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usos Kcabusos da ISBN 85-225-0200-5 Direitos desta edigo reservados & Fundagao Getulio Vargas Praia de Botafogo, 190 — 22253-900 CP 62.591 — CEP 22252.970 Rio de Janeiro, Rl — Brasil Sum redada a reprodugao total ou parcial desta obra Copyright © Janaina Amado e Marieta de Moraes Ferreira 1 edigao — 1996 2% edicdo — 1998 1Q@ Tradugéo: Luiz. Alberto Monjardim, Maria Lucia Ledo Velloso de Magalhies, Gloria Rodriguez e Maria Carlota C. Gomes Copidesque: Luiz Alberto Monjardim, Maria Lucia Leio Velloso de Magall ¢ Maria Izabel Penna Buarque de Almeida Editoracdo eletrénica: Denilza da Silva Oliveira, Eliane da Silva Torres, Jayr Ferreira Vaz, Marilza Azevedo Barboza ¢ Simone Ranna Revisdo: Fatima Caroni Produgdo gréfica: Helio Lourengo Netto Capa: Tira linhas studio 2M Usos & abusos da hist6ria oral/Janaina Amado e Marieta de Mo- aes Ferreita, coordenadoras. — Rio de Janeiro: Editora da Fundagao Getulio Vargas, 1998. 304p. 1, Hist6ria oral — Coletinea. I. Amado, Janaina. 11, Ferreira, Marieta de Moraes. IL. Fundacao Getulio Vargas, cpp 907.2 Capitulo 12 Usos da biografia* Giovenni Levi narrar a vida de um homem abstraindo-se de qualquer fato histérico”.” ‘Também poder-se-ia dizer que houve épocas — talvez mais préximas — fem que era possivel relatar um fato histérico abstraindo-se de qualquer destino individual. Vivemos hoje uma fase intermediéria: mais do que nunca a biografia esta no centro das preocupagées dos historiadores, mas denuncia claramente suas ambigiiidades. Em certos casos, recorre-se a ela para sublinhar a irredutibilidade dos individuos e de seus comportamentos a sistemas normativos gerais, levando em consideragio a experiéncia vi vida; j& em outros, ela € vista como 0 terreno ideal para provar a vali dade de hipéteses cientificas concernentes &s priticas e ao funcionamento efetivo das leis e das regras sociais. Arnaldo Momigliano assinalou a0 mesmo tempo a ambigitidade e a fecundidade da biografia: por um lado, “pio admira que a biografia esteja se instalando no centro da pesquisa hist6rica, Enquanto os primérdios do historicismo tornam mais complexas quase todas as formas de histéria politica e social, a biografia permanece algo relativamente simples. Um individuo tem limites claros, um mimero restrito de relagGes significativas... A biografia se abre a todo tipo de pro: J Tevi, Giovanni. Les usages de la biographie. Annales. Paris (6):1.325-36, nov/dée. 1969, » Queneau, Raymond. L’histoire dans le roman. Front National, 4(8), 1946. 168 Usos & ANUEOS DA HISTORIA ORAL blemas dentro de fronteiras bem definidas".? Por outro lado, no entanto, os historiadores sero um dia capazes de enumerar os incontdveis as~ pectos da vida? Doravante a biografia assume um papel ambfguo em his: téria: pode ser um instrumento da pesquisa social ou, a0 contrério, propor ‘uma forma de evité-la"? Nio pretendo retomar um debate que sempre foi inerente &s ciéncias sociais ¢ A historiografia e que Pierre Bourdieu qualificou, com sua salutar ferocidade, de absurdo cientifico.* Mas creio que, num perfodo de crise dos paradigmas e de questionamento construtivo dos modelos in- terpretativés aplicados 20 mundo social, o recente entusiasmo dos histo- Fiadores pela biografia e a autobiografia merece algumas observagbes que podem coftribuir para a reflexdo reclamada pelo editorial dos Annales (n. 2, 1988). ‘A meu ver, a majoria das questées metodolégicas da historio grafia contemporinea diz respeito & biografia, sobrerudo as relagdes com fas eiéncias sociais, os problemas das escalas de anilise e das relacdes en- tre regras priticas, bem como aqueles, mais ‘complexos, referentes aos limites da liberdade e da racionalidade humanas. Um primeito aspecto significative refere-se as relacdes entre his- téria e narrativa, A biografia constitui na verdade o canal privilegiado através do qual os questionamentos e as técnicas peculiares da literatura se transmitem 2 historiografia. Muito jé se debateu esse tema, que con- ceme sobretudo as téenicas argumentativas utilizadas pelos historiadores. Livre dos entraves documentais, a literatura comporta uma infinidade de modelos e esquemas biogréficos que influenciaram amplamente os histo- riadores. Essa influéncia, em geral mais indireta do que direta, suscitou problemas, questées e esquemas psicolégicos ¢ comportamentais que Pu- seram 0 historiador diante de obstaculos documentais muitas vezes in- F omigano, Arnaldo, Sroricsmo rivistao, In: Fondamenct dela storia ants. Torino, 1984 p. 464 smomigliano, Amaldo. Lo svluppo delta biografia greca. Torino, 1974. p. 8 + CA oposigh centicamente absurda entre individue e sociedade.”) Bourdieu, Pierre Fieldwork in philosophy. In: Choses dives. Paris, 1987. p. 43. entanto, Annales historio- ‘entre his- fvilegiado literatura que con 0s histo: suseitou transponiveis: a propésito, por exemplo, dos atos ¢ dos pensamentos da vida cotidiana, das dividas e das incertezas, do cardter fragmentério e di namico da identidade e dos momentos contraditérios de sua