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IDEOGRAMA LOGICA POESIA LINGUAGEM HAROLDO DE CAMI retin Pik 0s Caaic donno Ge Calopto mPa (IP) (Glnart Brat dob, 58 Bes) gee pa hae peg etek ray te ann ed ‘Prd ede dS 188 kept, ime sssicc1704 1. Cnt = arta 2 Ligon 8. Poon 4 Senin 1 cmon Hac 138 ae coat despa cog stems 1. ecg Lngisin Alt Bd. da Ania Rios - Cidade Universtria Palo SP Bead Fax (011) 2114868 / SIBAIS6 / 184160 SUMARIO Nota do Onganizador 9 Hoaroldo de Campos Fenollosa Revisitado u Haroldo de Campos Tdeograma, Anagrama, Diagrama: Uma Leitura de Fenollosa 2B Emest Fenollosa (Os Caracteres da Escrita Chinesa como Instrumento para a Poesia 109 Sierguéi Eisenstein © Principio Cinematogréfico eo Ideograma 49 Sierguéi Eisenstein O PRINCIPIO CINEMATOGRAFICO E 0 IDEOGRAMA Escrever um panfleto sobre uma coisa que nao existe realmen- te € uma procza extraordinéria e maravilhosa. Nao existe, por exemplo, cinema sem cinematografia. No entanto, 0 autor do pan- fleto que precede este ensaio! conseguiu escrever um livro sobre o cinema de um pais que nao tem cinematografia. A respeito do cine- ma de um pais que tem, em sua cultura, um néimero infinito de ca- racteristicas cinematograficas, espalhadas por toda parte, exceto exatamente em seu ... cinema. O presente ensaio trata das caracteristicas cinematograficas da cultura japonesa que permanecem fora do cinema japonés, fi- cando tao distante do panfleto anterior quanto essas caracteristicas © estio do cinema japonés. Cinema: um bom mimero de empresas, tais ¢ tais inversdes de capital, estas ¢ mais aquclas estrelas,tais e tais dramas, Cinematografia: antes de tudo e acima de tudo, montagem. cinema japones esta otimaménte provido de empresas pro- dutoras, atores e argumento. Mas o cinema japonés no tem a me- 1. te eno de Eerie florignlnete pied como “posi” so iro de N, Kaufman, tens Jepont Mosca, 129 [Ehersten parece inguin chee, isin cinematorticn, © ‘inenetai, ngage prepa do clnema (N. do O)} 0 eogrono nor consciéncia da montagem. Nao obstante, o principio da montagem pode ser identificado como elemento basico da cultura figurativa japonesa. Escrita ~ porque sua escrita é antes de tudo figural O hierdglifo. 7 ‘A imagem naturalista de um objeto, tal como o retrata a habil mio chinesa de Ts'ang Chieh, 2650 anos antes da nossa era, esque- matizase ligeiramente e, com seus 539 companheiros, forma o pri- meiro “contingente” de hierdglifos. Riscada com um estilete sobre uma tira de bambu, a imagem de um abjeto mantinha a semelhanca ‘com 0 seu original, em todos os aspectos. Mas depois, por volta do final do terceiro século, inventouse © pincel. No primeiro século depois do “feliz acontecimento” (A. D,)- 0 papel. E, finalmente, no ano 220 ~ a tinta da India Uma subversio total. Uma revolugio na arte de desenhar. E, depois de passar, no decorrer da Histéria, por nada menos de qua- torze estilos diferentes de caligrafia, o hierdglifo cristalizouse em sua forma atual. Os meios de produgao (pincel ¢ tinta da [ndia) de- terminaram a forma. As quatorze reformas seguiram seus ruriios. Como resultado: I awy, No fogoso e pinoteante hierdglifo ma (um cavalo) jé é impossi- vel reconhecer os tiacos do lindo cavalinho pateticamente apoiado nas patas traseiras, no estilo da escrita de Ts'ang Chieh, que os anti- gos bronzes chineses tornaram tio conhecido. Deixemos, porém, 0 lindo cavalinho descansar na santa paz do Senhor, juntamenté com os outros restantes 607 simbolos fsiang- cheng ~ a mais antiga das categorias de hieréglifos remanescentes. (0 Principio Cinemaogrfco eo Ideograme 1 © verdadeiro interesse comeca com a segunda categoria de hieréglifos - a dos huei-i, isto € “copulativos”. ‘A questio é que a cépula (talvez fosse melhor dizer a combina- io) de dois hierSglifos da série mais simples ndo deve ser conside- Tada como uma soma deles ¢ sim como seu produto, isto é como tum valor de outra dimensio, de outro grau; cada um deles, separa- damente, corresponde a um objeto, a um fato, mas sua combinagao corresponde a um conceit. Do amalgama de hieréglifos isolados saiu o ideograma. A combinaga6 de dois elementos suscetiveis de serem “pintados” permite