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Eric R, Wour da Universidade de Michigan SOCIEDADES CAMPONESAS Tradugio de Oswatpo Caupetra C. a SILVA Revisio técnica de GiLBErTo VELHO segunda edigdo TOMBO. 373511. ZAHAR EDITORES RIO DE JANEIRO 1. O Campesinato e seus Problemas Este livro estuda os camponeses com uma abordagem an- tropolégica. Apesar de ter a Antropologia iniciado suas pes- quisas entre os chamados povos primitivos do mundo, ultima- mente os antropdlogos tém-se mostrado cada vez mais interessa- dos nas populacdes rurais, que fazem parte de sociedades maio- res e mais complexas. Onde se via antigamente um antropdlogo examinando os meios de vida de um bando etrante de cagado- res do deserto ou de cultivadores migratétios que ocupam uma povoacao em alguma floresta tropical, vé-se agora, com bastante freqiiéncia, 0 mesmo pesquisadot interessado em uma pequena cidade da Irlanda, fndia ou China, ou seja, dreas do globo que abrigaram durante muito tempo uma variada e rica tradicao cultu- ral, abrigada por uma grande diversidade de tipos humanos. En- tre estes, os cultivadores rurais constituem apenas um segmen- to — ainda que muito importante. Assim, os tipos humanos atualmente colocados sob exame antropolégico permanecem em continua interagio e comunicacio com outros grupos sociais. O que esta acontecendo em Gopalpur, na India, ou em Alcalé de la Sierra, na Espahha, no pode ser explicado nos termos de cada uma dessas vilas isoladamente; a explicacio implica tam- bém consideragSes que incluem tanto forgas externas que atuam. sobre essas vilas como as reages de seus componentes aiquelas forcas. Camponeses e Primitivos Nossa primeira preocupagio ser4, portanto, responder o que distingue os camponeses dos ptimitivos mais freqiientes estuda- dos pelos antropélogos. Jé falamos dos camponeses como culti- vadores rurais; ou seja, eles cultivam e criam gado no campo e nao em estufas construidas no centro da cidade ou em canteitos de Iirios em peitoris de janelas. Mas 20 mesmo tempo no po- 14 Soctenspes CAMPONESAS La Ye As principais regiGes camponesas do mundo. detemos chamé-los de fazendeiros ou empresétios sgticolas, pe- lo menos no sentido em que so conhecidos nos Estados Unidos. A fazenda norte-americana é fundamentalmente uma empresa de negécios, que combina fatores de produgéo comprados no mer- cado para obter lucro, vendendo-os vantajosamente no mercado de produtos. O camponés entretanto no realiza um empreen- dimento no sentido econémico, ele sustenta uma famflia e no uma empresa, Mas existem também povos primitivos que vivem no campo cultivando e criando gado, O que distingue, entio, © camponés do cultivador primitivo? . ‘Uma forma de abordar essa questo é a que diz que os cam- poneses fazem parte de uma sociedade mais vasta e coinplexa, 0 que nfo acontece com’ as tribos ¢ os bandos primitivos. Tal resposta no resolve, no entanto, a questio; na verdade, os po- vos primitivos raramente estéo isolados. Existem excegdes, co- mo os esquimés polares, que estiveram afastados de qualquer contato exterior até serem redescobertos para o resto do mun- do pelo Almirante Peary, em sua tentativa de chegar 20 Pélo O Campesinato £ seus ProsLeMAs 15 Norte. Mas é muito mais comum encontrarmos tribos primiti- vas que mantém relagdes com seus vizinhos. Até mesmo.os sim- ples cagadores e coletores dos desertos australianos mantém Ja- os de unio entre grupos espalhados, as vezes em grande Area, através de um permanente intercimbio econémico ¢ ritual, As tribos da bacia amazénica, aparentemente isoladas em bolsdes se- parados da floresta tropical, comerciam umas com as outras, rea- lizam casamentos entre seus membros ou guerreiam entre si, pois a guerra também é uma forma de relacionamento. Devemos a an- tropélogos como Bronislaw Malinowski, o autor de Argonauts of the Western Pacific (1922), desctigdes e andlises do comér- cio que une a extremidade leste de Nova Guiné aos arquipélagos adjacentes através de uma rede de transagdes cerimoniais e co- merciais, Igualmente, os indios da planfcie dos Estados Unidos, como podemos perceber agora, sio parte integrante da historia americana, sendo influenciados pelos avangos na fronteira e aca- bando por influencié-los também. A distingao entre primitivos ¢ camponeses no repousa, por- tanto, né maior ou menor envolvimento exterior sofrido por um ou outro, mas no cardter_ dese envolvimento, Marshall D. Sablins caracterizou 0 mundo econémico ¢ social dos povos pri- mitivos da seguinte maneir: Nas cconomias primitivas, a maior parte da producio esté estrutu- rada em fungio das necessidades dos produtores ou do desencargo de obrigagées de parentesco ¢ no em fungio do comércio ou do lucto. , Deduz-se dai que 0 controle efetivo dos meios de produgio na sociedade primitiva esta descentralizado, tanto local como ft miliarmente. As proposigSes que se seguem implicam, portanto: 1) as relagdes econdmicas cocrcitivas © de exploraglo, assim como as relagées sociais correspondentes de dependéncia e dominio, iio stio presentes no sistema de produgio; 2) diante da auséncia do incentivo provocado pela toca do produto por uma grande quan- tidade de bens em um mercado, existe uma tendéncia a limitar a produgo apenas aos bens que podem ser diretamente utilizados pelos produtores. 1 Portanto, na sociedade primitiva os produtores controlam os meios de produsio, inclusive seu préprio trabalho, e trocam-no, 1 Marshall D. Sahlins, “Political Power and the Economy in Primi- tive Society”, em Essays in the Science of Culture: In Honor of Leslie A. White, de Gertrude E. Dole ¢ Robert L. Carneiro (Nova York: Tho- mas Y. Crowell Company, 1960), p. 408. 