constituigao. CObviamente as exigéncias de historiadores ¢ romancistas no so ‘as mesmas, embora estejam aos poucos se tornando mais parecidas. Nosso fascinio de arquivistas pelas descrigdes impossiveis de corroborar por falta de documentos alimenta néo sé a renovacao da histéria narrativa, como, também o interesse por novos tipos de fontes, nas quais se poderiam des cobrir indiqjos esparsos dos atos e das palavras do cotidiano. Além disso, reacenden 0 debate sobre as técnicas argumentativas e sobre 0 modo pelo qual a pesquisa se transforma em ato de comunicacao por intermédio de xt escrito. Pode-se escrever a vida de um individuo? Essa questéo, que le vanta pontos importantes para a historiografia, geralmente se esvazia em meio a certas simplificagdes que tomam como pretexto a falta de fontes. Meu intento é mostrar que essa no é a tinica e nem mesmo a principal dificuldade, Em muitos casos, as distorgdes mais gritantes se devem a0 fa- to de que nés, como historiadores, imaginamos que 0s atores histéricos obedecem a um modelo de racionalidade anacrénico € limitado. Seguindo uma tradigdo biogréfica estabelecida e a prdpria retorica de nossa disci plina, contentamo-nos com modelos que associam uma cronologia orde- nada, uma personalidade coerente ¢ estivel, ages sem inércia e decisoes um t sem incertezas. Nesse sentido, Pierre Bourdieu falou acertadamente de “ilusio biogréfica’, considerando que era indispensével reconstruir 0 contexto, a “superficie social” em que age 0 individuo, numa pluralidade de campos, a cada instante.> Porém a diivida com relagdo & prépria possibilidade da biografia é um fator recorrente. A biografia publica, exemplar, moral, néo foi objeto de um questionamento progressivo; foram antes oscilagdes, sem- pre em relagdo estreita com os momentos de crise na definigéo da racio- nalidade e também com 0s momentos em que 0 confronto entre individuo T pourdieu, Plere. L'llsion biographique. Actes de la Recherche en Sclences Sociales (62463) 69-72, juin 1986. Histon O#n ¢ instituigdes se tornou mais agudo. Isso foi evidentemente o que sucedeu durante boa parte do século XVIII com 0 debate que se estabeleceu acerca da possibilidade de escrever a vida de um individuo. Partindo do romance (Steme, Diderot), porquanto este tentava construir a imagem de um ho- mem complexo, contraditério, cujo carster, opinides e atitudes estavam em perpétuia formagio, essa crise chega & autobiografia (Rousseau) ¢ final mente biografia propriamente dita. Tal periodo apresenta muitas ana. logias com 0 nosso: a consciéncia de uma dissociago entre o personagem social e a percepgao de si adquire ai particular intensidade. Os limites da biografia foram entio claramente percebidos, a0 mesmo tempo que se as- sistia ao triunfo do género biogréfico. Maite Mauss assim descreve a diferenca entre personagem so- cial e percepedo de si: “f evidente, sobretudo para nés, que nenhum ser humano deixou jamais de ter a percepcio nao apenas de seu corpo, mas também de sua identidade espiritual e corporal ao mesmo tempo”. ‘To: davia essa percepcdo do eu ndo corresponde ao modo pelo qual “ao lon go dos séculos, em intimeras sociedades, se elaborou lentamente nao a percepcao do ‘eu’, mas a nogio, o conceito”.° De fato, parece evidente que em certas épocas a nogio de si socialmente construida foi particu- larmente restrita: em outras palavras, 0 que era tido como socialmente determinante e comunicével apenas encobria de maneira bastante inade quada o que a prépria pessoa considerava essencial. Esse problema, hoje colocado as claras, € 9 mesmo que o séeulo XVIII havia explicitamente formulado, Podemos entio partir de alguns exemplos do século XVIII. Tris- tram Shandy, de Steme, pode ser considerado primeiro romance mo- derno precisamente por ressaltar a extrema fragmentagdo de uma biografia individual. Tal fragmentacdo se traduz pela constante variagao dos tempos, pelo recurso a incessantes retornos e pelo cardter contradi- tério, paradoxal, dos pensamentos e da linguagem dos protagonistas. Po- de-se acrescentar que didlogo entre Tristram, o autor e o leitor é um dos tragos caracteristicos do livro. Trata-se de um meio eficaz de construir © Mauss, Marcel. Socologle et anthropologie. & ed. Paris, PUI, 1989. p. 335 sucedew acerca romance um ho- vam em final: jconstruir uma narrativa que dé conta dos elementos contraditérios que constituem a identidade de um individuo e das diferentes representagées que dele se possa ter conforme os pontos de vista e as épocas. Diderot era um grande admirador de Sterne e concordava com sua opiniio de que a biografia era incapaz de captar a esséncia de um individuo. Ndo que rejeitasse 0 genero biogréfico; entendia, mais preci- samente, que a biografia, embora incapaz de ser realista, tinha uma fun- Gio pedagégica na medida em que apresentava personagens célebres revelava-lies as virtudes piiblicas e os vicios privados. Alids, muitas vezes Diderot acalentou o projeto de escrever uma autobiografia, antes de con- luir pela sua impossibilidade.” Mesmo assim sua obra