a representagio de algo que nao pode ser graficamente retratado. Por exemplo: o desenho da gua ¢ o desenho de um olho sig- nificam “‘chorar”; 0 desenho de uma orelha perto do desenho de ‘uma porta = “ouvir”, uum céo + uma boca = “latir”; ‘uma boca + uma crianga ‘uma boca + um péssaro = “cantar”; uma faca + um coragio = “tristeza”, e assim por diante*, Mas, isto é ... montagem! Sim, & exatamente isto que fazemos no cinema, combinando tomadas que pintam, de significado singelo ¢ conteddo neutro - para formar contextos ¢ séries intelectuais. Isto constitui um recurso e um método inevitaveis em toda ex- posigao cinematogréfica. E, numa forma condensada ¢ purificada, € © ponto de partida do “cinema intelectual”. De um cinema que busque um laconismo miximo para a re wresentagao visual de conceit 5. Gaudemos entao o método do muito pranteado Ts'ang Chieh como um primeiro passo dado nesses caminhos, Falamos em laconismo. O laconismo nos fornece uma transi- io para outro ponto. O Japio possui a forma mais lacénica de poe- _sia: 0 haicai (que apareceu no inicio do século Xi € hoje conhecido 2. fom Pere Abel Résat, Rehr git a omation de etre hin, Pass SE.) 12. ecgrame ‘como haiku ou hokku) € 0 ainda mais antigo tanca (mitologicamente dado como tendo sido criado a0 mesmo tempo que o céu ¢ a terra). Ambos sio pouco mais que hierdglifos transformados em fra- ses, Tanto que metade de sua qualidade é avaliada por sua caligra- fia. O método de resolugio de ambos é inteiramente andlogo 4 estrutura do ideograma. Como o ideograma fornece um meio para a impressio lacbnica de um conceito abstrato, esse mesmo método, quando transposto para uma exposigio literdria, dé origem a um laconismo idéntico, de agudez imagética. Aplicado a colisio de uma sdbria combinagao de simbolos, 0 método tem como resultado uma enxuta definigio de conceitos abstratos. O mesmo método, desenvolvido no fausto de um grupo de combinagées verbais jé formadas, expande-se num esplendor de efeito imagistico. © conceito é uma férmula, pura ¢ simples; sua ornamentagio (uma expansio devida aos materiais adicionais) transforma a fér- mula em imagem ~ uma forma acabada. Exatamente assim, embora em sentido contrario, como um processo de pensamento primitivo - 0 pensamento imagistico, des- locado até um ponto definido, acabase transformando em racioci- nio conceitual. Voltemo-nos, porém, para exemplos: O haicai é um esboco impressionista concentrado: Um como slitrio Sobre um galho sem olan, ‘Uma noite de outono, Basid (Que aa resplandecete! ‘Atombra dos galho do piezo Sobre a stir Roxas ‘Sopra uma brs vespertina ‘Adgua se encrespa (Conta at perms da grea al Boson (0 Princpl Cnematogrdico¢ deograma 13 Madrag oda : 0 caste et cereado De gion de patorselagens Kroroxu® tanca, mais antigo, é pouco mais comprido: 6 faisto da montana Jongas si as penas que arrastas pelasencostas arboresidas, como longas me parecem a8 noites ‘a cama, slitério, a buscar sono. Hirroxsno()* Do nosso ponto de vista, estas sio frases de montagem. Séries de tomadas. A simples combinacio de dois ou trés pormenores de tipo material produz uma representacao perfeitamente acabada de ‘uma outra espécie ~ psicolégica. E se os gumes bem afiados dos conceitos intelectuais definidos, formados pelos ideogramas combinados, ficam algo indistintos nes- ses poemas, todavia, no que toca & qualidade emocional os conceitos desabrocharam de maneira incomensuravel. Deverfamos observar que a emocio ¢ dirigida para o leitor porque, como disse Yone No- guchi, “é o leitor que faz da imperfeicdo do haiku uma perfeicéo de arte”, Com relagio & escrita japonesa, podese discutir se 0 aspecto predominante é 0 de sistema de caracteres (denotativo) ou o de criagéo grafica independente (pictural, figurativa). Seja como for, criado pela dupla unio do figurativo (quanto ao método) e do de- notativo (quanto a finalidade), o ideograma deu desenvolyimento a esas duas linhas (ndo historicamente consecutivas, mas consecuti- vas em principio nas mentes daqueles que claboraram 0 método). Allinha denotativa prosseguiu em literatura, no tanca, como vi- ‘mos; mas nio foi s6 isso; exatamente esse mesmo mérito (em seu SS Haidy Pens, Ancient end Modes, adstidor¢ anotados por Miamori Astaro, Téquio, Maren {Co 1940 [As moan eiinda pels J.Lo de Joy Ley, que vere para 0 ings ete er si} 44 Freevck Vicor Dickng, Primi and Melia Jeunes Tet, Oxford, Clarendon Pres, 1906 (S. B 5. Yone Noguchi Th Spinto Japan Paty, Loney, Joho Murry, 1944S.) 134 Heograno aspecto figurativo) também esti em agéo nos exemplos mais perfei tos da arte pict6rica japonesa. ‘Sharaku - o criador das mais lindas gravuras do século X¥IM, € particularmente de uma galria,imortal de retratos de atores. O Daumier japonés. Nao obstante, quase que desconhecido entre nés. Os tragos caracterfsticos de sua obra s6 foram analisados em nosso séeulo. Um de seus criticos, Julius Kurth, ao discutir a influéncia exercida pela escultura sobre Sharaku, faz um paralelo entre a xilo- gravura do ator Nakayama Tomisaburo, por Sharaku, ¢ uma antiga mascara do teatro semi-religioso né, a mascara de um Roz0. [As fisonomias da gravura¢ da méscara motram uma exasiidniz.. OS tragose ov volumes te dauibuem da mesma mancira,embora a mascara represente vimvcthorcerdote, a gravura una mulher ove. Esa parecena 6 impressions a Zaretanto, ab outros anpecton, os dls trbalos so ineramente dlerentes; inn por mesma, js uma demonsrago da originalidade de Sharaky. Enquanto 2 vaesersctulids fo trabalhada em obediéncia a proporges anatbmics bastante prec a1proporges do retrato grado slo simplemente iverowimcs O ep rave ov ole abrange uma dstnca que representa um excrnio ao bom senso. 5 comprimente do aris telavament as olhos€ quaseo dobro do que qualquer sare roma te atevera a apresentar e 0 uso nfo tem a menor telago com = rane pe rancliny castes ao gure ievemedinerimente despropordo- maivente a O memos fod ora todas grands eb de Shara, Eident- Then, nto eabe aui a questo de que o artista no tivese pereebido que todas areas roporges cram erradas, Fi de manera plenamenteconscinte que ele rep ‘Gow ynematdadee,enbora o desero dos trios inolads depends de um nat ‘ammo vigorormenteconcentrado ab proporgs os rast. aram sbordnadas sromidetacdesexclyivament intlectsis,Sharaku talc a etnciada expres to psi come norma pra as propos decode um ds ag. 6 Jobe Kath, Shard, od. Monique, Riper, 192. Agra de Shara mencionada a de (0 Principio Cinrmargrfco eo Ideograma Iss Nao € este 0 processo do ideograma, que combina uma “boca” isolada e 0 simbolo dissociado de “crianga”” para formar © significado de “grito”? Nio-fazemas._nés.do_cinema,com.ofluxo. temporal, aquilo ‘que Sharaku fazia com a simultaneidade, ao provocarmos uma des- proporgio monstruosa entre as partes de um acontecimento que vai fluindo normalmente € que & de repente desmembrado num “primeiro plano de mios que se agarram", em.“planos médios de uta” ¢, finalmente, em “closes enormes de olhos esbugalhados”, ‘quando efetuamos, através da montagem, a desintegracio de.acon- tecimento em diversos planos? Quando fazemos um olho duas ve- zes maior do que 0 corpo inteiro de um homem? Ao combinarmos cessas incongruéncias monstruosas, nés voltamos a organizar 0 acon- tecimento desintegrado para formar de novo um todo, mas segun- do nosso ponto de vista, De acordo com o tratamento que damos & nossa relacio com 0 acontecimento. ‘A representagio desproporcional de um acontecimento nos é organicamente natural desde a infincia. O prof. Liiria, do Instituto Psicolégico de Moscow, mostrottme um desenho, feito por uma crianga, representando o ato de “acender um fogio”. Esta tudo re- presentado de maneira razoavelmente equilibrada ¢ com grande cuidado. A lenha. O fogio. A chaminé. Mas 0 que sio esses zigue- zagues no grande retingulo central? Acontece que sio ... fsforos. Levando em conta a importéncia fundamental dos fésforos para 0 processo representado, a crianga cria para eles ima escala adequa- aa. 2, wo eatlogo cole por HatldC, Hendon ¢ Los V. Leos The Srsig Wars of Shor, pbce de Wethe, Soca de Edo pone 1996-8 cL) 1. E posal renontar fonts angi, quse petra de endnca carci (em Inde engines ns tumann sx ees de cod com ma import Asin ne Guanes or ques sido un Snare apenas meade de um homer guano feta meramcte formar go cna cpa 0 ave