16 SocrEDADES CAMPONESAS junto com seus produtos, por bens e servicos definidos cultural- mente como equivalentes a outros, No entanto, durante 0 pro- cesso da evolugao cultural, sistemas tZ0 simples como estes vio dando lugar a outros, nos quais o controle dos meios de produ- sao, inclusive a distribuigéo do trabalho humano, transfere-se das mos dos produtores primérios para as de grupos que néo esto encartegados do processo de produgao, mas que assumitam fungdes executivas e administrativas, baseados no uso da forga. ‘A constituigo de uma sociedade desse tipo nao estaré mais ba. seada nas trocas diretas de bens e servigos equivalentes entre um grupo e outro; mas tanto bens como servigos serio fornecidos primeiramente a um centro e s6 depois redistribuidos. Nas so- ciedades primitivas, os excedentes sio trocados diretamente pe- Jos grupos ou por seus membros; os camponeses, no entanto, | so cultivadores rurais cujos excedentes sio transferidos para as mios de um grupo dominante, constituido pelos que ee cain que os utilizam para assegurar seu proprio nivel de vida, e a , distribuir o restante entre grupos da sociedade que nao cultiva ram a terra, mas deve ser alimentados, dando em troca bei especificos ¢ servigos. Civilizagaio O desenvolvimento de uma ordem social complexa, basea- da na divisio entre os que governam ¢ os que cultivam produ- zindo alimentos, é geralmente apontado como o desenvolvimen- to da prépria civilizagio. A civilizasio tem uma histéria longa ¢ complicada; os registros arqueolégicos indicam uma grande di- versidade nos proctssos que petmitiram ao homem, nas diversas partes do mundo, fazer a transigo de primitivos para campone- ses. E bem verdade que grandes parcelas desse processo nos es- capam, No Velho Mundo, por exemplo, 0 cultivo agrétio ¢ a domesticagio de animais parecem ter existido no Sudoeste da Asia por volta de 9000 a.C., sendo provavel que vilas agricolas sedentdrias se tenham estabelecido em 6000 a.C. De modo se- melhante, descobertas no Nordeste do México indicam que se iniciaram por volta de 7000 a.C. experiéncias na produggo de alimentos, tornando-se um cultivo pleno e firmemente estabeleci- do em torno de 1500 a.C. A partir desses centros originais alguns outros semelhantes, o cultivo da terra expandiu-se com ve- O CampEsINATO SEUS PROBLEMAS _— locidade variével, tomando diferentes ditegdes, sendo adapta- do as exigéncias dos novos climas e novas situagGes sociais. Mas nem todas as 4reas do mundo foram alcangadas de maneira se- melhante pot ésse processo. Os habitantes de cettas regides nun- ca chegaram a aceitar o cultivo da terra ou o fizeram com relu- tancia, enquanto outros tomavam a dianteira para alcangar no- vos niveis de produtividade e organizacao social, que permitissem 0 desdobramento da divisio funcional do trabalho entre os que cultivam e detém o poder, o que definimos como marco da ci- vilizagio. Minimo Calérico e Excedentes JA se disse algumas vezes que a sustentagio de uma divisio funcional do trabalho entre os que cultivam ¢ os que governam é uma simples conseqiiéncia da capacidade que uma sociedade tem de produzir excedentes acima do mfnimo necessério para manter a vida. Esse minimo pode ser definido com bastante ri- gor, cm termos fisioldgicos, como 0 consumo diétio de calorias alimentares exigido para compensar o desgaste de energia que 0 homem despende em seu rendimento didrio de trabalho, Esse montante pode ser avaliado, aproximadamente, entre 2.000 a 3.000 calorias por pessoa em cada dia de trabalho. Nao serd ertado afirmar que esse minimo ainda nio se alcangou na maior parte do mundo. Cerca da metade da populagéo mundial tem, em média, uma ragio per capita didria de menos de 2.250 calo- rias, Essa faixa inclui a Indonésia (com 1.750 calorias), a Chi na (com 1.800 calorias) ¢ a India (com 1.800 calorias). Dois décimos da populagéo mundial incluem-se na categoria que rece- be, em média, uma ragio entte 2.250 e 2.750 calotias per capita; esse grupo inclui a Europa mediterranea e os paises balcanicos. Somente trés décimos da populaséo mundial — os Estados Uni- dos, os domihios britdnicos, a Europa ocidental e a Unido So- vigtica — conseguem ficar acima de 2.750 calorias.? Mas até mesmo essa conquista deve set examinada dentro de uma pers- pectiva histérica, No século XVII, por exemplo, a Franca — que forma agora‘entre os privilegiados dos trés décimos — al- 2 Jean Fourastié, The Causes of Wealth (Glencoe: The Free Press, 1960), pp. 102-103. Preparando-se para lan- gar sementes de cen- teio, de inverno, no solo ndoarade antes de revolélo com 0. ara do. Saint Véran, Alpes franceses, outono de 1954. (Foto de Robert K. Burns.) cangou a matca de 3.000 calorias por pessoa (representada por meio pao por dia) em apenas um em cada cinco anos. No século XVIII, essa proeza tornou-se possfvel em um para cada quatro anos. Em anos mais distantes, a ragdo média diétia ficava cla- xamente abaixo das exigéncias minimas. * Os cultivadores nfo precisam apenas consumir um minimo de ragdo calérica; deverio também providenciar alimentos aci- ma deste minimo, para conseguir um ntimero suficiente de se- mentes que possibilitaréo uma boa safra no ano ’seguinte, assim como de alimentos adequados para o gado. Por isso, uma fa- zenda de 40 actes em Mecklenburg, no Nordeste da Alemanha, por exemplo, produzia, durante os séculos XIV e XV, 5.000 qui- los de sementes para plantagdes, dos quais 1.600 quilos tinham de ser colocados de lado para serem novamente semeados ¢ 1.400 quilos para a alimentagio de quatro cavalos. Mais da me- tade do total produzido era entio recolhida adiantadamente para semear e alimentar.* Esse montante nfo pode ser considetado 3 Ibid., p. 41. 