esté repleta de alu- ses autobiogréficas, cujos exemplos mais caracteristicos se encontram em estado fragmentéirio em Jacques o fatalista. Aqui o problema da individua lidade é resolvido pelo recurso ao didlogo: 0 jovem Jacques e seu velho mestre tém cada qual sua propria vida e trocam seus pontos de vista ¢ nao raro seus papéis. Dessa colaboracéo dialégica € concertada nasce um personagem (em boa parte autobiografico) que parece ao mesmo tempo jovem e velho. Verdade ¢ ilusdo literaria, autobiografia e multiplicagao dos personagens tém lugar nessa oscilagao; cada momento particular, tomado isoladamente, s6 pode ser uma deformagao em relagdo 4 construcio de personagens que no obedecem a um desenvolvimento linear ¢ que ndo seguem um itinerdrio coerente ¢ determinado. Passemos agora a um exemplo clissico de autobiografia: as Con. fissdes de Rousseau. A primeira vista, esse exemplo parece contradizer a impressio de que na segunda metade do século XVIII chegou-se a duvidar da possibilidade de fazer uma autobiografia. Rousseau nio 36 acreditava ser possivel (talvez somente para ele) narrar a vida de um homem, como também entendia que essa narrativa podia ser totalmente veridica: “Eis 0 tinico retrato de homem, pintado exatamente ao natural ¢ em toda a sua verdade, que existe e que provavelmente jamais existira". Logo de saida, mal comeca a escrever, 0 autor se vé diante de um projeto que talvez seja possivel, mas que em todo caso seré tinico: “Tenho em mente um projeto do qual jamais houve exemplo e cuja execugao no terd nenhum imita- dor’. De certo modo, o futuro mostraria que ele estava errado. bem co- ‘Quanto as opiniées de Diderot e de Rousseau sobre a biograia e a autobiogrfia, ver Bon 172 Usos 4 Anusos b4 HistONA OFAL nnhecida a acolhida que tiveram as Gonfissdes: quando Rousseau submeteu seu manuscrito & leitura, ele foi, segundo suas palavras, malcompreendido fe malinterpretado. A autobiografia era possivel, mas ni se podia comu- nicar sua verdade. Ante essa impossibilidade, no de evocar sua propria vida, mas de conti-la sem que fosse deformada ou alterada, Rousseau pre feriu desistir, Também ele pensava que s6 existia uma solugdo narrativa, 1a do didlogo, e nos anos que se seguiram a redagio das Confissées ele re- tomou seu teor sob a forma dialogal em Jean-Jacques julga Rousseau, pro cedendo assim a um desdobramento de seu personagem. Para Rousseau, assim como para Diderot ou Sterne (e anteriormente Shaftesbury, que foi talver o inspiradorjdessa solucdo), © didlogo nao era apenas o meio de criar uma comunicagdo menos equivoca; era também uma forma de res- tituir a0 sujeito sua individualidade complexa, livrando-o das distorgSes da biografia tradicional que pretendia, como numa pesquisa entomolégica, observi-lo € dissecé-lo objetivamente. Essa crise, que merecia ser analisada mais detidamente, comecou no romance e estendeu-se & autobiografia. Mas s6 teve repercussio limi- tada na biografia histérica (ainda que fosse conveniente dever-se mais na vida de Johnson escrita por Boswell e em particular no papel da imagi- agi na reconstrucdo dos dislogos pelo autor. Mas também aqui 0 pro- blema da relagdo entre autor e personagem remete as observagdes anteriores sobre 0 desdobramento dos pontos de vista).® Chegou-se a um meio-termo na biografia moral, que na verdade renunciava & exaustivi dade © a veracidade individuais para buscar um tom mais didético, acres- centando as vezes paixdes ¢ emogdes a0 conteuido tradicional das biografias exemplares, a saber, 05 feitos e as atitudes do protagonista. A bem dizer, essa simplificagéo supde uma certa confianca na capacidade da biografia para descrever o que é significativo em uma vida. Tal confianca culminaria aliés no positivismo ¢ no funcionalismo, com os quais a selegao de fatos significativos iria acentuar 0 caréter exemplar € tipolégico das biografias, privilegiando a dimensdo piblica em vez da dimensio privada e considerando insignificantes os desvios dos modelos propostos. ‘Todavia a crise ressurgiu no século XX, ligada ao advento de no- ‘vos paradigmas em todos 0s campos cientificos: crise da concepydo me- 7 ver bowing, William C. Boswell and the problem of biography. In: Aaron, Daniel (ed. “eudies in biography. Cambridge, Mass, Cambridge University Press, 1978. p. 73-93. canicista literatura mais as pt descrigao. podia e 4 lei de pro assim, tué Nesse con existéncia ciente, lev ea ilusde nio € ser mirfade 4 no foi pt possibile pria come ‘suas Cont com que verse, Mi uo segunt tituir hoje fica, Com sociaist € tivos 4 € modo mé de relagé anilise d levantam temente ver mais nao nos mente a neutralié 24 HisIOIA Ota sos ba siooatia bs 1 submeten canicista. na fisica, surgimento da psicandlise, novas tendéncias na smpreendide literatura (basta citar os nomes de Proust, Joyce ¢ Musil). J& nfo s#o podia comu- mais as propriedades e sim as probabifidades que constituem 0 objeto da sua prépria descrigio. A cigncia mecanicista repousava na estrita delimitagéo do que Rousseau pre: podia e devia se produzir nos fenémenos