dio ine, per fino de adeanio ete tmaaho agua. O dip fro de Conic See en ie ge un mmr ime Tal aeamento pode we eto a0 log de ola terete denen ate chi te an sexpe onejponens gar: aes mtr na Sempre ef incr persate esa lt tbo sen ets jis oe ses da perspec roma reypenendo ane cents ric dx componie As gus de pret pl fe poder di, prs vr crue exc ee enquane qu es esd tiny emasadamete pees parser impor pti, ederim br muetdon pare teri de conrpor ena ou to pre no” (SE) Ges ear e Ceorge Rowley Pip of Chines Pning Picton Ue Pre, 147 156 Ideoyame A representacio dos objetos nas proporgdes reais (absolutas) que Ihes sio proprias é, evidentemente, apenas um tributo & Logica Formal ortodoxa. Uma subordinagio a uma ordem de coisas invio- Havel. Tanto na pintura como na escultura, hd um retorno periédico ¢ invaridvel aos perfodos de dominio do absolutismo. Substituindo a expressividade da desproporcio arcaica pelas “tabuas da lei” da hharmonia decretada oficialmente. realismo absoluto nao constitui, de maneira alguma, a for- ma correta de percepcio. E funcéo apenas de certa forma de estru- tura social. Como decorréncia de uma monarquia estatal, implanta-se uma uniformidade estatal de pensamento. Uma unifor- midade ideolégica suscetivel de ser desenvolvida pictoricamente has fileiras de cores ¢ desenhos dos uniformes dos regimentos da Guarda... ‘Vimos assim de que maneira o principio do hierdglifo ~ “de- notagio pela representacio figurativa” - se divide em dois: segun- do a finalidade (principio de “denotagio”), dando lugar aos principios de criagio de imagens literérias; segundo o método de realizago dessa finalidade (principio de ““representacio figurati- va"), engendrando os surpreendentes métodos de expressividade usados por Sharaku®, 5 E assim como os dois bragos estendidos de uma hipérbole se encontram, como dizemos, no infinito (embora ninguém tenha visi- tado essa regio tio distante!), também o principio dos hierdglifos, que-se subdivide infinitamente em duas partes (segundo a funcio dos simbolos), volta inesperadamente a se unir, a partir desse duplo distanciamento, numa outra, quarta esfera - no teatro. Durante tanto tempo distanciados, eos mais uma vez - no perfodo inicial do drama ~ presentes numa forma paralela, num cu- rioso dualismo. A significagio (denotagio) da agéo efetuase gracas ao rec vo do Joruri por uma voz atras do palco; a vepresenterdo (Figuracio) | Couke «James Joyce devenoher em errs perl (pie do berg japon ‘adept de sise de Shara felts por Kurth poe er pada thle caramene, Jone Se (0 Principio Cinematordic eo Hengrama 17 fica a cargo das marionetes silenciosas sobre o palco. Juntamente com um estilo especifico de movimentagio, esse arcafsmo se trans- feriu para a fase inicial do teatro Kabuki. Persiste até hoje, como método parcial, no repertério cléssico (no ‘qual certas partes da agio sio narradas por tras do palco enquanto o ator faz a mimica). Mas nio € disto que se trata, O fato mais importante é que na propria técnica da representagio teatral 0 método ideogréfico (montagem) foi inculcado por meios extremamente interessantes. Contudo, antes de passar a discutir esse aspecto, permitam- nos 0 luxo de uma digressio ~ referente ao plano cinematogrifico (shot), para deixar de uma ver. por todas assentada a discutida ques- tio de sua natureza. Uma tomada. Um pedago isolado de celulbide. Uma pequeni: na moldura retangular dentro da qual existe, organizado de certo ‘modo, um fragmento de acontecimento. ‘Argamassadas, essas tomadas (ou planos) formam a monta- gem. Evidentemente, quando isso ¢ feito num ritmo adequado! De um modo geral, € 0 que ensina a velha ¢ revelha escola de filmagem, que tem como refrdo: Parafuso por parafiso, ijl por tjolo Kulechév, por exemplo, chega a escrever com um tijolo: Se voc® tem wma idtnfase, uma paricla de eséria, um elo do conjunto da ‘adeia dramitica, essa idéia deverd ser expres e acumulada a partir de tomadas- rmancia de joes! “A tomada (o plano) é um elemento de montagem. A monta- gem a reuniio desses elementos.” Esta é uma pseudo-andlise ex: © tremamemte perniciosa. ‘A compreensio do proceso em conjunto (conexio, monta- gem de