4 Wilhelm Abel, Geschichte der deutschen Landwirtschaft vom frien Mittelalter bis zum 19. Jabrbundert, Deutsche Agrargeschichte II (Stuttgart: Eugen Ulmer, 1962), p. 95. O CampestnaTo E seus PropLeMas 19 como excedente, uma vez que se destinava a manutengdo dos instrumentos de produgao. O cultivador tinha que economizar tempo e esforgos para serem despendidos no reparo de suas fer- ramentas, para afiar suas facas, vedar seu depésito de armaze- hagem, pata cercar seu curral, para colocar ferraduras em seus animais de trabalho ¢ talvez até mesmo para construit um es- pantalho que manteria os pdssaros mais atrevidos fora de seus campos. Além disso, ele devia consertar vdrias coisas, tais como um telhado defeituoso, um vaso quebrado ou suas préprias rou- pas quando elas se rasgavam. Os gastos necessdrios para a tes- tauragéo desse equipamento minimo, tanto pata a produgio co- mo pata o consumo, eram o seu fundo de manutencao. Hi importante que pensemos nesse fundo de manutengéo em termos nio apenas técnicos, mas também culturais. Os instru- mentos ¢ técnicas que constituem uma tecnologia especffica sio resultantes de um prolongado processo de acumulagao cultural que vem do passado. Existem tecnologias sem ceramica, depési- tos para armazenagem ou animais de trabalho. No entanto, des- de que uma determinada tecnologia passou a incluit esses itens, eles passam a fazer parte da vida de cada dia, tortiando-se cultu- ralmente necessérios. Como o filésofo grego Didgenes, um ho- mem pode abrir mao de sua ultima taga desde que ele nao sinta sede por causa disso — poderé fechar suas préprias mios em concha, fazendo delas uma taca com que poderé beber Agua. Mas uma vez que os copos de barro jé estio completamente in- tegrados nas solicitagdes culturais de um homem, eles passam a significar mais que um simples meio de se beber 4gua — trans- formam-se em um comprometiménto, diante do qual o homem deveré desdobrar-se para obter. Em conseqiiéncia, uma seca, uma invaséo de gafanhotos ou qualquer outra desventura que poe em perigo o fundo de manutengéo, ameacam nao somente sua existéncia biolégica minima, mas também a capacidade de satisfazer suas necessidades culturais. Existem casos em que um cultivador pode paralisar seus esforcos de produgio desde que estejam assegurados o seu mini- mo de calorias ¢ 0 seu fundo de manutencéo. E 0 que acontece, por exemplo, com os indios Cuicuros da Amaz6nia, que tém condigées para garantir 0 seu minimo de calotias e suprir as exigéncias para manutengio, trabalhando somente trés horas e meia por dia, sem nunca ultrapassar esse perfodo. Nao existem raves ténicas ou sociais que justifiquem um esforgo adicional 20 Soctepapes CaMPONESAS a essa quota didria de trabalho." Produzir além do minimo de calorias necessdrias ¢ do nivel exigido pelo fundo de manutengio ocorre somente quando existem regras ou incentivos sociais nesse sentido. Est4 em jogo o maior ponto de controvérsia da Antro- pologia econémica. Alguns argumentam que o aparecimento de excedentes promoveu o desenvolvimento; outros sustentam que! excedentes em potencial sio uma presenga universal ¢ 0 que! conta so os meios instituidos para mobilizé-los. : Excedentes Sociais Fundo Cerimonial 4 Hé dois conjuntos de imperativos sociais, O primeiro ocor- re em qualquer sociedade. Mesmo em lugares onde oh é auto-suficiente para conseguir seus bens ¢ alimentos, ele deve manter relagdes sociais com seus companheitos. Eles deverio, por exemplo, casar fora da familia em que nascetam, ¢ essa exi géncia significa que eles serio obrigados a ter contatos sociais com aqueles que sfio seus parentes atuais ou em potencial. Tam- bém precisatao unir-se a seus companheiros para manter a of dem, assegurando a accitag4o rudimentar de certas regras de con- duta para manter a vida possivel ¢ tolerével. Além disso, terio de recorrer uns aos outros durante algumas fases da luta pela alimentacio. Mas as relagSes sociais, de qualquer espécie, nun; ca serao exclusivamente utilitdrias ou instrumentais, Toda re: lagfo social esta sempre cercada de construgées simbélicas qué S servem para explicéla, justificé-la ¢ regula. Assim, 0 matty ménio, que no consiste meramente na passagem de um cénjuge de uma casa para outra, implica também a aceitagio de boa von- tade da esposa pretendida, assim como a de seus familiares; de- verd ser ainda um ato ptiblico, no qual os participantes demons- tram, de maneira que todos possam ver, que os cénjuges atin- giram a idade tanto para se casar como para as redefinigdes so- ciais que © casamento envolve; além disso, deverd corresponder & Robert L. Carnciro, “Slash-and-Burn Cultivation among the Kuikura and its Implications for Cultural Development in the Amazon Basin”, em The Evolution of Horticultural Systems in Native South America: Causes and Consequences, ed. Johannes Wilbert, Antropologica, Suple- mento, n° 2 (1961), p. 49. Montagem dos Jogos de arti- ficio para uma festa religiosa, Edla, Oaxaca, México. (Foto de Joseph Seckendorf.) ao modelo ideal daquilo que os casamentos — todos os casa- mentos — representam’para as pessoas € como as pessoas devem comportat-se uma vez que se casaram. Todas as relagSes sociais esto cetcadas pot um cerimonial semelhante; este” deve ser pago por meio de trabalho, bens ou dinheiro. Portanto, se os homens tém pretensdes a participar das relagées sociais, deverio traba- Ihar para a criago de um fundo visando as despesas por tais ati- vidades. Podemos denominé-lo fundo cerimonial © fundo cerimonial de uma sociedade — e consegiiente- mente o fundo cerimonial de seus membros — pode ser grande ou pequeno, mas o tamanho serd uma questiio relativa. Nas vilas indias do México e Peru, por exemplo, os fundos cetimo- niais sio muito grandes em compatacio aos seus {ndices calé- ricos e seus fundos de manutengio, jé que naquela regiéo um homem despende uma grande quantidade de esforgo e bens para promover ceriménias que dio énfase ¢ ilustram a solidariedade da comunidade a que pertencem.® Despesas com cetiménias, © Na América Central hi evidéncia de que um homem pode gastar pelo menos o equivalente a um salétio local anual para atuar como pa- trocinador de uma ceriménia da comunidade. Gastos de duas a vinte vezes maiores que aquela quantia poderio existir em comunidades espe- cificas. Para exemplos, ver Ralph Beals, Chern, Sierra Tarascan Villa- ge, Smithsonian Institution, Institute of Social Anthropology, Publication 22 Soctepapes CaMPONESAS ou seja, rituais, dependem da tradigio cultural, variando de cultu- ra para cultura, Além disso, em todos os lugares onde houver ‘a necessidade de se estabelecer e manter um fundo cerimonial, éste resultard na produgdo de excedentes acima do fundo de ‘mia. nutengio discutido. A esta altura, é importante recordar que os esforgos na vida de um camponés nfio sfo regulados exclusivamente por exigén- cias relacionadas ao seu modo de vida. O campesinato sempre