naturais. Veio substituf-la uma 0 narrativa, Tei de proibigdo que, a0 contrério, definia o que nao podia se produzi: Bes ele re- assim, tudo © que pode suceder sem contradizé-la faz parte dos fatos. Rousseau, pro- Nesse contexto, é essencial conhecer 0 ponto de vista do observador; a xa Rousseau, existéngia de uma outra pessoa em nés mesmos, sob a forma do incons- nary, que foi ciente, levanta o problema da relacio entre a descrico tradicional, linear, © meio de ea iluséo de uma identidade especifica, coerente, sem contradigio, que forma de tes ‘nao é senfo o biombo ou a méscara, ou ainda o papel oficial, de uma distorcdes da mirfade de fragmentos e estilhacos. “entomolégica, 'A nova dimensfo que a pessoa assume com sua individualidade no foi portanto a tinica responsdvel pelas perspectivas recentes quanto & te, comegou possibilidade ou impossibilidade da biografia. De modo sintomitico, a pr6- pria complexidade da identidade, sua formacio progressiva ¢ néo-linear e| Sas ContTadigbes Se tornaram of protagonistas dos problemas biogrficos com qué $ deparam 0s historiadores. A biografia continuo a desenvol- verse, mas de forma cada vez mais controversa e problematica, relegando,// ‘0 segundo plano aspectos ambiguos e itresolutos que me parecem cons: tituir hoje um dos principais focos de confronto na paisagem historiogré- fica, Como pano de fundo, temos uma nova abordagem das estruturas _soviaist em particular, a reconsideracio das anélises dos conceitos rela: tivos & estratificagéo € & solidariedade socials nos induz. a apresentar de modo menos esquemitico os mecanismos pelos quais se constituem redes de relagées, estratos ¢ grupos sociais. A medida de sua solidariedade e a i andlise da maneira pela qual se fazem e desfazem as configuracdes sociais Jevantam uma questio essencial: como os individuos se definem (conscien/’ temente ou nfo) em relagio ao grupo ou se reconhecem numa classe? aqui 0 pro- observacies se a um & exaustivi: confianga, a selecdo De uns anos para cé, os historiadores tém pois se mostrado cada ‘ver mais conscientes desses problemas. Todavia as fontes de que dispomos nndo nos informam acerca dos processos de tomada de devises, mas so- a mente acerca dos resultados destas, ou seja, acerca dos atos, Essa falta de neutralidade da documentagao leva muitas vezes a explicagdes monocau- \74 Usos 4 Anute sais ¢ lineares. Fascinados com a riqueza das trajetorias individuais ¢ a0 mesmo tempo incapazes de dominar a singularidade irredutivel da vida de lum individuo, os historiadores passaram recentemente @ abordar 0 pro blema biogrifico de maneiras bastante diversas. Proponho-me formular ‘uma tipologia dessas abordagens, certamente parcial, mas que visa a lan- car luz sobre a complexidade irresoluta da perspectiva biogrifica Prosopografia e biografia modal. Nessa dtica, as biografias indi viduais sé despertam interesse quando ilustram os comportamentos ow as aparéncias ligadas as condicées sociais estatisticamente mais fregiientes. Portanto nao g trata de biografias veridicas, porém mais precisamente de (/ uma utilizagao de dados biogrificos para fins prosopogréficos. Os elemen- tos biogréficos que constam das prosopografias s6 siio considerados his- toricamente reveladores quando tém alcance geral. Nao € por acaso que os historiadores das mentalidades praticaram a prosopografia mostrando pouco interesse pela biografia individual. Michel Vovelle escreveu a esse respeito: “Adotando as abordagens da histéria social quantitativa, quisemos introduzir, no préprio campo da histéria das mentalidades, a histéria das ‘massas, dos andnimos, em suma, dos que jamais puderam dar-se ao luxo de uma confissio, por menos que seja literéria: 0s excluidos, por defini go, de toda biografia’? No fundo, a relagio entre habitus de grupo ¢ habitus individual estabelecida por Pierre Bourdieu remete a selegdo entre o que € comum fe mensurdvel, “o estilo proprio de uma época ou de uma classe”, ¢ 0 que diz respeito & “singularidade das trajet6rias sociais": “na verdade, é uma relacéo de homologia, isto €, de diversidade na homogeneidade, que re flete a diversidade na homogeneidade caracteristica de suas condigées so- iais de produgdo e que une os habitus singulares dos diferentes membros de uma mesma classe. Cada sistema de disposicées individuais é uma va- riante estrutural dos demais (..), 0 estilo pessoal ndo & senao um desvio ‘em relagio ao estilo proprio de uma época ou de uma classe”. A infini dade de combinagdes possiveis a partir de experiéncias estatisticamente comuns as pessoas de um mesmo grupo determina assim “a infinidade de diferengas singulares” e também “a conformidade ¢ estilo” do grupo.!° Também aqui os afastamentos € os desvios, uma vez assinalados, parecem > Yovelle, Michel. De la biographie & étude de eas. In: Problémes et méthodes de la bio- sgrophie. Paris, 1985, p. 191. (Aras do coléquio, maio 1985.) 