Georges Fads, Pais: M. Gira & £. Brite, 79) 232 FOUCAULT, Michel. Bm defesa da sociedade, Trad. Mari Ermantina Galvio. Sto Pavlo: Martins Fontes, 1999, p. 24 ese, fred No entanto, nas sociedades ocidentais o poder nao se apresenta isoladamente. Ele encontra dois pontos de referéncia e dois limi- tes: as regras de direito, que 0 delimitam formalmente; e os discu sos de verdade, que o poder produz e que se reconduzem a ele mesmo. Poder, direito e verdade formam um triangulo. O poder questiona, inquire, registra incessantemente para insti- tucionalizare profissionalizara busca da verdade. E por meio da pro- dugio da verdade que se geram riquezas. As formas juridicas ¢ suas regras, conjugadasa discursos de verdade, determinam julgamentos, condenagdes, classificagdes, tarefas, modos de vida etc. “Portanto, regras de direito, mecanismos de poder, efeitos de verdade. Ou ain- da: regras de poder e poder dos discursos verdadeiros" 2 Na visio de Foucault, hé um principio geral que estruturou esse jogo entre direito, politica e verdade: o de que, desde a Idade Mé- ia, a elaboracdo do pensamento juridico fez-se essencialmente so- bre o poder do rei. Inicialmente, a seu pedido e em seu proveito, como instrumento ou justificacio. O direito romano e o di ndnico permitiram construir instrumentos técnicos para con: © poder monarquico, sua autoridade e sua Administracao. Foi esse mesmo edificio juridico que, nos séculos seguintes, es- capou a0 controle do poder régio e se voltou contra ele, mas o tema continuow a ser os limites e as prerrogativas desse poder. Sejam 03 juristas servidores do rei ou seus adversérios, o tema € sempre 0 po- der régio, ou mais amplamente, a soberania®', Desde a Idade Mé dia, uma das principais preocupacées da teoria do direito € explicar sua legitimidade, dissolvendo, no cerne do poder, sua dominacio, fazendo aparecer as prerrogativas justas da soberania e o dever de obediéncia. Centrar-se na soberania quer dizer afastar e encobrir a dominacio. Em ue pese o caréter de unicidade propalado em torno da so- berania, a dominagao nao se exerce de uma posigio central, mas entre os stiditos, entre as autoridades. Nao se trata de um edificio i iplas sujeicdes que se apresentam no cor po social, Nao hi como negar que subjacente a todas as questdes de legitimidade do direito e de suas icdes est a coercao, Nao ar as formas regulares e legitimas do poder a partir de seu centro. E preciso captar 0 poder em suas ramificagSes e em sua 233 Idem, Ibider, p29. 234 Idem. Ibider, p. 30. 123 que “o poder nfo limita, mas produz, e o faz por uso." ‘Uma segunda adverténcia deve ser seguida: nio hé sentido em analisar 0 direito e 0 poder a partir de um plano ideal de intencao, de decisio ou de racionalidade, mas sim de ver como as coisas fun- cionam no nivel do processo de sujeicio. E preciso inverter a dtica sobre o Leviati. Nao se pode cuidar apenas das forcas centrifugas do medo e centripetas da ansia pelo poder que resultam no sobera- no. A atengao deve-se dirigir para os corpos periféricos. Uma terceira precaucio deve ser tomada: nfo se pode vislum- brar o poder como dominagio macica e homogénea entre indivi- ‘duos ou mesmo grupos. O poder é algo que circula, funciona em cadeia, em rede. © poder passa pelos individuos que podem ser considerados centros de transmissio. Nessa linha, “o individuo € uum efeito do poder e é, 20 mesmo tempo, na medida em que é um efeito seu, seu intermedidrio: 0 poder transita pelo individuo que ele constituiu.”2* ‘Uma quarta adverténcia é a de que o poder nfo deve ser objeto de uma anilise dedutiva, do centro para a periferia. O caminho é inverso. Cuida-se de uma anilise ascendente, de analisé-lo de suas, ramificages mais baixas até as de cima, mostrando como o poder , como por exemplo o Iucro ta precaucio enxérgar que as grandes maquinas de poder possivelmente se fizeram acompanhar de ideologias. Entre- tanto, na base o que se forma sio métodos de observaciio, técnicas de