planos) decorre af apenas das indicagées externas de sua se- qiéncia (um pedaco argamassado a outro pedago). Poderseia es Klein, Me Kin, Lenard 1989S.) 138 ear chegar dessa maneira & conhecida conclusto de que os bondes exis- tem para serem colocados atravessados nas ruas. Dedugio inteira- mente l6gica, se nos limitarmos as indicagdes externas das funcdes por eles exercidas durante as lutas de barricadas, em fevereiro de 1917, na Riissia. Mas a concepcao materialista da Hist6ria leva a in- terpretagio bem diferente. © pior de tudo é que uma abordagem desse primeiro tipo, ‘como um bonde intransponivel, obstaculiza realmente as potenciali- dades do desenvolvimento formal. Uma abordagem de tal natureza passa por cima do desenvolvimento dialético, e nos condena a um “aperfeicoamento” simplesmente evolutivo, na medida em que nio oferece nenhum ensejo de penetrar na substincia dialética dos acon- tecimentos. ‘A Tongo prazo, esse evolucionismo, ou leva & decadéncia atra- vés do refinamento, ou, por outro lado, a um simples estiolamento provocado pela estagnacio do sangue. Por estranho que pareca, uma testemunha melodiosa dessas duas lamentéveis eventualidades é, a um s6 tempo, o iiltimo filme de Kulechv, © Candrio Alegre (1929). ‘A tomada nao é, de maneira alguma, um elemento da monta- gem ‘A tomada é uma célula da montagem. Assim como, ao se dividirem, as cétulas formam um fenémeno de outra natureza ~ 0 organismo ou embrido - assim também, no outro extremo do salto dialético a partir da tomada, temos a monta- gem. © que, entio, caracteriza a montagem e, conseqiientemente, a sua céula - a tomada (0 plano)? ‘A colisto, © confito entre dois pedagos, um em oposigao wo outro. O contflito. A colisio. Tenho a minha frente uma folha de papel amarfanhada e ama- relecida. E nela, uma nota misteriosa: ““Encadeamento - P" e “Colisio ~ E”. Trata-se de um vestigio substancial de um acalorado debate so- bre a questio de mohtagem, entre P (Pudévkin) ¢ E (Eisenstein). Isso se transformou num hébito. A intervalos regulares, Pur dévkin me vem visitar, jé noite alta, e a portas fechadas discutimos Principio Cinonatorifco eo deprana 19 questdes de principios. Diplomado pela escola de Kulechév, ele de- fende veementemente a compreensio da montagem como um enca- deamento de pedacos. Uma cadeia. Novamente, os “tijolos”. Tijolos dispostos em séries para expor uma Eu Ihe contrapus minha concepcio da montagem como coli sio. Concepcio segundo a qual, da colisto de dois fatores determi: ae : da colisio de dois fatores determi De acordo com o meu ponto de vista, o encadeamento ¢ ape- nas iim caso especial, possivel. —Teembremo-nos do mimero infinito de combinagdes, em Fisica, presumivelmente capazes de surgir do impacto (colisio) de esferas Tudo depende de serem tais esferas elésticas, nio-clisticas, ou de natureza mista, Entre todas essas combinagdes, existe uma nia qual © impacto € tio fraco que a colisio se degrada e dé um movimento uniforme de ambas as esferas na mesma diregao. Esta tiltima combinagio é a que corresponderia ao ponto de vista de Pudévkin. ‘Nao faz muito tempo, tivemos outra conversa, Ele hoje con- corda com meu ponto de vista. Na verdade, cle aproveitou, no in- tervalo, a dportunidade de tomar conhecimento da série de conferéncias que pronunciei, no mesmo periodo, no Instituto Esta- dual de Cinema... Portanto, montagem é conflito. Como a base de toda arte é confito (uma transformagio “ima- gistica” do principio dialético). A tomada (plano) surge como célula da montagem. Por conseguinte, deve ser também considerada a partir do ponto de vista do conflito. Conflito dentro do plano é montagem potencial, que, no de- serwalvimento de sua intensidade, esfacela a prisio quadrilitera da tomada e explode o seu contfito em impulsos de montagem entre as pegas da montage. Como num ziguezague de mimica, a mise en scéne jorra num ziguezague espacial com 0 mesmo esfacelamento. Tal como o slogan “Todos os obsticulos sfo initeis diante dos russos” explode na multiplicidade de incidentes de Guerva ¢ Paz. No caso de compararse a montagem a alguma coisa, a falange de fragmentos de montagem, de tomadas, deveria ser comparada & série de explosdes de um motor de combustio interna, a impelir 10 Heograma para a frente um automével ou trator: porque, da mesma forma, a dinémica da montagem age como impulso que impele para a frente a totalidade do filme. Conflito dentro da.compasicia fenquadramento). Pode assu- mir aspectos muito variados: pode ser, inclusive, um conflito na es- téria. Como naquele periodo “préhistérico” dos filmes (embora atualmente também cxistam intimeros casos do mesmo tipo), quan- do cenas inteiras eram fotografadas numa s6 tomada, sem cortes. Isto, entretanto, escapa a estrta jurisdigao da forma do filme. Sao 0s seguintes os conflitos “cinematogréficos” dentro da composicio (enquadramento): + Conflito de diregoes grificas Linhas ~ estiticas ou dinamicas + Confito de escalas + Conflito de volumes + Gonflito de massas Linhas ~ estaticas ou dindmicas Volumes preenchidos com diversas intensidades de luz + Conflito de profundidades E 08 conflitos seguintes, cuja intensificagio exige apenas mais ipulso, antes da irrupgio em pares de fragmentos antagéni- + Tomadas de primeiro palno ¢ tomadas de planos de conjunto. «+ Fragmentos com diregdes graficamente diversificadas. Fragmentos resolvem em volumes em relacio a fragmentos que se resolvem em areas. + Fragmentos escuros ¢ fragmentos iluminados, E, finalmente, existem conflitos inesperados como: + Contflitos entre um objeto e suas dimensdes. Conflitos entre um aconteci- ‘mento e sta duracio. Estes casos talvez parecam estranhos, mas estamos familiariza- dos com ambos. Para realizar 0 primeiro, usamse lentes opticamen- (0 Principio Cinemcogrfc oIieograme 161 te distorcidas; para o segundo, a filmagem com interrupcdes ou a camera lenta. «A redugio de todos os fatores e propriedades cinematogrifi- cos ‘a uma tinica férmula dialética de conflito nao € nenhuma diver- so ret6rica vazia. Estamos agora em busca de um sistema unificado para os mé- todos de expressio cinematografica, aplicavel a todos os seus ele- mentos. A reuniéo desses elementos em séries com um denominador comum resolvera a tarefa em conjunto. Nao se pode medir, em termos absolutos, a experiéncia feita com elementos isolados do cinema. Embora saibamos muita coisa a respeito de montagem, quan- do se trata da teoria da tomada (plano), ainda estamos tropecando centre as atitudes mais académicas, algumas tentativas vagas, € aque- Ia espécie de aspero radicalismo que nos pée os dentes a ranger. Considerar a composi¢io (enquadramento) como um caso, por assim dizer, particular, molecular de montagem, torna possivel a aplicagao direta da pratica da montagem a teoria da tomada (pla- no). E 0 mesmo se pode dizer quanto & teoria da iluminagio. Senti- Ja como uma coliséo entre um feixe de luz ¢ um obstaculo, como o impacto de um jato de mangueira de incéndio incidindo sobre um objeto concreto, ou do vento a bater num corpo humano, resultaré num uso da iluminagao inteiramente diverso daquele que se faz ao jogar simplesmente com varias combinagdes de “velaturas” e “fo cos”. ‘Até aqui defrontamo-nos.com um dos principios significativos de conflito: o principio de contraponto dptico. Nao nos esquecamos, porém, de que, dentro em breve, tere mos de enfrentar outro, e mais complicado, problema de contra ponto: o conflito no filme sonoro entre a aciistica ea éptica. Voltemos ao mais fascinante dos conflitos épticos: o conflit entre a composigéo (enquadramento) do plano e o objeto! A posigo da camera, como materializagao do conflito entre : ogica organizadora do diretor € a l6gica inerte do objeto, amba em colisio, reflete a dialética do angulo da cdmera. te copra Sob esse aspecto, ainda somos impressionistas e € espantoso 0 grau de nossa caréncia de principios. Nao obstante, também nesta técnica € possivel uma acuidade de principios. O quadrilétero seco, ‘mergulhando nos azares da natureza profusa. E mais uma vez estamos no Japao! Porque o método cinemato- grafico € usado no ensino de desenho nas escolas japonesas. Qual é 0 nosso método de ensino do desenho? Tomemos um pedago qualquer de papel branco, com quatro cantos. Passemos a preenché-lo, geralmente sem utilizar as margens (geralmente eno- doadas