10 Bourdieu, Pierre. Esquiste dune théorie de la pratique. Gendve-Paris, 1972. p. 186-9 reme dade ficag iis Bout cons ea nas gica His dividuais e a0 jel da vida de abordar © pro- ne formular leue visa a lan- rifica, Biografias indi sntos OU as s fregitentes. isamente de Os elemen- jerados his- Heer acaso que 2 mostrando weu a esse quisemos historia das se a0 luxo por defini- individual € comum eo que membros é uma va- am desvio A infini- icamente 175 remeter-se ao que é estrutural e estatisticamente proprio do grupo est dado, Tal abordagem comporta certos elementos funcionalistas na identi ficacdo das normas ¢ dos estilos comuns aos membros do grupo € na re- jeigdio dos afastamentos ¢ dos desvios tidos como nao significativos. Pierre Bourdieu levanta tanto a questio do determinismo quanto a da escolha consciente, mas a escolha consciente ¢ antes constatada do que definida, € a énfase parece recair mais nos aspectos deterministas ¢ inconscientes, nas “estratégias” que néo sdo fruto “de uma verdadeira intengao estraté dal por picas de Esse tipo de biografia, que poderiamos chamar de m quanto as biografias individuals s6 servem para ilustrar formas 1 comportamento ou status, apresenta muitas analogias com a prosopogra- de uma pessoa singular fia: na verdade, a biografia ndo 6, nesse caso, e sim a de um individuo que concentra todas as caracteristicas de um giupo. Alids, é prética corrente emunciar primeiro as normas as regras cstruturais (estruturas familiais, mecanismos de transmissio de bens e de autoridade, formas de estratificagdo ou de mobilidade sociais etc.) antes de apresentar os exemplos modais que intervém na demonstraclo a titulo de provas empiticas, Biografia ¢ contexto. Nesse segundo tipo de utilizacdo, a biografia conserva sua especificidade. Todavia a época, o meio e a ambiéncia também $40 muito valorizados como fatores capazes de caracterizar uma atmosfera que explicaria a singularidade das trajetérias, Mas 0 contexto remete, na verdade, a duas perspectivas diferentes. For um lado, a reconstituigao do context histérico e social em que se desenrolam os acontecimentos permite compreender o que & primeira vista parece inexplicivel e desconcertamte. E © que Natalie Zemon Davis define, aludindo a seu trabalho sobre Martin cultural ou uma forma de compor Guerre, como “reintroduzir uma pri tamento no quadro das prétieas culturais da vida no século XVI"."! Do mes: mo modo, a interpretagao proposta por Daniel Roche para compreender set hher6i, 0 oficial de vidraria Ménétra, tende a normalizar comportamentos que perdem seu carater de destino individual na medida em que sao tipicos ‘um meio social (no caso, 0 do compagnonnage e dos arteséios franceses do final do século XVII) e que afinal contribuem para o retrato de uma Savio, Natalie Zemon. AHR Forum: the return of Martin Guerre. On the lame. American | 176 Usos & Anusce 04 HisTona OFA época ou de um grupo.'? Portanto nao se trata de reduzir as condutas a comportamentos-tipos, mas de interpretar as vicissitudes biogréficas & luz de tum contexto que as tome possiveis e, logo, normals, Por outro lado, © contexto serve para preencher as lacunas do- cumentais por meio de comparagées com outras pessoas cuja vida apre senta alguma analogia, por esse ou aquele motivo, com a do personagem tstudado. Vale lembrar que Franco Venturi, em sua Juventude de Diderot, reconstituiu os primeiros anos da vida de seu personagem praticamente sem documentacao direta. “De modo geral, porém, os poucos fragmentos {que nos restem sobre a primeira parte de sua vida ou tém um valor pu- ramente anedético ou pouco se distinguem das caracteristicas gerais da época da juventude de Diderot. Para tornar interessante uma tentativa de reconstituigdo da biografia de seus primeiros anos, € indispensével ampliar tanto quanto possfvel em torno dele o mimero de pessoas e de movimen: tos com os quais ele entrou ento em contato, reconstituir em torno dele 6 seu meio, multiplicar os exemplos de outras vidas que tenham algum pa- ralelo com a sua, fazer reviver em tomo dele outras pessoas jovens. ssa utilizagdo da biografia repousa sobre uma hipétese implicita que pode ser assim formulada: qualquer que seja a sua originalidade apa- Tente, uma vida no pode ser compreendida unicamente através de seus desvios ou singularidades, mas, a0 contrério, mostrando-se que cada des- vio aparente em Telaggo 88 normas ocorre em um contexto histdrico que o justifien. Essa perspectiva deu dtimos resultados, tendo-se em geral con seguido manter 0 equilibrio entre a especificidade da trajetéria individual € 0 sistema social como um todo. Pode-se alegar, no entanto, que o con- texto é freqiientemente apresentado como algo rigido, coerente, e que cle serve de pano de fundo imével para explicar a biografia. As trajetérias in dividuais esto arraigadas em um contexto, mas nao agem sobre ele, no © modificam. 