registro, procedimentos de inquérito, de pesquisa etc. O poder se exerce também em mecanismos sutis que slo aparelhos de saber ‘Com essas precauc6es, pode-se dizer que a teoria politica da so- berania desempenhou quatro papéis. Antes de mais nada, referiu- um poder efetivo, o do monarca feudal. Em segundo lugar, fot ins- trumento e justificativa para a constituicao de grandes monarquias administrativas, absolutistas. Em terceiro lugar, a partir dos séculos XVIe XVII, na época das guerras religiosas, a teoria da soberania ci culou entre monarquistas e antimonarquistas, para reforcar ou 235 FONSECA, Mi 2012, p. 159, FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Trad. Maria Ermantina Galva. G0 Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 35 fo Alves da. Michel Foucault eo direto, Sto Paulo: S: 124 dizer que, no perfodo feudal, a relacio de soberania recobria a tota- lidade do corpo social, podendo, ao menos no essencial, o poder ser explicado em termos de relacio soberano-siidito, Nos séculos XVII e XVIII surgiu uma nova mecanica de poder, incompativel com o foco exclusivo nas relagées de soberania. “Essa nova mecénica incide primeiro sobre os corpos e sobre o que eles fazem, mais do que sobre a terra e sobre seu produto"”, Esse me- canismo permite extrair mais tempo e trabalho do que bens e ri- queza. O poder se exerce continuamente por vigilincia e ndo des- continuamente por impostos. Seu pressuposto € uma trama cerra- da de coergdes materiais que vai muito além da existéncia fisica de um soberano. Define-se uma nova economia, baseada no cresci- ‘mento das forcas sujeitadas e na eficécia do que as Dito de outro modo, a teoria da soberania esta muito mais vin- culada a um poder que se exerce sobre a terra e seus produtos do que sobre corpos ¢ condutas. Ela se refere & extragio ¢ 8 apropria- io de bens e da riqueza, e nfo do trabalho e de sua organizacio. O poder politico Funda-se na existén a de um soberano, ¢ ndo em sistemas permanentes de vi poder dito absoluto pode encontrar respaldo no gasto irrestrito, mas é incapaz de cular 0 poder com um gasto minimo © uma eficiéncia maxima’, como ocorre no poder disciplinar?™. O novo tipo de poder que é indescritivel em termos de sobera- nia por sua heterogencidade é o poder disciplinar, uma das grandes inovacdes da sociedade burguesa. Ao contrério do poder feudal, que se baseava fundamentalmente na apropriacao e na retirada de bens, o poder disciplinar tem como fungio precipua “adestrar”, ‘mas justamente para se apropriar mais e melhor Ele no contém as forgas. Procura conecté-las para multiplics- las num todo utilizavel. Trabalha as massas e as multidées separan- do-as, analisando-as, diferenciando-as, para submeté-las em singt- laridades necessérias e suficientes para a produgao. Na dis 237 Idem. Ibider, p 42. 288 Idem. Ibider, p. 43. 239 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Trad. Raquel Ramalhete, Petropolis: Vo- 20s, 1987, p. 143, 12s fabricam-se individuos e individualidades, objetivando-os e trans- formando-os em instrumentos. ‘Ao contrério da soberania que se exerce triunfante e evidente, 0 poder disciplinar néo precisa de excessos. Exerce-se permanente- mente, de forma calculads, em procedimentos menores e se funda ‘em priticas de vigilinci hierarquia e de constante controle, exame. Para se tornar visivel, essa modalidade de poder depende de meios de coercio claramente identificaveis para quem se Ihes aplica, incia permanente, continua e funcional nio é uma grande inovagio técnica do século XVIII, mas sua extensio social, que acompanhou a industrializacdo ligando-se a economia e a seus dispositivos de inspirago mecinica. A ordem passou a ser, de tal modo, a de um poder miltiplo, automético ¢ anénimo, tecendo uma rede de relagdes em diversas direcies (de alto a baixo, de bai- xo para cima ¢ lateralmente), podendo-se falar em “fiscais perma nentemente fiscalizados”". Se ¢ fato a existéncia de um chefe, 60 0 inteiro