existe dentro de um sistema maior. Em conseqiiéncia, a quan- tidade de esforgo que deverd ser despendido para sustentar seus meios de produgéo ou pare cobrit as despesas cerimoniais estaré condicionada & maneira pela qual o trabalho esté dividido na so- ciedade a que 0 camponés pertence, bem como as regtas que otientam-a divisio do trabalho, Sendo assim, em algumas ‘so- ciedades a quantidade de esforgo requetido para alcancar suas necessidades pode ser bastante pequena. Tal é 0 caso, por exem- plo, de uma sociedade onde um homem alimenta-se do que plan- ta ¢ faz seu préprio equipamento bisico. Para ele o excedente requetido para obter artigos de fora é reduzido; na verdade, é idéntico ao fundo de manutengfo, Isso é verdade também em sociedades onde diferentes familias manufaturam objetos diver- sos ou oferecem diferentes setvicos que so trocados por rela- Ges reciprocas equivalentes. Sc um planta sementes, mas ndo faz cobertores, pode trocar certo niimero de sementes por uma quantidade correspondente de cobertores. Assim, 0 fabricante de cobertores obterd alimentos em troca do seu trabalho. Em situagdes como essas, os homens conseguem os bens através de trocas, mas — e isso € muito importante — a quantidade de alimentos que eles precisam extrair da terra pata obter os cober- tores ou vasos necessérios ainda est4 sujeita A extragio para o fundo de manutengio, muito embora seja indireta a maneira pela qual éles repdem os bens nio-produzidos por eles préprios. Mas é possivel —— e cada vez mais o é, 2 medida que a sociedade se Ne 2 (Washington, D. C.: United States Government Printing Office 1946), p. 85; Calixta Guiteras-Holmes, Perils of the Soul: The World View of a Tzotzil Indian (Nova York: ‘The Free Press, 1961), p. 58; Sol Tax, Penny Capitalism: A Guatemalan Indian Economy, Smithsonian Institution, Institute of Social Anthropology, Publication N16 (Washington, D.C: United States Government Printing Office, 1953), pp. 177-178. Para os Andes, ver William W. Stein, Hualcan: Life in the Highlands of Pera (Ithaca, Cornell University Press, 1961), pp. 52, 236, 255. O CampEsINATO E SEUS PRoBLEMAS 23 tora mais complexa — que os niveis de troca das unidades de alimentos ¢ unidades de bens néo sejam traduzidos em equiva- léncias determinadas por negociagdes de produtor e consumidor, feitas frente a frente, mas pot niveis assimétricos de troca, de. terminados por condigées externas. Onde as redes de troca sio restritas e localizadas, os participantes devem ajustar os pregos de seus bens ao poder aquisitivo de seus fregueses potenciais. Mas onde as redes de troca so mais abrangentes e obedecem a pressdes que nao levam em considerago o poder aquisitivo da populacao local, um cultivador teré que aumentar de muito a sua produgéo para obter a quantia necesséria para a manutengio. Sob tais condigées, uma porgio considerével do fundo de. ma- nutengo do camponés poderd totnar-se o “fundo de lucro” de outrem, Fundo de Aluguel Existe ainda um conjunto de imperativos sociais que pode ptoduzir excedentes além do mfnimo caldtico e do nivel de ma- nutengio, A relagao do cultivador com profissionais de outras especialidades pode ser simétrica, como vimos acima, Eles po- dem trocar diferentes produtos, ainda que em niveis tradicio- nais e estabelecidos hd muito tempo. Entretanto, em socieda- des mais complexas, existem telagdes sociais que nao sio simé- tricas, sendo baseadas de certa forma no exercicio do poder. No caso da fazenda de Mecklenburg, mencionado acima, os 2.000 quilos de sementes postos a parte, depois que o cultivador de- duziu o fundo de manutengio recolhido para’ semear e alimen- tar, nfo eram consumidos somente pelo cultivador ¢ sua famflia, Mil e trezentos quilos, isto ¢, mais da metade do produto li- quido, destinavam-se ao resgate das dividas para com um senhor que mantinha a jurisdigéo eu o dominio sobre a terta, Somente 700 quilos restavam para a alimentagao do cultivador e de sua familia, rendendo uma tacio didria per capita de 1,600 calo- tias.7 Para manter um nivel calético minimo, portanto, o culti- vador era obrigado a buscar fontes adicionais de calotias, tais co- mo as que derivavam de sua horta ou do gado de sua proprieda- de. Assim, esse camponés estava sujeito a relagdes assimétricas 1 Abel, Geschichte der deutschen Landwirtschaft, p. 95. 24 Soctepapes CAMPONESAS de poder, o que lhe acarretava um 6nus permanente em sua pro- dugio. A esse énus, pago mediante exigéncias que nio vieram de seu trabalho na terra, chamaremos aluguel, seja ele resgatado em trabalho, bens ou dinheiro. Em todos os lugares onde hou- ver alguém exercendo um poder superior de fato, ou dominio, sobre um cultivador, este déveré produzir um fundo de aluguel. ' Essa produgao de um fundo de aluguel é 0 que disiingue, criticamente, o camponés do cultivador primitivo. Essa produ- 0, por outro lado, é impulsionada pela existéncia de uma ot- dem social que possibilita a formagio de um gtupo de homens que, através do poder, exigem pagamentos de outros, resultando na transferéncia da riqueza de uma parcela da populacio para outra. O que é perda para o camponés € ganho para os deten- totes do poder, pois ofundo de aluguel levantado pelo camponés é parte do “fundo de poder” através do qual os dominadotes se alimentam. E importante assinalar, porém, que existem diversas manei- ras diferentes pelas quais o fundo de aluguel é produzido e di- versas maneiras pelas quais é absorvido do estrato camponés pa- ra as maos do grupo dominante. Jé que as distingdes no exerci- cio desse poder tém efeitos estruturais importantes na maneira pela qual se organiza o campesinato, hé varios tipos de campesi- nato € ndo somente uma forma de vida camponesa. Indo mais além, vé-se que o termo “‘camponés” denota nada mais nada me- nos que uma relacéo estrutural assiméttica entre produtores de excedentes ¢ 0 grupo dominante; dito de outro modo, teremos ainda que formular algumas questées acerca das diferentes séties de condigées que manterfo esse relacionamento estrutural. O Papel da Cidade O desenvolvimento da civilizagio tem sido comumente