'A Diografia € 0s casos extremos. As vezes, porém, as biografias so usadas especificamente para esclarecer 0 contexto. Nesse caso, 0 con- texto nio & percebido em sua integridade e exaustividade estéticas, mas por meio de suas margens. Deserevendo os casos extremos, lanca-se luz precisamente sobte as margens do campo social dentro do qual sfo pos- 2 ache, Daniel (62). Journal de ma vie. Jacques-Louis Ménétra, compagnon vitrier au 18 sidce. Pals, 1982. p. 9-26 © 287-429, 13 veneuti, Franco. Jeunesie de Diderot (de 1713 & 1753). Paris, 1999. p. 16. wistona Onat sos os ploseana condutas a siveis esses casos. Podemos citar aqui novamente 0 artigo de Michel Vo- s a luz de velle sobre a biografia: “O estudo de caso representa 0 retomo necessétio experincia individual, no que ela tem de significative, mesmo que pos- Jecunas do- sa parecer atipica (.... O retomno a0 qualitative por meio do estudo de vida _apre caso responde a um movimento dialético no campo da histéria das men- Personagem talidades, A meu ver, em vez de negar as abordagens seriais quantificadas, de Diderot, ele as complementa, permitindo uma andlise em profundidade que prefere ‘aos heréis de primeiro plano da histéria tradicional os depoimentos da normalidade (...) ou os aportes mais ambiguos, porém talvez ainda mais ricos, to depoimento extremo de um personagem em situagio de ruptura’ (Vovelle alude aqui a seus estudos sobre Joseph Sec ¢ Théodore Desor- gues). De modo ainda mais claro, em sua biografia de Menocchio, Carlo Ginzburg analisa a cultura popular através de um caso extremo, € nao de en tum caso modal: “Em suma, mesmo um caso extremo (...) pode revelar eenosdele: se representativo. Seja negativamente — pois ajuda a precisar 0 que se deve entender, numa dada situagio, por ‘estatisticamente mais freqiente’, seja positivamente — pois permite identificar as possibilidades latentes de algo (a cultura popular) que s6 conhecemos através de uma documenta: cio fragmentéria e deformada”.'° ‘Também aqui o paralelo com a literatura é surpreendente. O per- sonagem naturalista tradicional é gradativamente relegado ao segundo pla- no, enquanto a natrativa do absurdo — como em Beckett, por exemplo — garante a solugio dos casos extremos. “O maior trunfo do personagem tradicional do romance era sua possibilidade ou sua liberdade de travar lum combate, vitorioso ou no, contra a ameaca das situagdes extremas. € que cle Ba di isso residia sua forga dramatica. Hoje, & como se os partidérios do “per- individual © con- sonagem-homem’” nao tivessem outro recurso senio substituir as situagdes extremas por situagies dramaticas. Seus destinos de aventureiros, vaga- bundos, excéntricos ¢ coléricos parece sait de um moinho mecénico que procura gerar movimento na fixidez atipica ¢ situacdes extremas sem sal- da’! Mas também nessa dtica 0 contexto social € retratado de modo de- ele, nao Biografias , 0 €or s, mas se luz 1% yovelle, Michel. 1985:197, Referéncias a L'irésitble ascersion de Joseph See, bourgeois / taix, suri de quelques elés pour ta lecture de naifs. Aix-en-Provence, 1957 ¢ Théodore Desorgues ow la désorganiztion. Paris, 1985. 1 Ginzburg, Carlo. Le fromage et le vere: Cuniers d'un meuner du XVfe sie, Pais, Fam rarion, 1988. p. 220, 1© Debenedett, Giacomo, It personagio uomo. Milano, 1970, p. 30. 178 105 ABUSOS D4 HisrorIA OFA masiado rigido: tragando-he as margens, 0s casos extremos aumentam a liberdade de movimento de que podem dispor os atores, mas estes per dem quase toda ligagao com a sociedade normal (nesse sentido, 0 caso de Pierre Rivigre é exemplar). Biografia e hermenéutica. A antropologia interpretativa certamen- te salientou 0 ato dialégico, essa troca e essa alternancia continuas de perguntas e respostas no seio de uma comunidade de comunicacao, Nessa perspectiva, o material biogréfico tomna-se intrinsecamente discursivo, mas ho se consegue traduzir-lhe a natureza real, a totalidade de significados que pode assinir: somente pode ser interpretado, de um modo ou de ou- tro. © que se torna significative € 0 proprio ato interpretativo, isto é, 0 processo de transformacao do texto, de atribuigdo de um significado a um ato biogréfico que pode adquirir uma infinidade de outros significados ‘Assim, 0 debate sobre 0 papel da biografia na antropologia tomou um ru mo promissor porém perigosamente relativista.'” Mas a histéria que se seia em arquivos orais ou que procura introduzir a psicandlise na pesquisa histérico-biogréfica sé se deixou influenciar de modo intermitente e frig ‘Aqui, como no século XVIII, 0 didlogo estd na base do processo cognitivo. © conhecimento no é resultado de uma simples descricio objetiva, mas de um processo de comunicacio entre dois personagens ou duas culturas No fundo, essa abordagem hermenéutica parece redundar na im possibilidade de escrever uma biografia. Mesmo assim, ao sugerir que € preciso abordar 0 material biogréfico de maneira mais problemética, re- jeitando a interpretaglo univoca das trajet6rias individuais, ela estimulou 4 reflexdo entre 05 historiadores, levando-os a utilizar as formas narrativas de modo mais disciplinado e a buscar téenicas de comunicagao mais sen siveis ao cardter aberto ¢ dindmico das escolhas e das agées, Essa tipologia das utilizagdes e das indagagées que se fazem hoje a respeito da biografia nao pretende esgotar todas as possibilidades ou préticas: poderiamos