que produz o poder ¢ o distribui entre os indivi- s individualidades e seus papéis de forma continua, De algum modo se pode dizer que o poder disciplinar esté em toda a parte e sempre alerta, embora discreto por funcionar perma- nentemente e em siléncio, As técnicas de controle e vigilincia, a do poder”, Ihes permitem pelo célculo e pelas regras (nor- ago) no recosrer, em. a0 excesso Por meio das disciplinas, reforca-se o poder da norma, da norma~ lizagao social. O normal se estabelece mesmo como principio de en- 240) Idem. Ibidem, p. 148, ; 241 A abordagem funciona e destaca a distribuigio de poder, dando énfase as , Hoje qualquer avonento,diversificacdo erefinamento de poder depende de organizagdes formais. Isso notavelmente verdade no caso do desenvolvimento de longa e mais permanentes ca ddeias de poder, para indiretas formas do seu uso na diregdo do exercicio de poder por ‘outros e pelo icremento de sua eetvidade no sentido de que com wma decisao wna ps ir varias decises resltantes que, indvidualmente, nao podem ser antecipadas, mas que sao, no entanto,essencialmente conectadas a primeira. Claro, [para estabelecerinterconexdes dentra de organizagdes¢ a longo de suas linha de co” ‘mando, ainda se podem encontrar mecanismos de dominagae pessoal. Isso ndo pode ser negado nem subestimado. Entretanto, eles so guiados pela liica da organizagio eper- ‘manecem dependentes na ocupacda de posicao dentro delas. 242 FOUCAULT (Op. cit, p. 148). 126 sino’, Assim como a vigilincia, a regulamentacio passa a temporaneamente um grande instrument. Os stattis, 0s priv © 0 parentesco vao-se substituindo por filiagio a uma homogeneida- de social, de acordo com classificacées, hierarquizacbes, situacées etc, O regramento, ao tempo em que uniformiza, permite medir desvios, niveis, especialidades, utilidades e seus ajustes. A normali- zacio pode, inclusive, funcionar dentro de tum sistema de igualdade formal com a distribuicio de graduacio de diferencas individuais. Com isso, as disciplinas podem controlar multiplicidades hu- ‘manas com base em trés critérios: desonerar o exercicio do poder, diminuindo suas despesas; por sua fraca exteriorizacdo, suscitar Pouca resisténcia; € estender o poder social ao maximo de intensi- dade e tio distante quanto possivel, sem lacunas evidentes. Isso possibilita uma economia completamente diversa com base em mecanismos de poder que, no lugar de retirar ou deduzir, se integram & eficdcia produtiva dos aparelhos e ao seu crescimen- to. As disciplinas permitem substituir o antigo principio de “retira- da-violéncia” pelo “suavidade producio-lucro”™, Sao técnicas que permitem agregar individuos e individualidades e multiplicar os aparelhos de producio. Nos séculos XVI e XVII, surge um direito piblico de oposicio, uma limitagio externa a razio de governar’**, Historicamente, a burguesia tornow-se, no século XVIII, a classe dominante, instalan- do um quadro juridico explicito, codificado, baseado na igualdade formal e organizado com base num regime parlamentar e repre- sentativo. Direito constituido como leis fundamentais do reino como limite 3 razio de Estado. Como ressaltado, a generalizacio dos dispositivos disciplinares constitui uma outra vertente obscura de tal processo. Ao mesmo [Passo que o regime representativo possibilita a formacio idealizada de uma vontade ger linas na base garantem a submissio das forcas e o seu smento utilitério, As disciplinas formam sistemas de saberes ¢ préticas que distri- bbuem assimetricamente o poder na sociedade. Enquanto os mas juridicos procuram a universalidade ¢ a isonomia, as discipli- 248 Idem. Ibidem, 244 Idem, Ibider, p. 245 FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Biopoltica. Sto Paul: Martins Fontes, 2008, p10. Ry nas caracterizam, classificam, especializam; distribuem ao longo de ‘uma escala, repartem em tomo de uma norma, hierarquizam e si- tuam: luos € idualidades””. Aeextensio universal dos direitos de uma soberania poy