iden- tificado com’ o desenvolvimento das cidades. Em conseqiiéncia, tem-se definido 0 camponés como um cultivador que tem um re- lacionamento duradouro com a cidade: “E inegdvel que durante 0 curso da evolugao cultural os governantes ficavam geralmente estabelecidos em centros especiais que se convertiam freqiiente- mente em cidades. Existem ainda, em algumas sociedades, os governantes que “acampam” simplesmente entre os camponeses, como € 0 caso dos Watusi, até hd bem pouco tempo entre o cam- O CampPrsINATO E SEUS PRoBLEMAS 25 pesinato babutw de Ruanda Urundi. Ou entao os que governam podem ter vivido em centros religiosos, como sepulcros ¢ san- tuérios, que foram construidos as custas dos prdprios campone- ses. No antigo Egito, o Farad estabelecia sua capital tempord- ria perto da pirimide que estava sendo construfda em sua honta; o papel das cidades permanecia insignificante, Entre os Petén Maya, a integracio politica efctivou-se scm o sutgimento de zo- nas urbanas densamente povoadas.* A crescente complexidade de uma sociedade poder provocar o surgimento da cidade, mas nem sempre isso scr inevitével. Eu gostaria de pensar na cida- de como um local habitado no qual se exerce uma combinacio de fungdes, tornando-se util, porque com o tempo se consegue uma eficiéncia maior através da centralizagio dessas fungdes em um ponto determinado. Ainda hoje, existem diferentes tipos de cidades, Recente- mente, na fndia foram encontiadas povoacées onde se via ain- da castelos ¢ todo 0 aparato que representa o poder dos gover- nantes militares ¢ que scrviam de centros administrativos. Ou- tras, locais de famosos santuétios, funcionaram primeiramente co- mo centros religiosos, atraindo devotos em peregrinagdes perié- dicas aos templos. Finalmente, outras cram pontos de especia- listas literatos, especialistas na elaboragio de algum.aspecto da tradigao intelectual do pais.° Somente onde uma ou outra de sas fungdes ofusca as outras, cxercendo poderosa atragio, € que clas tendem a concentrar-se sob um s6 teto ¢ um s6 local, Mas existem Areas onde nfo crescem tais centros de dominagio, per- manecendo as fungdes politicas, religiosas ou intelectuais. disper- sas na zona rural, O Pais de Gales, por exemplo, ¢ a Notuega ® Para o padtio de ocupugio da terra tipo Walasi ¢ Babulw, ver Pierre B. Gravel, The Play for Power: Description of a Community in Eastern Ruanda (Ann Arbor: Department of Anthropology, University of Michigan, Ph. D. Thesis, 1962). Sobre o Bgito, ver Henri Frankfort, ‘The Birth of Civilization in the Neur East (Garden City, N. Y.: Doubleday and Company, 1956}, pp. 97-98, ¢ John A. Wilson, The Culture of Ancient Egypt (Chicago: Univetsity of Chicago Press, 1951), p. 37, pp. 97-98. Sobre os Maya ver Gordon R. Willey, “Mesoamerica”, em Courses Toward Urban Life, de Robert J. Braidwood e Gordon R. Willey (Chicago: Aldi- ne Publishing Company, 1962), p. 101, e Michael Coe, “Social ‘Typology and the ‘Tropical Forest Civilization”, Comparative Studies in Society and History, IV, n° 1 (1961), p. 66. 8 McKim Mariott © Bernard C, Cohn, “Networks and Centers in the Integration of Indian Civilization”, Journal of Social Research (Ran- chi, Bihar, India), I, n° 1 (1958). 26 SocreDADES CAMPONESAS so regides em que muitas fungées permanecem dispersas no campo, sendo bastante débil o desenvolvimento das cidades. A presenca_ou auséncia de cidades certamente afetard o padrio de uma sociedade; mas o local onde o poder ¢ sua influéncia se co- Jocam € apenas uma fase do seu estabelecimento ¢ no constitui sua totalidade. Um piano é um instrumento usado para compor musica polifénica; mas possivel compor misica polifénica sem pianos. Igualmente, a cidade & apenas uma forma — bastante comum embora — na orquesttagio do poder e da influéncia, mas no é exclusiva, nem mesmo decisiva. Portanto, 0 que serve para distinguir a forma primitiva da icivilizada é mais a cristalizagio do poder executive do que o iptoblema de saber se o controle do poder estd localizado aqui fou ali, Nao € a cidade, mas o Estado que constitui 0 critério decisivo para o reconhecimento da civilizacio, sendo o apareci- mento do Estado o limiar da transigao entre cultivadores de ali- mentos em geral e camponeses, Portanto, € somente quando um cultivador esté integrado em uma sociedade com um Esta- do — isto é, somente quando o cultivador passa a estar sujeito a exigéncias e sangées dle detentores do poder, exteriores a seu estrato social —- que podemos falar aptopriadamente de um cam- pesinato. “ — T, sem duivida, dificil situar esse limiar da civilizagio em termos de tempo e espago. Contudo, baseados em clementos que possuimos agora, podemos fixar os primétdios do Estado e, conseqiientemente, do campesinata por volta de 3500 a.C. no Oriente Préximo e por volta de 1000 a.C. na América Central. Devemos deixar claro que os processos de construgio do Estado sio miltiplos © complexes. Diferentes dreas foram integradas em Estados de maneiras mitidamente diferentes e em épocas tam- bém diferentes, Em algumas regides do mundo, esses processos ainda nem sequer ocorreram e em poucos lugares podemos tes- temunhar o confronto entre cultivadares primitivos e sociedades em que ja existe o Estado, que pressiona o primitivo e tenta sub- maeté-lo a seu controle. O Lugar do Campesinato na Sociedade Nosco mundo tanto contém primitivos que estio préximos de se transformarem em camponeses, como camponeses plenos. O CampestNato £ sEUS PRoBLEMAS 27 Ao lado disso, tanto apresenta sociedades nas quais 0 camponés 60 principal produtor de reservas de riquezas sociais como aque- las em que seu papel foi relegado a segundo plano, Existem ainda grandes regides do globo em que os camponeses que culti- vam a terra com suas ferramentas tradicionais nao sé constituem a esmagadora maioria da populagéo como fornecem ainda os fun- dos de aluguel ¢ lucro que sustentam toda a estrutura social. Em tais sociedades, todos os outros grupos sociais dependem dos camponeses, tanto para a alimentacéo como para conseguir qual- quer outro rendimento. Existem outras sociedades, no entanto, em