mencionar outros tipos, como por exemplo a psi Betkeley-Los An. 7 vex por exemplo, Rabinow, Paul. Reflections on fieldwork in Mo eles, 1977, ov ainda Crapanzano, Vincent. Tuhemi. Portrait of @ Moroccan, Chieago-London, 1980. cot que ori mit fac sis mentam a estes per © caso de certamen- significados ou de ou: isto 6, 0 cado a um [Significados. rea pesquisa te frdgil cognitive: culturas, dar na im rir que é ematica, re estimulou narrativas se fazem sibilidades plo a. psi ve cobiografia, mas esta comporta tantos elementos equivocos ou contestéveis que no me parece ter hoje grande importancia. Os principais tipos de orientago aqui enumerados sucintamente tepresentam pois 0s novos ca- minhos trilhados pelos que procuram utilizar a biografia como instrumen- to de conhecimento histérico ¢ substituit a tradicional biografia linear factual, que mesmo assim continua existir ¢ vai muito bem. Trata-se porém de solucées parciais, que ainda apresentam as- pectos bastante probleméticos. A biografia ¢ pois um tema que precisamos debater, afastando-nos talvez. da tradigio dos Annales, mas atendo-nos aos protijemas que nos parecem hoje particularmente importantes: relagio centre normas e praticas, entre individuo e grupo, entre determinismo ¢ Ii berdade, ou ainda entre racionalidade absoluta e racionalidade limitada. Minha intencio é to-somente colocar em debate alguns temas e ressaltar que as quatro orientagdes mencionadas tém em comum 0 fato de passar em silencio por questdes fundamentais. Estas dizem respeito sobretudo a0 papel das incoeréncias entre as préprias normas (e nao mais apenas as ‘a norma e seu efetivo funcionamento) no seio de cada contradigdes entre idade atribuido aos sistema social; em segundo lugar, ao tipo de racionali atores quando se escreve uma biografia; ¢, por fim, a relagao entre um grupo e 0s individuos que 0 compéem. 3 Trata-se principalmente de um problema de escala e de ponto de vista: se a énfase recai sobre 0 destino de um personagem — € ndo sobre a totalidade de uma situacdo social —, a fim de interpretar a rede de relagdes € obrigagdes externas na qual ele se insere, & perfeitamente possivel conceber de outro modo a questo do funcionamento efetivo das normas sociais. De modo geral, os historiadores consideram pacifico que todo sistema normativo sofre transformagées ao longo do tempo, mas que ‘num dado momento ele se torna totalmente coerente, transparente € €s- s indagar mais sobre a ver- tavel. Parece-me, a0 contririo, que deveriam dadeira amplitude da liberdade de escolha, Decerto essa liberdade nao absoluta: culturalmente e socialmente determinada, limitada, pacientemen- te conquistada, ela continua sendo no entanto uma liberdade consciente, que os intersticios inerentes aos sistemas gerais de normas deixam aos atores. Na verdade nenhum sistema normativo € suficientemente estrutu rado para eliminar qualquer possibilidade de escolha consciente, de ma- 180 Uses & Atusor 04 HisTOHIa OFAL niptlagio ou de interpretacio das regras, dé negociagéo. A meu ver @ iogratia € por isso mesmo o campo ideal para verificar o caréter ins tersticial — € todavia importante — da liberdade de que dispOem os agentes e para observar como funcionam concretamente 0s sistemas nor ratios, que jamais esto isentos de contradigdes. Obtém-se assim uma perspectiva diferente — mas nao contraditéria — daquela adotada pelos {que preferem salientar mais os elementos de determinagdo, necessérios ¢ inconscientes, como faz, por exemplo, Pierre Bourdieu. H4 uma relacdo permanente eifeciproca entre biografia ¢ contexto: a mudanga € precisa- tente a soma infinita dessas inter-relagdes. A importdncia da biografia ¢ permitir uma descrio das normas e de seu funcionamento efetivo, sendo teste considerado néo mais 0 resultado exclusivo de um desacordo entre regras e préticas, mas também de incoeréncias estruturais ¢ inevitivels en tre as propras normas, inoeréncias que autorizam a muliplicag20 e a di Tersfcnglo das prtias, Paece-me que assim eviamos abordar @ realidade histOrica a partir de um esquema tnico de ages e reacdes, mos trando, ao eontrario, que @ Feparticao desigual do poder, por maior e mais cosreriva qué Seja, sempre deixa alguma margem de manobra para os do- minados; estes podem entdo impor aos dominantes mudangas nada des preziveis Talver seja apenas uma nuafca, mas me parece que ndo se Pode analsar a Taudanga social sem que se reconheca previamente a exis tencia irredutivel de uma certa liberdade vis-d-vis as formas rigidas € as origens da reproducio das estruturas de dominagao. ‘ais consideragées convidam a uma reflexdo acerca do tipo de racionalidade que é preciso idealizar quando se tenta descrever os atos histéricos, Na verdade raramente nos afastamos dos esquemas funciona listas ou da economia neocldssica; e estes supdem atores perfeitamente in- formados e consideram, por convengio, que todos os individuos tem as mesmas disposigBes cognitivas, obedecem aos mesmos mecanismos de de cisio e agem em fungo de um edlculo, socialmente normal e uniforme, dde Tueros e