cionada corresponde, nas disciplinas, um panoptismo™ do em toda a parte que faz funcionar, a0 arrepio do direito, uma ‘maquinaria ao mesmo tempo imensa e mintiscula que sustent forca, multiplica a assimetria dos poderes”"*, Ainda nas palavras de Foucaul Aeextensio dos métodos disciplinares se inscreve num amplo proces- 0 hist6rico: 0 desenvolvimento mais ou menos na mesma época de \virias outras tecnologias - agrondmicas, industriais, econér que reconhecer, a0 lado da indistria mineira, da qui dos métodos de contabilidade nacional, ao lado dos ‘nos ou da méquina a vapor, o panoptismo foi pouco celebrado’ De fato, a soberania continuou a existir na teoria jt fundamento basilar das constituigdes. Isso se explica porque a teo- ria da soberania foi adotada como instrumento de critica e prote- cio contra 0 monarca € o poder absoluto e todos aqueles que se opuseram a0 poder disciplinar. Em segundo plano, a adocio da teo- ria da soberania em termos democraticos e populares encobria os sistemas de dominacio e disciplina com a dispersio de direitos. ‘Como legado, temos nas sociedades contemporineas, a partir do século XIX, 0 discurso juridico, cujo direito pablico articula-se ‘ma cerrada de coergSes disciplinares garante a coesao desse mesmo 246 FOUCAULT, Michel. Vigir ¢ punir. Trad. Raquel Ramalhete, Petr6polis: Vo- es, 1987, p. 183. 247 © panoptismo pode ser entendido a pati de uma extensio metaférica do panép- 248 Idem. Ibidem, p. 184. 249 Idem. Ibider, p. 185, 128 corpo social, O exercicio do poder acontece entre esses dois tes heterogéneos. ‘As disciplinas tém um caminko proprio. Criam aparelho de sa~ bere conhecimento. Seu discurso nao é 0 do direito baseado na so- berania popular. E da regra, o da norma, que se apoia na natureza, na ciéncia. Em Foucault: [...] Que, atualmente, o poder se exerca ao mesmo tempo através desse direito e dessas técnicas, que essas técnicas das. cesses discursos nascidos da dis invadam o direito, que os pro- cedimentos da normalizacao colonizem cada vex mais os procedimen- ‘os da lei, iss0, acho eu, que pode explicar o funcionamento global daguilo que eu chamaria uma ‘sociedade de normalizacio’. Quero dizer, mais precisamente, isto: eu creio que a normelizacio, normalizacées di res, vérn cada vez. mais esbarrar contra o si da soberania; cada vez mais nitidamente aparece a lade de umas com 0 outro; cada vez mais é necesséria de discurso arbitro, uma espécie de poder e de saber que sua sacralizagio cientifica tornaria neutros. [..] Esse excurso te6rico permite vislumbrar a rota da distribuicdo de poderes normativos a partir da irrupeao das forcas burguesas. Ao espalhava-se um poder discip| ava novas individualidades e as normaliza ‘ciplinas, no século XVIII, surge outra tecnologia de poder, Foucault™ afirma terem ocorrido duas revolugdes relati- vas ao tema: “a descoberta da disciplina ea descoberta da regulagio, oaperfeicoamento de uma anatomo-politica e o aperfeicoamento de uma biopolitica”. A par da soberania, coloca-se a nova forma de exercicio de poder, a regul Antes, s6 havia sujeitos, sujeitos juridicos dos quais se podiam retirar bens e a vida também, Com o desenvolvimento de uma série de técnicas de observacio, inclusive a estatist grandes 6rgdos administrativos, econdmicos e politicos passa-se a serir uma populacao. A normalizacio do corpo e do individuo so- mou-se uma normalizacio da populacio, como massa ¢ espécie, formando-se curvas de normalidade como pardmetro de remodela- 250 FOUCAULT, au Brésil, hel. Les Mailles du pouvoir ~ Conferance de Miche! Foucaul “hutp/Iibertaie.free.fr/MFoucault101 html", acesso em 02/03/2017. 