que a sevolucio industrial criou um vasto complexo de mé- quinas que produzem’ bens quase independentemente dos cam- poneses. Se hé algum camponés em tais sociedades, eles ocupam uma posi¢éo secundéria na criago de riquezas. Além disso, 0 vasto e crescente nimero de trabalhadores industriais que mane- jam as méquinas ctiadoras de riquezas precisa ser também alimen- tad. Na maior parte das vezes, a provisio de alimentos para esses trabalhadores no depende mais dos camponeses que tra- balham em pequenas unidades de terra com técnicas tradicionais, mas das novas “fébricas do campo”, que aplicam a tecnologia da revolugio industrial no cultivo de wimentos em grandes fazen- das, fortemente capitalizadas ¢ plan ficadas cientificamente. ¥° Essas fazendas nao sio mantidas por camponeses, mas por tra balhadores agricolas, que recebem salétios pelo seu trabalho da mesma forma que um trabalhador industrial € pago para man- ter em funcionamento um alto-forno ou uma méquina de fiar. Os dois tipos de sociedade ameacam 0, camponés, representadas por éxigéncias de excedentes ou pela competigao, que podem tor- né-lo economicamente inttil. O Dilema Camponés Para um observador de fora, o campontés poderd asseme- Ihar-se a uma ovelha que & periodicapente despojada de sua I 10 Para uma discussio sobre a plantation, ver Eric R. Wolf e Sidney W. Mintz, “Ilaciendas and Plantations in Middle America and the An- tiles”, Social and Economic Studies, VI, n* 3 (1957), ¢ Plantation Sys- tems of the New World, Papers and discussion summaries of the Semi- nar held in San Juan Puetto Rico, Social Science Monographs, VII, Pan American Union, Washington, D, C., 1959, Para um bom estudo de caso de substituigio de camponeses por plantations, ver Ramiro Guerra y Sanchez, Sugar and Society in the Caribbean (New Haven: Yale Uni- versity Press, 1964). 28 Sociepapes CAMPONESAS "Trés sacos cheios — um para meu Patro, um para minha Se- nhora e um para o meu Menino que mora Ié na vila”.* Mas para o camponés, seu mfnimo calérico e seu fundo de manuten- $40 seo primordiais juntamente com os gastos para ceriménias indispensdveis & garantia da ordem social de seu pequeno mun- do, Essas necessidades, como foi indicado acima, sio cultural- mente relativas; certamente serio diferentes na China e Porto Rico. Além disso, terdo, lgica e funcionalmente, prioridade so- bre as exigéncias vindas de fora, sejam do senhor ou do comer- ciante, Essa atitude é revelada claramente na velha cangio, en toada durante os levantes camponeses dos fins da Idade Média européia: Quando Adao arou e Eva fiou Quem era o senbor? ‘As necessidades do camponés — as exigéncias para manter um mfnimo calérico, o fundo de manutengo e os fundos cerimoniais — entrarfio freqiientemente em choque com as exigéncias coloca- das pot quem esté de fora. Além disso, se é correto definir a existéncia de um meio camponés fundamentalmente por seu relacionamento subordina- do a grupos dominantes exteriores, também seré correto afir- mar, como conseqiiéncia dessa definigio, que os camponeses se- rio obtigados a manter o equilibrio entre suas prdprias necessi- dades e as exigéncias de fora, estando sujeitos as tensdes provo- cadas pela luta para manter um equilfbrio. Para quem esté de fora, o camfponés é visto, fundamentalmente, como uma fonte de trabalho e bens, com os quais o grupo superior poderd au- mentat seu fundo de poder. Mas o camponés é, a um s6 tempo, um agente econdmico e.0 cabeca de uma familia. Sua proprieda- de tanto é uma unidade econémica como um lar. [ A unidade camponesa nfo é, portanto, somente uma organi- zagio produtiva formada por um determinado numero de “maos” prontas para o trabalho nos campos; ela é também uma unida- de de consumo, ou seja, ela tem tanto “bocas” para alimentar quanto “mios” para trabalhar. Além disso, uma unidade cam- ponesa nfo estaté preocupada exclusivamente com a alimentagZo * Parte de uma velha cangio chamada Bab-Bab-Black Sheep (O Balido do Carneiro Negro). (IN. do T.) O CampEsINATO E sEUS PROBLEMAS 29 de seus membros; estes deverdo ser atendidos com imimeros ou- tros setvicos. Tal & 0 caso das criangas que séo criadas e prepa tadas de acordo com as exigéncias do mundo adulto. Os velhos precisam de cuidados, muitas vezes até morrerem, e seus fune- rais sfo pagos com retiradas do estoque de riquezas de sua uni- dade. O casamento possibilita a satisfacdo sexual, e as relagdes dentro dessa unidade geram afeigdes que ligam todos os mem- bros entre si, Empregando o seu fundo cetimonial, a unidade paga os “gastos de representago” em que seus membros incor- reram dentro da comunidade maior. Assim, ela contribui com trabalho a medida que € necessério, em uma série de contextos diferentes; suas despesas’ndo sio ditadas diretamente pela exis- téncia de um sistema econ6mico governado por pregos e lucros. Na verdade, estamos familiarizados com esse tipo de con- duta econémica em nossa prdpria sociedade. Uma mae manter- -se-4 de pé durante toda a noite com uma crianga doente ou co- zinhaffdo uma refeicio pata a famflia, sem levar em conta o custo de seu trabalho. Um pai poderé fazer reparos menores na casa; um filho adolescente pode aparar a grama. Obtidos no metca- do, tais servigos custariam bem caro, Foi calculado, por exem- plo, que em nossa sociedade um homem pode economizar anual- mente de 6 a 8 mil délares em. pagamentos por servicos, se ele se casar, deixando de chamar profissionais que cobrariam de acor- do com os presos correntes no mercado. Dentro de uma familia tais trabalhos afetivos séo desempenhados prontamente, sem a necessidade'de despesas. As famflias camponesas funcionam de forma semelhante. Certamente, os camponeses estdo conscientes do prego do tra- balho e dos’ bens do mercado —- sua sobrevivéncia econdmica e social depende disso. A sagacidade dos camponeses é prover- bial. Varios antropdlogos, sem duvida, concordariam com Sol Tax que cortcluiu, num estudo sobre camponeses Indios na Gua- temala, que “o comprador escolhe 0 mercado de acordo com o que quer comprar € com o tempo que serd obrigado a gastar pa- ra conseguir esses bens mais baratos e mais proximos de sua fonte”.12 No entanto, levando em conta que as posses de um camponés constituem as provisées de um grupo de pessoas, toda decisio tomada em térmos de mercado externo também terd seu aspecto doméstico. 