perdas. Tais esquemas levam pois a construgéo de um homem inteiramente racional, sem duividas, sem incertezas, sem inércia. A maloria das biografias assumiria porém outra feigio se imaginéssemos uma forma de racionalidade seletiva que no busca exclusivamente a maximizacao do jucro, uma forma de ago na qual seria possivel abster-se de reduzir as A meu ver a © carter ins- dispdem os jotada pelos necessétios & uma relagéo é precisa Diografia é = homem IA maioria forma 181 individualidades a coeréncias de grupo, sem renunciar & explicaglo dina mica das condutas coletivas como sistemas de relacéo. * ‘sfora a caracteristica intersticial da liberdade individual e a questio’ da racionalidade limitada, creio que resta destacar um dltimo pohto. Roger Chartier afirmou recentemente que a oposicao entre “andlise micro-historica ou case studies” histéria sécio-econdmica, entre estudo da subjetividade das representacées e estudo da objetividade das estruturas, pode ser superada contanto que consideremos “os esquemas geradores de sistemas de classificagao e de percepcio como verdadeiras ‘instituigées so- ciais’, que incorporam sob a forma de representagdes coletivas as divisbes da organizacao social”.'® Tal observacao me parece plenamente justificada (exceto, talvez, pela identificagao da micro-histéria aos case studies e a0 estudo das representagGes subjetivas), porém insuficiente: se a énfase recai sobre 0 grupo, a relativa estabilidade das coeréncias © das coesbes de gru- po é tida como pacifica, assim como 0 fato de que elas constituem o nivel tinimo no qual se pode ainda estudar com proveito as representagoes do mundo social e 0s conflitos que elas provocam. A meu ver, privilegiando ‘a importincia do grupo, subestima-se o problema de sua constitui¢do, as- sim como a apreciagao de sua solidez, de sua durabilidade, de sua am- plitude, € conseqtientemente esvazia-se a questo da relagio entre indi- viduo e grupo. Chartier identifica deliberada e explicitamente as repre- sentagSes individuais as representagdes coletivas, como se sua génese fosse formalmente semelhante. certo que se descarta assim 2 observagio de grupos sociais e conceituais indeterminados (cultura popular, mentalidades, classes) para construir uma sociedade fragmentada e conflitante, na qual as represen. tacdes do mundo se tornam motivo de luta, Mas subsiste uma boa medida de indeterminagéo: os agregados de grupo sio dados como certos ¢ de finidos; estudam-se as lutas pelo poder e 0s conflitos sociais como se estes ocorressem entre grupos cuja coesdo ¢ pressuposta, como se a andlise das diferencas individuais — em wltima instancia to numerosas que se tor ® Chartee, Roger La storia cultur del sociale. Saggi di storia eulrurale. Torino, 1989. p. 14 fra tappresentazioni e pratiche. In: La rappresentaxione 182 nam impossiveis de interpretar — nada tivesse a acrescentar. Também aqui, trata-se talvez de mera questéio de ponto de vista: insistindo na “ge- nese social das estruturas cognitivas” e no aspecto “de incorporagio, sob forma de disposicées, de uma posico diferencial no espaco social”, deixa: se vaga a atividade dos atores, concebida unicamente como o resultado de “incontaveis operagdes de ordenacao pelas quais se reproduz ¢ se trans forma continuamente a ordem social”.!? A nogdo de apropriagéo sob for ma de “uma histéria social dos habitos e das interpretagies, ligados suas determinacdes fundamentais (que sio sociais, institucionais, culturais) ¢ inseridos nas $priticas especificas que os produzem",?° por mais impor- tante e itil que seja, também deixa em aberto o problema da relacéo en tre individuo e grupo. Nao se pode negar que ha um estilo préprio a uma época, um habitus resultante de experiéncias comuns e reiteradas, assim como ha em cada época um estilo préprio de um grupo. Mas para todo individuo existe também uma considerdvel margem de liberdade que se origina precisamente das incoeréncias dos confins socials e que suscita a mudanga social. Portanto néo podemos aplicar os mesmos procedimentos cognitivos aos grupos e aos individuos; e a especificidade das ages de ca da individuo nao pode ser considerada irtelevante ou nao pertinente. Pois © risco, nao banal, é subtrair & curiosidade histérica temas que julgamos dominar plenamente, mas que ainda continuam largamente inexplorados: por exemplo, a consciéncia de classe, ou a solidariedade de grupo, ou ain- da os limites da dominagao e do poder. Os conflitos de classificagées, de distingSes, de representacées interessam também a influéneia que o grupo socialmente solidario exerce sobre cada um dos membros que 0 compéem, all de Tevelarem as margens de berdade e de coagio dentro das quais se constituem e funcionam as formas de solidariedade. Creio que, nessa perspectiva, a biografia poderia permitir um exame mais aprofundado des ses problemas. ¥ ® pourdieu, Pere. La nobles deat. Gran et esprit de corps, Paris, Minit, Le sens ccommum, 1989. p. 9. 2 chart, 1989%21 que + mui dalhz supo no junte uma mum

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