129 mento das desfavoraveis, das desviantes, construindo-se normali- dades diferenciais, a partir da localizagao das diferentes curvas de distribuicdes de normalidades. E um novo tipo de governo de con- dutas, em que nio hé necessariament mente a construgio de zonas de aceital A vida passou agora a ser um objeto de poder: ha corpos, nas disciplinas, e populagao, na regulacio. O poder se materializou, deixando de ser essencialmente juridico e tratando de coisas reais que sio os corpos e a vida, num agregado populacional. A vida entra no dominio do poder. Hé, entéo, uma mutaco fundamental no do- io do poder. Sao mutacées originadas pelo desenvolvimento do ismo e que o tornam possivel. Até aqui falou-se bastante das mas a emergéncia do liberalismo traz uma nova forma do exercicio do poder inerente a0 capitalismo, que € a regulacio e a gestao de uma populagio, formada por individuos maximizadores de seu bem-estar, que Foucault chama também de biopolitica. 3.2. O liberalismo e 0 neoliberalismo na génese da regulacao 3.2.1. O liberalismo Ao lado do direito paiblico, surgido nos séculos XVI e XVII, ‘como um direito de oposigio, limitando externamente 0 poder do Estado, surge, no século XVIII, uma limitacao intrinseca ao gover- legitimo, como até entio a filosofia po- ficava, mas sim algo novo: 0 governo inapto. Nao é tampouco mero conselho prudencial, mas razio advinda de princi- ios sempre vilidos em determinadas circunstancias, por forca de ‘quase-naturais gestadas na economia politica, entdo entendida como “todo método de governo capaz de assegurar a prosperidade de uma nagio” ou “reflexdo geral sobre a organizacio, a distribui- ‘slo e a limitacdo dos poderes numa sociedade”?. Os fisiocratas defendiam um poder compativel com o despotis- mo, Sobre impostos, nao se trata de saber se sio legitimos, mas se 251 FOUCAULT, Michel. Securité,teritoir, population. Paris: Gi 2006, p.73. 252 FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Biopolitica. So Paulo: Martins Fontes, 2008, p.18 imard-Seuil, 130 so adequados os seus efeitos. O que se descobre é uma naturalida- de da pratica governamental, havendo a substituigao da legitimida- de pelo sucesso. O pior vicio de um governo no € ser mau, mas ignorante. O governo deve autolimitar-se e guiar-se para adequadamente atingir as suas metas. E isso que foi introduzi- do na razio de governar pela economia politica Nesse linha, a obra inaugural da economia za das Nagies", escrita por um professor de moral e jurisprudéncia, ‘Adam Smith, ¢ com um titulo que denota um conselho ao Sobera- zo para aceitar uma nova ética, baseada num comportamento i vidual que buscava a satisfacio egofstica ¢ racional de interesses, que resultaria em prosperidade econémica, a partir da acumulacéo individual de riquezas*. Esse comportamento defendido por ‘Adam Smith acabou tornando-se comportamento, como postula- do da economia, dando lugar ao homo oeconomicus. Economia politica que vai conferir o instrumental para definir a adequacio das ages governamentais, no como uma limitagio pelos objetivos do governo, mas de seus meios, ao ditar as formas de melhor obter os resultados desejados pelo govern, com uma delimitacdo entre a agenda e no agenda do governo (Benthan), coisas a fazer e a ndo fazer, para que o Estado atinja 0 seu objetivo de enriquecer®', E um processo de regulacio e de demarcacéo en- tre governantes e governados. Objeta-se o governar demais, 0 ex- cesso de governo. poder passa a ser racionalizado nio mais por princfpios mo- rais, mas por proposicdes submetidas a juizos de verdadeiro e falso. Enquanto na razio de Estado o governo deveria ser profundo e in- ‘tenso, a partir da economia politica, o governo deve ser adequado ¢ obter éxitos no ambito da economia. A politica e a economia or- zganizam-se num conjunto de pritica e regime de verdade forman- 253 Bo que se depreende do seguintestrecho: "O esforco natural de cada individuo ro sentido de melhorar sua propria condicio, quando sofrco paaexercer-se com liber- dade e seguranca, & um principio tio poderoso, que ele &capaz, sozinho e sem qual- levara sociedad d igueza ¢& prosperidade, mas de supe- Londtes: Ed. Cannan, 1976, p49) 254 BENTHAM, Jeremy, Jueremy’s Benthan Economics Writings. ep, 1954, 305/380.

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