em virtude do manuseio prolongado!), com alguma caridti- de enfastiada, algum presuncoso capitel corintio, ou um Dante de fess0 (no 0 magico que se exibe no Hermitage de Moscou ¢ sim o outro ~ 0 Alighieri, o autor da Comédia), A abordagem dos japoneses se faz a partir de uma orientagao muito diferente. Aqui estd um ramo de cerejeira”®, O aluno corta desse conjunto por meio de um quadrado, de um circulo, de um re- tangulo ~ unidades de composi¢ao: 10, Tasraio oi 12. "Cao Seleconar 4 Conpsici, em Jno Sgt Sine Caen Doi Rohe Gab ‘ea Dan Sei Yo (Manel de Dest pr se Ewen, Denes a Alans de 6 Gre Ti Departamento de Edwraio, 1910(8 (0 Principia Cnematogrfco eo Lieograme 13 Est enquadrando uma tomadal Essas duas maneiras de ensinar 0 desenho podem caracterizar as duas tendéncias bisicas em luta no cinema de hoje. Uma - 0 mé- todo em extingio da organizacio espacial artificial de um aconteci- mento diante das lentes. Da “direcio” de uma seqiiéncia, a erecio cde uma Torre de Babel diante das lentes. A outra - a clmera é que vai “selecionando”: organizagio por meio da camera. O corte de um fragmento da realidade com o machado da lente. No momento atual, quando o foco da atencio no cinema inte- lectual estd comegando a se transferir dos materiais do cinema, como tais, para as “dedugSes ¢ conclusdes”, para os slogans basea- dos no material, as duas escolas de pensamento vio perdendo as ca- racteristicas que as distinguem ¢ poderio trangiiilamente se misturar, dando uma sintese. Perdemos, piginas atrés, como uma galocha num bonde, a questio do teatro. Voltemos ao problema dos métodos de monta- gem no teatro japonés, particularmente na téenica de representa- Go. Evidentemente, o primeiro o mais impressionante exemplo 0 método puramente cinematografico da “representagio sem transigbes”. Ao mesmo tempo que leva as transigdes minimas a ex- tremos de refinamento, o ator japonés emprega também um méto- do exatamente contrério: Num: determinado momento, ele interrompe o seu desempenho; o manto negro do Kurogo obsequio- samente 0 oculta aos olhos dos espectadores. E eis que ele ressurge com nova maquilagem. E com uma nova peruca. Caracterizando agora um outto estagio (grau) de seu estado emocional. Assim, por exemplo, na peca Kabuki Naruklami, 0 ator Sadanji deve passar da embriaguez para a loucura. Essa transicfo se resolve mediante um corte mecanico. E uma mudanga no arsenal de cores aplicadas sobre 0 seu rosto, enfatizando aqueles tracos faciais cuja fungio é encarnar uma expresso de maior intensidade que a obti- da com a maquilagem anterior. Tratase de um método organico em relagio ao filme. A intro- dugio forgada num filme, em virtude das tradigbes de representa- ao européias, de momentos de “transicio emocional” é mais outra influéncia que leva 0 cinema a marcar passo. O critério da repre- 164 Ieograma sentagio mediante “cortes” possibilita a construcéo de métodos in- teiramente diferentes. A substituicio de uma tinica fisionomia mutdvel por uma escala completa de tipos faciais de estados de es- Pirito varidveis permite um resultado expressivo muito mais preciso que o decorrente de mera superficie cambiante, excessivamente te- ceptiva e destituida de resisténcia orginica, de qualquer fisionomia isolada de ator profissional, Em meu novo filme (0 Velho e o Novo) eliminei os intervalos entre os estigios polares agudamente constrastantes da expressio de uma fisionomia. Desta maneira consegue-se uma nitidez maior no “jogo das diividas” em torno da nova desnatadeira, que acaba de chegar. Ird ou nio o leite engrossar? Embuste? Riqueza? Aqui,-o processo psicolégico da mescla de fé ¢ de diivida é fragmentado nos dois estados extremos de “alegria” (confianga) e “tristeza” (de- silusio). Ainda mais, isto fica nitidamente enfatizado pela ilumina- Go, que mio obedece de maneira alguma as condigdes da luz verdadeira. Assim, dése um reforgo especial a tensio. Outra caracteristica notavel do teatro Kabuki € 0 principio de representagio “desintegrada”. Shocho, que desempenhava os prin- cipais papéis femininos no teatro Kabuki que visitou Moscou, 20 re- presentar a filha agonizante em Yashao (O Fabricante de