41 Sol Tax, Penny Capitalism, p. 14, 30 Socrepapes CAMPONESAS Esse fato levou 0 economista russo A. V. Chaianov a falar de um tipo especial de economia camponesa. Ele explicou esse conceito nos seguintes termos: ‘A primeiza caracterfstica fundamental na economia um camponés é que se trata de uma ecor familiar. Sua ote ganizagio esté determinada pelo tamanho ¢ composigéo da familia ‘| € pela coordenagao entre suas exigéncias de consumo ¢ 0 niimero |, de mios aptas para o trabalho, Isso explica por que @ concepsio \de lucro na economia camponesa difete da concepgio de lucto den- ‘tro da economia capitalista e por que esta dltima nio pode ser itransportada para aquele outro contexto. © lucto capitalista é claramente computado pela subtragZo das despesas de produgio ao total da renda. O cémputo do lucro, dessa forma, é inaplicdvel a economia camponesa, porque nesta os elementos que participam das despesas de produgio estio expressos em unidades incompa- réveis as de uma economia capitalista. fazenda de Na economia camponesa, assim como na economia capitalist, ‘© grosso da renda e das despesas de material pode ser expresso ‘em rublos; mas 0 trabalho despendido nfo pode ser expresso nem medido por rublos ou salétios pagos, mas somente pelo préprio esforgo de trabalho da familia camponesa. Esses esforgos no po- dem ser subtraldos ou adicionados a unidades monetérias; podem set, no méximo, confrontados em rublos. A comparagio de valor de’ certo esforgo da famflia com o valor do rublo seria bastante subjetiva; variatia de acordo com o nivel em que as necessidades da familia sfo satisfeitas ¢ com 0 grau de sactiffcio que o proprio esforgo de trabalho acarretou, assim como com outras condigbes. Na medida em que as exigéncias da familia do camponés néo so satisfeitas, desde que a significagdo subjetiva dessa satisfacio - esteja avaliada acima da carga de trabalho necesséria para tal st | tisfagio, a familia do camponés trabalharé por uma pequena re- |, munerag#o que seria decididamente antilucrativa em uma economi Uma vez que o principal: objeto da economia campo- tisfagio do nivel anual de consumo da familia, o fator “de maior interésse nao & a remuneracio da unidade de’ trabalho (a jornada de trabalho), mas a remuneragio alcangada pelo trabs- Tho de um ano inteiro. B claro que se jd existe abundancia de terra qualquer unidade de trabalho despendida pela familia ten- deré a receber a recompense maxima, seja numa economia campo- esa ou eapitalista, Sob tis condigSes, a economia camponesa’fre- iientemente resulta num cultivo mais extensive do que 0 da eco- nomia da terra cuja propriedade é privada (empresarialmente). Haverd menor renda de uma unidade de terra, mas salgrios mais altos pari uma uniddde de trabalho. Mas quando o montante de tera dispontvel estd Jimitado ¢ se encontra abaixo de um nivel normal de cultivo, a familia do camponés no pode empregar todas fs suas forcas de trabalho cm sua propria terra se ela pratica 0 cultivo extensivo. Possuindo um excedente de tais forgas e achan- dose incapaz de assegurar todas as suas necessidades com a renda O CampESINATO E SEUS PROBLEMAS 31 derivada do salério anual de seus membros, a familia camponesa pode empreger o excedente de trabalho num'cultivo mais intensivo de sua terse, Dessa maneira, ela pode incrementar a renda anual de seus membros ativos, mesmo que a remuneragio por unidade de trabalho seja menor... Pela mesma razio, a familia do cam- ponés freqiientemente sluga terra por um prego extraordinariamen- te alto, néo-lucrativo de um ponto de vista puramente capitalista € compra terra por um prego consideravelmente acima do aluguel capitalizado, Isso ¢ feito com 0 intuito de enconttar-se um uso para o excedente de trabalho da familia, 0 qual nfo poderia ser utilizado de outro modo sob condigdes de escassez de terra. 12 eterno problema da vida do camponés consiste, portan- to, em contrabalangar as exigéncias do mundo exterior, em re- lagfo as hecessidades que ele encontra no atendimento as neces- sidades de seus familiares. Ainda em relagao a esse problema bésico, o camponés pode seguir duas estratégias diametralmente dpostas. A primeira delas é incrementar a produgéo; a segunda, reduzit 0 consumo. Se o camponés escolhe a primeira estratégia, deveré elevar 0 rendimento do trabalho as suas préprias custas, tendo em vis- ta levantar a produgao e o aumento da produtividade, com que eniraré no mercado. Sua capacidade de fazer isso dependeré da facilidade com que puder mobilizar os fatores de produgéo ne- cessdrios — terra, trabalho, capital (seja em forma de econo- mias, em moeda ou crédito) — ¢ das condigées gerais do mer- cado. Recordemo-nos que para o camponés os fatores de pro- dugio geralmente estio sobrecarregados de compromissos prio- ritérios, especialmente sob a forma de excedentes j4 antecipada- mente destinados para despesas cerimoniais ¢ pagamentos de alu- guel. E muito dificil, se no impossivel, para um homem levan- tar sozinho, as suas préprias custas, um nivel de produtividade acima e além do exigido pelos pagamentos obtigatétios. E tam- bém dificil para a maior parte dos camponeses considerar suas posses em um contexto econémico divorciado do abastecimento de seu grupo doméstico. Um pedago de terra, uma casa, nao sio meramente fatores de producdo; eles também esto carrega- dos de valores simbélicos. As jéias da familia néo séo simples- mente um valor em si; sio muitas vezes uma heranca cheia de 12 A. V. Chaianov, “The Socio-economic Nature of Peasant Farm Economy”, A ‘Systematic’ Source Book in Rural Sociology, de Pitirim A. Sorokin, Carle C. Zimmerman ¢ Charles J. Galpin (Minneapolis: The Uni- versity of Minnesota Press, 1931), II, pp. 144-145. 32 SocrEDaDEs CAMPONSAS sentimentos, Nossa anélise pode revelar-nos ainda em que si- tuagdes um numero crescente de camponeses seguird a estratégia do incremento da producio. Isso se torna poss{vel, em primeiro lugar, quando se rela- xam as tradicionais hipotecas sobre os fundos de aluguel do cam- ponés — uma condigio que tem grandes possibilidades de ocor- rer quando a estrutura do poder através da qual os soberanos tra- dicionais absorvem esses fundos se torna ineficaz. Em segundo lugar, podemos esperar esse fendmeno sempre que for possfvel ao camponés escapar de responsabilidades que pesam sobte ele e que tém a finalidade de assegurar — mediante despesas ceri- monjais — os lagos sociais tradicionais que o unem a seus com- panheitos. Se ele se recusar a empregar seus excedentes em gastos cetimoniais, poderé entio usar os fundos assim liberados para ajudar sua ascensio econémica. As duas mudangas ocorrem geralmente ao mesmo tempo. Se a ciipula do poder tem sua es- trututa enfraquecida, muitos lagos sociais tradicionais perdem também suas sangSes especificas. A comunidade camponesa, sob tais circunstancias, testemunharé a ascensio de camponeses mais abastados, que abririo caminho afastando seus companheitos me- nos afortunados, até alcangarem e preencherem a lacuna deixada pelo afastamento daqueles que ocupavam o poder: No curso dessa ascensio, eles transgridem freqiientemente as expectativas tradicionais a respeito das relagdes sociais — e como elas devem set conduzidas ¢ simbolizadas — usando o poder recentemente adquitido para enriquecer As custas dos vizinhos. Assim agiram os ascendentes yeomen na Inglaterra do século XVI, os ticos camponeses da China, os kwlaki ou “fists” da Russia pré-revolu- ciondtia. Em outros casos, um grande niimero de camponeses pode encerrar seus compromissos cerimoniais, como aconteceu entre muitos grupos indigenas da América Central, que abando- naram seus rituais catélicos populares — com seu alto custo pago com a finalidade de sustentar organizagdes e acontecimentos re- ligiosos — passande a um protestantismo sébrio para o qual nfo se exigiam tamanhas despesas. 1® A estratégia que se apresenta como alternativa é a de solu- cionar o problema bésico através da redugdo do consumo. O 28 Ver, por exemplo, June Nash, “Protestantism in an fndian_Villa- ge in the Western Highlands of Guatemala”, The Alpba Kappa Deltan, XXX, ae 1 (1960), p. 50. O Campesinato & seus ProBLeMas 33 camponés pode reduzir seu consumo de calorias restringindo sua alimentagdo apenas aos alimentos mais bésicos; pode limitar suas compas no mercado ao essencial e, em vez disso, pode confiar tanto quanto poss{vel na capacidade de seu grupo doméstico de Produzir tanto os alimentos como os objetos ‘necessérios, sem precisir sair dos limites de sua terra. Tais esforgos para equili- brar a.balanca do orgamento pelo subconsumo explicam, parcial- mente, por que os camponeses temem o novo como se vissem a propria tentagio: qualquer novidade poderd abalar seu precétio equilibrio. Ao mesmo tempo, tais camponeses sustentario tam- bém a manutengiio das relagées sociais tradicionais, inclusive as despesas exigidas com os fundos cerimoniais. Se for necessério que tudo isso se mantenha, uma comunidade camponesa pode precaver-se contra quaisquer outras exigéncias e pressGes exter- nas, forgando, ao mesmo tempo, seus membros mais afortunados a compartilhar uma porgio de seus bens e de seu trabalho com os vizinhos menos aquinh Portanto, em muitas partes do mundo — mesmo naquelas em que o camponés foi relegado a um papel secundério na of- dem social global — deparamos com o fendmeno de camponeses desdobrando-se para sobreviver sem compromissos excessive com © sistema que os envolve. Ao mesmo tempo, devemo-nos lem- brar que em muitas situagdes — especialmente durante épocas de guerra e depresses — as proptiedades camponesas repre- sentam refiigios diante da devastagéo que atinge os habitantes da cidade e dos centros industriais, Um homem com 40 acres ¢ uma mula tem um osso duro de roer, mas consegue pelo menos certo rendimento de calorias, enquanto outros sao obrigados a buscar seus alimentos nas latas de’ lixo das cidades. Com seu controle da tetta e a capacidade de cultivéla, o camponés con- setva tanto sua autonomia como sua capacidade de sobreviver, enquanto outros, mais sutilmente dependentes da sociedade, tém essa sobrevivéncia bastante dificultada. Apesar de as duas estratégias oferecidas A ago camponesa apontarem para direcdes diferentes, nio devemos pensar que elas se cxcluem mutuamente, Jé vimos que a predominancia de uma ou de outra depende, em grande parte, do contexto social maior, em que o camponés vive e de onde deve extrait os meios para sua sobrevivéncia. Levando em conta que uma ordem so- cial evolui entre altos e baixos, 0 camponés optard por uma ou outra estratégia, e até mesmo, em alguns casos, controlard as : 34 Socrepapes CAMPONESAS duas ao mesmo tempo, em contextos diferentes. Perfodos em que a primeira estratégia encontra forte preferéncia podem ser seguidos de outros em que o camponés reduz seus gastos, reno- vando e reestruturando-se dentro de uma érbita mais estreita. Da mesma forma, em qualquer época existirdo alguns individuos empenhados em desafiat os limites do ostracismo social, enquan- to outros escolhem a seguranga que o cumprimento da ordem ~ j& experimentada e conseqiientemente considetada verdadeira — acarreta. Ao contrério do que dizem os clichés literdrios, os cam- poneses ndo se encontram estéticos, mas em permanente estado dindmico, movendo-se continuamente entre dois pélos em busca de uma solugéo para seu dilema fundamental. A existéncia de uma vida camponesa nao envolve meramen- te uma relagio entre camponeses e nfo-camponeses, mas um tipo de adaptagio, uma combinago de atitudes e atividades destina- das a sustentar 0 cultivador em sua luta pela sobtevivéncia indi- vidual e de toda a sua espécie, dentro de uma ordem social que © ameaga de extingio. Neste estudo, tentaremos esbogar tanto © tigo de relagSes que os camponeses mantém com o mundo ex- terior como ‘as estratégias que eles seguem para modificar ou neutralizar os efeitos dessas relagdes.

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