Mascaras), desempenhou seu papel fracionando a a¢do em segmentos intei- ramente desconexos entre si. Representando apenas com o braco direito. Com uma perna. Apenas com 0 pescogo € a cabeca. (Todo 0 processo da agonia da morte desintegrou-se em “solos” de cada uma das partes do corpo, fazendo 0 seu proprio pap papel da perna, 0 papel dos bracos, o da cabeca.) A fragmenta- ‘cio em tomadas. Com um encurtamento gradativo desses sucessi- Vos segmentos isolados de representacio, 4 medida que se aproxima o trigico final. Liberado do jugo do naturalismo primitivo, o ator fica capaci- tado, por este método, a prender inteiramente a atengio do espec- tador pelos “ritmos", tornando nao somente aceitavel, como também definitivamente atraente, um teatro construido com a pré- pria carnadura do naturalismo mais conseqiiente e pormenorizado. Como ja nao distinguimos em principio as questdes de “con- (0 Principio Cinematogrfco eo Idograme ms teido-doplano” € de montagem, podemos citar aqui um terceiro exemplo: teatro japonés recorre ao tempo lento, numa medida que nossos palcos desconhecem. A famosa cena do haraquiri em Chushingura se baseia num retardamento sem precedentes de todos os movimentos, retardamento que chega a um ponto jamais visto. Enquanto, no exemplo anterior, observamos uma desintegracio das transigbes entre os movimentos, vemos aqui a desintegracio do processo do movimento, isto é, 0. movimento em camera lenta. $6 ouvimos falar num exemplo de aplicacao integral desse método, uti- lizando a possibilidade técnica do filme num plano composicional- mente elaborado. £ geralmente empregado com objetivo meramente descritivo, como a figuragio do “teino submarino” em Ladréo de Bagdé, ou para representar um sonho, como em Zveni- gora. Ou, mais freqiientemente, é usado simplesmente em ninharias formalistas € malabarismos nko motivados com a cimera, como em O Homem da Cémera, de DzigaViertov. O exemplo mais digno de nota parece ser o de Jean Epstein em La Chute de la Maison Usher [A Queda da Casa de Usher), pelo menos de acordo com os relatos da imprensa. Nesse filme, emogdes representadas normalmente, filma- das com uma camera acelerada, transmitem, segundo se diz, uma invulgar pressio emocional em virtude de sua lentido irreal na tela. Tendo-se em mente que o efeito produzido sobre o piiblico pelo desempenho de um ator fundamentase na idemtificagio de cada espectador com ele, sera ficil estabelecer uma relacéo entre cesses dois exemplos (a pega Kabuki e 0 filme de Epstein) e uma idéntica explicagio causal. A intensidade da percepgio aumenta quando 0 proceso didatico de identificagio se desenvolve com maior facilidade acompanhando uma a¢io desintegrada. Até a cabega mais impermeavel as orientagdes motoras, num grupo de recrutas bisonhos, se pode ensinar como lidar com um ti fle, desde que o instrutor recorra a um método de “decomposi¢ao’ da agio. A afinidade mais interessante patente no teatro japonés &, evie dentemente, a que se pode estabelecer com o cinema sonoro. Este pode e deve aprender seus principios fundamentais com os japone- 166 Meograna ses ~ a redugio das sensagdes visuais e auditivas a um denominador fisiolégico comum. Foi, assim, possivel estabelecer (ainda que superficialmente) a penetracao, nos mais variados ramos da cultura japonesa, de um elemento cinematogrifico puro ~ a sua forca basica, a montagem. E é apenas o cinema japonés que incide no mesmo erro do Ka- buki “esquerdizante”. Em lugar de aprender como ir buscar os prin- cipios ¢ a técnica de sua notavel arte de representacio nas formas feudais tradicionais de seus materiais, os lideres mais progressistas do teatro japonés gastam suas energias numa adaptagio da esponjo- sa informidade de nosso naturalismo “interior”. Os resultados sio Tamentaveis ¢ entristecedores. No cinema, o Japio procura do mes- mo modo imitar os exemplos mais revoltantes que americanos ¢ eu- ropeus inscrevem na corrida internacional do filme comercial. Compreender aplicar suas peculiaridades culturais a0 cine- ma: eis a tarefa do Japio! Companheiros do Japio, i mente deixar essa tarefa para nds?

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